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INSTITUTO POLITÉCNICO DE LEIRIA

ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE LEIRIA


CURSO DE COMPLEMENTO DE FORMAÇÃO
EDUCADORES DE INFÂNCIA, 2º ANO.

VIDAS DE INFÂNCIA NO
REGUENGO DO FETAL

Estudos de Comunidade
Docente: José Trindade

Elaborado por: Andreia Fernandes


Catarina Santos
Licínia Ferreira
Marina Pereira
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Leiria, Junho de 2004.

VIDAS DE INFÂNCIA NO
REGUENGO DO FÉTAL

Estudos de comunidade

Elaborado por: Andreia Fernandes


Catarina Santos
Licínia Ferreira

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Marina Pereira

ÍNDICE Página

INTRODUÇÃO 4
CAPÍTULO I – Alguns conceitos relevantes 5
CAPÍTULO II – Metodologia utilizada 12
CAPÍTULO III – Caracterização do Reguengo do Fetal 13
3.1. Há vinte anos atrás 13
3.2. Nos tempos de hoje, que mudanças 14
3.3. Caracterização geográfica 15
3.4. Caracterização social, demográfica e económica da população 17
CAPÍTULO IV – Vidas de Infância 19
4.1. Na família 19
4.2. Na escola 23
4.3. Na rua com os amigos 27
Considerações finais 31
Bibliografia 33
Anexos 35

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ÍNDICE de GRAVURAS Página

FIGURA 1 – MAPA DE PORTUGAL CONTINENTAL 16


FIGURA 2 – FAMÍLIA DA DÉCADA DE 70 19
FIGURA 3 – MÃE COM FILHOS – DÉCADA DE 60 20
FIGURA 4 – CRIANÇAS A CUIDAR DE ANIMAIS – DÉCADA DE 70 21
FIGURA 5 – CRIANÇA NA LIDA DO CAMPO – DÉCADA DE 50 21
FIGURA 6 – TURMA DO 1º CICLO – ACTUAL 23
FIGURA 7 – TURMA DA ESCOLA PRIMARIA – DÉCADA DE 40 24
FIGURA 8 – TURMA DA ESCOLA PRIMARIA – DÉCADA DE 70 25

ÍNDICE de ANEXOS
INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA – CENSOS 2001 I
Entrevista a uma avó (Amália) II
Entrevista a um avô (Manuel) III
Entrevista a um pai (Joaquim) IV
Entrevista a uma mãe (Isabel) V
Entrevista a uma criança (Mariana) VI
Entrevista a uma criança (Joana) VII

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Introdução

No âmbito da disciplina de Estudos de Comunidade foi-nos proposto, pelo


professor José Trindade, o desenvolvimento de um estudo de caso. Deste modo incidimos
o nosso estudo na freguesia do Reguengo do Fétal, uma vez que uma de nós exerce a sua
actividade profissional na referida aldeia há cerca de nove anos, estando assim integrada
nesta comunidade.
O tema “Vidas de Infância” foi escolhido depois de alguma reflexão. Pretendemos
conhecer a infância de três gerações nascidas e vividas no Reguengo do Fétal, e ao mesmo
tempo registar quais as diferenças ou semelhanças que se podem estabelecer entre elas.
Para recolha de informação realizámos entrevistas, que analisámos posteriormente e
para a fundamentação teórica recorremos a obras que abordam os vários conceitos que
consideramos serem pertinentes, nomeadamente a comunidade, a infância, a família, a
escola e o jogo, entre outros.
Para a caracterização da freguesia do Reguengo do Fétal recorremos a dados
estatísticos disponíveis na Junta de Freguesia e na Câmara Municipal da Batalha.
Neste estudo fizemos uma abordagem a alguns conceitos utilizados ao longo do
trabalho, e uma breve caracterização histórica, geográfica, social, demográfica e
económica do Reguengo do Fétal. Depois de realizadas as entrevistas, considerámos que
poderíamos basear o estudo das “Vidas de Infância” em três aspectos fundamentais: a
família, a escola e o jogo.
O tratamento dos dados obtidos ocupa o capítulo central, e é neste que iremos fazer
o desenvolvimento do nosso tema.

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Capítulo I – Alguns conceitos relevantes

Nesta fase do trabalho, achamos oportuno apresentar alguns conceitos que


consideramos pertinentes para o desenvolvimento do nosso trabalho.
Começamos por referir Worsley, que questiona se será possível e útil descrever
como um todo uma comunidade, cuja vida é modificada por extractos de outras
comunidades e considera dois tipos de comunidade que diferem do modelo da aldeia
fechada em si mesma: comunidades dentro de comunidades e comunidades sobrepostas e
que se interpenetram.
Este autor considera que as comunidades funcionam como ímanes, exercendo a sua
atracção em determinados campos magnéticos, em áreas mais ou menos abrangentes.
Assim há imanes fortes que constituem grandes áreas de influência (como as cidades) e
imanes mais fracos com um poder de influência muito mais limitado (como o centro da
aldeia). Esses pólos de atracção constituem «uma gama completa de campos sociais
sobrepostos» (Worsley, 1983: 342), que podem não coincidir com as áreas geográficas,
pois não são fixos mas relativos, havendo diferentes «espécies de atracções – económicas,
familiares, religiosas, etc. – e não apenas uma força magnética indiferenciada» (Worsley,
1983: 343). Assim, o mesmo indivíduo pode ser atraído para diversos centros no mesmo
momento da sua vida, consoante a vertente que está em causa. As pessoas vivem dentro de
uma grande variedade de contextos «interactuando com diferentes grupos de pessoas em
função de objectivos diferentes» (Worsley, 1983: 346), sendo importante compreender
como os conjuntos múltiplos de relações sociais se relacionam uns com os outros e com as
regiões geográficas em que essas relações se desenrolam.
A propósito destas considerações, o autor conclui que a «noção de comunidades
dentro de comunidades e a sua extensão natural para abranger ordens sobrepostas e
interpenetrantes ou áreas de relações sociais, são, necessariamente, recursos analíticos».
Esta visão além de pôr de parte a visão de comunidade como conjunto unitário obriga-nos
também a não nos cingirmos à unidade e harmonia mas a observar igualmente «a divisão,
a especialização, o conflito e a competição» (Worsley, 1983: 347). Abandona-se assim, o
«modelo de uma unidade auto-suficiente para a análise de comunidades divididas e mal
definidas, nas quais as partes não definem necessariamente conjuntos completos e
coerentes» (Worsley, 1983: 347).

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Todos os elementos de uma comunidade se encontram envolvidos numa cultura que


os identifica. Neste sentido, Moisés Espírito Santo define cultura como sendo «a
configuração geral das normas e dos comportamentos aprendidos e dos seus resultados
cujos elementos constituintes são partilhados e transmitidos pelos membros de uma
sociedade, ou: é um sistema de valores, de normas e de raciocínios que se traduz em
juízos (coisa boa, má ou indiferente), modelos de comportamento, opções, abstenções ou
tabus, incluindo os valores religiosos. Genericamente, é o modo de um povo pensar e
agir» (Santo, 2000: 213).
Todos os membros de uma comunidade encontram-se numa unidade estruturada e
organizada, na qual estão interligados, podendo não possuir os mesmos valores, normas e
comportamentos, devido a alguma flexibilidade existente na mesma.
A cultura de uma sociedade encontra-se pré-existente ao nascimento de qualquer
individuo, transmitindo-se indefinidamente. A cultura é o produto da interacção entre os
indivíduos, «ela cumpre-se neles, transmite-se por eles e por eles se transforma» (Santo,
2000: 215).
A família e a escola são o produto e a continuidade dessa mesma cultura. Através
da educação familiar, são incutidos às crianças valores, atitudes e comportamentos a tomar.
A criança, sensivelmente por volta dos 6/7 anos de idade, terá as suas estruturas essenciais,
a sua personalidade formada, que irá determinar todo o seu percurso de vida numa
sociedade.
A escola surge como um complemento desse processo educativo, onde contribui
pouco para a construção da personalidade da criança, uma vez que os primeiros passos e os
mais importantes para a sua construção, foram dados ao longo da primeira e segunda
infâncias, no seio da família.
Segundo Raul Iturra, «a infância é um processo possível de se fixar entre o
nascimento e a puberdade, com formas de comportamento heterogéneas» (1997: 19). A
infância trabalha com o real, ainda que não entenda o seu contexto e o seu objectivo; ou
seja como Durkhein afirma: a criança vê os resultados da acção, não entende nem o
propósito nem a causa. (Iturra, 1997: 22).
As crianças não vêem para além do seu interesse pessoal e seu objectivo na vida,
pois na infância, não conseguem perceber que o seu corpo, mente e experiência crescem e
mudam. Assim como não sabem que existe um ideal social definido para os tornar

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indivíduos autónomos, competentes e concorrenciais no seu meio social, com corpos


disciplinados para produzir e reproduzir (Iturra, 1997: 25).
A cultura e a lei influenciam a vida da criança e preparam-na, desde muito cedo,
para entrar no mundo do trabalho. É no debate, e não na autoridade, que a infância aprende
e aprende enquanto ama.
Como confirma Ricardo Vieira «o tempo da infância acaba por ser um espaço
onde se forjam saberes, um espaço cheio se significados e construções sociais. [...] E não
só de desenvolvimento social mas também de desenvolvimento de aptidões: da atenção, da
concentração, da impulsividade, da reflexividade...» (1998: 107). Esta transmissão de
saberes e de valores é feita através de aprendizagem junto dos adultos. Daí que, cada
criança apreenda a realidade social de modos diferentes, pois esta constroí-se de acordo
com as interacções que vai tendo com a família, outros adultos com quem convive, com os
seus companheiros de escola e brincadeira. «Sugerem-se-lhe modelos a seguir, a imitar,
regras a respeitar» (Vieira, 1998: 108). A criança aprende e desenvolve o seu imaginário
perante o mundo que a rodeia, de acordo com as suas vivências, transmitidas na família
através da aprendizagem doméstica.
A aprendizagem doméstica no seio de uma família rural, faz-se essencialmente
através da transmissão oral e pela própria experiência. O saber da vida local, os saberes dos
ancestrais (trabalhos agrícolas e familiares) são transmitidos de pais para filhos desde
muito cedo, através da «…observação atenta e prolongada do concreto, de experiência
feita» (Moreira cit. in Iturra, 1996:54).
«Falar das vias de transmissão do conhecimento significa estabelecer os processos
de ensino/aprendizagem que se desenvolvem nos grupos domésticos quando predomina a
oralidade como forma de perpetuar e transformar os elementos da cultura local» (Moreira
cit. in Iturra, 1996:44). Essas aprendizagens encontram-se orientadas para o conhecimento
da natureza, da terra, dos animais, do ciclo das plantas, de como se cultiva a terra e, como
se utilizam os vários instrumentos de trabalho.
«O ensino e a aprendizagem realizam-se de forma contextualizada e em estreita
ligação com a acção, ocorrendo em situações precisas nas quais as crianças e jovens são
de facto, elementos activos» (Moreira cit. in Iturra, 1996:45). É um processo pragmático
que «coincide com uma utilidade pratica, onde a família conta com o trabalho dos seus
membros mais novos para assegurar a sua sobrevivência imediata, pelo que estes terão
que aprender a realiza-lo correctamente; por outro lado, só na medida em que aprendem

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a globalidade de conhecimentos que permite produzir e reproduzir, se garante a


continuidade do grupo social» (Moreira cit. in Iturra, 1996:45). Quando são muito
pequenos, observam primeiramente os mais velhos a trabalhar, depois são-lhes confiadas
tarefas, onde repetem muitas vezes a mesma acção, de modo a progredirem, «mantendo e
consolidando o saber que aprenderam pelo fazer-imitando» (Moreira cit. in Iturra,
1996:48).
Com a entrada na escola, a transmissão de conhecimentos passa a ter um carácter
mais teórico, que nem sempre vai de encontro aos saberes e experiências vividos até então.
Moisés Espírito Santo considera que, ao contrário do que se pensa em muitos
meios, a escolaridade influi pouco sobre a educação da criança, que aceita mais facilmente
as normas seguidas pelos seus parentes ou vizinhos do que aquelas que lhes pretendem
transmitir os mestres. Ainda assim, a escolaridade goza dum grande prestígio, é mesmo
sobrestimada pelos camponeses, que vêem nela uma possibilidade para a criança se libertar
das penosas tarefas agrícolas. “Ter estudos” equivale a adoptar comportamentos próprios
dos “senhores”, a libertar-se do trabalho manual (Santo, 1980: 94).
A este propósito, Raul Iturra, afirma que «parece um contra-senso dizer que nas
aldeias camponesas [...] se pode pensar em fugir à escola. [...] nas aldeias é ideia assente
que é por via da escola que se pode sair da vida dura que o trabalho rural implica»
(Iturra, 1990: 91). No entanto, de acordo com este autor, a escola não tem sabido acolher as
crianças dos meios rurais, dado que veicula um saber abstracto e despersonalizado
dificultando a passagem do saber local ao saber nacional (Iturra, 1990: 92).
A educação escolar pretende a homogeneização cultural, a própria existência de um
programa único para o Ensino Primário de todo o país, sugere a descontextualização. As
crianças do meio rural estão habituadas a um conhecimento baseado no concreto, a escola
pede-lhes que façam dele tábua rasa, sobrevalorizando as «aquisições cognitivas,
principalmente relacionadas com a memorização» (Vieira, 1998: 33), e esquecendo-se na
maioria dos casos de apresentar exemplos concretos que permitiriam «abarcar o
quotidiano, o meio envolvente e a diferenciação cultural» (Vieira, 1998: 35).
Este último aspecto prende-se com o desconhecimento, do contexto cultural, não
havendo, na maioria dos casos, por parte dos professores, a preocupação de saber se o que
está a ser ensinado está realmente a ser apreendido pelos alunos.

