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VIDAS DE INFÂNCIA NO
REGUENGO DO FETAL
Estudos de Comunidade
Docente: José Trindade
VIDAS DE INFÂNCIA NO
REGUENGO DO FÉTAL
Estudos de comunidade
1
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Marina Pereira
ÍNDICE Página
INTRODUÇÃO 4
CAPÍTULO I – Alguns conceitos relevantes 5
CAPÍTULO II – Metodologia utilizada 12
CAPÍTULO III – Caracterização do Reguengo do Fetal 13
3.1. Há vinte anos atrás 13
3.2. Nos tempos de hoje, que mudanças 14
3.3. Caracterização geográfica 15
3.4. Caracterização social, demográfica e económica da população 17
CAPÍTULO IV – Vidas de Infância 19
4.1. Na família 19
4.2. Na escola 23
4.3. Na rua com os amigos 27
Considerações finais 31
Bibliografia 33
Anexos 35
2
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
ÍNDICE de ANEXOS
INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA – CENSOS 2001 I
Entrevista a uma avó (Amália) II
Entrevista a um avô (Manuel) III
Entrevista a um pai (Joaquim) IV
Entrevista a uma mãe (Isabel) V
Entrevista a uma criança (Mariana) VI
Entrevista a uma criança (Joana) VII
3
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Introdução
4
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5
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Constatamos assim, que em ambiente rural, a vida e a escola estão separadas, mas
muitas crianças procuram corresponder às expectativas de cada um dos espaços, fazendo
por ser bem sucedidas na escola, sem se afastarem das tarefas domésticas.
É analisando estas questões que Ricardo Vieira se questiona, «como é que uma
escola única, uniforme, com um curriculum, livros, mesmo ritmo para crianças tão
diferenciadas, pode pretender obter resultados iguais? Antes pelo contrário, a escola
continuará assim a reproduzir desigualdades sociais, camuflando-se com uma pseudo-
igualdade de oportunidades» (Vieira, 1998: 134). Na verdade, crianças oriundas de meios
tão diferentes, não podem estar em pé de igualdade, sendo certamente, as crianças do meio
rural algumas das mais injustiçadas.
Um outro conceito importante para este nosso trabalho é o conceito de
socialização. Anthony Giddens no seu livro Sociologia defende que a socialização «é o
processo pelo qual as crianças indefesas se formam gradualmente seres auto-conscientes,
com saberes e capacidades, treinadas nas formas de cultura em que nasceram» (Giddens,
1997:44), contudo as crianças são seres activos pois, não absorvem de forma passiva as
influencias com que contacta.
O facto de estarmos envolvidos em interacções com os outros, desde que nascemos
até à nossa morte, condiciona indiscutivelmente a nossa personalidade, os nossos valores e
o comportamento que adoptamos. No entanto, a socialização está também na origem da
nossa própria liberdade e individualidade. No decurso da socialização cada indivíduo
desenvolve o seu próprio sentido de identidade e a capacidade de agir e pensar de modo
independente (Giddens, 1997:63).
Aprendemos as características da nossa própria cultura através do processo de
socialização. «O eu social da criança evolui ao ritmo, e na direcção, que as situações de
vida lhe proporcionam. O eu possui a energia para a acção, mas nem sempre tem a
possibilidade de a actualizar e torná-la efectiva em toda a sua amplitude, dependendo, em
parte, das condições do ambiente em que vive» (Zabalza, 1987:38).
A socialização integra o desenvolvimento dos indivíduos enquanto pessoas, bem
como a sua integração numa determinada sociedade. Ao longo deste processo o indivíduo
desenvolve competências e capacidades compatíveis com as exigências de uma dada
cultura ou grupo em que se insira. Não é objectivo da socialização adaptar ou doutrinar
mas sim enriquecer, na dimensão relacional-social do sujeito. Este deve de ter capacidade
para se adaptar aos requisitos do grupo a que pertence e ao mesmo tempo ser capaz de se
9
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separar desses requisitos e formar de forma autónoma a sua própria identidade e maneira
de ser.
Os adultos são seres humanos socializados pois sabem lidar com as situações e com
as outras pessoas. A partir da sua acumulação de experiências, são capazes de entender o
mundo que os rodeia e agir sobre ele de forma coerente, ou seja, não agem sempre da
mesma forma mas adequam a sua acção e o seu comportamento ao contexto situacional.
É a posse desta capacidade que distingue os adultos das crianças. As crianças têm
dificuldade em reproduzir comportamentos que se adequam às diversas situações e às
pessoas envolvidas nas diferentes acções.
O jogo infantil constitui um momento fundamental no processo de socialização das
crianças. O jogo das crianças para além de ser um lazer é um espaço privilegiado onde, por
meio da acção, as crianças aprendem e compreendem uma série de conceitos e de regras
que lhe são impostas.
É durante a infância, juntamente com a família e os amigos, que as crianças
aprendem a sentir, a ser e a entender o mundo. No grupo de amigos, elas interagem, jogam,
brincam e imitam o real, dessas relações, surge uma simbiose de saberes, fundamentais
para as suas vidas futuras.
A prática da criança é altamente simbólica e o mundo no qual vive é feito de
representações elaboradas no desenvolvimento do seu entendimento sendo por isso o jogo
infantil um processo de aprendizagem e um processo pedagógico (com a introdução do real
dentro do mundo da criança que ainda o entende através dos seus próprios conceitos). É
pela subordinação do que vê fazer a esses conceitos do seu mundo particular que o real é
domesticado.
As crianças «oscilam entre a submissão e o seu próprio entendimento. Este
entendimento passa pela transferência dos conceitos já aprendidos para situações que as
próprias crianças criam, alimentadas pelo imaginário que a vida rural lhes oferece»
(REIS, 1991: 87/88).
O comportamento das crianças é modelado tanto pelo espaço como pelo tempo, e a
sua integração na sociedade depende do significado social que os adultos conferem às suas
acções e esse significado varia de um contexto social para outro.
Na aldeia, o espaço e o tempo são marcados pelo ritmo da natureza, que imprime
cores na paisagem e mobiliza e desmobiliza aqueles que trabalham, onde predomina a
entreajuda entre vizinhos, havendo uma circulação generalizada de pessoas, instrumentos
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1
Vide Moreira, Maria da Luz (2000). Tempos e História – Comemoração dos 500 Anos do Concelho e da
Vila da Batalha.
15
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Parte desta freguesia fica situada num vale sobranceiro à Serra de Aire, enquanto a
outra parte se instalou nos socalcos da encosta. É nestas encostas que ainda hoje se vêm
algumas vinhas que dão origem ao famoso vinho produzido no Reguengo do Fétal. Os
vales férteis, outrora densamente cultivados, encontram-se, na sua maioria, em pousio.
Esta freguesia estava envolvida por uma área arborizada, constituída por oliveira,
eucalipto, pinheiro e muita vegetação rasteira no entanto, os incêndios do último Verão
modificaram drasticamente a paisagem, deixando atrás de si um rasto negro que cobre toda
a encosta da Serra.
Figura 1 – Mapa de Portugal Continental, com destaque para a zona de Leiria, onde se situa a freguesia do Reguengo do Fétal.
É atravessada pela Estrada Nacional n.º 356, que liga duas das maiores atracções
turísticas da região, Fátima e Batalha, distando 9 Km e 6 Km respectivamente.
