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Carlos Eduardo Peixoto, Catarina Ribeiro, Raquel Veludo Fernandes e Telma Sousa Almeida
RESUMO
A prova testemunhal desempenha um papel central no processo de investigação criminal e decisão
judicial. Quando a testemunha é uma criança, a obtenção do testemunho implica, ou deveria, a
aplicação de uma metodologia específica de entrevista, bem como a sua execução por um
profissional com habilitações específicas e prática regular nesta função. A investigação científica,
nos últimos 30 anos, tem vindo a identificar as potencialidades e limitações das crianças enquanto
testemunhas. Para além disso, tem realizado várias propostas de metodologias que aumentam a
capacidade de informação da criança, sem que o conteúdo do seu relato seja contaminado pelo
entrevistador. Com base no estado da arte, no que respeita a entrevista de crianças no contexto
forense e atendendo à realidade portuguesa, urge a implementação de metodologias e
procedimentos que assegurem, satisfatoriamente, a espontaneidade, a precisão e integridade do
relato da criança.
Palavras-chave: Entrevista Forense; Testemunho; Prova; Protocolo de Entrevista
INTRODUÇÃO
O envolvimento das crianças no processo de investigação criminal está, na maior parte das
vezes, associado ao papel central que o seu testemunho tem no apuramento dos factos. Em muitos
crimes que envolvem crianças, ou de que estas são testemunhas oculares, o seu testemunho é a
prova central de todo o processo judicial. O surgimento de casos mediáticos por todo o mundo,
nomeadamente, o caso MacMartin (Myers, 2009) expôs os riscos inerentes à utilização de técnicas
perigosas, como, por exemplo, a utilização de perguntas sugestivas e de bonecas anatomicamente
corretas (utilizadas como método principal de revelação dos alegados abusos sexuais). Estas
dificuldades, encontradas na arena judicial, desencadearam o desenvolvimento de investigação
científica sobre a capacidade de testemunho das crianças e sobre as metodologias mais adequadas
para se obter mais e melhor informação.
A ENTREVISTA FORENSE
A entrevista forense tem como objetivo a obtenção de um relato sobre uma experiência passada,
vivenciada ou testemunhada, de uma determinada pessoa (criança ou adulto) e centra-se nos factos
dessa experiência (e.g., atores, ações, tempo, espaço). Para além disso, a entrevista forense é parte
integrante de um processo de investigação criminal e decisão judicial.
Esta entrevista não deve ser confundida com outros tipos de entrevista que possam surgir durante
um processo judicial como, por exemplo, a entrevista clínica que é conduzida no âmbito de um
processo de avaliação psicológica forense. Esta centra-se na obtenção de informações sobre a
história de vida da pessoa (dimensão anamnéstica) e na observação do comportamento em contexto
clínico (dimensão observacional). A entrevista clínica é um método de recolha de informação que
permite caracterizar o funcionamento psicológico de uma determinada pessoa, sendo um dos
componentes que constituem o processo de avaliação psicológica forense, do qual farão ainda parte
a administração de provas psicológicas e a análise dos diferentes documentos processuais. A
entrevista forense deverá também ser distinguida de uma intervenção psicoterapêutica. O seu
objetivo não será a resolução de problemas comportamentais e emocionais da criança, mas sim,
obter uma descrição pormenorizada de uma determinada experiência.
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(número 3 do artigo 131º do Código Penal Português). Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 23/10/2008 esta perícia sobre a personalidade tem como finalidade “conhecer a aptidão
psíquica e características psicológicas e de personalidade de quem irá prestar testemunho, cujo
conhecimento (características psicológicas e de personalidade) é relevante para o Tribunal
determinar em que medida as mesmas (características) podem influenciar o seu depoimento. Ou
seja, o que está em causa é a credibilidade da testemunha e não a credibilidade da versão que esta
apresenta dos factos”. Ainda, de acordo com o disposto no referido Acórdão a avaliação pericial da
credibilidade da testemunha, pela natureza do crime e pela idade da mesma, pressupõe a obtenção
de um relato sobre aquela situação de vida que está a ser alvo de investigação.
O facto de o sistema de justiça perspetivar a criança como uma testemunha vulnerável traduz-se
na obrigatoriedade da realização, durante a fase de inquérito, de “declarações para memória futura”1
“o mais brevemente possível após a ocorrência” do alegado crime, no sentido de “garantir a
espontaneidade e a sinceridade das respostas” da criança e de modo a evitar que a criança seja
inquirida em fase de julgamento (Lei nº 93/99 de 14 de julho).
Do ponto de vista do desenvolvimento psicológico, a capacidade de testemunho da criança está
associada a dimensões tais como a linguagem, a memória e a sugestionabilidade.
A aquisição e domínio das diversas competências linguísticas apresentam diferentes ritmos de
desenvolvimento. O desenvolvimento da perceção fonológica, o qual ocorre por volta dos 3/4 anos,
não acontece em simultâneo com a mestria na produção de fonemas por parte da criança. De acordo
com os estudos realizados por Reich (1986, citado por Poole & Lamb, 1998), a criança só adquire a
capacidade de produzir a maior parte dos fonemas por volta dos quatro anos, contudo, apenas por
volta dos oito é que conseguirá compreender todos os fonemas. Muito embora por volta dos dois
anos a criança possua um vocabulário de cerca de 3000 palavras diferentes (Jones, 2003; Lamb,
Bornstein & Teti, 2002), apenas por volta dos cinco anos compreende proposições como “dentro”,
“em cima”, “em baixo”, “à frente”. Por volta dos sete anos ainda tem algumas dificuldades em
utilizar e compreender conceitos como “antes” e “depois”, sendo que só a partir dos 10 anos
evidencia mestria na identificação dos dias e de determinadas horas (Poole & Lamb, 1998). A
aquisição e compreensão de questões como “o quê”, “quem” e “onde” ocorrem por volta dos três
anos de idade, enquanto outras expressões como “quando”, “como” e “porquê” (este conceito é
apenas utilizado corretamente entre os 10 e os 13 anos) só são adquiridas mais tarde no
desenvolvimento (Jones, 2003).