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Constatamos assim, que em ambiente rural, a vida e a escola estão separadas, mas
muitas crianças procuram corresponder às expectativas de cada um dos espaços, fazendo
por ser bem sucedidas na escola, sem se afastarem das tarefas domésticas.
É analisando estas questões que Ricardo Vieira se questiona, «como é que uma
escola única, uniforme, com um curriculum, livros, mesmo ritmo para crianças tão
diferenciadas, pode pretender obter resultados iguais? Antes pelo contrário, a escola
continuará assim a reproduzir desigualdades sociais, camuflando-se com uma pseudo-
igualdade de oportunidades» (Vieira, 1998: 134). Na verdade, crianças oriundas de meios
tão diferentes, não podem estar em pé de igualdade, sendo certamente, as crianças do meio
rural algumas das mais injustiçadas.
Um outro conceito importante para este nosso trabalho é o conceito de
socialização. Anthony Giddens no seu livro Sociologia defende que a socialização «é o
processo pelo qual as crianças indefesas se formam gradualmente seres auto-conscientes,
com saberes e capacidades, treinadas nas formas de cultura em que nasceram» (Giddens,
1997:44), contudo as crianças são seres activos pois, não absorvem de forma passiva as
influencias com que contacta.
O facto de estarmos envolvidos em interacções com os outros, desde que nascemos
até à nossa morte, condiciona indiscutivelmente a nossa personalidade, os nossos valores e
o comportamento que adoptamos. No entanto, a socialização está também na origem da
nossa própria liberdade e individualidade. No decurso da socialização cada indivíduo
desenvolve o seu próprio sentido de identidade e a capacidade de agir e pensar de modo
independente (Giddens, 1997:63).
Aprendemos as características da nossa própria cultura através do processo de
socialização. «O eu social da criança evolui ao ritmo, e na direcção, que as situações de
vida lhe proporcionam. O eu possui a energia para a acção, mas nem sempre tem a
possibilidade de a actualizar e torná-la efectiva em toda a sua amplitude, dependendo, em
parte, das condições do ambiente em que vive» (Zabalza, 1987:38).
A socialização integra o desenvolvimento dos indivíduos enquanto pessoas, bem
como a sua integração numa determinada sociedade. Ao longo deste processo o indivíduo
desenvolve competências e capacidades compatíveis com as exigências de uma dada
cultura ou grupo em que se insira. Não é objectivo da socialização adaptar ou doutrinar
mas sim enriquecer, na dimensão relacional-social do sujeito. Este deve de ter capacidade
para se adaptar aos requisitos do grupo a que pertence e ao mesmo tempo ser capaz de se

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separar desses requisitos e formar de forma autónoma a sua própria identidade e maneira
de ser.
Os adultos são seres humanos socializados pois sabem lidar com as situações e com
as outras pessoas. A partir da sua acumulação de experiências, são capazes de entender o
mundo que os rodeia e agir sobre ele de forma coerente, ou seja, não agem sempre da
mesma forma mas adequam a sua acção e o seu comportamento ao contexto situacional.
É a posse desta capacidade que distingue os adultos das crianças. As crianças têm
dificuldade em reproduzir comportamentos que se adequam às diversas situações e às
pessoas envolvidas nas diferentes acções.
O jogo infantil constitui um momento fundamental no processo de socialização das
crianças. O jogo das crianças para além de ser um lazer é um espaço privilegiado onde, por
meio da acção, as crianças aprendem e compreendem uma série de conceitos e de regras
que lhe são impostas.
É durante a infância, juntamente com a família e os amigos, que as crianças
aprendem a sentir, a ser e a entender o mundo. No grupo de amigos, elas interagem, jogam,
brincam e imitam o real, dessas relações, surge uma simbiose de saberes, fundamentais
para as suas vidas futuras.
A prática da criança é altamente simbólica e o mundo no qual vive é feito de
representações elaboradas no desenvolvimento do seu entendimento sendo por isso o jogo
infantil um processo de aprendizagem e um processo pedagógico (com a introdução do real
dentro do mundo da criança que ainda o entende através dos seus próprios conceitos). É
pela subordinação do que vê fazer a esses conceitos do seu mundo particular que o real é
domesticado.
As crianças «oscilam entre a submissão e o seu próprio entendimento. Este
entendimento passa pela transferência dos conceitos já aprendidos para situações que as
próprias crianças criam, alimentadas pelo imaginário que a vida rural lhes oferece»
(REIS, 1991: 87/88).
O comportamento das crianças é modelado tanto pelo espaço como pelo tempo, e a
sua integração na sociedade depende do significado social que os adultos conferem às suas
acções e esse significado varia de um contexto social para outro.
Na aldeia, o espaço e o tempo são marcados pelo ritmo da natureza, que imprime
cores na paisagem e mobiliza e desmobiliza aqueles que trabalham, onde predomina a
entreajuda entre vizinhos, havendo uma circulação generalizada de pessoas, instrumentos

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de trabalho e de esforço. É neste ambiente que a criança é educada, semeando o valor de


respeito e de adesão à partilha, bem como de pertença a um grupo.

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Capítulo II – Metodologia utilizada

No presente trabalho utilizámos como metodologia para recolha de informação as


entrevistas. Entrevistámos duas pessoas representantes de cada uma das três gerações:
crianças (ambas com 9 anos), pais (com 34 e 40 anos) e avós (com 63 e 66 anos), todos
nascidos e residentes na freguesia do Reguengo do Fétal.
As entrevistas com as crianças tiveram um formato estruturado devido à dificuldade
que estas têm de se abstrair de um assunto e de verbalizarem as suas vivências.
Em relação aos adultos, foram realizadas entrevistas não estruturadas, que
consideramos mais como conversas soltas em torno de um assunto particular. Convidámos
os entrevistados a recordarem as suas vidas de infância e a relatarem alguns dos episódios
vividos nesse período (Burgess, 1997).
A opção por este tipo de entrevista prende-se com o facto de através dela ser
possível obter um conjunto aprofundado de conhecimentos acerca do modo de vida das
pessoas ao longo da sua infância, apesar de termos consciência de que é um método
moroso e nem sempre fácil de levar a cabo. No entanto, esta tarefa foi facilitada devido ao
facto de um dos elementos do grupo, estar inserido no ambiente social do Reguengo do
Fétal e de manter uma relação estreita com todos os entrevistados. Para os entrevistados, o
entrevistador foi uma pessoa amiga com quem puderam conversar e até confidenciar
alguns episódios das suas vidas de criança.
As entrevistas partiram de uma lista de tópicos que queríamos ver tratados para
posteriormente fazermos uma comparação entre todas as entrevistas, confrontando as
experiências das várias gerações, relativamente a vários aspectos.
Foi dada liberdade aos entrevistados para falarem acerca do tema central e a partir
daí foram surgindo outros que nem sempre se enquadravam no nosso plano de
investigação. No entanto, não lhes cortámos a palavra para que se mantivesse o ambiente
informal (Bell, 1997).
Todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados, sendo
em seguida transcritas, seleccionando apenas a informação pertinente para o nosso
trabalho.

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Capítulo III – Caracterização do Reguengo do Fétal

3.1 Há vinte anos atrás

A Freguesia do Reguengo do Fétal (Reguengo da Magueixa até 1910) foi criada no


ano de 1512, pelo Prior-Mor de Santa Cruz de Coimbra, resultante da separação da
freguesia de São Martinho.
A freguesia do Reguengo do Fétal há vinte anos atrás foi descrita por Moisés
Espírito Santo como uma freguesia «...situada no centro litoral, uma das zonas rurais
mais desenvolvidas do país... exclusivamente rural, sem indústria e turismo», que
praticava uma agricultura intensiva, tanto na planície como na montanha» (Santo,
1980:23).
Na freguesia do Reguengo há falta de boas vias de comunicação, possuindo uma
diversidade de valores culturais. «A vida familiar, económica, cultural e religiosa, evolui
dentro dos limites da freguesia» (Santo, 1980:13). A vida social e todas as suas relações
desenvolvem-se dentro dos seus limites, independentes a todos os níveis, das freguesias
vizinhas.
Esta freguesia é caracterizada por zelar para que as ideias novas, vindas do exterior,
não penetrem nela, de forma a manter o equilíbrio do grupo social. As iniciativas sociais
tomam lugar no seio da mesma, contribuindo para a coesão social, resistindo a novos
valores ou normas exteriores. Desta forma, a freguesia mantém-se um pouco indiferente às
mudanças sociais e políticas que o estado promove, ignorando a essência, a identidade e as
necessidades locais.
Os seus habitantes estabelecem ligações uns com os outros, de acordo com as suas
semelhanças e pelo sentimento de colectivo. Nasce uma solidariedade, resultante da
reunião dentro do mesmo espaço, mantendo-se alheios a tudo o que diz respeito ao espaço
exterior.
Os grupos de danças e cantares do Reguengo são um meio que a população criou
para perpetuar os seus valores, realçando o seu passado histórico e, enaltecer os santos e
heróis que aí nasceram.

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3.2 Nos tempos de hoje, que mudanças?

Na freguesia do Reguengo do Fétal «houve mudanças civilizacionais, rupturas


metodológicas e tecnológicas radicais, mas constata-se a continuidade das mentalidades.
A agricultura familiar morreu, o meio social reestruturou-se (os filhos dos camponeses
tornaram-se operários, empregados e empresários); entretanto a racionalidade
tradicional continua sob as embalagens da modernidade» (Santo, 2000: 325).
Após a reestruturação social, é a nível da agricultura familiar, quase desaparecida,
da habitação anárquica, da educação anómica e da paisagem decadente ou corrompida que
se verifica um maior desfasamento com o passado.
Têm-se vindo a combinar e a cruzar traços de modernidade e de tradicionalismos,
onde se justapõem coisas novas às coisas velhas. Nesta cultura, as funcionalidades
tradicionais e a ruralidade mantêm-se. «A civilização pós industrial vai-se instalando mas
as racionalidades tradicionais restauram-se e revigoram produzindo a ideia de uma
modernidade incoerente» (Santo, 2000: 330).
O Reguengo do Fétal sofreu alterações com a instalação de uma civilização
industrial e de consumo, tornando a agricultura familiar e a economia agrária
enfraquecidas. Podemos observar pomares envelhecidos ou mal tratados, olivais onde não
se colhem azeitonas, lagares de azeite que fecharam…As terras que antigamente davam
bens de sustento às famílias estão hoje abandonadas. Os mais “velhos” estão cansados, os
mais novos não sabem ou não têm interesse, procurando trabalho nas industrias,
libertando-se do campo sem se preocuparem com a modernização da agricultura. A
escolaridade prolongada veio também afectar o abandono ou o afastamento dos jovens da
terra. Os pais investem num futuro mais promissor para os seus filhos, longe da
agricultura.
O poder local esforçou-se para dotar a povoação de infra-estruturas modernas como
estradas, saneamento, água canalizada. Surgem casas desiguais e desalinhadas e os
celeiros, as adegas ou os estábulos anexados às habitações ficaram sem uso e vão-se
degradando. Outrora havia muita «azáfama agrícola, conversas nas ruas, barulhos dos
tractores, odores da palha, de vinho ou de frutos, guinchos de animais, conversas nas
adegas, encontros de porta em porta […] Hoje as ruas estão silenciosas, transformaram-
se em sítios desconfortáveis e insípidos. Não há peões nas estradas como não se vê gente

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nos campos. A solidão instalou-se, sendo apenas quebrada com a passagem de


automóveis» (Santo, 2000: 261).
A televisão e o automóvel alteraram a sociabilidade da povoação. Segundo Moisés
Espírito Santo «o automóvel e o televisor são os factores mais destabilizadores das aldeias
destes vinte anos: o automóvel afasta da aldeia e o televisor prende a uma cadeira»
(Santo, 2000: 260).
É flagrante a ausência de ordenamento do habitat rural quanto à sua localização. «A
aldeia faz-se e desfaz-se, alastra-se e desagrega-se. Os sítios transformam-se à mercê de
cada um que constrói onde e como quiser» (Santo, 2000: 261). As autarquias não destinam
áreas para a fixação de indústrias e habitação, construindo-se fábricas e oficinas onde quer
que se possua um terreno. Não se recuperam casas antigas, que vão ruindo…
Existe alguma rotura na transmissão do património cultural entre os novos e os
mais velhos. Com o desaparecimento gradual da classe etária mais velha, vão
desaparecendo os saberes locais, poesias, mitos, ofícios e saberes agrícolas, narrativas que
não foram registadas de qualquer forma. Os mais novos ignoram as suas tradições e pouco
se interessam em mantê-las. Os mais velhos evitam, por vezes, relembrar tempos idos, que
estão conotados como negativos, tempos de miséria e dificuldades. Cria-se assim um fosso
entre o passado e o presente, onde o passado é sempre apresentado como negro, onde todos
eram obrigados a trabalhar cedo, sem escola, sem sapatos e com uma alimentação precária
(Santo, 2000).

3.3 Caracterização geográfica

A freguesia do Reguengo do Fétal pertence ao concelho da Batalha e ao distrito de


Leiria, localizada no Maciço Calcário da Serra d’Aire com uma área de 27,8 Km 2. Situa-se
a Sudoeste da sede do concelho, sendo limitada, a Norte pelas freguesias da Barreira, das
Cortes e do Arrabal, todas do concelho de Leiria, pelo Este e Sudoeste com a de São
Mamede. A Sul, limita-a a freguesia do Alqueidão da Serra, do concelho de Porto de Mós.
Pelo Oeste a freguesia da Batalha e, a Noroeste, a Golpilheira.1

1
Vide Moreira, Maria da Luz (2000). Tempos e História – Comemoração dos 500 Anos do Concelho e da
Vila da Batalha.

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Parte desta freguesia fica situada num vale sobranceiro à Serra de Aire, enquanto a
outra parte se instalou nos socalcos da encosta. É nestas encostas que ainda hoje se vêm
algumas vinhas que dão origem ao famoso vinho produzido no Reguengo do Fétal. Os
vales férteis, outrora densamente cultivados, encontram-se, na sua maioria, em pousio.
Esta freguesia estava envolvida por uma área arborizada, constituída por oliveira,
eucalipto, pinheiro e muita vegetação rasteira no entanto, os incêndios do último Verão
modificaram drasticamente a paisagem, deixando atrás de si um rasto negro que cobre toda
a encosta da Serra.

Figura 1 – Mapa de Portugal Continental, com destaque para a zona de Leiria, onde se situa a freguesia do Reguengo do Fétal.

É atravessada pela Estrada Nacional n.º 356, que liga duas das maiores atracções
turísticas da região, Fátima e Batalha, distando 9 Km e 6 Km respectivamente.