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4.1 A Família
A família era nos primeiros anos de vida das crianças, o seu principal grupo de
referência. A família, antigamente, era muito
numerosa, abarcando um leque muito vasto de
pessoas, com o qual se estabeleciam laços afectivos.
Havia tendência para se ter um número grande de
filhos, que pudessem posteriormente ajudar, nas
tarefas domésticas e no trabalho agrícola. Nas
entrevistas que realizámos a habitantes do Reguengo
Figura 2 – Família – década de 70
do Fétal, apenas um, a Amália 6 é que pertencia a uma
família mais numerosa, «éramos seis irmãos e eu era a mais velha» 7, os outros restantes,
eram oriundos de famílias apenas com dois filhos.
6
Este nome, bem como os dos outros entrevistados são fictícios, de modo a garantir o anonimato
7
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
19
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Como pudemos observar a partir das entrevistas realizadas aos membros mais
velhos (os avós e os pais), todos eles tinham irmãos mais novos, pelos quais eram
responsáveis, na ausência da mãe, quando esta se entregava às tarefas domésticas ou às do
campo. Como refere a Isabel, «…eu tomava conta dela. Lembro-me de estar a fazer os
trabalhos da escola e ela estar no berço a dormir. A minha mãe assim andava mais
descansada na horta ou a cuidar dos animais»8
Apenas um dos entrevistados, o Manuel, era o
membro mais novo, tendo a irmã que tomar
conta dele. Como a Amália diz, «…as mulheres
tinham o dever de ajudar a criar os irmãos»9.
No caso das duas crianças entrevistadas, a
Mariana e a Joana, ambas têm irmãos mais
Figura 3 – Mãe com os filhos – década de 60
novos mas não fazem qualquer referência à
necessidade de terem de cuidar dos mesmos. Partimos do princípio, que estas têm sempre
um adulto por perto, para olhar por eles10.
20
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12
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
21
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ou a apanhar lenha e erva para os animais. Aos rapazes, eram-lhes destinadas tarefas
exteriores. Apanhavam também lenha e caruma para a fogueira, tinham que fazer os cortes
nos pinheiros, regar a horta, tirar o estrume e alimentar os animais, apanhar batatas e
couves.
No caso das crianças, a Mariana e a Joana, também elas têm tarefas a cumprir, e
sendo raparigas, são-lhes incumbidas tarefas domésticas, tais como «pôr a mesa, a tirar a
mesa e lavar a loiça»13como refere a Mariana de nove anos. Verificámos que estas tarefas
não eram tão assíduas e tão rígidas como as dadas às outras entrevistadas, Isabel e Amália,
de 40 e de 63 anos respectivamente.
Nas gerações mais velhas, desde cedo as crianças observavam os adultos a realizar
as tarefas habituais, e iam interiorizando o gosto pelo trabalho e pela propriedade familiar
que era o fruto do trabalho, depois eram-lhes confiadas inúmeras tarefas, acompanhadas de
estímulos e de directrizes dos mais velhos, que por vezes eram um pouco rudes, mas com o
objectivo de inseri-los numa prática, que era rotina da vida do dia-a-dia da família.
Metade dos pais e/ou mães dos entrevistados, nomeadamente a Joana, o Joaquim e a
Isabel, tinham tempo para conviver com os seus filhos, após o seu trabalho e tarefas
cumpridas. Como o Joaquim refere «Contavam-me histórias. Não estas histórias
tradicionais como as que eu conto hoje ao meu filho. Muitas das vezes depois do jantar,
enquanto a minha mãe arrumava a cozinha, o meu pai contava-nos histórias do tempo em
que ele era criança ou então histórias que se tinham passado aqui na terra» 14, e a Isabel
«Também me lembro de às vezes ser ele a ajudar-me com as coisas da escola […] Com a
minha mãe era uma relação muito próxima, conversávamos muito, eu contava-lhe as
coisas que aconteciam na escola»15.
Os restantes referem que os seus pais não tinham tempo ou chegavam cansados do
trabalho, e não passavam tempo de qualidade com eles «Fazíamos poucas coisas. Eles não
13
Vide in Anexos 6 e 7, entrevistas às crianças (Mariana e Joana).
14
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
15
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).
22
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tinham muito tempo para brincarem connosco […] à noite, o meu pai chegava a casa já
muito cansado…»16.
4.2 A Escola
16
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
23
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nos adros das igrejas e nos largos. Neste contexto, a escola ganha uma maior importância,
como meio de ascensão social e como meio de melhor vida.
A Joana e a Mariana referem no final das suas entrevistas o que é que gostavam de
ser quando fossem grandes. A Joana gostaria de ser professora do 1º ciclo e a outra, de ser
advogada. Verifica-se que têm já incutido da sua
Figura 6 – Turma do 1º Ciclo – actual
educação e da sociedade, expectativas para o seu
futuro, diferentes daquelas que os seus pais, e seus avós tiveram. E como pudemos
observar, a Joana e a Mariana possuem uma vida diferente da do Manuel e da Amália,
visto que já não tem a obrigação e responsabilidades tão grandes, nas tarefas que lhes são
destinadas, verificando-se que nem sempre as cumpriam. Por outro lado, verificou-se que
existiam algumas diferenças na forma como elas e os pais entrevistados, ocupavam os seus
tempos livres, a ler histórias e a ver televisão, o que não acontecia com os mais velhos,
onde os momentos de lazer eram passados a conversar e a brincar com os irmãos.
17
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
18
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
19
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
24
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gente ali, não tinha autorização para falar, ali havia só rigor […] batia muito e falava
muito alto, e nós não tínhamos respeito, tínhamos medo»20; «havia alunos mais atrasados
que ela arreava de qualquer maneira, com a régua, com aquilo que ela tinha à mão»21.
Apesar de não concordar com estes métodos tão rígidos, o nosso entrevistado
considera que se aprendia, que havia sucesso escolar, pois «o aluno estava na escola era
para aprender». Os métodos eram assim justificados em função dos resultados, «empinar
tudo cá para dentro, mas o certo é que ainda hoje me lembro de coisas que aprendi na
escola, nomeadamente de cultura geral»22; «nós tínhamos de decorar mais as coisas, sei
lá era tudo mais maçudo»23.
Como se constata, o Manuel continua após tantos anos, a defender aqueles ideais
interiorizados na infância. «Esta concepção popular e a sua defesa acérrima, denota quanto
um indivíduo transporta os ideais de conduta de um tempo histórico a outro, contestando a
realidade presente já que entra em contraste com as
expectativas forjadas por padrões cujo contexto se perdeu»
(Vieira, 1998:121).
Comparando com o tempo actual, o nosso
entrevistado mostra desencanto relativamente à escola actual,
embora reconheça que «os mesmos métodos hoje […] não
resultavam, porque no dia a seguir não ia ninguém, mas
passou-se do oito, para o oito mil […] andam lá até aos
dezoito anos e muitos saem de lá a saber menos que eu que
andei até à 4ª classe»24. Figura 8 – Turma da Escola
Primária – década de 70
Nas entrevistas aos pais, um dos aspectos que ressalta
são as expectativas que os pais dos entrevistados tinham em relação à escola «os pais
aspiram a dar uma formação escolar aos filhos na esperança de obterem um sucesso social
que eles reconhecem não terem alcançado» (Vieira, 1998: 123). «A única coisa que os
meus pais me exigiam era que estudasse e tivesse boas notas na escola. Eles queriam que
eu tivesse uma vida futura melhor do que a deles» 25; «a única coisa que eles me tentavam
transmitir era que eu fizesse outra coisa que não aquilo que eles faziam, que era um
20
Idem.