1 Cf., art.º 271, art.º 294 e art.º 320 do Código de Processo Penal português.
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O principal objetivo da entrevista forense é a obtenção de informações sobre um acontecimento
específico, devendo a técnica de entrevista utilizada centrar-se no acesso às memórias do
entrevistado sobre o evento em questão. Assim, a forma como codificamos, armazenamos e
evocamos as nossas memórias, e os mecanismos que tornam possível o acesso às mesmas, são
dimensões essenciais na adoção de uma abordagem centrada nos factos. Entre os 18 e os 20 meses
as crianças conseguem falar sobre as suas experiências passadas, apesar de apenas conseguirem
abordar acontecimentos que ocorreram há algumas horas ou dias (Eisenberg, 1985, citado por
Fivush, 2002) e de apenas conseguirem fornecer uma quantidade limitada de informação. Aos três
anos as crianças conseguem expressar memórias detalhadas e duradouras, especialmente sobre
acontecimentos singularizados e emocionalmente positivos (Fivush, 2002).
A recordação de acontecimentos, quer em crianças, quer em adultos, parece obedecer a
princípios mnésicos básicos: estão suscetíveis à influência da degradação mnésica, devido ao
aumento do intervalo de tempo entre o evento e o momento em que este é evocado; o detalhe das
memórias de acontecimentos aumenta com a idade; os aspetos centrais de uma memória particular
permanecem acessíveis durante mais tempo do que dimensões mais acessórias e periféricas, mais
suscetíveis de desaparecer com o tempo; a repetição torna um determinado acontecimento mais
saliente e, logo, mais fácil de recordar, mas também aumenta o risco da criação de scripts (i.e.,
memórias que constituem a fusão de todas as ocorrências de um determinado acontecimento e que
refletem os seus detalhes comuns e a estrutura básica do acontecimento) (Fivush, 2002).
Por fim, também a sugestionabilidade das crianças é uma dimensão central no que respeita à sua
capacidade para testemunhar, pelo que os autores Ceci e Bruck (1995) salientam a sua
vulnerabilidade a questões sugestivas, nas quais o entrevistador fornece informação à criança ou
indicia um sentido de resposta. Deste modo, os autores destacaram os seguintes fatores como
cruciais para a compreensão das informações erradas fornecidas por crianças em casos de abuso
sexual:
• O enviesamento do entrevistador (e.g., a influência de crenças a priori sobre determinado
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• A indução de estereótipos (e.g., o entrevistador induzir na criança a crença de que
imaginação.
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também para prevenir possíveis erros da sua parte, resultantes da execução simultânea de diversas
operações cognitivas (e.g., ouvir o entrevistado e pensar na questão seguinte). Finalmente, a EC
reconhece a variabilidade com que um evento pode ser relatado, postulando assim que, ao invés de
um conjunto pré-determinado de questões, o entrevistador possua uma lista de assuntos a abordar
durante a entrevista, os quais o entrevistado deverá explorar fluida e espontaneamente (Fisher et al.,
2002; Fisher & Geiselman, 1992).
As dinâmicas sociais entre o entrevistado e o entrevistador desempenham também um papel
essencial na EC, na medida em que podem influenciar a obtenção do relato de um determinado
acontecimento. É imperativo, na EC, que o entrevistador estabeleça uma relação com o
entrevistado, minimizando o impacto do seu estado emocional alterado no decorrer do relato (Fisher
& Geiselman, 1992), fomentando a sua participação ativa na entrevista e delegando-lhe o controlo
da mesma, dado este ser considerado o “perito” sobre o evento que vivenciou (Holliday et al.,
2009).
No procedimento da EC é igualmente crucial que existam boas condições de comunicação,
possibilitando uma troca produtiva entre aquilo que o entrevistador considera pertinente saber e
toda a informação que o entrevistado detém sobre o acontecimento em questão (Fisher &
Geiselman, 1992). Ao entrevistado é, portanto, solicitado que relate livremente, e o mais
detalhadamente possível, o acontecimento que vivenciou, verbalizando até os pormenores que lhe
pareçam ser irrelevantes (Holliday et al., 2009). Quanto maior a aproximação entre o relato de um
acontecimento e a forma como este foi codificado na memória, maior a probabilidade de este ser
corretamente evocado, isto é, se um acontecimento foi codificado de forma predominantemente
auditiva, durante a EC devem ser utilizadas técnicas que estimulem a memória desse acontecimento
num formato similar (e.g., expor o entrevistado a vários ruídos de fundo para que este consiga
identificar um ruído presente no momento do acontecimento) (Fisher et al., 2002).
Várias adaptações ao formato da EC têm sido implementadas ao longo dos anos, quer no âmbito
da investigação, quer no sentido de melhor ajustar os seus princípios a populações específicas
(Memon et al., 2010). Efetivamente, em 1992, os autores Fisher e Geiselman introduzem a
Enhanced Cognitive Interview, um formato melhorado da EC, no qual é atribuída uma maior
relevância a aspetos como o estabelecimento de uma relação com o entrevistado, a importância do
seu papel enquanto informante privilegiado e a clarificação das regras comunicacionais (Fisher &
Geiselman, 1992).
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Até ao presente, são poucos os estudos empíricos realizados com a EC que tenham em
consideração fatores característicos do contexto forense, nomeadamente o intervalo de tempo que
decorre desde o acontecimento até ao momento em que este é evocado, sendo igualmente escassa
investigação que utilize entrevistadores forenses (e.g., polícias) (Memon et al., 2010). Não obstante,
a investigação realizada com adultos, utilizando a EC, tem vindo a sugerir a sua eficácia e
fiabilidade na obtenção de relatos de qualidade, quer no contexto laboratorial (Memon et al., 2010),
quer no contexto forense (Fisher et al., 1989). A utilização privilegiada desta população no
desenvolvimento de estudos científicos com a EC prende-se, essencialmente, com o facto de os
princípios reguladores desta entrevista se basearem nos processos cognitivos do adulto enquanto
testemunha.