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3.4 Caracterização social, demográfica e económica da população

A população da freguesia do Reguengo do Fétal é de 2284 habitantes, sendo


distribuída pelos seguintes lugares: Alcaidaria, Arengões (uma parte das Alcanadas), Casal
da Pedreira, Celeiro, Perulhal, Piqueiral, Rio Seco, Torre, Garruchas, Torrinhas, Vale
Freixo, e pela sede da freguesia – Reguengo do Fétal.2
A população residente do Reguengo do Fétal encontra-se envelhecida, de acordo
com os Censos de 2001, sendo o grupo etário dos 25 aos 64 anos, o mais representado com
1204 indivíduos, seguido do grupo com mais de 65 anos com 5063.
Do número total de habitantes desta freguesia, 382 não sabem ler e escrever, 768
possuem o 1º Ciclo, 322 o 2º Ciclo e 282 o 3º Ciclo. Com o Ensino Secundário encontram-
se 186 habitantes, 7 com o Curso Médio e 68 possuem o Curso Superior.4
As principais actividades económicas desta freguesia são os têxteis; a construção
civil e de viação; a exploração de inertes e a sua transformação; as carpintarias; as
actividades ligadas ao ramo hoteleiro e ainda se encontra alguma exploração agrícola,
nomeadamente de vinhas e olivais. Estas actividades estão representadas por 37 indivíduos
no sector primário, por 473 no sector secundário e no terciário por 500 cidadãos desta
freguesia.
Contudo, segundo os dados dos Censos de 2001, a maioria da população encontra-
se desempregada (28), sem actividade económica (1320) ou reformada (524).5
Esta população é servida de electricidade, rede domiciliária de águas, telefone e
transportes públicos. O saneamento básico não cobre toda a freguesia, nomeadamente as
Garruchas, o Celeiro, o Perulhal e o Casal da Pedreira.
Nesta freguesia rural existem cinco escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico, um
jardim-de-infância da rede pública, o Centro Paroquial de Assistência do Reguengo do
Fétal com várias valências de apoio a crianças e idosos, um posto médico, um posto de
recolha de sangue, uma farmácia, restaurantes, minimercados, talhos, cafés, cabeleireiros e
várias colectividades de cultura e lazer. É de salientar, que da colectividade da Casa do
Povo do Reguengo do Fétal nasceu o Rancho Folclórico da Casa do Povo do Reguengo do
Fétal e um agrupamento instrumental denominado “Cancioneiro da Região da Magueixa”.
Estes dois grupos envolvem muita da população desta freguesia.
2
Instituto Nacional de Estatística – dados dos censos 2001.
3
Idem
4
Idem
5
Idem

17
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

A nível de património é de realçar a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, a


Ermida de Nossa Senhora do Fétal, a Ermida de Santa Maria Madalena e a Capela da
Memória.
Esta freguesia é muito rica em tradições e costumes: desde a Fogueira do Natal até
à Serração da Velha, à Festa do Espírito Santo e à Festa de Outubro. É de realçar estas
últimas, pelas procissões que fazem da Igreja Matriz até à Ermida de Nossa Senhora do
Fétal, a primeira com tabuleiros de pão enfeitados com flores que depois é distribuído pela
população e a segunda pela originalidade das iluminações em cascas de caracóis.
Há também a doçaria e a gastronomia típica: cavacas, bolos de perne, morcelas e
bucho de porco.

18
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Capítulo IV – Vidas de infância

Neste capítulo pretendemos fazer uma interligação entre a fundamentação teórica e


as entrevistas e ao mesmo tempo assinalar as diferenças ou semelhanças que se possam
estabelecer entre as várias gerações em estudo. Deste modo, tentaremos criar uma imagem
geral das mudanças que têm ocorrido na infância do Reguengo do Fétal durante as últimas
seis décadas, principalmente a nível familiar, escolar e nas brincadeiras de rua.

4.1 A Família

A educação infantil era tradicionalmente assegurada pela família. Cabia


essencialmente às mães, o papel de cuidar da educação das crianças. O pai está sempre
presente ou um irmão mais velho, e têm a função de disciplinar e também de as integrar no
trabalho e na sociedade.

A família era nos primeiros anos de vida das crianças, o seu principal grupo de
referência. A família, antigamente, era muito
numerosa, abarcando um leque muito vasto de
pessoas, com o qual se estabeleciam laços afectivos.
Havia tendência para se ter um número grande de
filhos, que pudessem posteriormente ajudar, nas
tarefas domésticas e no trabalho agrícola. Nas
entrevistas que realizámos a habitantes do Reguengo
Figura 2 – Família – década de 70
do Fétal, apenas um, a Amália 6 é que pertencia a uma
família mais numerosa, «éramos seis irmãos e eu era a mais velha» 7, os outros restantes,
eram oriundos de famílias apenas com dois filhos.

A família e os seus membros não eram só modelos de comportamento, mas


também marcavam valores e padrões e configuravam a primeira visão do mundo das
crianças. Desta forma, dava-se continuidade e mantinha-se acesa a cultura de uma

6
Este nome, bem como os dos outros entrevistados são fictícios, de modo a garantir o anonimato
7
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).

19
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

comunidade, estreitando as relações pessoais e afectivas entre os membros da família, bem


como de todos os habitantes da aldeia.

Como pudemos observar a partir das entrevistas realizadas aos membros mais
velhos (os avós e os pais), todos eles tinham irmãos mais novos, pelos quais eram
responsáveis, na ausência da mãe, quando esta se entregava às tarefas domésticas ou às do
campo. Como refere a Isabel, «…eu tomava conta dela. Lembro-me de estar a fazer os
trabalhos da escola e ela estar no berço a dormir. A minha mãe assim andava mais
descansada na horta ou a cuidar dos animais»8
Apenas um dos entrevistados, o Manuel, era o
membro mais novo, tendo a irmã que tomar
conta dele. Como a Amália diz, «…as mulheres
tinham o dever de ajudar a criar os irmãos»9.
No caso das duas crianças entrevistadas, a
Mariana e a Joana, ambas têm irmãos mais
Figura 3 – Mãe com os filhos – década de 60
novos mas não fazem qualquer referência à
necessidade de terem de cuidar dos mesmos. Partimos do princípio, que estas têm sempre
um adulto por perto, para olhar por eles10.

No seio da família existe um sistema de autoridade, que se encontra organizado de


forma hierárquica, tendo os pais como as autoridades máximas sobre a forma de gerir as
várias tarefas. «A casa assegura a sua sobrevivência e continuidade, gerindo os recursos
materiais a que tem acesso e pode controlar, usufruindo da mão-de-obra dos seus
elementos mais novos e, numa estratégia a longo prazo, procurando manter operacionais
todas as redes de relação e cooperação, familiar e de vizinhança, de que a subsistência da
família poderá beneficiar e/ou depender» (Iturra, 1996:30).
O trabalho é parte integrante do dia-a-dia de todos os membros da família e os
saberes de que são portadores, trabalhos agrícolas, domésticos e familiares, tiveram a sua
origem nos conhecimentos transmitidos de pais para filhos – transmissão oral, e pela sua
própria experiência. Como a Isabel refere, «… comecei muito cedo a ajudar a minha mãe a
fazer limpezas, a fazer a comida […] lembro-me de ficar toda orgulhosa e tinha uns dez
ou onze anos. A minha mãe foi-me ensinando, fazia parte da educação das meninas»11.
8
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).
9
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
10
Vide in Anexos 6 e 7, entrevistas às crianças (Mariana e Joana).
11
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).

20
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

No trabalho em idades precoces, não existe diferenciação de sexo, mas de idade. Ao


rapaz e à rapariga que ainda não possuem força física suficiente para laborar nas terras,
são-lhes entregues as tarefas domésticas, quer em casa, quer com os irmãos mais novos.
Esta situação mantém-se até a criança mostrar força igual ou superior à do pai ou da mãe
(Iturra, 1990:36).

À medida que vão crescendo, vão-lhes sendo


entregues tarefas mais difíceis, de maior
responsabilidade. Aos 13/14 anos de idade eles
encontram-se «…aptos a iniciar um profissão como
aprendizes ao lado dos profissionais que se sentem na
obrigação de os ensinar» (Santo, 2000: 339). O Manuel
diz na sua entrevista que «…aos dez anos, em 48 é que
entrei nos serviços mais duros, a gente tinha algumas
fazendas ali para o lado das Torrinhas, […] ia a pé
daqui para lá com dez, onze anos com uma enxada às
Figura 4 – Crianças a cuidarem dos
costas e com o saco da merenda, era uma vida um animais – década de 70

bocadinho difícil nessa altura»12.

As crianças são ensinadas desde muito cedo a partilhar, a serem solidárias e a


interessarem-se pelas trocas e pelas
reciprocidades. Começam a ser tratadas como
adultos pequenos, onde se simulam relações de
camaradagem, com alguma dureza no tratamento,
ganhando uma auto-suficiência desde muito cedo.
Eram educadas com disciplina e rigor.

Todos os entrevistados tinham tarefas a


realizar, principalmente depois da escola, quer
domésticas quer na lida do campo. No caso dos
Figura 5 – Criança na lida do campo – década de
mais velhos, (os avós e pais), tiveram que 50

começar cedo a trabalhar, para ajudar a família,


por isso tiveram que aprender a fazer o trabalho correctamente. As raparigas eram
ensinadas a cuidar da casa, a fazer comida, a limpar o pó, a limpar a loiça, a passar a ferro,

12
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).

21
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

ou a apanhar lenha e erva para os animais. Aos rapazes, eram-lhes destinadas tarefas
exteriores. Apanhavam também lenha e caruma para a fogueira, tinham que fazer os cortes
nos pinheiros, regar a horta, tirar o estrume e alimentar os animais, apanhar batatas e
couves.

No caso das crianças, a Mariana e a Joana, também elas têm tarefas a cumprir, e
sendo raparigas, são-lhes incumbidas tarefas domésticas, tais como «pôr a mesa, a tirar a
mesa e lavar a loiça»13como refere a Mariana de nove anos. Verificámos que estas tarefas
não eram tão assíduas e tão rígidas como as dadas às outras entrevistadas, Isabel e Amália,
de 40 e de 63 anos respectivamente.

Verificámos que havia um ponto comum a todas as faixas etárias entrevistadas, é o


facto de que todas tinham que obedecer à autoridade dos pais, e tinham a obrigação de
cumprir as tarefas que lhes eram destinadas.

Nas gerações mais velhas, desde cedo as crianças observavam os adultos a realizar
as tarefas habituais, e iam interiorizando o gosto pelo trabalho e pela propriedade familiar
que era o fruto do trabalho, depois eram-lhes confiadas inúmeras tarefas, acompanhadas de
estímulos e de directrizes dos mais velhos, que por vezes eram um pouco rudes, mas com o
objectivo de inseri-los numa prática, que era rotina da vida do dia-a-dia da família.

Metade dos pais e/ou mães dos entrevistados, nomeadamente a Joana, o Joaquim e a
Isabel, tinham tempo para conviver com os seus filhos, após o seu trabalho e tarefas
cumpridas. Como o Joaquim refere «Contavam-me histórias. Não estas histórias
tradicionais como as que eu conto hoje ao meu filho. Muitas das vezes depois do jantar,
enquanto a minha mãe arrumava a cozinha, o meu pai contava-nos histórias do tempo em
que ele era criança ou então histórias que se tinham passado aqui na terra» 14, e a Isabel
«Também me lembro de às vezes ser ele a ajudar-me com as coisas da escola […] Com a
minha mãe era uma relação muito próxima, conversávamos muito, eu contava-lhe as
coisas que aconteciam na escola»15.

Os restantes referem que os seus pais não tinham tempo ou chegavam cansados do
trabalho, e não passavam tempo de qualidade com eles «Fazíamos poucas coisas. Eles não

13
Vide in Anexos 6 e 7, entrevistas às crianças (Mariana e Joana).
14
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
15
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).

22
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

tinham muito tempo para brincarem connosco […] à noite, o meu pai chegava a casa já
muito cansado…»16.

Na segunda metade do séc. XX verificaram-se rápidas e profundas transformações que


atingiram todos os domínios, desde as relações sociais aos valores e normas, apresentando
uma dimensão cada vez mais global. O número de mulheres na vida profissional activa
aumenta, não só da classe mais baixa, mas generalizada às outras classes que irá provocar
por sua vez, alterações sociais profundas no seio da vida familiar. «A mulher afirma-se
pelo trabalho e pela sua racionalidade» (Santo, 2000: 286), mas a nível da educação
familiar, ela continua a ser a maior responsável pela educação dos seus filhos. Em ambas
as gerações mais novas, as suas mães trabalhavam fora, por conta de outrem, ao passo que
as das mais velhas trabalhavam no campo, de onde retiravam o seu sustento.
A criança nasce fonte de um desejo de os pais se sentirem realizados, desta forma, é
permitida à criança determinadas atitudes pouco próprias e incorrectas. Tudo gira à sua
volta. Hoje em dia a criança não possui a liberdade de movimento e de acções.
Antigamente as crianças tinham a liberdade de brincarem e de andarem pelos campos, hoje
elas não podem sair à rua sozinhas, tendo de se limitar ao espaço de sua casa.
Nos tempos de hoje, há a tendência para a formação de uma família com apenas um
filho. Para esta criança convergem todas as atenções e projectos familiares. Muitas das
vezes, os pais tentam ver os seus sonhos realizados através dos seus filhos, o que leva a um
exagero de comportamentos por parte dos pais, ao quererem satisfazer os seus pedidos e
necessidades, havendo uma super protecção e criação de uma relação de dependência
afectiva e económica (Santo, 2000).

4.2 A Escola

Os pais hoje em dia, possuem menos influência que antigamente, sobre o


comportamento e padrões morais dos seus filhos, bem como na importância de assegurar
vantagens especiais, no inicio das suas carreiras.
É dada uma maior atenção à criança, à sua educação e às suas necessidades, do
mesmo modo que se criam também maiores expectativas em relação ao seu futuro. São
criadas infra-estruturas de lazer para as crianças,

16
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).

23
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

nos adros das igrejas e nos largos. Neste contexto, a escola ganha uma maior importância,
como meio de ascensão social e como meio de melhor vida.

A Joana e a Mariana referem no final das suas entrevistas o que é que gostavam de
ser quando fossem grandes. A Joana gostaria de ser professora do 1º ciclo e a outra, de ser
advogada. Verifica-se que têm já incutido da sua
Figura 6 – Turma do 1º Ciclo – actual
educação e da sociedade, expectativas para o seu
futuro, diferentes daquelas que os seus pais, e seus avós tiveram. E como pudemos
observar, a Joana e a Mariana possuem uma vida diferente da do Manuel e da Amália,
visto que já não tem a obrigação e responsabilidades tão grandes, nas tarefas que lhes são
destinadas, verificando-se que nem sempre as cumpriam. Por outro lado, verificou-se que
existiam algumas diferenças na forma como elas e os pais entrevistados, ocupavam os seus
tempos livres, a ler histórias e a ver televisão, o que não acontecia com os mais velhos,
onde os momentos de lazer eram passados a conversar e a brincar com os irmãos.