21
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
22
Idem.
23
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
24
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
25
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
25
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serviço muito duro […] sempre me incentivaram. Talvez o único entrave que me faziam
era “se chumbares sais da escola” e daí eu ter sempre a preocupação de não chumbar»26.
Estes testemunhos vão de encontro ao que dizem Raul Iturra e Moisés Espírito
Santo, acerca do prestígio de que a escola goza nos meios rurais e que citámos na nossa
fundamentação teórica.
Assim, incentivadas pelos pais a ter sucesso na escola, as crianças tinham a
responsabilidade de conciliar o tempo de estudo com as tarefas domésticas em que
colaboravam «Como o meu pai já tinha uma taberna e uma mercearia, eu vinha da escola
e ia para lá ajudar e numa hora de menos trabalho, numa hora vaga como se diz, ia
fazendo uma cópia, uma conta, um ditado e depois à noite fazia o resto» 27; «sei de outros
sítios onde muitas crianças não iam à escola para terem de trabalhar no campo, para
ajudarem os pais, mas a nossa zona aqui era melhorzinha. Às vezes a minha mãe, que já
tinha a 3ª classe naquela altura, ajudava-me a [fazer os trabalhos de casa]»28.
Para a geração seguinte, a situação não se modificou muito, pois havia também a
responsabilidade de ajudar a cuidar dos irmãos mais novos «depois eu tomava conta [da
minha irmã] Lembro-me de estar a fazer os trabalhos da escola e ela estar no berço a
dormir […] quando ela chorava eu tentava calá-la ou chamava a minha mãe […] os meus
pais davam-me tempo»29; «Quando eu terminava os trabalhos de casa tinha que tomar
conta dela para a minha mãe poder trabalhar mais descansada, por isso levava-a comigo
quando ia brincar com as outras crianças daqui da rua»30.
Actualmente, a situação parece ser bem diferente, pois as crianças têm todo o
tempo para os trabalhos de casa, não estando obrigadas a fazer qualquer outra actividade.
As duas meninas entrevistadas testemunham apenas ajudar nos trabalhos domésticos
ocasionalmente, não sendo pressionadas de qualquer forma.
Como se depreende da análise das entrevistas à primeira geração, a escola e a
religião estavam interligadas «Havia catequese na escola. Tínhamos o livro de Educação
Moral e Cívica […] este livro era um autêntico catecismo, tinha a Salve Rainha, o Pai –
Nosso, a Avé Maria […] Era o professor que dava, fazia parte do ensino. Mas depois
ainda íamos à catequese com o padre»31; «A primeira professora que eu tive na 1ª classe
26
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).
27
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
28
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
29
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).
30
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
31
Vide in Anexo 3, entrevista a um avô (Manuel).
26
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não ligava muito a isso, mas depois na 2ª, 3ª e 4ª classe tive sempre a mesma professora,
que era do Reguengo […] é que nos ensinou a fazer a oração que nós tínhamos de dizer
de manhã e todas as manhãs, os meninos da 4ª classe é que faziam a oração da manhã,
dizíamos o Pai – Nosso e quase sempre tínhamos um cântico para cantar mas à quinta-
feira da parte da tarde havia uma hora de catequese»32.
A geração seguinte, dá conta ainda de um grande peso da religião, embora apenas a
Isabel fale das orações e da presença do crucifixo na escola «Lembro-me ainda de rezar
quando iniciávamos a escola, de termos o crucifixo na sala […] Não sei se era ao sábado
se ao domingo, mas íamos à catequese» 33; «ao fim-de-semana íamos todos à missa e à
catequese»34.
Actualmente, as crianças continuam a frequentar a catequese, como fizeram os seus
pais, apenas ao fim-de-semana e fora da escola, sendo consideradas actividades
independentes «costumo […] ir à catequese»35; «ao sábado das três às quatro costumo ir
para a catequese»36 .
O conhecimento local caracteriza-se pela sua transmissão oral que por sua vez se
caracteriza pela repetição do que se vê fazer e se ouve dizer.
A infância não tem uma idade cronológica, é a idade caracterizada pela
aprendizagem através do jogo. «O jogo é um facto social que reflecte o entendimento que
os indivíduos têm da sua época e tem uma função, a de construir os critérios da
interacção» (Iturra e Reis, 1990: 24). Sendo o grupo de jogo infantil um espaço de
interacção onde a autoridade, a força e as possibilidades de relação estão constantemente a
ser discutidas, manipuladas e aferidas pelos participantes.
«Até à idade escolar o grupo do jogo é um grupo de crianças vizinhas,
heterogéneo do ponto de vista etário, e rigorosamente circunscrito a um espaço, vigiado
directamente pelos adultos ou muito frequentemente num sistema em que os mais velhos
32
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
33
Vide in Anexo 5, entrevista a uma mãe (Isabel).
34
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
35
Vide in Anexo 7, entrevista a uma criança (Joana).
36
Vide in Anexo 6, entrevista a uma criança (Mariana).
27
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tomam conta dos mais novos» (Iturra e Reis, 1990: 18). Este facto está evidente em todas
as entrevistas, embora as crianças não o refiram. Apesar de ambas terem irmãos, nos seus
testemunhos não lhes fazem alusão. Nas entrevistas dos pais e dos avós encontramos frases
como esta da Amália referindo-se ao que fazia em casa com a mãe «Sim, ficava com ela e
ajudava-a a cuidar da casa, a lavar a loiça, a lavar a roupa, ia apanhar lenha para a
fogueira, ou apanhar erva para dar aos animais, outras vezes, e já um pouco mais
crescidinha, tomava conta dos meus irmãos mais novos»37.
As crianças nas suas brincadeiras reproduzem aquilo que vêem o adulto fazer. Elas
transpõem para os jogos situações e simulações de comportamentos do mundo dos adultos.
Aprendem a descobrir e a dominar a natureza. As mais velhas devem de vigiar de perto as
mais novas mas ao mesmo tempo devem manterem-se livres para realizar as tarefas que lhe
são solicitadas uma vez que «entre o que os adultos dizem e o que as crianças aprendem,
medeia a prática, especialmente numa sociedade cuja lógica é resultado de experimentar
directamente o real» (Reis, 1991: 127).
É na rua e nos jogos entre os amigos, que as crianças interagem e se relacionam,
inserindo-se numa rede de relações sociais diversificada. Sendo este um espaço
privilegiado é na rua que a criança aprende de uma forma permanente e diversificada,
pondo em prática aquilo que já traz consigo e experimentando novos saberes e
aprendizagens.
37
Vide in Anexo 2, entrevista a uma avó (Amália).
38
Vide in Anexos 6 e 7, entrevistas às crianças (Mariana e Joana).