De acordo com Memon e colaboradores (2010), quando aplicada a crianças a EC evidencia ser
um procedimento menos eficaz para estimular a memória sobre um determinado acontecimento, em
comparação com a sua utilização com adultos. No entanto, alguns estudos empíricos sugerem que,
quando comparada com outros modelos de entrevista, a EC revela-se mais capaz de estimular a
memória das crianças para pormenores de um evento Holliday, 2003; Holliday et al., 2009). Ainda,
a combinação da reintrodução do contexto e da solicitação para a criança relatar tudo o que se
recorde sobre o acontecimento, parece resultar numa maior resistência à sugestionabilidade por
parte da mesma (Holliday et al., 2009). A utilização de uma versão semi-estruturada da EC parece
aumentar a informação fornecida por crianças com 4 e 5 anos (Verkampt, Ginet & Colomb, 2010).
Já a utilização da técnica mudança de perspetiva tem sido desaconselhada com crianças, dada a sua
dificuldade para compreender a finalidade desta técnica e de a utilizar na sua plenitude (Holliday et
al., 2009; Memon et al., 2010).
Por fim, importa acrescentar que o desenvolvimento da EC baseou-se em princípios científicos
empiricamente sustentados, constituindo por isso um ponto de partida importante para o
aperfeiçoamento das técnicas de entrevista. Efetivamente, uma grande parte dos princípios
subjacentes à EC constam noutros protocolos de entrevista forense amplamente utilizados em todo
o mundo, nomeadamente o protocolo Achieving Best Evidence in Criminal Proceedings: Guidance
on Interviewing Victims and witnesses, and Using Special Measures (ABE) (Home Office, 2002,
2007, 2011) e o protocolo do National Institute of Child Health and Human Development (NICHD)
(Lamb, Orbach, Hershkowitz, Esplin, & Horowitz, 2007).
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A Entrevista passo-a-passo, desenvolvida por Yuille, Joffe, Hunter e Zaparniuk (1993), tem
sido o modelo de entrevista adotado e implementado em diversos países (e.g., Canadá, EUA,
Bélgica) com crianças vítimas de crimes (e.g., abusos sexuais) (Haesevoets, 2000; Poole & Lamb,
1998) e tem como objetivos centrais:
• Prevenir a vitimização secundária (e.g., melhorar as competências do entrevistador, diminuir a
sugestivas);
• Maximizar a capacidade de evocação mnésica da criança (e.g., recurso a técnicas da
Entrevista Cognitiva);
• Manter a integridade do protocolo, devendo este ser suficientemente flexível para se adaptar
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7. Colocar questões específicas, nomeadamente para esclarecer determinados pormenores do
acontecimento, podendo ser solicitado que a criança relate novamente o evento;
8. Após a relevação utilizar métodos auxiliares (e.g., desenhos e bonecos) de forma a esclarecer
pormenores, sobretudo relacionados com toques corporais;
9. Concluir a entrevista;
Mais recentemente, o protocolo (Yuille, 2002, citado por Faller, 2007) passou também a integrar
as regras da entrevista que deverão ser explicadas à criança logo no início da mesma. Assim, o
entrevistador deve assegurar que a criança compreende que poderá ser-lhe pedido para explicar
melhor ou repetir determinados aspetos do seu relato, podendo ela igualmente solicitar ao
entrevistador que clarifique algo que não tenha compreendido ou comunicar que deseja parar a
entrevista. Importa, também, esclarecer que a criança deve contar tudo, mesmo pensando que o
entrevistador já tem esse conhecimento, uma vez que este não estava presente no evento. Deve,
igualmente, ser-lhe comunicado para apenas relatar coisas que realmente aconteceram, sem tentar
dizer à sorte, e que pode dizer que não sabe, que não tem a certeza ou que não se recorda, sem que o
entrevistador se zangue consigo (Yuille, 2002, citado por Faller, 2007).
Contudo, não obstante as suas potencialidades e a sua utilização em diferentes países, é
fundamental realizar investigação que avalie a eficácia deste protocolo, os seus componentes e a
qualidade da informação obtida (Peixoto, Ribeiro, & Magalhães, 2013).
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nível de desenvolvimento, capacidades linguísticas, estado emocional, práticas culturais,
dificuldades específicas, défices cognitivos). A necessidade de orientações no que diz respeito à
gravação em vídeo de entrevistas realizadas com crianças e outras vítimas de crimes influenciou,
em larga medida, a construção destes guiões (Home Office, 1992, 2002, 2007, 2011), os quais têm
vindo a contribuir significativamente quer para melhorar as técnicas de entrevista na fase de
investigação, quer para permitir aos decisores judiciais distinguir entre informações obtidas através
de entrevistas bem realizadas e aquelas que são obtidas através de práticas sugestivas.
De acordo com este guião, a entrevista forense compreende quatro momentos-chave,
designadamente:
1. Estabelecimento da relação com o entrevistado e das regras de comunicação (e.g., liberdade
de corrigir o entrevistador, de dizer que não sabe a resposta, de dizer que não compreendeu a
questão, que é importante dizer a verdade, que a criança é um informante privilegiado);
2. Relato livre da criança sobre o alegado acontecimento abusivo, sem que o entrevistador revele
a identidade ou os alegados comportamentos do ofensor;
3. Realização de questões específicas para clarificar pormenores da narrativa livre da criança,
começando por formular questões abertas e só posteriormente questões mais diretas (e.g.,
questões de escolha múltipla);
4. Conclusão da entrevista. Neste momento final, o entrevistador revê toda a informação obtida
no decorrer da entrevista, sumariando as alegações e pedindo à criança que o corrija se algo
estiver errado. De igual modo, introduz um tema neutro com vista a minimizar o impacto
emocional da verbalização das situações abusivas, faculta o seu contato à criança e agradece-
lhe a colaboração.
No decorrer da sua implementação, o ABE permite, ainda, o recurso a diagramas corporais e a
bonecos para clarificar as alegações, mas somente quando necessário e após a verbalização dos atos
por parte da criança, e indica outros modelos de entrevista forense (e.g., Entrevista Cognitiva,
Protocolo do National Institute of Child Health and Human Development - NICHD) que também
poderão ser admissíveis no processo de obtenção de provas (Home Office, 2002, 2007, 2011).