Ambas as pessoas entrevistadas da geração mais velha tiveram oportunidade de


fazer a instrução primária, tinham gosto pela escola e vontade de continuar a estudar «o
meu sonho era estudar, ser professora [...] pedi aos meus pais e eles lá me deixaram fazer
a 4ª classe»17; «Eu gostava da escola, gostava de ter continuado […]18
No entanto, nenhum dos dois teve
oportunidade de ir além da instrução primária, o
Manuel porque o pai não tinha possibilidades
financeiras, a Amália porque, sendo uma das
mais velhas de seis irmãos, tinha que cuidar dos
mais novos «o meu pai nem tanto, pela vontade
do meu pai eu ia […] A minha mãe achava que
como ela era dona de casa e tinha muito Figura 7 – Turma da Escola Primária – década de 40

trabalho para fazer, achava que nós devíamos ajudar»19.


Ao falarem das suas infâncias, ambos mencionam a rigidez do ensino e os castigos
corporais. Parece-nos, por vezes que as pessoas desta geração confundem nas suas
recordações, medo e respeito, no entanto, não é o caso da Amália que recorda como a
turma era submetida a uma «pedagogia da ordem pelo silêncio» (Vieira, 1998: 105), «a

17
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
18
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
19
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).

24
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

gente ali, não tinha autorização para falar, ali havia só rigor […] batia muito e falava
muito alto, e nós não tínhamos respeito, tínhamos medo»20; «havia alunos mais atrasados
que ela arreava de qualquer maneira, com a régua, com aquilo que ela tinha à mão»21.
Apesar de não concordar com estes métodos tão rígidos, o nosso entrevistado
considera que se aprendia, que havia sucesso escolar, pois «o aluno estava na escola era
para aprender». Os métodos eram assim justificados em função dos resultados, «empinar
tudo cá para dentro, mas o certo é que ainda hoje me lembro de coisas que aprendi na
escola, nomeadamente de cultura geral»22; «nós tínhamos de decorar mais as coisas, sei
lá era tudo mais maçudo»23.
Como se constata, o Manuel continua após tantos anos, a defender aqueles ideais
interiorizados na infância. «Esta concepção popular e a sua defesa acérrima, denota quanto
um indivíduo transporta os ideais de conduta de um tempo histórico a outro, contestando a
realidade presente já que entra em contraste com as
expectativas forjadas por padrões cujo contexto se perdeu»
(Vieira, 1998:121).
Comparando com o tempo actual, o nosso
entrevistado mostra desencanto relativamente à escola actual,
embora reconheça que «os mesmos métodos hoje […] não
resultavam, porque no dia a seguir não ia ninguém, mas
passou-se do oito, para o oito mil […] andam lá até aos
dezoito anos e muitos saem de lá a saber menos que eu que
andei até à 4ª classe»24. Figura 8 – Turma da Escola
Primária – década de 70
Nas entrevistas aos pais, um dos aspectos que ressalta
são as expectativas que os pais dos entrevistados tinham em relação à escola «os pais
aspiram a dar uma formação escolar aos filhos na esperança de obterem um sucesso social
que eles reconhecem não terem alcançado» (Vieira, 1998: 123). «A única coisa que os
meus pais me exigiam era que estudasse e tivesse boas notas na escola. Eles queriam que
eu tivesse uma vida futura melhor do que a deles» 25; «a única coisa que eles me tentavam
transmitir era que eu fizesse outra coisa que não aquilo que eles faziam, que era um

20
Idem.
21
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
22
Idem.
23
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
24
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
25
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).

25
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

serviço muito duro […] sempre me incentivaram. Talvez o único entrave que me faziam
era “se chumbares sais da escola” e daí eu ter sempre a preocupação de não chumbar»26.
Estes testemunhos vão de encontro ao que dizem Raul Iturra e Moisés Espírito
Santo, acerca do prestígio de que a escola goza nos meios rurais e que citámos na nossa
fundamentação teórica.
Assim, incentivadas pelos pais a ter sucesso na escola, as crianças tinham a
responsabilidade de conciliar o tempo de estudo com as tarefas domésticas em que
colaboravam «Como o meu pai já tinha uma taberna e uma mercearia, eu vinha da escola
e ia para lá ajudar e numa hora de menos trabalho, numa hora vaga como se diz, ia
fazendo uma cópia, uma conta, um ditado e depois à noite fazia o resto» 27; «sei de outros
sítios onde muitas crianças não iam à escola para terem de trabalhar no campo, para
ajudarem os pais, mas a nossa zona aqui era melhorzinha. Às vezes a minha mãe, que já
tinha a 3ª classe naquela altura, ajudava-me a [fazer os trabalhos de casa]»28.
Para a geração seguinte, a situação não se modificou muito, pois havia também a
responsabilidade de ajudar a cuidar dos irmãos mais novos «depois eu tomava conta [da
minha irmã] Lembro-me de estar a fazer os trabalhos da escola e ela estar no berço a
dormir […] quando ela chorava eu tentava calá-la ou chamava a minha mãe […] os meus
pais davam-me tempo»29; «Quando eu terminava os trabalhos de casa tinha que tomar
conta dela para a minha mãe poder trabalhar mais descansada, por isso levava-a comigo
quando ia brincar com as outras crianças daqui da rua»30.
Actualmente, a situação parece ser bem diferente, pois as crianças têm todo o
tempo para os trabalhos de casa, não estando obrigadas a fazer qualquer outra actividade.
As duas meninas entrevistadas testemunham apenas ajudar nos trabalhos domésticos
ocasionalmente, não sendo pressionadas de qualquer forma.
Como se depreende da análise das entrevistas à primeira geração, a escola e a
religião estavam interligadas «Havia catequese na escola. Tínhamos o livro de Educação
Moral e Cívica […] este livro era um autêntico catecismo, tinha a Salve Rainha, o Pai –
Nosso, a Avé Maria […] Era o professor que dava, fazia parte do ensino. Mas depois
ainda íamos à catequese com o padre»31; «A primeira professora que eu tive na 1ª classe

26
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).
27
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
28
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
29
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).
30
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
31
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).

26
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

não ligava muito a isso, mas depois na 2ª, 3ª e 4ª classe tive sempre a mesma professora,
que era do Reguengo […] é que nos ensinou a fazer a oração que nós tínhamos de dizer
de manhã e todas as manhãs, os meninos da 4ª classe é que faziam a oração da manhã,
dizíamos o Pai – Nosso e quase sempre tínhamos um cântico para cantar mas à quinta-
feira da parte da tarde havia uma hora de catequese»32.
A geração seguinte, dá conta ainda de um grande peso da religião, embora apenas a
Isabel fale das orações e da presença do crucifixo na escola «Lembro-me ainda de rezar
quando iniciávamos a escola, de termos o crucifixo na sala […] Não sei se era ao sábado
se ao domingo, mas íamos à catequese» 33; «ao fim-de-semana íamos todos à missa e à
catequese»34.
Actualmente, as crianças continuam a frequentar a catequese, como fizeram os seus
pais, apenas ao fim-de-semana e fora da escola, sendo consideradas actividades
independentes «costumo […] ir à catequese»35; «ao sábado das três às quatro costumo ir
para a catequese»36 .

4.3. Na rua com os amigos

O conhecimento local caracteriza-se pela sua transmissão oral que por sua vez se
caracteriza pela repetição do que se vê fazer e se ouve dizer.
A infância não tem uma idade cronológica, é a idade caracterizada pela
aprendizagem através do jogo. «O jogo é um facto social que reflecte o entendimento que
os indivíduos têm da sua época e tem uma função, a de construir os critérios da
interacção» (Iturra e Reis, 1990: 24). Sendo o grupo de jogo infantil um espaço de
interacção onde a autoridade, a força e as possibilidades de relação estão constantemente a
ser discutidas, manipuladas e aferidas pelos participantes.
«Até à idade escolar o grupo do jogo é um grupo de crianças vizinhas,
heterogéneo do ponto de vista etário, e rigorosamente circunscrito a um espaço, vigiado
directamente pelos adultos ou muito frequentemente num sistema em que os mais velhos

32
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
33
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).
34
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
35
Vide in Anexo 7, entrevista a uma criança (Joana).
36
Vide in Anexo 6, entrevista a uma criança (Mariana).

27
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

tomam conta dos mais novos» (Iturra e Reis, 1990: 18). Este facto está evidente em todas
as entrevistas, embora as crianças não o refiram. Apesar de ambas terem irmãos, nos seus
testemunhos não lhes fazem alusão. Nas entrevistas dos pais e dos avós encontramos frases
como esta da Amália referindo-se ao que fazia em casa com a mãe «Sim, ficava com ela e
ajudava-a a cuidar da casa, a lavar a loiça, a lavar a roupa, ia apanhar lenha para a
fogueira, ou apanhar erva para dar aos animais, outras vezes, e já um pouco mais
crescidinha, tomava conta dos meus irmãos mais novos»37.
As crianças nas suas brincadeiras reproduzem aquilo que vêem o adulto fazer. Elas
transpõem para os jogos situações e simulações de comportamentos do mundo dos adultos.
Aprendem a descobrir e a dominar a natureza. As mais velhas devem de vigiar de perto as
mais novas mas ao mesmo tempo devem manterem-se livres para realizar as tarefas que lhe
são solicitadas uma vez que «entre o que os adultos dizem e o que as crianças aprendem,
medeia a prática, especialmente numa sociedade cuja lógica é resultado de experimentar
directamente o real» (Reis, 1991: 127).
É na rua e nos jogos entre os amigos, que as crianças interagem e se relacionam,
inserindo-se numa rede de relações sociais diversificada. Sendo este um espaço
privilegiado é na rua que a criança aprende de uma forma permanente e diversificada,
pondo em prática aquilo que já traz consigo e experimentando novos saberes e
aprendizagens.

O jogo «é a fonte com que as ideias do saber social são actualizadas na


construção social» (Iturra e Reis, 1990: 29). Por isso, o jogo é uma acumulação de saber
que dinamiza e regula a vida da criança em sociedade. Não há uma idade para o jogo mas
uma demonstração da capacidade para entender o espaço das relações sociais e o espaço
social e físico onde elas são praticadas.
Com a entrada na escola primária as crianças são afastadas do universo protegido
da casa e dos vizinhos. No caso da Joana e da Mariana, a entrada para a escola primária
levou-as a frequentar os Tempos Livres existentes na freguesia. Estas crianças não têm por
hábito brincar na rua e as suas brincadeiras em casa passam por ver televisão e brincar com
bonecas. Elas não interagem com as outras crianças das suas ruas, limitando o seu espaço
de jogo à escola e à instituição de Tempos Livres e os seus grupos de jogo são constituídos
por um pequeno número de elementos38.

37
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
38
Vide in Anexos 6 e 7, entrevistas às crianças (Mariana e Joana).

28
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Há dois tipos de grupos de jogo na aldeia: um é formado pelo conjunto de crianças


vizinhas e o outro é formado pelos que frequentam a mesma classe escolar e que fazem
juntos os trajectos de ida e volta para a escola. O primeiro é heterogéneo em idades e em
número ao longo do dia, dependendo da disponibilidade de cada um. Estes núcleos de
crianças vizinhas são também espaços de vigilância onde os mais velhos tomam conta dos
mais novos enquanto os adultos realizam tarefas domésticas. Todos estes factores
determinam o tipo de jogo e as condições em que são jogados. Tal como nos diz o
Joaquim: «Havia outras crianças, mais velhas e mais novas. Na altura ainda não tinha
irmãos e brincava com os meus primos e com as crianças da minha rua. Depois entrei
para o jardim-de-infância e brincava com os meus colegas. Entretanto nasceu a minha
irmã e por essa altura entrei para a escola primária. Quando eu terminava os trabalhos
de casa tinha que tomar conta dela para a minha mãe poder trabalhar mais descansada,
por isso levava-a comigo quando ia brincar com as outras crianças daqui da rua»39.
As brincadeiras podem ocorrer em torno de brinquedos ou de jogos que recorrem
ao uso do próprio corpo ou a algum objecto fácil de encontrar.
O brinquedo é qualquer objecto que seja apropriado por uma criança servindo de
mediador entre ela e a realidade, sendo esta relação estreitada quando é a própria criança a
produzir os seus próprios brinquedos a partir de todo o tipo de materiais de desperdício.
Desta forma a criança trabalha o real, ainda que não entenda o seu contexto nem o seu
objectivo. O Manuel explicou-nos como e com que brincavam «Tínhamos aquelas
brincadeiras do jogo do botão, que eram as brincadeiras mais perigosas, porque se
arrancavam os botões das camisas lá de casa e quando chegávamos a casa levávamos um
puxão de orelhas. Jogávamos à bola como uma bola feita de trapos muito bem apertados.
Andávamos ao visgo, para apanhar a passarada. E fazíamos o jogo do prego, jogávamos
ao pião, ao berlinde, à alhada...»40.
Os jogos permitem ao grupo que os pratica, pensar na distribuição desigual de
capacidades entre os seus membros, e manipular a concorrência pela via das lealdades
previamente estabelecidas entre eles. É nesses grupos, grupos de jogo, que são transmitidos
comportamentos e valores próprios da idade e do sexo. O jogo abre o entendimento ao
cálculo dos adultos, os brinquedos ensinam o valor que as coisas têm, ensinam a cultivar
relações que permitem ter acesso ao uso dos objectos e ensinam ainda a contar com a
desigual distribuição de coisas entre indivíduos.
39
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
40
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).

29
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

«[...] tinha alguns brinquedos, não eram muitos mas já tinha alguns. Os meus pais
faziam questão de nos darem um brinquedo no Natal. Era sempre uma alegria quando
chegava o Natal pois sabia que ia ter um brinquedo novo. Ainda tenho alguns guardados,
como tinha tão poucos brincava com eles com muito cuidado e não os estragava. Naquela
altura tinha um tio emigrado na Alemanha que quando vinha cá no Verão me trazia os
bonecos da Playmobil. E a miudagem da rua vinha toda ver os meus bonecos. Eram o meu
tesouro, os meus bonecos e os meus brinquedos. Havia poucos brinquedos e os que havia
eram muito caros e os meus pais não me podiam dar muitos. Mas nós inventávamos os
nossos brinquedos e as nossas brincadeiras e éramos felizes à mesma»41. Nesta citação do
Joaquim, apercebemo-nos da importância que os brinquedos tinham. Não só os
manufacturados pelas próprias crianças, mas também os de compra, que na altura eram
importados. Por isso, não se pode dizer que haja brinquedos típicos do meio rural e do
meio urbano porque há um intercâmbio e uma importação destes elementos da cultura
urbana para a rural.
Os brinquedos de compra foram tomando o lugar dos brinquedos criados pelas
crianças de uma forma lenta e progressiva, de tal modo que as crianças que entrevistámos
referem na sua lista de brinquedos apenas brinquedos de compra. Estes objectos, os
brinquedos, não são mais do que imitações dos objectos que os adultos manipulam e são
oferecidos às crianças com um único objectivo, o de imitar a vida... tal como é vista pelo
adulto que a produz. Sendo o brinquedo um objecto que enlaça o real e a imaginação, que
coordena actividades, mas onde a actividade lúdica é muitas vezes solitária.
Esta será uma das grandes diferenças existentes nas três gerações que
entrevistamos, o recurso a brinquedos de compra. Outra das diferenças é a limitação do
espaço de jogo, que passou da rua e dos limites da freguesia onde as crianças brincavam
livremente, como refere o Joaquim «Jogava ao berlinde e ao pião, montávamos
armadilhas para apanhar pássaros, andávamos de bicicleta, apanhávamos peixitos nas
valas que havia, jogávamos à bola e, às vezes, íamos ao pinhal apanhar pinhas e
jogávamos uma espécie de basebol»42, para o recreio da escola e se fechou em casa a ver
televisão. As crianças antigamente desempenhavam as suas tarefas domésticas por
obrigação, era através delas que se tornavam responsáveis e aprendiam a partilhar o
trabalho, agora fazem-no por muita insistência das mães 43.