28
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29
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«[...] tinha alguns brinquedos, não eram muitos mas já tinha alguns. Os meus pais
faziam questão de nos darem um brinquedo no Natal. Era sempre uma alegria quando
chegava o Natal pois sabia que ia ter um brinquedo novo. Ainda tenho alguns guardados,
como tinha tão poucos brincava com eles com muito cuidado e não os estragava. Naquela
altura tinha um tio emigrado na Alemanha que quando vinha cá no Verão me trazia os
bonecos da Playmobil. E a miudagem da rua vinha toda ver os meus bonecos. Eram o meu
tesouro, os meus bonecos e os meus brinquedos. Havia poucos brinquedos e os que havia
eram muito caros e os meus pais não me podiam dar muitos. Mas nós inventávamos os
nossos brinquedos e as nossas brincadeiras e éramos felizes à mesma»41. Nesta citação do
Joaquim, apercebemo-nos da importância que os brinquedos tinham. Não só os
manufacturados pelas próprias crianças, mas também os de compra, que na altura eram
importados. Por isso, não se pode dizer que haja brinquedos típicos do meio rural e do
meio urbano porque há um intercâmbio e uma importação destes elementos da cultura
urbana para a rural.
Os brinquedos de compra foram tomando o lugar dos brinquedos criados pelas
crianças de uma forma lenta e progressiva, de tal modo que as crianças que entrevistámos
referem na sua lista de brinquedos apenas brinquedos de compra. Estes objectos, os
brinquedos, não são mais do que imitações dos objectos que os adultos manipulam e são
oferecidos às crianças com um único objectivo, o de imitar a vida... tal como é vista pelo
adulto que a produz. Sendo o brinquedo um objecto que enlaça o real e a imaginação, que
coordena actividades, mas onde a actividade lúdica é muitas vezes solitária.
Esta será uma das grandes diferenças existentes nas três gerações que
entrevistamos, o recurso a brinquedos de compra. Outra das diferenças é a limitação do
espaço de jogo, que passou da rua e dos limites da freguesia onde as crianças brincavam
livremente, como refere o Joaquim «Jogava ao berlinde e ao pião, montávamos
armadilhas para apanhar pássaros, andávamos de bicicleta, apanhávamos peixitos nas
valas que havia, jogávamos à bola e, às vezes, íamos ao pinhal apanhar pinhas e
jogávamos uma espécie de basebol»42, para o recreio da escola e se fechou em casa a ver
televisão. As crianças antigamente desempenhavam as suas tarefas domésticas por
obrigação, era através delas que se tornavam responsáveis e aprendiam a partilhar o
trabalho, agora fazem-no por muita insistência das mães 43.
41
Vide in Anexo 4, entrevista a um pai (Joaquim).
42
Idem.
43
Vide in Anexo 7, entrevista a uma criança (Joana).
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Considerações finais
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parte desta transmissão oral que, comportava saberes e formas de aprendizagem. Estas
histórias perderam o sentido e a importância para as crianças de hoje. As histórias a que
têm acesso são as histórias dos livros que lêem. Não ouvem histórias contadas pelos pais
ou pelos avós, por um lado os avós moram longe, por outro lado os pais não têm tempo,
pelo meio interpõe-se a escola e os mass media que canalizam a atenção e os interesses das
crianças. A pouco e pouco, o saber que antes era essencialmente prático, está a tornar-se
cada vez mais teórico.
33
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Bibliografia
Outras fontes:
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Fontes Multimédia:
35
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Anexos
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ANEXO I
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ANEXO II
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- Estado civil?
Sou viúva.
- Habilitações literárias?
Tenho a 4ª classe.
- Onde vive?
Na Alcaidaria.
40
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como eu tinha tanta vontade de estudar, lá pedi aos meus pais e eles lá me deixaram fazer a
4ª classe. Eu quando fui fazer a 4ª classe, pensava que era para continuar, mas como a
minha irmã mais velha não tinha estudado, os meus pais também não me deixaram
continuar.
- Então a razão pela qual não foi estudar, deve-se à ideia que a mulher não precisava
de estudar, o seu lugar era em casa.
Sim, era isso.
- Mas na altura este tipo de actividades já eram consideradas boas, não eram?
Sim, aqui havia poucas que podiam fazer estas actividades, mesmo com a 4ª classe eram
poucas que o podiam fazer.
41
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- Mas na sua altura, antes da escola primária frequentavam alguma escola, como
aquela que existia em casa do padre Oliveira?
Não, na altura não existia, eu fui criada só em casa. A minha irmã mais nova andou lá.
- E o que é que fazia quando era pequena? Estava com a sua mãe?
Sim, ficava com ela e ajudava-a a cuidar da casa, a lavar a loiça, a lavar a roupa, ia apanhar
lenha para a fogueira, ou apanhar erva para dar aos animais, outras vezes, e já um pouco
mais crescidinha, tomava conta dos meus irmãos mais novos.
- O que faziam com os seus pais, para além de os ajudar nas lidas domésticas?
Fazíamos poucas coisas. Eles não tinham muito tempo para brincar connosco, brincávamos
uns com os outros e às vezes, com alguns vizinhos. À noite, o meu pai chegava a casa já
muito cansado...
- Mas ela batia com que razões? Era só porque se portavam mal?
Não, era também porque não aprendiam, havia crianças que tinham muitas dificuldades,
outras não estudavam e ela castigava com a régua. Mas ela por exemplo, na altura da
Quaresma escondia a régua, punha-a dentro de uma gaveta da secretária e dizia: “se vocês
se portarem bem durante a Quaresma nós não vimos a régua” e era assim. Às vezes, nós
também lá tínhamos as nossas traquinices...
42
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Éramos crianças, mas também havia a cana, outras vezes íamos para o quadro e ela
avisava: “olhem a régua”, mas ela também dava mais reguadas por causa dos erros, quem
desse mais de três erros levava uma reguada por cada erro. Mas ela era uma boa
professora, ensinava bem, uma altura lembro-me de haver muitas crianças, nós por
exemplo na 4ª classe éramos, parece-me que quarenta e seis, fora as outras classes, aquilo
era para lá crianças por todo o lado. E ela, numa altura qualquer houve um ditado em que
as crianças deram muitos erros e ela começou a dar reguadas a quem tinha dado mais de
três erros e uma reguada por cada erro, e ela chegou a uma altura em que já lhe doía o
braço e começou-se a queixar e havia algumas crianças que se começaram a rir e então ela
disse: “eu estou aqui a cansar-me e vocês ainda se estão a rir, não estou para isto, se não
querem aprender pior para vocês, eu nunca mais bato”, ela estava furiosa, mesmo chateada
e nunca mais bateu com a régua. Podia dar uma chapada ou até uma reguada de vez em
quando mas aquele tumba, tumba, nunca mais deu.
- Mas em casa também vos era incutido esse respeito pela professora, não era?
Era, tínhamos de ter respeito e não tínhamos muita autorização para dizermos aquilo que
queríamos e, se fizéssemos algum disparate, mesmo que fosse pequeno a professora vinha
logo fazer queixa ao nosso pai, ou então mandava-o ir à escola. Não compreendiam as
traquinices da época, nós não tínhamos o direito de ser traquinas, mesmo no recreio
estávamos sentadinhas a jogar ao anelinho...
- O que costumava fazer, nos seus tempos livres, quando era criança?
43
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Para além de tomar conta dos meus irmãos, brincava com eles às casinhas com bonecas de
papelão, com as roupinhas feitas por mim. Brincávamos no quintal, onde às vezes
tínhamos algumas crianças vizinhas, que vinham brincar connosco, fazíamos jogos... o dos
três pauzinhos, saltávamos à corda, brincávamos com as bonecas...