Contudo, apesar da existência de linhas orientadoras e da formação específica nas técnicas de
entrevista descritas, a investigação realizada tem constatado uma discrepância entre o documento e
a sua implementação em contexto real, nomeadamente pelo facto dos entrevistadores (e.g., polícias)
continuarem a realizar questões sugestivas e a adotar outras práticas incorretas (Davies, Westcott, &
Britain, 1999; Sternberg, Lamb, Davies, & Westcott, 2001). Assim, Sternberg e colaboradores
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(2001) concluem que o impacto do ABE nas práticas de entrevista forense não correspondeu ao
esperado, destacando a importância da realização de formação e supervisão contínuas. De facto, a
ausência de investigação científica sistemática sobre a qualidade da aplicação do ABE tem sido,
também, uma crítica apontada (Brown & Lamb, 2009).
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do corpo humano e identificar a sua capacidade para diferenciar o sexo feminino do sexo
masculino. Neste sentido, são utilizados diagramas corporais anatomicamente corretos para solicitar
à criança que, primeiramente, identifique o sexo da pessoa representada no diagrama e,
posteriormente, nomeie as diferentes partes do corpo.
A utilização dos diagramas corporais assume igualmente um papel fulcral na etapa seguinte deste
protocolo, a qual se foca na colocação de questões sobre diferentes tipos de toques corporais.
Baseando-se no Touch Survey (Hewitt, 1999), esta técnica consiste em pedir à criança que nomeie e
defina toques corporais que considera “bons” ou “maus”, identificando também quem pode realizar
esses toques e em que partes do corpo o poderá fazer. Saliente-se que os toques genitais podem ser
abordados nesta etapa, de forma a introduzir progressivamente o tema das alegações de abuso
sexual (Anderson et al., 2010).
Na etapa subsequente do protocolo o entrevistador deve utilizar questões abertas, ou questões
abertas focalizadas, para abordar as alegações de abuso sexual, promovendo o relato espontâneo da
criança, e colocar também, sempre que necessário, questões mais diretivas ou de resposta opcional.
Nesta etapa o entrevistador deve focar-se em obter informações detalhadas sobre o evento abusivo
(e.g., informações sensoriais), que permitam a corroboração externa das alegações ou a ponderação
de hipóteses alternativas. Este protocolo considera que o recurso a técnicas auxiliares (e.g.,
desenho, bonecas anatomicamente neutras e corretas, diagramas corporais anatomicamente
corretos) traz importantes benefícios à entrevista forense, uma vez que estas ajudam a ultrapassar as
fragilidades comunicacionais da criança e a minimizar a sua resistência resultante do impacto
traumático da alegada situação abusiva (Anderson et al., 2010).
Por fim, após ter obtido o relato da criança sobre o alegado acontecimento abusivo, o
entrevistador deverá finalizar a entrevista, agradecendo à criança o seu esforço e dando-lhe
oportunidade para acrescentar qualquer informação ou esclarecer alguma dúvida que lhe tenha
surgido. Nesta última fase do protocolo cabe também ao entrevistador aconselhar a criança sobre
formas como esta se poderá proteger de futuros contactos inapropriados, bem como adverti-la a
procurar ajuda junto de um adulto em quem confia, sempre que algo a preocupar ou quando alguém
tentar tocar numa zona do seu corpo que a deixe desconfortável (Anderson et al., 2010).
Muito embora o protocolo de entrevista forense RATAC seja amplamente utilizado em vários
Estados Americanos (e.g., Minnesota, Carolina do Sul, Indiana, Nova Jersey e Mississippi) (Walters
et al., 2003) e amplamente aceite pelos tribunais (Anderson et al., 2010), este tem sido alvo de
críticas por parte de outros autores (Lamb et al., 2007; Lyon, Lamb, & Myers, 2009), dada a
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carência de investigação que estude a sua aplicação (e.g., qualidade e quantidade de informação
obtida) e dado que este se apoia em técnicas que aumentam o risco de falsos positivos (e.g.,
diagramas corporais e bonecas anatomicamente corretas).
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evocação de um evento fictício (Camparo, Wagner, & Saywitz, 2001). Mais recentemente, Peterson
e colaboradores (2013) conduziram o primeiro estudo a utilizar eventos reais emocionalmente
exigentes, concluindo que as crianças que receberam treino nesta técnica antes da realização da
entrevista facultaram, posteriormente, mais informação em resposta a questões abertas, bem como
relatos mais longos, descritivos e coerentes (Peterson et al., 2013).
Com base no procedimento da Elaboração Narrativa (Saywitz & Snyder, 1996) e tendo em
consideração a frequente incompatibilidade entre as exigências do contexto forense e as
capacidades das crianças pequenas, Saywitz e Camparo (2013) desenvolveram a Entrevista
Desenvolvimental de Elaboração Narrativa. Esta entrevista semi-estruturada, desenvolvida para ser
utilizada com crianças dos 4 aos 12 anos, tem como objetivo “ajudar as crianças a relatarem o
máximo que conseguirem sobre as suas experiências e percepções, o melhor possível e pelas suas
próprias palavras, sem contaminar os seus relatos” (Saywitz & Camparo, 2013, p. 2). Neste sentido,
e uma vez que a entrevista forense requer um conjunto de competências que as crianças podem
ainda não dominar, este procedimento tem em conta as suas limitações ao nível da memória,
comunicação, cognição, competências sociais e sugestionabilidade (Saywitz & Camparo, 2013).
A Entrevista Desenvolvimental de Elaboração Narrativa foi elaborada para ser implementada ao
longo de três fases: (1) numa fase inicial o entrevistador procura criar um ambiente securizante e
confortável para a criança, no sentido de promover a sua motivação e colaboração, estabelece uma
relação com a criança e explica-lhe os objetivos da entrevista, bem como o seu papel e o papel da
criança; (2) esta fase constitui o momento-chave da entrevista, durante o qual o entrevistador
estimula o relato da criança, e compreende três etapas – a utilização de questões abertas,
promovendo uma elaboração espontânea sobre o evento em investigação; o recurso a pistas verbais
ou visuais, ajudando a criança a facultar detalhes adicionais acerca dos participantes, locais, ações,
conversas e estados emocionais dos participantes durante o evento; e a utilização de questões
diretas, no sentido de clarificar determinadas informações facultadas pela criança; e (3) no
momento de concluir a entrevista, o entrevistador deve dar oportunidade para a criança colocar
alguma questão, informá-la sobre os próximos procedimentos a seguir, identificar problemas que
possam surgir e planear estratégias para a criança lidar com os mesmos (Saywitz & Camparo,
2013).