41
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
42
Idem.
43
Vide in Anexo 7, entrevista a uma criança (Joana).

30
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31
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Considerações finais

O nosso estudo da comunidade do Reguengo do Fétal, permitiu-nos conhecer um


pouco mais acerca desta freguesia, que embora ainda se identifique como meio rural, tem
vindo a sofrer grandes alterações. A proximidade desta freguesia com a vila da Batalha e a
cidade de Leiria, o impacto negativo da política agrícola comum, que tende a acabar com a
agricultura e as gerações escolarizadas, que procuram outras actividades mais rentáveis,
contribuem para as mudanças que se têm vindo a observar no seio desta comunidade. As
mudanças estruturais são notáveis, mas a sua cultura mantém-se de alguma forma, e os
seus habitantes sentem-se como peças de um todo, possuindo uma homogeneidade de
saberes e pensamentos, mantendo-se no entanto, abertos ao exterior.
Ao entrevistarmos três gerações residentes no Reguengo do Fétal pretendíamos
conhecer as semelhanças e diferenças existentes entre elas, tanto a nível familiar e escolar
como a nível da amizade e das brincadeiras.
No que concerne à estrutura familiar, esta foi sofrendo modificações quer na sua
constituição quer na sua função. Nas primeiras gerações a família nuclear era alargada aos
avós e tios que colaboravam na economia doméstica e na educação das crianças.
Actualmente, esta resume-se aos pais e filhos que moram afastados e independentes dos
restantes membros.
As indústrias substituíram o trabalho no campo e são agora a principal fonte de
receita das famílias reguenguenses.
A educação das crianças que antigamente se processava no seio da família, de uma
forma natural e despreocupada, tornou-se numa das principais prioridades, valorizando-se
o saber escolar e aumentando as expectativas em relação ao futuro profissional dos seus
filhos.
Presentemente as crianças têm toda a disponibilidade para a escola enquanto que, as
duas gerações anteriores tinham de conciliar os estudos com as tarefas domésticas. A
postura dos professores para com os alunos modificou-se radicalmente, passando de
castigos corporais que transmitiam medo e respeito para um método mais liberal que tem
em conta a criança, as suas capacidades e interesses.
O conhecimento local, caracteriza-se pela transmissão oral e esta por sua vez
caracteriza-se pela repetição do que se vê fazer e se ouve dizer. As histórias que
circulavam de boca em boca, de geração em geração no tempo dos pais e dos avós faziam

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

parte desta transmissão oral que, comportava saberes e formas de aprendizagem. Estas
histórias perderam o sentido e a importância para as crianças de hoje. As histórias a que
têm acesso são as histórias dos livros que lêem. Não ouvem histórias contadas pelos pais
ou pelos avós, por um lado os avós moram longe, por outro lado os pais não têm tempo,
pelo meio interpõe-se a escola e os mass media que canalizam a atenção e os interesses das
crianças. A pouco e pouco, o saber que antes era essencialmente prático, está a tornar-se
cada vez mais teórico.

33
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Bibliografia

BELL, Judith (1997). Como Rrealizar um Projecto de Investigação, Lisboa: Gradiva.


BENAVENTE, Ana; et all (1987). Do outro lado da Escola, Lisboa: Edições Rolim.
BURGESS, Robert G. (1997). A Pesquisa de Terreno, uma Introdução, Oeiras: Edições
Celta.
GIDDENS, Anthony (1997). Sociologia, 2ª edição, Lisboa: Edição da Fundação Calouste
Gulbenkian.
ITURRA, Raul (1990). Fugirás à Escola para Trabalhar a Terra, Lisboa: Edição Escher.
ITURRA, Raul (1997). O Imaginário das Crianças – os Silêncios da Cultura Oral, Lisboa:
Fim de Século Edições.
ITURRA, Raul (Coordenação) (1996). O Saber das Crianças , Texto de
Amélia Frazão Moreira, Instituto das Comunidades Educativas.
ITURRA, Raul; REIS, Filipe (1990). Aprendizagem para Além da Escola: o jogo infantil
numa aldeia portuguesa, Edição: Associação de jogos tradicionais da Guarda.
MOREIRA, Maria da Luz (Coordenação) (2000). Tempos e História – Comemoração dos
500 Anos do Concelho e da Vila da Batalha, Leiria: Magno Edições e Câmara Municipal
da Batalha.
REIS, Filipe (1991). Educação, Ensino e Crescimento, Lisboa: Edições Escher.
SANTO, Moisés Espírito (1980). Comunidade Rural ao Norte do Tejo, Lisboa: Instituto de
Estudos para o Desenvolvimento.
SANTO, Moisés Espírito (2000). Comunidade Rural ao Norte do Tejo, Lisboa: Instituto de
Estudos para o Desenvolvimento.
VIEIRA, Ricardo (1992). Entre a Escola e o Lar, Lisboa: Edição Escher.
VIEIRA, Ricardo (1998). Entre a Escola e o Lar, 2ª edição, Lisboa: Fim de Século.
WORSLEY, Peter (1993). Introdução à Sociologia, Lisboa: D. Quixote.
ZABALZA, Miguel A. (1987). Didáctica da Educação Infantil, Rio Tinto: Edições Asa.

Outras fontes:

Câmara Municipal da Batalha.


Entrevistas a dois avós, Amália e Manuel.
Entrevistas a dois pais, Isabel e Joaquim.

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Entrevistas a duas crianças, Mariana e Joana.


Fotografias de naturais do Reguengo do Fétal.
Junta de Freguesia do Reguengo do Fétal.

Fontes Multimédia:

Censos 2001; freguesia do Reguengo do Fétal; Instituto Nacional de


Estatística; www.ine.pt
Microsoft AutoRoute 2002.

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Anexos

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ANEXO I

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ANEXO II

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Entrevista a uma avó (Amália)

- Que idade tem?


Tenho 63 anos.

- Estado civil?
Sou viúva.

- Habilitações literárias?
Tenho a 4ª classe.

- Onde vive?
Na Alcaidaria.

- E com quem vive?


Com a minha filha, o meu genro e os meus netos.

- E quando era pequena, com quem vivia?

Vivia com os meus pais e irmãos.

- Qual é a sua profissão?


Sou doméstica.

- Sempre foi doméstica?


Sempre fui doméstica, só trabalhei dois anos no Lar e também tive uma mercearia, fui
comerciante, mas trabalhei sempre por conta própria. Trabalhei estes dois anos no Lar
porque fui convidada para ir para lá, e como a minha filha não gostava muito que eu
trabalhasse lá, quando nasceu a minha neta vim tomar conta dela e o mesmo aconteceu
quando o meu neto nasceu.

- Mas faz aquilo que gosta?


Gosto, eu gosto muito daquilo que faço, gosto muito da casa, eu gosto muito de trabalhar
em casa, gosto muito de cuidar dos meus netos, eu adoro aquilo que faço, só que quando
era nova gostava de ser professora.

- Era o seu sonho?


Era o meu sonho, era estudar, ser professora, só que naquela altura, éramos seis irmãos e
eu era das mais velhas e, tinha de guardar os irmãos mais novos. Andei na 3ª classe e
depois nasceu um irmão e eu tive de sair da escola para tomar conta do meu irmão, mas

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

como eu tinha tanta vontade de estudar, lá pedi aos meus pais e eles lá me deixaram fazer a
4ª classe. Eu quando fui fazer a 4ª classe, pensava que era para continuar, mas como a
minha irmã mais velha não tinha estudado, os meus pais também não me deixaram
continuar.

- Mas os seus pais tinham condições para a pôr a estudar?


Tinham. Eram donos de umas propriedades, mas como eu disse, éramos seis irmãos muito
bastos e naquela altura, as mulheres tinham o dever de ajudar a criar os irmãos, porque por
exemplo os meus irmãos já foram estudar, embora não tirassem grandes cursos porque não
quiseram, mas já foram. A minha irmã mais nova também andou a estudar.

- Então a razão pela qual não foi estudar, deve-se à ideia que a mulher não precisava
de estudar, o seu lugar era em casa.
Sim, era isso.

- Os seus pais tinham esta ideia?


O meu pai nem tanto, pela vontade do meu pai eu ia, mas a minha mãe é que era assim. A
minha mãe é que achava que, como ela era dona de casa e tinha muito trabalho para fazer,
achava que nós a devíamos de ajudar. Desde cedo fui ensinada a fazer algumas coisas em
casa, como a limpar a loiça, a passar a ferro e a cuidar dos meus irmãos mais novos. E
assim foi até me casar.

- Sempre foi doméstica? Nunca teve outra profissão?


Aprendi a bordar à máquina, houve um curso no Reguengo, da Singer onde andavam umas
tias minhas e eu fui para lá aprender, mas era só para fazer o enxoval para mim, assim
como a minha irmã mais velha também aprendeu costura, mas foi só para fazer a costura lá
para casa.

- Mas na altura este tipo de actividades já eram consideradas boas, não eram?
Sim, aqui havia poucas que podiam fazer estas actividades, mesmo com a 4ª classe eram
poucas que o podiam fazer.

- Era obrigatória a 3ª ou não?


Não, só quando eu fiz a 3ª, é que saiu a lei que era obrigatório que as crianças até aos
catorze anos tinham de aprender a ler e a escrever. Porque muitas raparigas da minha
idade, muitas crianças iam já com dez anos para a primária, para a Torre, aqui na
Alcaidaria não havia escola.

41
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

- Mas na sua altura, antes da escola primária frequentavam alguma escola, como
aquela que existia em casa do padre Oliveira?
Não, na altura não existia, eu fui criada só em casa. A minha irmã mais nova andou lá.

- E o que é que fazia quando era pequena? Estava com a sua mãe?

Sim, ficava com ela e ajudava-a a cuidar da casa, a lavar a loiça, a lavar a roupa, ia apanhar
lenha para a fogueira, ou apanhar erva para dar aos animais, outras vezes, e já um pouco
mais crescidinha, tomava conta dos meus irmãos mais novos.

- O que faziam com os seus pais, para além de os ajudar nas lidas domésticas?
Fazíamos poucas coisas. Eles não tinham muito tempo para brincar connosco, brincávamos
uns com os outros e às vezes, com alguns vizinhos. À noite, o meu pai chegava a casa já
muito cansado...

- E da escola primária, lembra-se como era o ensino?


Lembro-me, era assim nós tínhamos de decorar mais as coisas, sei lá era tudo mais
maçudo. E éramos muitas crianças na sala...
- Eram separados, os meninos das meninas?
Não, era tudo junto. Vinham muitas crianças, umas da Alcaidaria, outras da Torre, a 4ª das
Torrinhas e do Rio Seco, portanto eram muitas crianças, às vezes, nem tínhamos cadeiras,
quer dizer nem eram cadeiras eram as carteiras e havia crianças que estavam sentadas no
estrado do quadro, sentadinhas com a pedra em cima dos joelhos. Sabes que a gente ali,
não tinha autorização para falar, ali havia só rigor.

- E como é que a professora consegui manter a ordem?


Ela batia muito e ralhava muito alto, e nós não tínhamos respeito, tínhamos medo.
- E batia em si?
Não, porque eu era calmita e como gostava de estudar estudava, como andava lá com
gosto, e estudava muito.

- Mas ela batia com que razões? Era só porque se portavam mal?
Não, era também porque não aprendiam, havia crianças que tinham muitas dificuldades,
outras não estudavam e ela castigava com a régua. Mas ela por exemplo, na altura da
Quaresma escondia a régua, punha-a dentro de uma gaveta da secretária e dizia: “se vocês
se portarem bem durante a Quaresma nós não vimos a régua” e era assim. Às vezes, nós
também lá tínhamos as nossas traquinices...

42
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Éramos crianças, mas também havia a cana, outras vezes íamos para o quadro e ela
avisava: “olhem a régua”, mas ela também dava mais reguadas por causa dos erros, quem
desse mais de três erros levava uma reguada por cada erro. Mas ela era uma boa
professora, ensinava bem, uma altura lembro-me de haver muitas crianças, nós por
exemplo na 4ª classe éramos, parece-me que quarenta e seis, fora as outras classes, aquilo
era para lá crianças por todo o lado. E ela, numa altura qualquer houve um ditado em que
as crianças deram muitos erros e ela começou a dar reguadas a quem tinha dado mais de
três erros e uma reguada por cada erro, e ela chegou a uma altura em que já lhe doía o
braço e começou-se a queixar e havia algumas crianças que se começaram a rir e então ela
disse: “eu estou aqui a cansar-me e vocês ainda se estão a rir, não estou para isto, se não
querem aprender pior para vocês, eu nunca mais bato”, ela estava furiosa, mesmo chateada
e nunca mais bateu com a régua. Podia dar uma chapada ou até uma reguada de vez em
quando mas aquele tumba, tumba, nunca mais deu.

- Mas em casa também vos era incutido esse respeito pela professora, não era?
Era, tínhamos de ter respeito e não tínhamos muita autorização para dizermos aquilo que
queríamos e, se fizéssemos algum disparate, mesmo que fosse pequeno a professora vinha
logo fazer queixa ao nosso pai, ou então mandava-o ir à escola. Não compreendiam as
traquinices da época, nós não tínhamos o direito de ser traquinas, mesmo no recreio
estávamos sentadinhas a jogar ao anelinho...

- Os meninos tinham brincadeiras diferentes das meninas?