- Mas com certeza que havia muitas crianças que não frequentavam a escola?
Sim, só quando foi obrigatório, é que começaram a ir. Eu por exemplo, só na 4ª classe é
que usei bata porque até aí eu nunca usei bata.
- E tinham catequese na escola ou iam à catequese aos fins-de-semana?
A primeira professora que eu tive na 1ª classe não ligava muito a isso, mas depois na 2ª, 3ª
e 4ª classe tive sempre a mesma professora, que era do Reguengo. Era uma professora
excelente, podia ser o que fosse, mas para mim era uma professora excelente, eu gostava
muito dela e ensinou-me muito da vida, eu gostava muito da maneira de ser dela. Ela é que
nos ensinou a fazer a oração que nós tínhamos de dizer de manhã e todas as manhãs, os
meninos da 4ª classe é que faziam a oração da manhã, dizíamos o Pai-nosso e quase
sempre tínhamos um cântico para cantar mas há quinta-feira da parte da tarde havia uma
hora de catequese.
44
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Não fazia, era ela própria que queria, porque ela era uma pessoa muito religiosa e então,
queria incutir isso nas crianças, era uma pessoa muito praticante, vinda de uma família com
pessoas muito ligadas à religião. Ela era uma pessoa assim, era muito boa.
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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
ANEXO III
46
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
47
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
por cima da água, do gelo...quando chovia levava um casaco velho do meu pai. O casaco
tapava-me quase todo, punha uma boina na cabeça, enfiava a mala debaixo do casaco e lá
ia eu para a escola. Parecia aleijado das costas com a mala a levantar o casaco.
Para o lanche levava um bocado de broa, um bocadito de toucinho...mais do que isso não
seria... só havia fartura de carne quando se matava o porco.
Depois quando chegava a casa, antes de ir para a horta ou para o pinhal...isto do pinhal era
em Janeiro, porque os cortes davam-se todos em Janeiro e Junho, mas em Junho estávamos
próximos do exame e não se podia faltar.
- E o que é que ia fazer ao pinhal?
Ia buscar lenha e caruma para fazer a fogueira. O comer era feito à fogueira, não havia
fogões ainda!
- Era filho único?
Não, tinha uma irmã mais velha três anos, tinha e tenho, está no Brasil, mas a minha mãe
morreu com uma embolia pulmonar ou cerebral, que lhe deu talvez, por motivações do
parto, não sei bem. Depois fui criado por pessoas que tinham filhos ou filhas da minha
idade.
- Familiares ou pessoas de fora?
Pessoas de fora, com a minha sogra, por exemplo, porque a minha mulher é do meu ano e
outras pessoas...
– E o seu pai não voltou a casar e constituir família?
O meu pai depois voltou a casar. Quando a minha mãe morreu, ele foi para Lisboa
trabalhar no estádio nacional e esteve uns dois anos sem cá vir. Quem me criou foram a
minha tia e a minha avó e depois era em casa de quem dava pão e a minha irmã como mais
velha tinha que ir tomando conta de mim como podia. Por isso, tive uma vida muito má.
Quando o meu pai voltou a casar, eu já tinha quatro anos, conversei muitas vezes com ele
já depois de ser adulto e disse-lhe que foi a maior asneira que fez foi ter estado quatro anos
viúvo. Mas a gente tem de respeitar as ideias das pessoas, ele tinha um filho com dois
meses incompletos e uma filha com três anos e tinha vinte e sete anos, penso que ninguém
lhe levava a mal se ele voltasse a casar passado um ano ou ano e meio, mas parece que ele
gostava muito da minha mãe, davam-se muito bem.
E assim o meu jardim-de-infância foi em casa deste e daquele, eu conhecia as casas todas
do Reguengo por dentro. Eu apanhei enterite, parecia aqueles meninos de África com uma
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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
barriga muito grande, eu não me recordo muito bem mas contam-me as pessoas mais
velhas, eu passei uma infância mesmo péssima.
- Mas quando foi para a escola primária o seu pai já era casado, já devia ter uma vida
melhor.
Era completamente diferente, a minha madrasta era muito boa pessoa nunca tive mal a
dizer dela, só havia uma coisa que eu não gostava que ela fizesse, nós éramos miúdos, eu e
a minha irmã, se fazíamos alguma asneira ela ia dizer ao meu pai, mas só passado dois ou
três dias e, o meu pai puxava-nos as orelhas ou dava-nos um tabefe, por uma coisa que já
tinha passado há três ou quatro dias, mas ela nunca me tocou com um dedo.
- Então fale-me do seu tempo de escola.
Nós entravamos para a escola, o professor era o Joaquim Ribeiro, eu andei quatro anos na
escola, um ano em cada classe.
- E quando foi para lá já ia com a intenção de fazer a 4ª classe?
Já.
- Mas era obrigatório?
Não, eu até queria ter continuado a estudar porque eu, modéstia à parte, não era burro
nenhum nas contas, o único senão era a escrita, e ainda hoje é. Tenho dificuldade nas
palavras que levam o S e o C, eu até dei dois erros no exame da quarta e quem desse mais
que um erro estava sujeito a chumbar, mas como fiz as contas todas bem, os problemas e
tudo, lá me passaram. Eu sempre fui mais bonzinho em contas, de multiplicar e aqueles
quebrados. Eu gostava da escola, gostava de ter continuado, tanto que eu depois fui para a
tropa e ainda me matriculei numa escola particular em Lisboa, no bairro dos Anjos e ainda
lá fui umas quantas vezes, mas a mensalidade não comportava com o dinheiro da tropa que
era pouco, o meu pai não me dava dinheiro porque também não havia, eram tempos
também difíceis.
- E como é que era o ensino?
Olhe o ensino, segundo o que uma vez uma professora me disse, era aquilo que ela falou
de um termo empinar, empinar tudo cá para dentro, mas o certo é que ainda hoje me
lembro de coisas que aprendi na escola, nomeadamente de cultura geral. É que às vezes,
vejo estes doutores que vão a certos concursos da televisão e esbarram logo ali na porta,
porque não sabem patavina daquilo. As coisas do básico, que se aprendiam naquele tempo,
tinham-se que se decorar, tinha que saber a história toda... quantos alunos hoje com o 5º e o
6º ano sabem alguma coisa de história, o nome dos reis, o cognome, o primeiro, o segundo
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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
rei.... Eu não concordava com certos métodos de ensino do meu tempo de algumas
professoras, eu apanhei uma na 4ª classe que nunca levei um puxão de orelhas dela, talvez
porque eu não merecesse, eu era mais ou menos um aluno aceitável, mas havia alunos mais
atrasados que ela arreava de qualquer maneira, com a régua, com aquilo que ela tinha à
mão e ai daquele que fosse para casa dizer ao pai, chegava a casa e ainda levava mais.
- Do pai?
Pois do pai.
- Então os pais apoiavam estas iniciativas da professora?