Não obstante as vantagens anteriormente descritas relativamente à estimulação da capacidade
informativa de crianças de diferentes idades, a técnica da Elaboração Narrativa necessita de uma
maior validação empírica, designadamente junto de populações forenses (Brown & Lamb, 2009).
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O Protocolo de Entrevista Forense do National Institute of Child Health and Human
Development (NICHD)
O protocolo de entrevista forense do “National Institute of Child Health and Human
Development” (NICHD) foi elaborado com base em investigação científica conduzida ao longo das
últimas décadas por Lamb e colaboradores (2008) e tem como principal objetivo contribuir para
melhorar a obtenção de informações relevantes, do ponto de vista forense, no decorrer de
entrevistas realizadas com testemunhas vulneráveis (e.g., crianças, adultos com limitações
cognitivas, jovens ofensores). O protocolo do NICHD caracteriza-se por ser um modelo estruturado
e flexível, o qual promove a capacidade narrativa e de evocação mnésica do entrevistado e limita a
interferência do entrevistador no relato que está a ser produzido (e.g., eliminar questões sugestivas),
assumindo especial importância em casos de crimes que envolvem crianças (e.g., abuso sexual)
(Lamb et al., 2008).
Este protocolo de entrevista forense valoriza todos os aspetos envolvidos na preparação da
entrevista, incluindo as informações que estão previamente disponíveis e o local onde a mesma irá
decorrer. Sobre este último ponto, as recomendações são claras quanto à necessidade de um
contexto desprovido de elementos distratores (e. g., brinquedos), os quais podem ser
particularmente problemáticos quando a criança não está motivada para colaborar (Lamb et al.,
2008).
O protocolo do NICHD compreende diferentes fases, cada uma contemplando objetivos
específicos. Assim, numa fase introdutória, o entrevistador apresenta-se, clarifica a tarefa que será
exigida à criança (e.g., descrever detalhadamente alguns eventos, dizer apenas a verdade) e explica-
lhe as regras de comunicação (e.g., pode e deve responder que não sabe, que não se lembra ou que
não compreende algo, deve corrigir o entrevistador). De facto, facultar estas instruções à criança,
numa fase inicial da entrevista, parece potenciar as suas competências de informar e de fazer um
relato mais correto (Lamb, Sternberg, Orbach, Hershkowitz, & Esplin, 1999; Lyon & Saywitz,
1999; Sternberg, Lamb, Esplin, & Baradaran, 1999), bem como a sua capacidade de resistência à
sugestão (Ceci & Bruck, 1995; Malloy & Quas, 2009).
No que diz respeito ao estabelecimento da relação entre o entrevistador e a criança, este assume
um papel central na entrevista, especialmente com crianças relutantes ou pouco cooperantes
(Hershkowitz, Lamb, Katz, & Malloy, 2013; Lamb, Hershkowitz, & Lyon, 2013; Teoh & Lamb,
2013) e compreende duas secções. Uma primeira, onde o entrevistador deve criar um ambiente
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securizante e relaxado para a criança, solicitando que esta fale sobre coisas que gosta de fazer. Uma
segunda, em que lhe é solicitada a descrição de um evento neutro, recentemente experienciado. Esta
fase é, ainda, importante para o treino de questões abertas e de outras técnicas que serão utilizadas
pelo entrevistador na fase substantiva da entrevista onde serão abordadas as alegações (potenciando
a capacidade de relato da criança) (Roberts, Brubacker, Powell & Price, 2011; Sternberg et al.,
1997), para definir o tipo de relação pretendida entre a criança e o entrevistador e para esta perceber
o nível de detalhe que lhe será solicitado (Lamb et al., 2008).
Segundo Lamb e colaboradores (2008), na transição para a fase substantiva, o entrevistador
coloca um conjunto de questões abertas que orientam a criança para o evento que está a ser
investigado (e.g., “Agora que te conheço um pouco melhor, quero falar contigo sobre porque estás
aqui hoje.”) e quando esta verbaliza a alegação o entrevistador solicita-lhe que diga tudo o que
aconteceu do princípio até ao fim, de forma a estimular a descrição espontânea e a evocação
mnésica livre. Se a criança não fizer qualquer revelação em resposta às questões abertas, o
entrevistador coloca progressivamente questões mais diretas, utilizando informação já fornecida
pela criança. Contudo, de acordo com o protocolo, a utilização de questões de escolha múltipla (e.
g., questões de sim/não) deve ser muito reduzida, limitando-se ao esclarecimento de pormenores
relevantes, e questões sugestivas devem ser excluídas por completo no decorrer da entrevista. O
entrevistador deverá estabelecer, também, se o evento descrito ocorreu “uma vez ou mais do que
uma vez”, procedendo, em seguida, à identificação de informações específicas de cada ocorrência
(Lamb et al., 2008).
A literatura tem descrito e enfatizado as significativas vantagens da utilização do protocolo do
NICHD no domínio da entrevista com crianças (Brainerd & Reyna, 2005; Brown et al., 2013;
Saywitz, Lyon, & Goodman, 2011). O amplo reconhecimento alcançado por este protocolo deve-se
à sua forte base empírica (Lamb et al., 2008), destacando as importantes repercussões da sua
implementação ao nível da qualidade e da quantidade de informação obtida no decorrer das
entrevistas realizadas (Lamb et al., 2007; Orbach et al., 2000; Sternberg et al., 2001). A este
respeito, os estudos têm demonstrado que a sua utilização contribui para uma melhor apreciação da
credibilidade das alegações (Hershkowitz, Fisher, Lamb, & Horowitz, 2007; Hershokowitz, Lamb,
& Orbach, 2008; Lamb et al., 1997), para a obtenção de informações significativamente relevantes
para a investigação criminal (Darvish, Hershokowitz, Lamb, & Orbach, 2008; Pipe, Orbach, Lamb,
Abbott, & Stewart, 2008) e, também, para uma apreciação positiva pelas entidades judiciais,
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sobretudo no que diz respeito ao valor probatório do testemunho em fase de julgamento (Peixoto,
Ribeiro, & Lamb, 2011; Pipe, Orbach, Lamb, Abbott, & Stewart, 2013).