Os meninos tinham. Por exemplo, eu andei numa escola antiga, que era a escola velha que
fica na Torre, quando se vai para a costa e não tinha espaço nenhum, o espaço era o
caminho que levava para as casas e as crianças quase não podiam jogar à bola, andavam ali
com uma bola de trapos. Mas cá em baixo, depois fiz a 4ª classe na escola nova, a actual e
aí os rapazes jogavam muito a bola e nós fazíamos as nossas brincadeiras a cantar, a
brincar ao lenço, ao anelinho, fazíamos a roda, brincávamos com o elástico. Mas também
não havia dinheiro para se comprar outros brinquedos...

- Tinham recreio durante muito tempo?


Não, não era como agora e, muitas vezes na 4ªa classe comíamos e íamos para dentro que a
professora tinha que nos dar a História, a Geografia e enquanto os outros estavam no
recrio.

- O que costumava fazer, nos seus tempos livres, quando era criança?

43
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Para além de tomar conta dos meus irmãos, brincava com eles às casinhas com bonecas de
papelão, com as roupinhas feitas por mim. Brincávamos no quintal, onde às vezes
tínhamos algumas crianças vizinhas, que vinham brincar connosco, fazíamos jogos... o dos
três pauzinhos, saltávamos à corda, brincávamos com as bonecas...

- Na escola usavam bata?


Sim, tínhamos uma bata branca. Era obrigatório.

- E como é que faziam as crianças mais pobres?


Era obrigatório e todos tínhamos, os pais lá a arranjavam, eu por exemplo dei a minha bata
a alguém com mais necessidade, os professores exigiam.

- Mas com certeza que havia muitas crianças que não frequentavam a escola?
Sim, só quando foi obrigatório, é que começaram a ir. Eu por exemplo, só na 4ª classe é
que usei bata porque até aí eu nunca usei bata.
- E tinham catequese na escola ou iam à catequese aos fins-de-semana?
A primeira professora que eu tive na 1ª classe não ligava muito a isso, mas depois na 2ª, 3ª
e 4ª classe tive sempre a mesma professora, que era do Reguengo. Era uma professora
excelente, podia ser o que fosse, mas para mim era uma professora excelente, eu gostava
muito dela e ensinou-me muito da vida, eu gostava muito da maneira de ser dela. Ela é que
nos ensinou a fazer a oração que nós tínhamos de dizer de manhã e todas as manhãs, os
meninos da 4ª classe é que faziam a oração da manhã, dizíamos o Pai-nosso e quase
sempre tínhamos um cântico para cantar mas há quinta-feira da parte da tarde havia uma
hora de catequese.

- Mas era lá na escola?


Sim na escola.

- E era o padre que lá ia?


Não, era ela. Eu penso que era na quinta-feira no fim da aula, mas também chegou a ser ao
sábado. Mas como ao sábado tínhamos de cantar o hino nacional, e bem como agora na
altura da Quaresma, explicava o que era a Quaresma, no advento, explicava o que era o
advento, era aos sábados da parte da manhã, ela tinha explicações do que era a moral...

- Mas sabe se isso fazia parte do ensino?

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Não fazia, era ela própria que queria, porque ela era uma pessoa muito religiosa e então,
queria incutir isso nas crianças, era uma pessoa muito praticante, vinda de uma família com
pessoas muito ligadas à religião. Ela era uma pessoa assim, era muito boa.

- E quando saia da escola, o que é que fazia?


Guardava os meus irmãos. E praticamente as crianças aqui que andavam na escola, quando
chegavam varriam a cozinha à mãe, iam buscar lenha para casa, acartavam mato. Esta zona
aqui ainda não era das piores, mais ou menos toda a gente vivia razoavelmente, claro que
havia casos de algumas pessoas que viviam com mais dificuldade, mas mesmo assim aqui
já se vivia bem. Sei de outros sítios onde muitas crianças não iam à escola para terem de
trabalhar no campo, para ajudarem os pais, mas a nossa zona aqui era melhorzinha.

- E tinha tempo para fazer os trabalhos da escola?


Sim, às vezes a minha mãe, que já tinha a 3ª classe naquela altura, ajudava-me a fazê-los.
Depois à noitinha, antes de irmos para a cama, juntava-me com os meus irmãos e
brincávamos um pouco, falávamos de coisas que tínhamos visto durante o dia, conversas
de crianças. Os meus pais nunca tiveram muito tempo para brincarem connosco...

- Mesmo não sendo muito da sua vontade que andasse na escola?


Pois, mas neste caso, depois de eu ir, ela já não se importava.
- Obrigada pela sua atenção.

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ANEXO III

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Entrevista a um avô (Manuel)

- Diga-me a sua idade?


66 anos.
- Estado civil?
Casado.
- Onde vive?
No Reguengo do Fétal.
- Com quem vive?
Com a minha mulher.
- Quais são as suas habilitações literárias?
Muito pomposamente o 2º grau da instrução primária ou seja a 4ª classe de agora, mas era
assim que se chamava naquela altura.
- Qual é a sua profissão?
Actualmente, sou reformado, mas porque tinha uma fábrica, era considerado industrial ou
comerciante.
- Teve a profissão que gostava?
Em principio não, porque isto de atender clientela, não é fácil e hoje pior ainda, porque o
cliente tem muita oferta.
- Mas estava na parte de atendimento aos clientes?
Primeiro estava. Eu quando saí da tropa fui empregado por conta do Fernando Almeida e, é
claro, nós arranjamos um emprego para tentar ganhar algum, depois é que nos adaptamos
ao trabalho, se gostamos ou não. Eu fui gostando do serviço, do trabalho e fui vendo que
talvez fosse um emprego para futuro, porque também não vale a pena andar a correr para
outros lados e à procura de empregos que só existem no imaginário de cada um. Fui
gostando e acabei por ficar, ainda hoje gosto imenso de atender um cliente.
- Agora fale-me um pouco da sua infância, frequentou algum jardim-de-infância?
Não, ainda não existia nenhum.
- Mas lembra-se de alguma coisa antes da sua ida para a escola primária?
Lembro-me, mais ou menos. Eu tive uma infância muito má, fiquei sem mãe tinha
cinquenta dias e depois o meu jardim-de-infância era em casa de vizinhos, onde havia
crianças da mesma idade... As dificuldades eram muitas. Eu ia para a escola descalço, até à
quarta classe, fui sempre descalço. Os caminhos estavam cheios de buracos, e eu passava

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

por cima da água, do gelo...quando chovia levava um casaco velho do meu pai. O casaco
tapava-me quase todo, punha uma boina na cabeça, enfiava a mala debaixo do casaco e lá
ia eu para a escola. Parecia aleijado das costas com a mala a levantar o casaco.
Para o lanche levava um bocado de broa, um bocadito de toucinho...mais do que isso não
seria... só havia fartura de carne quando se matava o porco.
Depois quando chegava a casa, antes de ir para a horta ou para o pinhal...isto do pinhal era
em Janeiro, porque os cortes davam-se todos em Janeiro e Junho, mas em Junho estávamos
próximos do exame e não se podia faltar.
- E o que é que ia fazer ao pinhal?
Ia buscar lenha e caruma para fazer a fogueira. O comer era feito à fogueira, não havia
fogões ainda!
- Era filho único?
Não, tinha uma irmã mais velha três anos, tinha e tenho, está no Brasil, mas a minha mãe
morreu com uma embolia pulmonar ou cerebral, que lhe deu talvez, por motivações do
parto, não sei bem. Depois fui criado por pessoas que tinham filhos ou filhas da minha
idade.
- Familiares ou pessoas de fora?
Pessoas de fora, com a minha sogra, por exemplo, porque a minha mulher é do meu ano e
outras pessoas...
– E o seu pai não voltou a casar e constituir família?
O meu pai depois voltou a casar. Quando a minha mãe morreu, ele foi para Lisboa
trabalhar no estádio nacional e esteve uns dois anos sem cá vir. Quem me criou foram a
minha tia e a minha avó e depois era em casa de quem dava pão e a minha irmã como mais
velha tinha que ir tomando conta de mim como podia. Por isso, tive uma vida muito má.
Quando o meu pai voltou a casar, eu já tinha quatro anos, conversei muitas vezes com ele
já depois de ser adulto e disse-lhe que foi a maior asneira que fez foi ter estado quatro anos
viúvo. Mas a gente tem de respeitar as ideias das pessoas, ele tinha um filho com dois
meses incompletos e uma filha com três anos e tinha vinte e sete anos, penso que ninguém
lhe levava a mal se ele voltasse a casar passado um ano ou ano e meio, mas parece que ele
gostava muito da minha mãe, davam-se muito bem.
E assim o meu jardim-de-infância foi em casa deste e daquele, eu conhecia as casas todas
do Reguengo por dentro. Eu apanhei enterite, parecia aqueles meninos de África com uma

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

barriga muito grande, eu não me recordo muito bem mas contam-me as pessoas mais
velhas, eu passei uma infância mesmo péssima.
- Mas quando foi para a escola primária o seu pai já era casado, já devia ter uma vida
melhor.
Era completamente diferente, a minha madrasta era muito boa pessoa nunca tive mal a
dizer dela, só havia uma coisa que eu não gostava que ela fizesse, nós éramos miúdos, eu e
a minha irmã, se fazíamos alguma asneira ela ia dizer ao meu pai, mas só passado dois ou
três dias e, o meu pai puxava-nos as orelhas ou dava-nos um tabefe, por uma coisa que já
tinha passado há três ou quatro dias, mas ela nunca me tocou com um dedo.
- Então fale-me do seu tempo de escola.
Nós entravamos para a escola, o professor era o Joaquim Ribeiro, eu andei quatro anos na
escola, um ano em cada classe.
- E quando foi para lá já ia com a intenção de fazer a 4ª classe?
Já.
- Mas era obrigatório?
Não, eu até queria ter continuado a estudar porque eu, modéstia à parte, não era burro
nenhum nas contas, o único senão era a escrita, e ainda hoje é. Tenho dificuldade nas
palavras que levam o S e o C, eu até dei dois erros no exame da quarta e quem desse mais
que um erro estava sujeito a chumbar, mas como fiz as contas todas bem, os problemas e
tudo, lá me passaram. Eu sempre fui mais bonzinho em contas, de multiplicar e aqueles
quebrados. Eu gostava da escola, gostava de ter continuado, tanto que eu depois fui para a
tropa e ainda me matriculei numa escola particular em Lisboa, no bairro dos Anjos e ainda
lá fui umas quantas vezes, mas a mensalidade não comportava com o dinheiro da tropa que
era pouco, o meu pai não me dava dinheiro porque também não havia, eram tempos
também difíceis.
- E como é que era o ensino?
Olhe o ensino, segundo o que uma vez uma professora me disse, era aquilo que ela falou
de um termo empinar, empinar tudo cá para dentro, mas o certo é que ainda hoje me
lembro de coisas que aprendi na escola, nomeadamente de cultura geral. É que às vezes,
vejo estes doutores que vão a certos concursos da televisão e esbarram logo ali na porta,
porque não sabem patavina daquilo. As coisas do básico, que se aprendiam naquele tempo,
tinham-se que se decorar, tinha que saber a história toda... quantos alunos hoje com o 5º e o
6º ano sabem alguma coisa de história, o nome dos reis, o cognome, o primeiro, o segundo

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rei.... Eu não concordava com certos métodos de ensino do meu tempo de algumas
professoras, eu apanhei uma na 4ª classe que nunca levei um puxão de orelhas dela, talvez
porque eu não merecesse, eu era mais ou menos um aluno aceitável, mas havia alunos mais
atrasados que ela arreava de qualquer maneira, com a régua, com aquilo que ela tinha à
mão e ai daquele que fosse para casa dizer ao pai, chegava a casa e ainda levava mais.
- Do pai?
Pois do pai.
- Então os pais apoiavam estas iniciativas da professora?
Apoiavam, o aluno andava na escola era para aprender e hoje não. Hoje vimos situações
em que os pais estão constantemente a apoiar os alunos, o pai se quer apoiar os alunos não
lhe pode estar constantemente a dar razão, e tudo o que ele quer. Por isso é que se vê e se
lê nos jornais que os professores são agredidos muitas vezes por alunos de catorze/quinze
anos, porque os alunos perderam o respeito aos professores. Se calhar no meu tempo
tinham medo, mas aprendiam e resultava, mas com os mesmos métodos hoje, também não
íamos lá. Os mesmos métodos de há quarenta anos atrás ou cinquenta quando eu andei lá,
hoje acho que não resultavam, porque no dia a seguir ninguém punha lá os pés, não ia
ninguém, mas passou-se do 8 para o 8 mil. Muitos saem da escola, que agora parece que é
obrigatória até aos dezasseis anos...
- Sim até ao 9º ano.
E ainda querem pôr até mais...
- Até ao 12º ano.
Quer dizer, andam lá até aos dezoito anos e muitos saem de lá a saber menos que eu que
andei até à 4ª classe.
- Agora voltando à sua infância, que tipo de brincadeiras é que tinham?
Tínhamos aquelas brincadeiras do jogo do botão, que eram as brincadeiras mais perigosas,
porque se arrancavam os botões das camisas lá de casa e quando chegávamos a casa
levávamos um puxão de orelhas. Jogávamos à bola como uma bola feita de trapos muito
bem apertados. Andávamos ao visgo, para apanhar a passarada. E fazíamos o jogo do
prego, jogávamos ao pião, ao berlinde, à alhada...
- E tinha tempo para fazer os deveres da escola?
Fazia à noite.
- Mas o seu pai incentiva-o?

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Não, graças a Deus nunca foi preciso, incentivava mais a minha irmã porque ela era mais
preguiçosa e tinha mais dificuldades.
- Mas, deixava-o fazer?
Como o meu pai nessa altura já tinha uma taberna e uma mercearia, eu vinha da escola e ia
para lá ajudar e numa hora de menos trabalho, numa hora vaga como se diz, ia fazendo
uma cópia, uma conta, um ditado e depois à noite fazia o resto.
-E depois da escola o que é que fazia?
Quando chegava a casa, depois da escola tinha de ir regar a horta, ou tirar o estrume aos
animais, ir ao pinhal ou fazer isto ou fazer aquilo que o meu pai me mandava.
- Então era isso que fazia quando saía da escola?
Era, só depois quando saí da escola, aos dez anos, em 48 é que entrei nos serviços mais
duros, a gente tinha algumas fazendas ali para o lado das Torrinhas, quase a chegar às
Fontes, e ia a pé daqui para lá com dez, onze anos com uma enxada às costas e com o saco
da merenda, era uma vida um bocadinho difícil nessa altura.
- Mas quando me disse que gostava de ter estudado, não o fez por causa do seu pai?
Não, ele não tinha mesmo possibilidades, só fiz o exame da 4ª classe.
- Mas apesar de não ser obrigatório o seu pai já o deixou fazer a 4ª classe?
Já, o meu pai sabia ler, já tinha a 3ª classe no tempo dele. A minha madrasta por exemplo
era mais velha que o meu pai uns quatro anos e não sabia ler, quem a ensinou a ler fui eu e
a minha irmã. A minha irmã também tem a 4ª classe como eu.
- Talvez fosse por o seu pai ter a mercearia?
Sim, o meu pai tinha a mercearia, mas ele também sabia ler e escrever muito bem, já tinha
a 3ª classe e penso que não tirou mais porque o meu avô morreu muito novo, e se a vida
era difícil no meu tempo também não era fácil no tempo dele. De maneira que o facto de
ele ter a mercearia, saber ler, de fazer contas...tudo isso o motivou para que deixasse que os
filhos fizessem a 4ª classe e o exame, que era muito difícil.
- E na escola havia muitas crianças?
Éramos cerca de quarenta, só numa sala com as quatro classes.
- Estavam todos juntos, rapazes e raparigas?
Não, os rapazes estavam numa sala e as raparigas noutra, os rapazes ficavam na sala do
lado da estrada e as raparigas na outra do lado do recreio.
- E no recreio brincavam juntos?