Apoiavam, o aluno andava na escola era para aprender e hoje não. Hoje vimos situações
em que os pais estão constantemente a apoiar os alunos, o pai se quer apoiar os alunos não
lhe pode estar constantemente a dar razão, e tudo o que ele quer. Por isso é que se vê e se
lê nos jornais que os professores são agredidos muitas vezes por alunos de catorze/quinze
anos, porque os alunos perderam o respeito aos professores. Se calhar no meu tempo
tinham medo, mas aprendiam e resultava, mas com os mesmos métodos hoje, também não
íamos lá. Os mesmos métodos de há quarenta anos atrás ou cinquenta quando eu andei lá,
hoje acho que não resultavam, porque no dia a seguir ninguém punha lá os pés, não ia
ninguém, mas passou-se do 8 para o 8 mil. Muitos saem da escola, que agora parece que é
obrigatória até aos dezasseis anos...
- Sim até ao 9º ano.
E ainda querem pôr até mais...
- Até ao 12º ano.
Quer dizer, andam lá até aos dezoito anos e muitos saem de lá a saber menos que eu que
andei até à 4ª classe.
- Agora voltando à sua infância, que tipo de brincadeiras é que tinham?
Tínhamos aquelas brincadeiras do jogo do botão, que eram as brincadeiras mais perigosas,
porque se arrancavam os botões das camisas lá de casa e quando chegávamos a casa
levávamos um puxão de orelhas. Jogávamos à bola como uma bola feita de trapos muito
bem apertados. Andávamos ao visgo, para apanhar a passarada. E fazíamos o jogo do
prego, jogávamos ao pião, ao berlinde, à alhada...
- E tinha tempo para fazer os deveres da escola?
Fazia à noite.
- Mas o seu pai incentiva-o?
50
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Não, graças a Deus nunca foi preciso, incentivava mais a minha irmã porque ela era mais
preguiçosa e tinha mais dificuldades.
- Mas, deixava-o fazer?
Como o meu pai nessa altura já tinha uma taberna e uma mercearia, eu vinha da escola e ia
para lá ajudar e numa hora de menos trabalho, numa hora vaga como se diz, ia fazendo
uma cópia, uma conta, um ditado e depois à noite fazia o resto.
-E depois da escola o que é que fazia?
Quando chegava a casa, depois da escola tinha de ir regar a horta, ou tirar o estrume aos
animais, ir ao pinhal ou fazer isto ou fazer aquilo que o meu pai me mandava.
- Então era isso que fazia quando saía da escola?
Era, só depois quando saí da escola, aos dez anos, em 48 é que entrei nos serviços mais
duros, a gente tinha algumas fazendas ali para o lado das Torrinhas, quase a chegar às
Fontes, e ia a pé daqui para lá com dez, onze anos com uma enxada às costas e com o saco
da merenda, era uma vida um bocadinho difícil nessa altura.
- Mas quando me disse que gostava de ter estudado, não o fez por causa do seu pai?
Não, ele não tinha mesmo possibilidades, só fiz o exame da 4ª classe.
- Mas apesar de não ser obrigatório o seu pai já o deixou fazer a 4ª classe?
Já, o meu pai sabia ler, já tinha a 3ª classe no tempo dele. A minha madrasta por exemplo
era mais velha que o meu pai uns quatro anos e não sabia ler, quem a ensinou a ler fui eu e
a minha irmã. A minha irmã também tem a 4ª classe como eu.
- Talvez fosse por o seu pai ter a mercearia?
Sim, o meu pai tinha a mercearia, mas ele também sabia ler e escrever muito bem, já tinha
a 3ª classe e penso que não tirou mais porque o meu avô morreu muito novo, e se a vida
era difícil no meu tempo também não era fácil no tempo dele. De maneira que o facto de
ele ter a mercearia, saber ler, de fazer contas...tudo isso o motivou para que deixasse que os
filhos fizessem a 4ª classe e o exame, que era muito difícil.
- E na escola havia muitas crianças?
Éramos cerca de quarenta, só numa sala com as quatro classes.
- Estavam todos juntos, rapazes e raparigas?
Não, os rapazes estavam numa sala e as raparigas noutra, os rapazes ficavam na sala do
lado da estrada e as raparigas na outra do lado do recreio.
- E no recreio brincavam juntos?
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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Brincávamos, mas as raparigas não queriam muitas misturas com os rapazes, casa de
banho não havia, foi feita posteriormente, aquecimento, isso era uma utopia, electricidade
também não havia...
- Que tipo de material tinha?
Havia a pedra de lousa com os lápis também de lousa, os cadernos de linhas, os de contas,
também tinha os de duas linhas, tínhamos bastantes livros, alguns livros da minha irmã
ficaram para mim mas houve outros que tiveram que se comprar.
-................
Gostei muito de andar na escola, o recreio era muito diferente, jogávamos à bola,
saltávamos ao eixo, havia brincadeiras, não posso dizer que fossem violentas, mas eram
brincadeiras de rapazes, as raparigas tinham as suas brincadeiras, a professora também não
deixava que houvesse misturas, estava no recreio tipo pastora e não deixava que as
raparigas brincassem às brincadeiras dos rapazes.
- E em sua casa, o seu pai tinha o hábito de ler?
Ele lia, mas por exemplo não havia o hábito de comprar jornais, de vez em quando
comprava o Diário de Noticias, lembro-me bem, custava oito tostões, mas o meu pai lia
bastante até, gostava de pegar em livros, até pegava nos nossos livros da escola, e lia esta
ou aquela lição e quando ele pensava em fazer um ditado tínhamos de fazer.
- Ele fazia isso consigo?
Fazia, não era muito frequente, mas de vez em quando fazia.
-O seu pai participava de alguma forma na escola?
Não, o meu pai não participava na escola. Só iam à escola os pais dos que se portavam mal
ou então aqueles pais que tinham muita confiança com o professor... os que pertenciam a
uma classe com mais dinheiro.
- Na sua infância frequentou a catequese?
Isso era obrigatório.
- E onde a tinha?
Havia catequese na escola. Tínhamos o livro de Educação Moral e Cívica, eu tenho ainda
dois livros do meu tempo e, este livro era um autêntico catecismo, tinha a Salve Rainha, o
Pai-nosso, a Avé Maria...
- E quem dava a catequese?
Era o professor que dava, fazia parte do ensino. Mas depois ainda íamos à catequese com o
padre.
52
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
ANEXO IV
54
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
- Idade?
34 anos.
- Estado civil?
Casado.
- Onde vive?
No Reguengo do Fétal.
- Com quem vive?
Com a minha mulher e o meu filho.
- Habilitações literárias?
Bacharel em Engenharia Mecânica.
- Qual é a sua profissão?
Sou director de produção numa unidade industrial.
- Fale-me um pouco da sua infância, frequentou o Jardim-de-infância?
Sim mas só depois dos cinco anos. Antes dessa idade ficava ao cuidado da minha avó.
- Ficava em casa dela?
Sim, quando o meu pai e a minha mãe iam trabalhar deixavam-me a dormir e depois a
minha avó ia vendo se eu acordava. Depois levava-me para casa dela ou então quando ela
ia com os meus pais para o campo eu ficava com a minha tia velha.
- Então morava perto da sua avó e da sua tia?
Morava mesmo ao lado. Ali na rua éramos quase todos da mesma família.
- E brincava sozinho ou havia outras crianças?