O protocolo do NICHD é o único que tem sido “sistematicamente avaliado no terreno” (Pipe et
al., 2013, p. 181) e que tem sido utilizado na realização de entrevistas forenses em vários países,
tais como Israel (Lamb, Hershkowitz, Sternberg, Esplin, et al., 1996), Suécia (Cederborg, Orbach,
Sternberg, & Lamb, 2000), EUA (Sternberg et al., 2001), Canadá (Cyr & Lamb, 2009), Reino
Unido (Lamb et al., 2009), Japão (Naka, 2011). Noutros países, como Portugal (Peixoto, Ribeiro &
Alberto, 2013) e Brasil (Williams et al., 2014), o protocolo encontra-se traduzido e adaptado ao
respetivo contexto cultural e jurídico, estando em desenvolvimento diversos estudos sobre a sua
aplicabilidade a casos reais.
Diagramas corporais
Os diagramas corporais são representações bidimensionais do corpo humano, podendo variar no
grau de detalhe da anatomia. A sua utilização como auxiliares durante a realização da entrevista tem
sido fundamentada, sobretudo, pela dificuldade de crianças em idade pré-escolar em identificar
!17
verbalmente, de forma correta, alguns toques corporais. Os diagramas corporais poderiam, desta
forma, facilitar a clarificação de determinados toques corporais sugeridos pela criança durante a
entrevista, bem como ajudar a caracterizar o tipo de toque corporal por ela vivenciado. Esta técnica
poderia ser útil, também, em casos em que as crianças evidenciassem constrangimentos emocionais
que dificultassem a verbalização do tipo e da localização do toque corporal vivenciado.
Embora amplamente utilizada por vários protocolos de entrevista forense (e.g., RATAC), a
aceitação desta técnica durante uma entrevista forense não é consensual. Pipe e Salmon (2009),
numa revisão sobre a utilização desta técnica, indicam que a utilidade da sua utilização depende de
como, quando e quem os utiliza, pelo que, apesar de vantagens na sua utilização, existem
claramente riscos.
Os estudos que têm sido realizados (Aldridge et al., 2004; Brown, Pipe, Lewis, Lamb, & Orbach,
2007; Teoh, Yang, Lamb, & Larsson, 2010) apontam para a existência de ganhos na qualidade e
quantidade de informação quando utilizados os diagramas corporais. No estudo desenvolvido por
Aldridge e colaboradores (2004), a utilização desta metodologia gerou uma maior quantidade de
informação relativamente aos toques corporais, ajudando a clarificar a sua localização. Este efeito
foi particularmente saliente nas crianças em idade escolar. Estes dados foram ainda corroborados
pelo recente estudo de Teoh e colaboradores (2010), que sugere que a utilização de diagramas
corporais, após a inquirição exaustiva através de questões abertas, teria originado a verbalização de
novos toques, bem como o esclarecimento dos toques corporais anteriormente descritos. Contudo,
os autores advertem que não foi possível verificar a correção da informação.
Porém, os estudos empíricos (Aldridge et al., 2004; Brown et al., 2007; Teoh et al., 2010) têm
também apontado para a existência de riscos na utilização destas metodologias. Atrás referimos os
ganhos na quantidade de informação com a utilização dos diagramas corporais, contudo, o aumento
da descrição de pormenores, por parte da criança, não é apenas de informação correta, mas também
de informação incorreta. Sendo assim, a sua utilização na prática forense, no limite, poderá ser
perigosa, pois existe um risco considerável de estimular o surgimento de falsos positivos. Bruck
(2009) indica ainda que os diagramas corporais estimulam mais erros do que os estímulos verbais,
quando utilizados para esclarecer informação que a criança referiu previamente. Poole e Dickinson
(2011) sugerem que a utilização de diagramas corporais, muito embora estimulem a criança a
fornecer mais informações sobre toques corporais, aumenta simultaneamente, o número de
informações falsas, sejam elas espontâneas ou sugeridas pelo entrevistador.
!18
Os diagramas corporais têm evidenciado poucos ganhos de informação quando utilizados com
crianças em idade pré-escolar (Teoh et al., 2010). Para além disso, as crianças dessa faixa etária,
independentemente da técnica utilizada, evidenciam uma fraca capacidade de diferenciar toques
corporais, mesmo aqueles que ocorreram instantes antes (Bruck, 2009). Bruck (2009) explica estes
resultados com a dificuldade das crianças codificarem na memória os toques corporais, como
também uma pobre representação semântica do conceito “toque”. Sendo assim, a ineficácia na
utilização de diagramas corporais não será, apenas, explicada pelas características intrínsecas da
técnica, mas também por condicionantes cognitivas da criança. Estes dados parecem colocar em
questão uma das razões mais apontadas para a utilização de diagramas corporais, isto é, ser uma
técnica não-verbal que permitisse crianças em idade pré-escolar descrever toques corporais.
Brown e colaboradores (2007) advertem ainda que a interpretação das reações não-verbais das
crianças aos diagramas corporais deve ser realizada com cuidado. Mesmo as respostas verbais
imediatas não deverão ser tidas em conta sem que a criança elabore verbalmente essas respostas.
Sendo assim, de acordo com os autores, a utilização dos diagramas corporais deverá ser sempre
analisada juntamente com a elaboração verbal da criança.
Decorrente da análise da utilização dos diagramas corporais, emerge a sua dependência do
protocolo de entrevista utilizado. Por exemplo, a sua associação com a utilização de questões
sugestivas potencia o risco de estes serem um fator reforçador de informação induzida na criança e,
por sua vez, a facilitação do surgimento de falsos positivos (Pipe & Salmon, 2009). Devemos,
ainda, referir a inexistência de estudos que avaliem a potencialidade, por si só, das características
dos diagramas corporais sugerirem temáticas relacionadas com o corpo e/ou sexualidade. Pipe e
Salmon (2009) referem, ainda, que existe uma lacuna de estudos que verifiquem como se poderá
reforçar a obtenção de informação com a utilização dos diagramas corporais, por exemplo,
determinando em que altura da entrevista estes deverão ser utilizados. Devemos, ainda, indicar que
não existem estudos que avaliem a utilidade da realização de exercícios de identificação da
anatomia e de toques corporais, com a utilização dos digramas corporais, quer na obtenção de
informação relevante sobre alegados abusos, quer como forma de facilitar a revelação dos abusos.