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Brincávamos, mas as raparigas não queriam muitas misturas com os rapazes, casa de
banho não havia, foi feita posteriormente, aquecimento, isso era uma utopia, electricidade
também não havia...
- Que tipo de material tinha?
Havia a pedra de lousa com os lápis também de lousa, os cadernos de linhas, os de contas,
também tinha os de duas linhas, tínhamos bastantes livros, alguns livros da minha irmã
ficaram para mim mas houve outros que tiveram que se comprar.
-................
Gostei muito de andar na escola, o recreio era muito diferente, jogávamos à bola,
saltávamos ao eixo, havia brincadeiras, não posso dizer que fossem violentas, mas eram
brincadeiras de rapazes, as raparigas tinham as suas brincadeiras, a professora também não
deixava que houvesse misturas, estava no recreio tipo pastora e não deixava que as
raparigas brincassem às brincadeiras dos rapazes.
- E em sua casa, o seu pai tinha o hábito de ler?
Ele lia, mas por exemplo não havia o hábito de comprar jornais, de vez em quando
comprava o Diário de Noticias, lembro-me bem, custava oito tostões, mas o meu pai lia
bastante até, gostava de pegar em livros, até pegava nos nossos livros da escola, e lia esta
ou aquela lição e quando ele pensava em fazer um ditado tínhamos de fazer.
- Ele fazia isso consigo?
Fazia, não era muito frequente, mas de vez em quando fazia.
-O seu pai participava de alguma forma na escola?
Não, o meu pai não participava na escola. Só iam à escola os pais dos que se portavam mal
ou então aqueles pais que tinham muita confiança com o professor... os que pertenciam a
uma classe com mais dinheiro.
- Na sua infância frequentou a catequese?
Isso era obrigatório.
- E onde a tinha?
Havia catequese na escola. Tínhamos o livro de Educação Moral e Cívica, eu tenho ainda
dois livros do meu tempo e, este livro era um autêntico catecismo, tinha a Salve Rainha, o
Pai-nosso, a Avé Maria...
- E quem dava a catequese?
Era o professor que dava, fazia parte do ensino. Mas depois ainda íamos à catequese com o
padre.

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

- Era aqui no Reguengo?


Era, havia um movimento que era a cruzada eucarística, e toda a gente gostava de
pertencer à cruzada, porque se ia a Fátima pelo menos uma vez, no 12 para 13 de Agosto e
dormia-se lá. Levava-se uma faixa branca com uma cruz vermelha à frente e outra atrás,
toda a gente gostava muito de pertencer à cruzada e quando não pertenciam à cruzada é
porque não tinham passado de ano na catequese.
- E as crianças chumbavam na catequese?
Chumbavam sim e tinham de repetir.
- Lembra-se do que é que davam na catequese?
Lembro, era todas aquelas bem aventuranças, todas aquelas orações que vinham no
catecismo, de hoje não sei se vêem, e se não soubéssemos aquilo tudo podíamos reprovar.
Tínhamos de estar bem preparados para fazer a comunhão solene, não havia uma idade
rígida para fazer os sacramentos, era só quando estávamos muito bem preparados.
- Obrigada pela sua atenção.

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

ANEXO IV

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Entrevista a um pai (Joaquim)

- Idade?
34 anos.
- Estado civil?
Casado.
- Onde vive?
No Reguengo do Fétal.
- Com quem vive?
Com a minha mulher e o meu filho.
- Habilitações literárias?
Bacharel em Engenharia Mecânica.
- Qual é a sua profissão?
Sou director de produção numa unidade industrial.
- Fale-me um pouco da sua infância, frequentou o Jardim-de-infância?
Sim mas só depois dos cinco anos. Antes dessa idade ficava ao cuidado da minha avó.
- Ficava em casa dela?
Sim, quando o meu pai e a minha mãe iam trabalhar deixavam-me a dormir e depois a
minha avó ia vendo se eu acordava. Depois levava-me para casa dela ou então quando ela
ia com os meus pais para o campo eu ficava com a minha tia velha.
- Então morava perto da sua avó e da sua tia?
Morava mesmo ao lado. Ali na rua éramos quase todos da mesma família.
- E brincava sozinho ou havia outras crianças?
Não. Havia outras crianças, mais velhas e mais novas. Na altura ainda não tinha irmãos e
brincava com os meus primos e com as crianças da minha rua. Depois entrei para o jardim-
de-infância e brincava com os meus colegas. Entretanto nasceu a minha irmã e por essa
altura entrei para a escola primária. Quando eu terminava os trabalhos de casa tinha que
tomar conta dela para a minha mãe poder trabalhar mais descansada, por isso levava-a
comigo quando ia brincar com as outras crianças daqui da rua.
- E que tipo de brincadeiras fazia com as outras crianças?
Jogava ao berlinde e ao pião, montávamos armadilhas para apanhar pássaros, andávamos
de bicicleta, apanhávamos peixitos nas valas que havia, jogávamos à bola e, às vezes,
íamos ao pinhal apanhar pinhas e jogávamos uma espécie de basebol.

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

- E tinha brinquedos?
Tinha, tinha alguns brinquedos, não eram muitos mas já tinha alguns. Os meus pais faziam
questão de nos darem um brinquedo no Natal. Era sempre uma alegria quando chegava o
Natal pois sabia que ia ter um brinquedo novo. Ainda tenho alguns guardados, como tinha
tão poucos brincava com eles com muito cuidado e não os estragava. Naquela altura tinha
um tio emigrado na Alemanha que quando vinha cá no Verão me trazia os bonecos da
Playmobil. E a miudagem da rua vinha toda ver os meus bonecos. Eram o meu tesouro, os
meus bonecos e os meus brinquedos. Havia poucos brinquedos e os que havia eram muito
caros e os meus pais não me podiam dar muitos. Mas nós inventávamos os nossos
brinquedos e as nossas brincadeiras e éramos felizes à mesma.
- E como era na escola primária?
A escola primária não foi muito difícil para mim. Tinha uma professora que não costumava
bater e era muito boa, explicava muito bem e nós aprendíamos sem dificuldades. Mas era
do recreio que eu gostava mais. Era nessa altura que eu brincava com os meus colegas e
com os meus amigos.
- A que brincavam no recreio?
À apanhada, ao toque e foge, às escondidas, ao berlinde, à bola... esses jogos assim.
- E como era em casa? Qual era a sua relação com os seus pais?
A minha relação com os meus pais era boa, eles não eram de me bater e eu também lhes
tinha muito respeito e não era um miúdo muito traquinas, era calminho. Claro que também
tinha as minhas coisas de criança, as minhas diabruras mas normalmente não era castigado
por causa disso, os meus pais ralhavam mas poucas vezes me bateram. Como eu era o mais
velho, tinha como obrigação tomar conta da minha irmã e de ajudar no que fosse preciso,
fazer algum recado ou outras coisas que os meus pais me pedissem para fazer, mas eram
coisas leves e pouco difíceis de fazer. A única coisa que os meus pais me exigiam é que
estudasse e tivesse boas notas na escola. Eles queriam que eu tivesse uma vida futura
melhor do que a deles.
- Onde é que os seus pais trabalhavam?
Eles trabalhavam nas terras e nas vinhas, eram agricultores. Tinham algumas dificuldades
porque vivia-se daquilo que a terra dava e do dinheiro que se fazia com a venda do vinho e
de alguns produtos que cultivavam. Por vezes, lá vinha um ano menos bom em que não se

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

produzia tanto vinho ou então era de menor qualidade e as dificuldades eram maiores mas
no ano a seguir as coisas melhoravam um pouco...
- E o senhor ajudava os seus pais?
Ajudava, aliás era de certa forma obrigado porque como filho mais velho eu tinha algumas
obrigações. Tomava conta da minha irmã e fazia pequenos serviços, por exemplo:
apanhava as batatas para dentro dos sacos, apanhava as couves para dar aos animais, e
outras coisas desse género. Os meus pais iam-me ensinando como realizar certas tarefas e
eu tinha de as fazer.
- E quando não tinha que ajudar o que é que fazia?
Quando eu não tinha que ajudar divertia-me a apanhar pássaros ou grilos, ou então a fazer
pequenas explorações ali pelas redondezas com os outros miúdos.
- Então o que é que os seus pais faziam mais?
Também ajudavam os vizinhos, porque quando era preciso os vizinhos também os
ajudavam. Na altura das vindimas juntava-se muita gente e ajudavam-se uns aos outros.
- E ao serão, o que faziam?
Contavam-me histórias. Não estas histórias tradicionais como as que eu conto hoje ao meu
filho. Muitas vezes depois do jantar, enquanto a minha mãe arrumava a cozinha, o meu pai
contava-nos histórias do tempo em que ele era criança ou então histórias que se tinham
passado aqui na terra com esta ou com aquela pessoa. Os meus pais gostavam de ler e às
vezes até compravam um livro ou o jornal para lerem, mas mais o meu pai porque a minha
mãe tinha sempre muito trabalho. Depois de vir das terras ainda tinha a lida doméstica para
fazer e os filhos para tratar...ela tinha sempre muito trabalho.
- E o seu pai não a ajudava nos trabalhos domésticos?
Não ajudava muito porque ele dizia que o trabalho da casa era para as mulheres, mas por
vezes tratava dos filhos, dava-nos o banho, vestia-nos, ajudava-nos a comer e a minha mãe
ia fazendo outras coisas. Mas ele também não tinha tanto tempo livre porque, por vezes, a
minha mãe vinha para casa e ele continuava a trabalhar ou então ia ajudar um ou outro
vizinho.
- Ia à catequese?
Ia, ao fim de semana íamos todos à missa e à catequese.
- Muito obrigada pela atenção.

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

ANEXO V

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Entrevista a uma mãe (Isabel)

- Idade?
40 anos.
- Estado civil?
Casada.
- Onde vive?
No Reguengo do Fétal.
- Com quem vive?
Com o meu marido e com as minhas filhas, uma de 10 anos e outra de 3.
- Habilitações literárias?
Tenho o 11º ano, ainda iniciei o 12ºano mas não o acabei e tenho depois o Magistério, três
anos de Magistério.
- Profissão?
Professora do 1º ciclo.
- Tem a profissão que gostava?
Sim, acho que sim. Pelo menos é aquela que eu idealizei e acho que tinha até um certo jeito
para isso.
- Como ocupa o seu tempo livre? Antes e depois do trabalho?
Antes do trabalho não tenho tempo livre. Começo a trabalhar às oito e meia da manhã e
saio às três. Depois desta hora, como estou a tirar o curso de Comunicação Educacional,
ocupo a maior parte do tempo a ler, a fazer pesquisas e no computador.
- Pratica algum desporto?
Neste momento não, não tenho tempo. Mas gostava de praticar aeróbica ou hidroginástica,
mas neste momento não tenho mesmo tempo.
- E como é que ocupa os seus tempos livres ao fim de semana?
Normalmente ao fim de semana é quando organizo as minhas coisas em casa, pois não
tenho nenhuma pessoa que venha cá fazer limpeza. E depois o resto do tempo que me
sobra destas actividades, até porque tenho duas crianças pequenas, depois disso leio,
investigo, estudo, leio outros livros que não são para o curso e passeio.
- Agora vamos falar um pouquinho da sua infância. Frequentou o Jardim-de-
infância?
Sim.

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

- Onde?
Era na parte debaixo da casa do padre Oliveira.
- E na altura estavam com quem? Era pessoal especializado?
Não, eu penso que eram pessoas, moças novas que na altura estariam sem emprego e
tinham alguma apetência para isso. Lembro-me que era a Isabel, a esposa do Henrique, a
menina Laura...
- Lembra-se de como funcionava?
Sim, era diferente de agora. O almoço tínhamos de levar de casa e depois elas aqueciam ou
levávamos um termo e depois comíamos lá.
- Acha que na altura funcionava apenas com o intuito de deixar os pais mais
disponíveis para as suas actividades diárias?
Sim, mas nem só. Penso que já existia da parte dos nossos pais a preocupação que
tivéssemos ocupado com actividades um ano ou dois antes da entrada para a escola. Por
acaso até há pouco tempo mandei ampliar uma fotografia do meu grupo dessa altura, e lá
estava eu e os meus colegas de chapelinho e bibinho.
- Já usavam bibe nessa altura?
Sim, sei que já usávamos bibe, não sei se era obrigatório e também não me lembro da cor.
- E lembra-se das actividades que fazia lá?
Lembro porque eu mais tarde fui recuperar esses trabalhos e tenho o processo e quando vi
esses trabalhos reconheci-os e sei que são meus.
- E que género de trabalhos eram?
Desenhos, colagens, fazíamos os trabalhinhos para o Dia do Pai e da Mãe, fazíamos
trabalhos tipo cestaria em papel, tenho também o desenho da família. Do mesmo modo
também recuperei o meu processo do 1º ciclo.
- E a escola primária, onde a frequentou?
Também no Reguengo.
- E do que é que se lembra dessa época? Do ensino, de como ocupava o seu tempo
quando saía da escola?
O ensino era muito virado para a memorização, dávamos muito a nível de História de
Portugal, os rios, dávamos também aquela parte da história dos países que estavam ligados
a Portugal, que Portugal tinha conquistado, lembro-me de decorar a tabuada no 2º ano.
Lembro-me ainda de rezar quando iniciávamos a escola, de termos o crucifixo na sala, de
rezar antes de iniciar o dia e depois brincávamos intervalo.

60
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

- Lembra-se quais eram as suas brincadeiras na escola?


