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UnB - Universidade de Brasília

FAC - Faculdade de Comunicação


Departamento de Audiovisual e Publicidade

Mitos Animados
Encontros Simbólicos do
Oriente com o Ocidente

Fernando Hiro Shimojo

Brasília-DF, novembro de 2014

UnB - Universidade de Brasília


Fernando Hiro Shimojo

Mitos Animados - Encontros Simbólicos do Oriente com o Ocidente

Trabalho de Conclusão de curso


apresentado à Universidade de
Brasília como requisito parcial para a
obtenção do título de bacharel em
Publicidade e Propaganda.

Professora orientadora:
Selma Regina Nunes de Oliveira

Brasília-DF, novembro de 2014


Fernando Hiro Shimojo

Mitos Animados - Encontros Simbólicos do Oriente com o Ocidente

Banca Examinadora

Professora Dra. Selma Regina Nunes de Oliveira


Orientadora

Professora Me. Erika Bauer de Oliveira


Examinadora

Professor Me. Raimundo Clemente Lima Neto


Examinador

Professor Dr. Gustavo de Castro e Silva


Suplente

Brasília-DF, novembro de 2014


RESUMO

A semelhança em histórias de diferentes culturas e diferentes épocas é


um dos mistérios que mais intrigam a humanidade. Este trabalho busca uma
compreensão sobre a universalidade dessas histórias, mais particularmente, dos
mitos. Para tal reflexão, o produto proposto é uma animação, na qual foram
misturados um mito japonês e uma fábula brasileira. O intuito dessa
experimentação é tentar perceber, através dos simbolismos construídos, como
os imaginários dessas narrativas se relacionam. E a partir disso, buscar entender
no mundo da animação como produções de uma cultura ou de um tempo são
aceitos em culturas ou épocas distantes.

Palavras-Chave: Comunicação, Animação, Mito, Imaginário, Oriente, Ocidente,


Gralha-Azul, Yatagarasu.
ABSTRACT

The similarity in stories from different cultures and different times is one of
the most intriguing mysteries of humanity. The presente work seeks an
understanding of the universality of these stories, more particularly, of myths. For
such reflection, the product made is an animation in which a japanese myth were
mixed with a brazilian fable. The purpose of this experiment is to understand,
through the symbolism, how these fictional narratives relate to each other. Based
on that, comprehend in the world of animation how productions of certain culture
or a time are accepted in distant cultures or epochs.

Keywords: Communication, Animation, Myth, Imaginary, East, West, Azure-Jay,


Yatagarasu.
Sumário

Capítulo 1: Introdução ao trabalho ................................................................. 6

1.1 Introdução ................................................................................................. 6

1.2 Problema de pesquisa............................................................................... 6

1.3 Justificativa................................................................................................ 7

1.4 Objetivos ................................................................................................... 8

1.4.1 Objetivo geral ...................................................................................... 8

1.4.2 Objetivos específicos .......................................................................... 8

Capítulo 2: Yatagarazul .................................................................................... 9

2.1. As histórias............................................................................................... 9

2.1.1 Mito de Yatagarasu ............................................................................. 9

2.1.2 Fábula da Gralha-azul ...................................................................... 10

2.2 Metodologia............................................................................................. 11

2.2.1 Métodos da pesquisa e do trabalho .................................................. 12

Capítulo 3: Desenvolvimento Teórico .......................................................... 17

3.1 Imaginário .............................................................................................. 17

3.2 Símbolo .................................................................................................. 20

3.3 Mito ........................................................................................................ 22

3.4 Arquétipo ................................................................................................. 23

Capítulo 4: Simbolismos................................................................................ 30

Capítulo 5: Conclusões.................................................................................. 42

Referências e Anexos ...................................................................................... 45


6

Capítulo 1: Introdução ao trabalho

1.1 Introdução

Para chegar ao problema de pesquisa desse trabalho foi preciso percorrer


um caminho cheio de angústias ligadas, basicamente, à forma que nos
relacionamos com a animação, como forma de expressão. Um dos primeiros
questionamentos acerca disso foi entender como esse tipo de comunicação
pode se basear em mitos na sua elaboração. E de outro ponto de vista, de que
forma o mito contribui na sua construção narrativa?
Antes de responder essas questões, o entendimento sobre o mito como
uma narrativa que pode assumir diversas “caras” foi necessário. Caminhando ao
seu lado também se revelaram questionamentos e reflexões acerca de noções
sobre imaginário, inconsciente, arquétipos e símbolos. Estes, portanto,
compreendem a fundamentação teórica deste trabalho.
Paralelamente ao estudo dessas teorias, o problema de pesquisa foi se
mostrando mais consistente, buscando relações entre essas faces do mito, as
suas compreensões, identificações e aceitações num determinado contexto.
Com foco nesses conceitos e na questão central do trabalho, foi realizada uma
animação com duração de pouco mais de três minutos, envolvendo duas
histórias fortemente conectadas ao imaginário, um mito e uma fábula. A relação
entre os seus elementos e as diversas leituras, das mais óbvias até as não tão
óbvias, constitui o capítulo intitulado Simbolismos.