Não. Havia outras crianças, mais velhas e mais novas. Na altura ainda não tinha irmãos e
brincava com os meus primos e com as crianças da minha rua. Depois entrei para o jardim-
de-infância e brincava com os meus colegas. Entretanto nasceu a minha irmã e por essa
altura entrei para a escola primária. Quando eu terminava os trabalhos de casa tinha que
tomar conta dela para a minha mãe poder trabalhar mais descansada, por isso levava-a
comigo quando ia brincar com as outras crianças daqui da rua.
- E que tipo de brincadeiras fazia com as outras crianças?
Jogava ao berlinde e ao pião, montávamos armadilhas para apanhar pássaros, andávamos
de bicicleta, apanhávamos peixitos nas valas que havia, jogávamos à bola e, às vezes,
íamos ao pinhal apanhar pinhas e jogávamos uma espécie de basebol.
55
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
- E tinha brinquedos?
Tinha, tinha alguns brinquedos, não eram muitos mas já tinha alguns. Os meus pais faziam
questão de nos darem um brinquedo no Natal. Era sempre uma alegria quando chegava o
Natal pois sabia que ia ter um brinquedo novo. Ainda tenho alguns guardados, como tinha
tão poucos brincava com eles com muito cuidado e não os estragava. Naquela altura tinha
um tio emigrado na Alemanha que quando vinha cá no Verão me trazia os bonecos da
Playmobil. E a miudagem da rua vinha toda ver os meus bonecos. Eram o meu tesouro, os
meus bonecos e os meus brinquedos. Havia poucos brinquedos e os que havia eram muito
caros e os meus pais não me podiam dar muitos. Mas nós inventávamos os nossos
brinquedos e as nossas brincadeiras e éramos felizes à mesma.
- E como era na escola primária?
A escola primária não foi muito difícil para mim. Tinha uma professora que não costumava
bater e era muito boa, explicava muito bem e nós aprendíamos sem dificuldades. Mas era
do recreio que eu gostava mais. Era nessa altura que eu brincava com os meus colegas e
com os meus amigos.
- A que brincavam no recreio?
À apanhada, ao toque e foge, às escondidas, ao berlinde, à bola... esses jogos assim.
- E como era em casa? Qual era a sua relação com os seus pais?
A minha relação com os meus pais era boa, eles não eram de me bater e eu também lhes
tinha muito respeito e não era um miúdo muito traquinas, era calminho. Claro que também
tinha as minhas coisas de criança, as minhas diabruras mas normalmente não era castigado
por causa disso, os meus pais ralhavam mas poucas vezes me bateram. Como eu era o mais
velho, tinha como obrigação tomar conta da minha irmã e de ajudar no que fosse preciso,
fazer algum recado ou outras coisas que os meus pais me pedissem para fazer, mas eram
coisas leves e pouco difíceis de fazer. A única coisa que os meus pais me exigiam é que
estudasse e tivesse boas notas na escola. Eles queriam que eu tivesse uma vida futura
melhor do que a deles.
- Onde é que os seus pais trabalhavam?
Eles trabalhavam nas terras e nas vinhas, eram agricultores. Tinham algumas dificuldades
porque vivia-se daquilo que a terra dava e do dinheiro que se fazia com a venda do vinho e
de alguns produtos que cultivavam. Por vezes, lá vinha um ano menos bom em que não se
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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
produzia tanto vinho ou então era de menor qualidade e as dificuldades eram maiores mas
no ano a seguir as coisas melhoravam um pouco...
- E o senhor ajudava os seus pais?
Ajudava, aliás era de certa forma obrigado porque como filho mais velho eu tinha algumas
obrigações. Tomava conta da minha irmã e fazia pequenos serviços, por exemplo:
apanhava as batatas para dentro dos sacos, apanhava as couves para dar aos animais, e
outras coisas desse género. Os meus pais iam-me ensinando como realizar certas tarefas e
eu tinha de as fazer.
- E quando não tinha que ajudar o que é que fazia?
Quando eu não tinha que ajudar divertia-me a apanhar pássaros ou grilos, ou então a fazer
pequenas explorações ali pelas redondezas com os outros miúdos.
- Então o que é que os seus pais faziam mais?
Também ajudavam os vizinhos, porque quando era preciso os vizinhos também os
ajudavam. Na altura das vindimas juntava-se muita gente e ajudavam-se uns aos outros.
- E ao serão, o que faziam?
Contavam-me histórias. Não estas histórias tradicionais como as que eu conto hoje ao meu
filho. Muitas vezes depois do jantar, enquanto a minha mãe arrumava a cozinha, o meu pai
contava-nos histórias do tempo em que ele era criança ou então histórias que se tinham
passado aqui na terra com esta ou com aquela pessoa. Os meus pais gostavam de ler e às
vezes até compravam um livro ou o jornal para lerem, mas mais o meu pai porque a minha
mãe tinha sempre muito trabalho. Depois de vir das terras ainda tinha a lida doméstica para
fazer e os filhos para tratar...ela tinha sempre muito trabalho.
- E o seu pai não a ajudava nos trabalhos domésticos?
Não ajudava muito porque ele dizia que o trabalho da casa era para as mulheres, mas por
vezes tratava dos filhos, dava-nos o banho, vestia-nos, ajudava-nos a comer e a minha mãe
ia fazendo outras coisas. Mas ele também não tinha tanto tempo livre porque, por vezes, a
minha mãe vinha para casa e ele continuava a trabalhar ou então ia ajudar um ou outro
vizinho.
- Ia à catequese?
Ia, ao fim de semana íamos todos à missa e à catequese.
- Muito obrigada pela atenção.
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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
ANEXO V
58
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
- Idade?
40 anos.
- Estado civil?
Casada.
- Onde vive?
No Reguengo do Fétal.
- Com quem vive?
Com o meu marido e com as minhas filhas, uma de 10 anos e outra de 3.
- Habilitações literárias?
Tenho o 11º ano, ainda iniciei o 12ºano mas não o acabei e tenho depois o Magistério, três
anos de Magistério.
- Profissão?
Professora do 1º ciclo.
- Tem a profissão que gostava?
Sim, acho que sim. Pelo menos é aquela que eu idealizei e acho que tinha até um certo jeito
para isso.
- Como ocupa o seu tempo livre? Antes e depois do trabalho?
Antes do trabalho não tenho tempo livre. Começo a trabalhar às oito e meia da manhã e
saio às três. Depois desta hora, como estou a tirar o curso de Comunicação Educacional,
ocupo a maior parte do tempo a ler, a fazer pesquisas e no computador.
- Pratica algum desporto?
Neste momento não, não tenho tempo. Mas gostava de praticar aeróbica ou hidroginástica,
mas neste momento não tenho mesmo tempo.
- E como é que ocupa os seus tempos livres ao fim de semana?
Normalmente ao fim de semana é quando organizo as minhas coisas em casa, pois não
tenho nenhuma pessoa que venha cá fazer limpeza. E depois o resto do tempo que me
sobra destas actividades, até porque tenho duas crianças pequenas, depois disso leio,
investigo, estudo, leio outros livros que não são para o curso e passeio.
- Agora vamos falar um pouquinho da sua infância. Frequentou o Jardim-de-
infância?
Sim.
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________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
- Onde?
Era na parte debaixo da casa do padre Oliveira.
- E na altura estavam com quem? Era pessoal especializado?
Não, eu penso que eram pessoas, moças novas que na altura estariam sem emprego e
tinham alguma apetência para isso. Lembro-me que era a Isabel, a esposa do Henrique, a
menina Laura...