O que mais me lembro era de jogar ao rou-rou e de fugir e da casinha. Não sei como se
chamava este jogo, lembro-me de nos refugiarmos nessa casinha.
- Mas havia muito tempo para estas brincadeiras?
Não, o intervalo era curto e normalmente quem não fazia os trabalhos ficava de castigo
dentro da sala e não vinha ao recreio. Havia também o peso da régua que, felizmente,
actualmente não existe, era o medo. O ensino era de decorar à força enquanto que hoje é de
compreensão.
- Fez a escola primária em quatro anos?
Não, repeti um ano porque não fui fazer o exame, naquela altura tínhamos de fazer tipo um
exame de estado no 4º ano e como tive um problema de amígdalas não fui ao exame, que
era feito na escola da Batalha e como eu faltei no dia do exame, chumbei e não me restou
outra solução senão de repetir o 4º ano.
- E depois da escola lembra-se do que fazia?
Ia ajudar a minha mãe no campo, lembro-me de ir para a serra com ela. E havia também o
trabalho de casa, lavar a roupa, que na altura não tínhamos máquina de lavar, fazer a
limpeza... comecei muito cedo a ajudar a minha mãe. Aos 12 anos já fazia a limpeza
sozinha e nas férias fazia a comida. Na altura era assim, fazia parte da educação das
raparigas e assim a minha mãe também ficava mais livre para ajudar o meu pai no campo.
Mais tarde lembro-me que comecei a ver televisão, penso que na altura da escola primária
ainda não tinha televisão. Também andávamos aos pássaros, subíamos árvores...
Quando eu tinha sete anos, nasceu a minha irmã e então passava muito tempo com ela.
- Ajudava a tomar conta dela?
Sim, a minha mãe é que lhe dava de comer, mas depois eu tomava conta dela. Lembro-me
de estar a fazer os trabalhos da escola e ela estar no berço a dormir. A minha mãe assim
andava mais descansada na horta ou a cuidar dos animais. Quando ela chorava eu tentava
calá-la ou chamava a minha mãe.
- E tinha tempo para fazer as coisas da escola?
Sim, os meus pais davam-me tempo e nunca me mandaram estudar, eu tinha sempre essa
preocupação. Agora com a minha filha tenho de estar sempre a lembrá-la das suas tarefas,
acho que nós éramos mais responsáveis. E então se havia trabalhos da escola ia fazê-los,
assim que acabava ia ajudar em casa ou no campo, consoante era preciso.
- Eram outros tempos...

61
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Eram, eu comecei muito cedo a ajudar a minha mãe a fazer limpeza, a fazer a comida.
Naquela altura era assim e lembro-me de que até gostava... Quando comecei a fazer
comida sozinha, lembro-me de ficar toda orgulhosa e tinha uns dez ou onze anos. A minha
mãe foi-me ensinando, fazia parte da educação das meninas.
- E a relação com os seus pais, como era?
Com a minha mãe era uma relação muito próxima, conversávamos muito, eu contava-lhe
as coisas que aconteciam na escola... A minha mãe estava sempre ocupada a fazer alguma
coisa, e eu andava sempre por perto e ia ajudando. Às vezes enquanto lavava a roupa ou
descascava o feijão ou as ervilhas para a comida, aproveitava para me perguntar a tabuada
ou para me ensinar aquelas orações da catequese. Outras vezes contava-me como eram as
coisas na infância dela ou aquelas histórias de bruxas.
- E com o seu pai?
Com o meu pai era diferente porque ele andava sempre no campo. Trabalhava até tarde e
depois às vezes ainda tratava dos animais. Mas também me lembro de às vezes ser ele a
ajudar-me com as coisas da escola. Perguntava-me os rios, as serras... eram coisas de que
ele ainda se lembrava e tinha orgulho disso. Também me lembro que gostava muito de
estudar a lição ao pé dele, às vezes ao domingo quando ele tinha tempo. Tínhamos que ler
o texto várias vezes porque depois a professora ia fazer ditado. Então eu lia alto para o meu
pai e ficava toda contente porque ele elogiava-me, dizia que eu lia muito bem.
- Acha que os seus pais lhe incutiram esse gosto pela escola, o seguir a via do ensino
para ter uma vida melhor?
Não, a única coisa que eles me tentavam transmitir era que eu fizesse outra coisa que não
aquilo que eles faziam, que era um serviço muito duro. O meu pai trabalhava no campo e a
minha mãe ajudava-o e viviam do que a terra lhes dava, do dinheiro do vinho que vinha
uma vez por ano.
- Mas nunca lhe fizeram nenhum tipo de entrave, à sua continuação na escola?
Pelo contrário sempre incentivaram. Talvez o único entrave que me faziam era: “se
chumbares sais da escola” e daí eu ter sempre a preocupação de não chumbar.
- Então teve sempre essa preocupação de querer seguir os estudos?
Sim, depois da escola primária fiz o CCV, que é o ensino através da televisão.
- Então aqui no Reguengo havia telescola?

62
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Sim, era nuns pavilhões junto à escola primária que depois foram demolidos, inicialmente
até era em casa do padre, depois é que fomos para esses pavilhões, mas era na mesma o
padre que orientava as aulas da parte de ciências, e vinha uma professora dar as línguas.
- Frequentava a catequese?
Sim, não sei se era ao sábado se ao domingo, mas íamos à catequese.
- E avós, tinha contacto com eles?
O meu avô paterno nunca o conheci e a minha avó mal me lembro dela. Mas lembro-me de
me ir sentar à lareira, com os pais da minha mãe que viviam lá ao pé. O meu avô sabia
umas lengalengas enormes que tinha aprendido na tropa, quando estava bem disposto era
muito agradável ficar a ouvi-lo. Mais tarde ainda registei aquelas de que me lembrava, no
outro dia estive a lê-las às minhas filhas, fartaram-se de rir.
- Obrigada pela sua atenção

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

ANEXO VI

64
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Entrevista a uma criança (Mariana)

- Quantos anos tens?


Nove.
- Onde é que vives?
No Reguengo do Fétal.
- Com quem é que tu vives?
Com o pai, a mãe e a irmã.
- O que costumas fazer no fim-de-semana, normalmente?
Normalmente?
- Sim, ao sábado e ao domingo.
Ao sábado das três às quatro costumo ir para a catequese. Depois venho para casa, fico
em casa e vou fazer os meus trabalhos de casa. Ao domingo, de manhã vejo os bonecos
e depois à tarde vou passear com o meu pai.
- Então e costumas passear aonde?
Na Batalha, em Leiria, fazer compras, quase sempre.
- Vais quase sempre fazer compras, então aproveitam o fim-de-semana para fazer
as compras.
Sim.
- Mas são compras lá para casa ou são para ti?
São para casa e para mim, são para todos.
- E ao sábado de manhã?
Ao sábado de manhã, vejo bonecos.
- E brincar com a tua irmã? Ainda brincas ou já não gostas de brincar?
A minha irmã brinca sempre lá fora.
- Então e tu não vais brincar para a rua?
Não.
- Gostas mais de estar dentro de casa?
É.
- Então e olha lá, não costumas ajudar a tua mãe lá em casa?
Só um bocadinho.
- Então mas ajudas a fazer o quê?
A pôr a mesa, a tirar a mesa e a lavar a loiça.

65
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

- Então mas tu já sabes lavar a loiça?


Já.
- Então na escola, o que é que tu gostas de fazer?
Brincar, jogar computador....
- Mas isso é nos tempos livres. Então e na sala de aula?
Fichas de avaliação, amanhã vou ter uma a matemática.
- Então e qual é a área que gostas mais?
De língua portuguesa e matemática.
- Então e de estudo do meio?
Não gosto muito.
- E quando sais da escola o que é que costumas fazer?
Fico nos tempos livres até a minha mãe me vir buscar.
- Então o que é que costumas fazer nos tempos livres?
Faço as coisas da escola, brinco com bonecas e com outras coisas.
- Então e depois de saíres dos tempos livres?
Vou para casa, vou buscar um cobertor e tiro as camisolas e vejo televisão.
- Então parece-me que o que mais gostas de fazer em casa é ver televisão, não é?
É.
- Então e não gostas de ler?
Nem por isso, mas ás vezes quando estão a dar as notícias leio um bocadito.
- Então e a tua mãe, lê-te histórias?
Não, ela só trabalha, só está a fazer coisas.
- Então que coisas é que ela faz lá em casa?
Passa a ferro, todos os dias tem de varrer a sala, a cozinha, outras vezes arruma a
roupa, põe a roupa na máquina e às vezes lava a loiça mas também a põe na máquina
para estar um bocadinho sentada a ver televisão.
- Então ainda há pouco disseste-me que no fim-de-semana costumas ir passear à
Batalha, a Leiria e por exemplo não costumas ir passear à praia?
De vez em quando.
- E há biblioteca, costumas ir?
Nunca.
- E ao cinema?
Sim, já fui. Mas só que foi com a escola.

66
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

- E com os teus pais nunca fostes ao cinema?


Nunca.
- Mas gostavas de ir?
Gostava.
- Então o que gostas mais de fazer na escola?
Contas.
- E também costumas fazer pinturas?
Costumo, mas não gosto muito.
- Então e o que gostas menos de fazer?
Fazer perguntas por escrito de estudo do meio.
- Então agora vamos falar dos tempos livres. Quando estás com os teus colegas, o
que é que gostas mais de fazer?
Saltar à corda.
- E o que não gostas que os teus colegas te façam?
Que eles me chateiem.
- Então agora diz-me, o que é que tu gostavas de ser quando fosses grande? O que
é que gostavas de fazer? Qual a profissão que gostavas de ter?
Advogada.
- Advogada, porquê?
Porque gostava.
- Então explica-me lá o que é que um advogado faz.
Vai para o tribunal defender as pessoas inocentes e...
- Então mas tu gostavas de ser advogada para defender as pessoas que não
fizeram mal?
Não.
- Mas então era porquê?
Porque gostava.
- Mas não consegues explicar porquê?
Porque é uma profissão boa e tem algumas vantagens.
- Mas tem de haver alguma razão para tu queres ser advogada.
Porque algum dia o meu pai pode ter algumas dificuldades e assim eu já o posso
ajudar.
- Então queres ser advogada para ajudares o teu pai?

67
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

E a minha família.
- Então e qual é que tu achas que é a desvantagem de ser advogada? De ter a
profissão de advogada?
É que os nossos clientes podem pensar que nós fazemos aquilo por causa do dinheiro.
- E não é essa a razão?
Não.
- Achas que os advogados ganham muito dinheiro?
Não ganham mal.
- Porque é que tu achas que os advogados não ganham mal?
Porque nos julgamentos têm que mostrar que o cliente é inocente, tem muitas
papeladas, tem de ter muitas provas para mostrar que são verdadeiros, que o nosso
cliente é inocente e outras coisas.
- Obrigado por teres conversado este bocadinho comigo.

PAI – Construtor civil – 6ºano – 45/6 anos


MÃE – Empregada de limpeza – 4º ou 6º ano – 50/1 anos

68
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

ANEXO VII

69
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Entrevista a uma criança (Joana)

- Quantos anos tens?


Nove.
- Onde é que tu vives?
Alcaidaria.
- Com quem vives?
Com a minha mãe, com o meu pai e o meu irmão.
- O que é que tu costumas fazer no fim-de-semana? Normalmente, o que
costumas fazer ao sábado e ao domingo.
Costumo ir passear, ir à catequese e fazer outras coisas.
- E o que é que costumas fazer em tua casa?
Brincar e estudar.
- E costumas brincar com quê?
Com bonecas, Barbies, roupinhas das bonecas...
- E gostas de estudar?
Gosto.
- E em casa o que é que ajudas a tua mãe a fazer? Já ajudas a tua mãe, não
ajudas?
Já.
- E o que é que ajudas a tua mãe a fazer?
A pôr a mesa, fazer as camas,...
- Mas é sempre ou é só de vez em quando?
De vez em quando.
- É só quando a tua mãe te manda muito, não é?
É, às vezes tenho de fazer.
- Então e no fim-de-semana costumas ir passear, aonde?
No domingo passado fui à Nazaré, também costumo ir a casa da minha avó, a casa
da minha madrinha...
- Então costumas ir visitar a tua família?
É.
- Mas com certeza que costumas fazer outras coisas, por exemplo costumas ir à
biblioteca ao sábado com a tua mãe?

70
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

Nunca.
- Mas nunca foste à biblioteca da Batalha?
Fui, mas foi com a escola.
- E ao cinema, já foste?
Não.
- E os teus pais costumam ir ao cinema?
Não, mas eu já ouvi a minha mãe a dizer que gostava de lá ir.
- Então e quando sais da escola o que é que costumas ir fazer?
Quando saio da escola costumo ir para casa estudar e ver televisão.
- E o que é que tu gostas de ver na televisão?
Novelas.
- E nas aulas o que costumas fazer?
Costumo fazer os trabalhos e...
- E qual é o trabalho que gostas mais de fazer?
Gosto de umas coisas que eu tive hoje a fazer no quadro, eu não percebia nada
daquilo e agora já percebo.
- Mas o que era?
Eram umas coisas de matemática.
- Então gostas de matemática?
Gosto.
- Mas é a área que gostas mais?
Não, é língua portuguesa.
- E o que não gostas nada de fazer na escola?
Fazer adjectivos.
- Mas tu andas nos tempos livres, não é?
É.
- E o que é que tu gostas mais de fazer nos tempos livres?
Brincar com a Ana Rita.
- E o que não gostas nada de fazer?
Jogar à bola.
- E com quem é que costumas brincar mais, com os rapazes ou com as
raparigas?
Com as raparigas.

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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.

- Não gostas de brincar com os rapazes?


Não.
- Porquê?
Porque eles são chatos.
- E o que é que tu gostavas de ser quando fosses grande? Que profissão
gostavas de ter?
Eu gostava de ser professora do 1º ciclo.
- Então e porquê?
Porque acho que a matéria é mais fácil, eu nunca experimentei, mas acho que é
mais fácil.
- Então e o comportamento dos meninos, achas que é fácil estar com crianças
da tua idade?
Acho.
- E com os meninos da tua sala achas que é fácil estar com eles?
Quando a professora não está assim com muita vontade é um bocado chato, mas
quando está com boa disposição, não.
- Mas a razão porque tu queres ser professora é pela matéria ser fácil ou há
outra razão?
Não, é por a matéria ser fácil.
- E tu gostas de crianças?
Gosto.
- E achas que há alguma coisa de mal nesta profissão?
Sim, eu mandar os meninos fazer as coisas e eles não obedecerem.
- Obrigado por teres conversado este bocadinho comigo.

PAI – Pedreiro – 35/6 anos – 6º ano


MÃE – Empregada Fabril (costureira) – 32/3 anos – 6º ano

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