Este aspeto parece-nos bastante preocupante, já que, como já referimos anteriormente, estas são
duas técnicas fazem parte do protocolo RATAC, amplamente utilizado nos EUA (Anderson et al.,
2010; Walters et al., 2003).
Devido aos riscos apontados na sua utilização, muitos autores (Aldridge et al., 2004; Brown et
al., 2007; Brown, 2011; Teoh et al., 2010) sugerem que esta técnica deverá ser usada apenas como
!19
último recurso, e só após a obtenção do relato da criança sobre os alegados comportamentos
abusivos, servindo, nesse caso, para esclarecer informação fornecida pela criança e não para
desencadear a sua revelação.
!20
3. Modelo anatómico, sendo utilizadas para a criança identificar partes do corpo;
4. Auxiliar de demonstração dos alegados comportamentos abusivos, podendo a criança
demonstrar o que aconteceu, em vez de o descrever verbalmente;
5. Estímulos mnésicos, com o objetivo de facilitar ou despoletar memórias dos alegados abusos.
Após a análise de 20 guiões ou textos especializados que dão indicações sobre a utilização desta
metodologia, os autores evidenciaram que a maior parte deles recomendava a utilização das
bonecas anatomicamente corretas como modelo anatómico (16) e auxiliar de demonstração (18).
Em 11 desses textos eram recomendadas como estímulo mnésico, em apenas cinco como quebra-
gelo e em dois como objeto reconfortante (Everson, & Boat, 2002).
Everson e Boat (2002), defensores das potencialidades desta técnica, indicam que existe uma
crescente evidência que a utilização de bonecas anatomicamente corretas como auxiliares de
demonstração e modelos anatómicos aumenta a evocação mnésica, por parte das crianças,
relativamente a toques corporais, nomeadamente, nos genitais. Estes autores refutam, ainda, que os
estudos desenvolvimentais com esta técnica têm apontado para a baixa sugestionabilidade das
bonecas relativamente à temática sexual, pelo que apenas crianças com história de exposição a
comportamentos sexualizados (e.g., pornografia e relações sexuais dos adultos) evidenciam
interações sexualizadas com as bonecas. Advertem, ainda que as crianças provenientes de níveis
socioeconómicos mais baixos evidenciam mais comportamentos sexualizados (cerca de 20%).
Pipe e Salmon (2009), apesar de corroborarem a análise de Everson e Boat (2002) relativamente
aos ganhos de informação com a utilização das bonecas anatomicamente corretas como auxiliares
de demonstração da anatomia genital (quando utilizadas no âmbito de protocolos de entrevista que
obedeçam às recomendações atuais), referem que ainda não existem dados suficientemente
consistentes que provem que a utilização desta técnica é útil e segura no âmbito das avaliações de
alegações de abusos sexual. Numa revisão feita por estas autoras, conclui-se que a utilização das
bonecas anatomicamente corretas não terá facilitado, de forma consistente em todos os estudos, a
obtenção de nova informação correta. Para além disso, a sua utilização parece estar associada a um
aumento da percentagem de erros no relato das crianças (Pipe & Salmon, 2009).
Os estudos realizados com bonecas anatomicamente corretas parecem ser consensuais
relativamente a alguns pontos:
• Não devem ser utilizadas como um teste da ocorrência de abuso sexual (Koocher et al., 1995;
!21
• A sua utilização não é apropriada com crianças com idades inferiores a cinco anos, devido a
constrangimentos desenvolvimentais (Pipe & Salmon, 2009; Poole & Lamb, 1998);
• Poderão ser um instrumento perigoso quando utilizadas em conjugação com questões
sugestivas (Ceci & Bruck, 1995; Everson, & Boat, 2002; Koocher et al., 1995; Pipe &
Salmon, 2009; Poole & Lamb, 1998).
Estudos realizados no campo forense têm apresentado dados que colocam reservas quanto à
utilização desta técnica com casos reais. Lamb e colaboradores (1996), por exemplo, não
encontraram nenhum aumento de informação relevante, no plano forense, com a utilização das
bonecas, com crianças entre os dois e os 12 anos. Estudos mais recentes (Santtila, Korkman &
Sandnabba, 2004; Thierry, Lamb, Orbach, & Pipe, 2005) apontam para uma influência negativa da
utilização das bonecas. No estudo de Thierry e colaboradores (2005), as crianças entre os três e os
seis anos utilizaram mais frequentemente as bonecas em atividades de jogo exploratório, em
comparação com crianças entre os sete e os 12 anos. No entanto, este grupo etário não providenciou
mais informações com a utilização das bonecas, mas sim, na fase em que apenas foi estimulado o
relato verbal. Em ambos os grupos etários foi verificada a existência de mais informações
fantasiadas com a utilização das bonecas do que sem elas.
Estes dados sugerem que existem claros perigos na utilização desta metodologia, sobretudo
quando esta for utilizada de uma forma não estruturada, com a utilização de perguntas sugestivas e
com a estimulação ao jogo e ao imaginário. Brown (2011), na sua revisão da investigação científica
sobre esta metodologia, refere que a sua utilização não revela ganhos substanciais, no que diz
respeito à quantidade e qualidade de informação, em comparação com a utilização de protocolos de
entrevista forense (e.g., protocolo de entrevista forense do NICHD).
Touch Survey
O Touch Survey foi criado no início da década de 1980 por Hewitt (1999). O seu objetivo é
realizar uma análise progressiva de diferentes tipos de toques corporais: positivos, negativos e
neutros. Esta técnica é utilizada para identificar possíveis toques corporais associados com
experiências de abuso físico, sexual, emocional (e.g., ausência de toques corporais positivos, como
abraços) e negligência.