- Lembra-se de como funcionava?
Sim, era diferente de agora. O almoço tínhamos de levar de casa e depois elas aqueciam ou
levávamos um termo e depois comíamos lá.
- Acha que na altura funcionava apenas com o intuito de deixar os pais mais
disponíveis para as suas actividades diárias?
Sim, mas nem só. Penso que já existia da parte dos nossos pais a preocupação que
tivéssemos ocupado com actividades um ano ou dois antes da entrada para a escola. Por
acaso até há pouco tempo mandei ampliar uma fotografia do meu grupo dessa altura, e lá
estava eu e os meus colegas de chapelinho e bibinho.
- Já usavam bibe nessa altura?
Sim, sei que já usávamos bibe, não sei se era obrigatório e também não me lembro da cor.
- E lembra-se das actividades que fazia lá?
Lembro porque eu mais tarde fui recuperar esses trabalhos e tenho o processo e quando vi
esses trabalhos reconheci-os e sei que são meus.
- E que género de trabalhos eram?
Desenhos, colagens, fazíamos os trabalhinhos para o Dia do Pai e da Mãe, fazíamos
trabalhos tipo cestaria em papel, tenho também o desenho da família. Do mesmo modo
também recuperei o meu processo do 1º ciclo.
- E a escola primária, onde a frequentou?
Também no Reguengo.
- E do que é que se lembra dessa época? Do ensino, de como ocupava o seu tempo
quando saía da escola?
O ensino era muito virado para a memorização, dávamos muito a nível de História de
Portugal, os rios, dávamos também aquela parte da história dos países que estavam ligados
a Portugal, que Portugal tinha conquistado, lembro-me de decorar a tabuada no 2º ano.
Lembro-me ainda de rezar quando iniciávamos a escola, de termos o crucifixo na sala, de
rezar antes de iniciar o dia e depois brincávamos intervalo.
60
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
61
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Eram, eu comecei muito cedo a ajudar a minha mãe a fazer limpeza, a fazer a comida.
Naquela altura era assim e lembro-me de que até gostava... Quando comecei a fazer
comida sozinha, lembro-me de ficar toda orgulhosa e tinha uns dez ou onze anos. A minha
mãe foi-me ensinando, fazia parte da educação das meninas.
- E a relação com os seus pais, como era?
Com a minha mãe era uma relação muito próxima, conversávamos muito, eu contava-lhe
as coisas que aconteciam na escola... A minha mãe estava sempre ocupada a fazer alguma
coisa, e eu andava sempre por perto e ia ajudando. Às vezes enquanto lavava a roupa ou
descascava o feijão ou as ervilhas para a comida, aproveitava para me perguntar a tabuada
ou para me ensinar aquelas orações da catequese. Outras vezes contava-me como eram as
coisas na infância dela ou aquelas histórias de bruxas.
- E com o seu pai?
Com o meu pai era diferente porque ele andava sempre no campo. Trabalhava até tarde e
depois às vezes ainda tratava dos animais. Mas também me lembro de às vezes ser ele a
ajudar-me com as coisas da escola. Perguntava-me os rios, as serras... eram coisas de que
ele ainda se lembrava e tinha orgulho disso. Também me lembro que gostava muito de
estudar a lição ao pé dele, às vezes ao domingo quando ele tinha tempo. Tínhamos que ler
o texto várias vezes porque depois a professora ia fazer ditado. Então eu lia alto para o meu
pai e ficava toda contente porque ele elogiava-me, dizia que eu lia muito bem.
- Acha que os seus pais lhe incutiram esse gosto pela escola, o seguir a via do ensino
para ter uma vida melhor?
Não, a única coisa que eles me tentavam transmitir era que eu fizesse outra coisa que não
aquilo que eles faziam, que era um serviço muito duro. O meu pai trabalhava no campo e a
minha mãe ajudava-o e viviam do que a terra lhes dava, do dinheiro do vinho que vinha
uma vez por ano.
- Mas nunca lhe fizeram nenhum tipo de entrave, à sua continuação na escola?
Pelo contrário sempre incentivaram. Talvez o único entrave que me faziam era: “se
chumbares sais da escola” e daí eu ter sempre a preocupação de não chumbar.
- Então teve sempre essa preocupação de querer seguir os estudos?
Sim, depois da escola primária fiz o CCV, que é o ensino através da televisão.
- Então aqui no Reguengo havia telescola?
62
________________________________________________________________Vidas de Infância no Reguengo do Fétal.
Sim, era nuns pavilhões junto à escola primária que depois foram demolidos, inicialmente
até era em casa do padre, depois é que fomos para esses pavilhões, mas era na mesma o
padre que orientava as aulas da parte de ciências, e vinha uma professora dar as línguas.
- Frequentava a catequese?
Sim, não sei se era ao sábado se ao domingo, mas íamos à catequese.
- E avós, tinha contacto com eles?
O meu avô paterno nunca o conheci e a minha avó mal me lembro dela. Mas lembro-me de
me ir sentar à lareira, com os pais da minha mãe que viviam lá ao pé. O meu avô sabia
umas lengalengas enormes que tinha aprendido na tropa, quando estava bem disposto era
muito agradável ficar a ouvi-lo. Mais tarde ainda registei aquelas de que me lembrava, no
outro dia estive a lê-las às minhas filhas, fartaram-se de rir.
- Obrigada pela sua atenção
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ANEXO VI
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E a minha família.
- Então e qual é que tu achas que é a desvantagem de ser advogada? De ter a
profissão de advogada?
É que os nossos clientes podem pensar que nós fazemos aquilo por causa do dinheiro.
- E não é essa a razão?
Não.
- Achas que os advogados ganham muito dinheiro?
Não ganham mal.
- Porque é que tu achas que os advogados não ganham mal?
Porque nos julgamentos têm que mostrar que o cliente é inocente, tem muitas
papeladas, tem de ter muitas provas para mostrar que são verdadeiros, que o nosso
cliente é inocente e outras coisas.
- Obrigado por teres conversado este bocadinho comigo.
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ANEXO VII
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Nunca.
- Mas nunca foste à biblioteca da Batalha?
Fui, mas foi com a escola.
- E ao cinema, já foste?
Não.
- E os teus pais costumam ir ao cinema?
Não, mas eu já ouvi a minha mãe a dizer que gostava de lá ir.
- Então e quando sais da escola o que é que costumas ir fazer?
Quando saio da escola costumo ir para casa estudar e ver televisão.
- E o que é que tu gostas de ver na televisão?
Novelas.
- E nas aulas o que costumas fazer?
Costumo fazer os trabalhos e...
- E qual é o trabalho que gostas mais de fazer?
Gosto de umas coisas que eu tive hoje a fazer no quadro, eu não percebia nada
daquilo e agora já percebo.
- Mas o que era?
Eram umas coisas de matemática.
- Então gostas de matemática?
Gosto.
- Mas é a área que gostas mais?
Não, é língua portuguesa.
- E o que não gostas nada de fazer na escola?
Fazer adjectivos.
- Mas tu andas nos tempos livres, não é?
É.
- E o que é que tu gostas mais de fazer nos tempos livres?
Brincar com a Ana Rita.
- E o que não gostas nada de fazer?
Jogar à bola.
- E com quem é que costumas brincar mais, com os rapazes ou com as
raparigas?
Com as raparigas.
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