O Touch Survey é constituído por dois momentos: uma fase de aquecimento, onde a criança
realiza o “Feeling Faces”; e a segunda fase, em que se procede à exploração dos diferentes toques
corporais. Na fase de aquecimento, a criança é convidada a desenhar quatro caras, as quais estão
!22
associadas a quatro estados emocionais: alegre, triste, medo, zangado. Estes rótulos são definidos
pelo entrevistador, sendo a tarefa da criança desenhar as características da expressão facial
associada a cada um dos estados emocionais. Em seguida, solicita-se à criança que classifique as
quatro expressões faciais, identificando qual o estado emocional mais frequente no seu quotidiano.
Depois, solicita-se que identifique situações que originem os diferentes estados emocionais.
Na segunda fase do Touch Survey, é solicitado à criança que descreva a ocorrência, localização e
emoção associada a seis diferentes tipos de toques corporais: abraçar, beijar, cócegas, palmada,
bater (pontapear, beliscar) e toque na região genital. No questionamento sobre o toque corporal, é
ainda solicitado que identifique a pessoa que já lhe terá tocado dessa forma e em que zona do corpo
o fez. Por último, solicita-se que identifique possíveis toques corporais (natureza e localização) que
esta terá realizado num adulto.
O Touch Survey é descrito como uma técnica útil na averiguação da ocorrência de toques
corporais abusivos na criança, sendo salientada a sua pouca intrusividade, pouca reatividade
emocional e o suporte como estímulo mnésico para a criança (Hewitt, 1999). Estas potencialidades
da técnica são particularmente destacadas na sua utilização com crianças suspeitas de vivenciarem
uma experiência de abuso sexual. A técnica é recomendada apenas para crianças a partir dos quatro
anos de idade.
Apesar de descrever a utilidade da técnica, Hewitt (1999) aponta para a necessidade de estudos
sobre a sua aplicação. Aliás, o único estudo apresentado pela autora revela dados inconsistentes na
utilização da técnica, nomeadamente o facto de não ser claro que a sua utilização traga ganhos
significativos na identificação de verdadeiros positivos. Do estudo realizado, também não é claro
que esta técnica seja útil na facilitação da revelação de uma experiência de abuso. Entendemos
ainda que, dadas as características da técnica, os mesmos constrangimentos descritos pela literatura
científica relativamente à utilização de diagramas corporais poderão se verificar também na
utilização do Touch Survey.
!23
maior parte dos países ocidentais foram introduzidas alterações nos procedimentos judicias de casos
de abuso sexual de crianças, nomeadamente na forma como o seu relato é obtido, tais como A
obrigatoriedade do registo vídeo (e.g., na maior parte dos países europeus, EUA, Canadá, Austrália,
etc.), a utilização de entrevistadores forenses especializados (e.g., em Itália, esta tarefa compete ao
psicólogo forense) e a instauração de guiões e protocolos de entrevista forense ( e.g., o guião ABE)
A obrigatoriedade da realização de declarações para memória futura em casos de suspeita de
abuso sexual, desde 2007, foi um importante avanço no que diz respeito à forma como as crianças
são vistas pelo sistema de justiça português. O facto desta diligência processual permitir que o
relato da criança, realizado de uma forma protegida, seja considerado prova em sede de julgamento
é um passo fundamental. Porém, continuam a persistir aspetos preocupantes na forma como o relato
da criança é obtido (Peixoto, Ribeiro, & Alberto, 2013).
Ribeiro (2009), no seu estudo sobre as trajetórias e significados do processo judicial de crianças
vítimas de abuso sexual, enfatizou que estas seriam ouvidas cerca de oito vezes. Peixoto (2012)
observou que, mesmo em casos onde existem evidências físicas e biológicas de abuso sexual,
muitas crianças são entrevistadas formalmente entre quatro e nove vezes. Com base na revisão
realizada nas secções anteriores deste capítulo, entendemos que esta prática compromete a
qualidade do relato obtido, aumentando o risco da criação de scripts e da sugestão de informações.
Para além disso, os múltiplos relatos sobre os abusos que a criança se vê obrigada a realizar
aumenta o risco de vitimação secundária, ou seja, um agravamento do seu estado emocional já
debilitado pelas experiências abusivas.
Outro aspeto preocupante é a forma de registo do relato da criança no âmbito das declarações
para memória futura. Muito embora o registo áudio seja cada vez mais utilizado, ainda se assiste à
utilização do registo escrito como o registo principal das declarações da criança. O registo em vídeo
é inexistente. A forma de registo das entrevistas é um aspeto central para analisarmos a qualidade
das entrevistas realizadas, quer do ponto de vista do entrevistado, quer do ponto de vista do
entrevistador. Se por um lado, um registo áudio, e sobretudo um registo vídeo, permite analisar de
uma forma mais clara a espontaneidade do discurso da criança, por outro lado, permite a análise da
qualidade das questões colocadas. Desta forma, poderemos facilmente analisar a presença de
possíveis enviesamentos do entrevistador no discurso da criança.
Por último, entendemos que a ausência da utilização de um protocolo de entrevista forense é o
aspeto mais preocupante. A entrevista de crianças, sobretudo no contexto forense, é uma tarefa
exigente e que requer um conjunto específico de metodologias.
!24
Ao longo deste capítulo abordámos as consequências da utilização de técnicas sugestivas em
entrevistas com crianças. Identificámos, também, vários protocolos de entrevista forense que trazem
melhorias na forma de obter o testemunho da criança em comparação com as práticas mais comuns
de inquirição. Embora existam em Portugal linhas gerais sobre a forma como se deve entrevistar
uma criança vítima de abuso sexual (e.g., (APAV) Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, 2002;
Magalhães & Ribeiro, 2007), o facto de a sua utilização não ser obrigatória, permite que diferentes
profissionais implementem metodologias distintas. Já anteriormente (Peixoto et al., 2011)
defendemos que a introdução do protocolo do NICHD poderia ser uma ótima solução para esta
lacuna no nosso país, uma vez que este, em comparação com outros protocolos de entrevista
forense, se destaca pelas evidências científicas demonstradas noutros países, designadamente em
contexto forense. Para além disso, este encontra-se traduzido e adaptado ao contexto nacional,
estando a ser utilizado em casos, onde tem contribuído para a estimulação significativa da
capacidade de informar por parte das crianças.
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