1.2 Problema de Pesquisa

O meu problema de pesquisa é uma reflexão sobre as diversas faces que


um mito pode ter, buscando entender como produções de uma determinada
cultura ou de um determinado tempo podem fazer sucesso em culturas ou
épocas diferentes.
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1.3 Justificativa

O mercado de trabalho que envolve animação, seja no cinema, em


publicidade, no jornalismo, em vídeos institucionais, na internet, nas artes em
geral, vive um momento de muita expressão, com grande interesse dos
espectadores e, portanto, daqueles que o produzem. O encantamento dessa arte
deve-se muito à técnica, aprimorada constantemente pela tecnologia, e
principalmente à forma de contar histórias envolventes e catárticas. A construção
das narrativas nos filmes de animação está fortemente ligada ao imaginário e
por sua vez, ao mito. Através de seus símbolos e simbolismos, é possível criar,
recriar, ler e reler representações dos mais variados elementos pertencentes ao
universo fantasioso da animação. Explorá-los, ajuda a compreender cada vez
mais o sucesso dessas formas de comunicação.
A arte da animação como a conhecemos hoje teve seu início muito
próximo ao do Cinema. Alguns autores marcam essa origem séculos antes com
o zootrópio, zoopraxinoscópio, o teatro das sombras e até com as figuras
rupestres que sugeriam ações e movimentos através das sequências de
imagens desenhadas nas paredes paleolíticas. Escolhi o nascimento do Cinema
como ponto de partida, porque as técnicas, os conceitos e as teorias deste são
os que mais se aproximam do produto. Portanto, para a produção da animação,
levarei em conta três etapas principais: a pré-produção, a produção e a pós
produção, indo desde a concepção do roteiro e do storyboard até a finalização
imagética e sonora do filme.
Explorar as ligações entre animação e imaginário parece ser bem
razoável, considerando que em ambas permeiam o universo do fantástico. A
elaboração do produto consiste em fazer tais relações, levando em conta o
argumento inicial de que uma interpretação estilizada da realidade possibilita aos
olhos e aos ouvidos uma “concretização” de um universo imaginativo e
fantasioso. Em outras palavras, a animação, através de suas técnicas e formas
de expressão, propicia soluções narrativas visuais e sonoras singulares. Sendo
assim, entende-se que a animação como produto pode ser uma um exercício
interessante para a compreensão da questão central deste trabalho.
8

1.4 Objetivos

1.4.1 Objetivo geral

- Compreender a universalidade dos mitos em animações.

1.4.2 Objetivos específicos

- Por meio dos mitos, entender como produções de animação de uma


cultura ou de um período fazem sucesso em culturas ou épocas
diferentes.

- Produzir uma animação, misturando um mito e uma fábula, observando


as relações simbólicas presentes em suas histórias.

- Explorar os simbolismos construídos e utilizados na mistura dos contos,


a fim de compreender os seus imaginários e as suas relações
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Capítulo 2: Yatagarazul

O neologismo Yatagarazul vem das palavras Yatagarasu e azul, resume


a proposta do trabalho. Yatagarasu é o nome do corvo de três patas da mitologia
japonesa. Já o vocábulo azul se refere a fábula da Gralha-azul, típica da região
sul do Brasil, principalmente do estado do Paraná, do qual ela é ave-símbolo.
O produto consiste numa animação de três minutos, na qual as duas
histórias apresentadas são misturadas em termos estéticos e simbólicos. A ideia
é experimentar isso no processo criativo e as novas possibilidades de leituras,
verificando a universalização do mito. Em outras palavras, perceber que mesmo
contando de um jeito diferente, as raízes dos mitos permanecem. Essa
experimentação foi uma oportunidade de colocar em prática o teórico abordado
no início do trabalho e, também, uma nova forma de interpretação e
entendimento do problema de pesquisa.

2.1 As histórias

2.1.1 Mito de Yatagarasu

O mito de Yatagarasu tem seus relatos nos escritos mais antigos do


Japão, O Kojiki e o Nihongi, sendo o primeiro o mais antigo e também conhecido
por “Registro de Assuntos Antigos”, na tradução de Chamberlain. Este contém
as mitologias, enquanto o outro é uma compilação das crônicas do Japão. Um
fato curioso é que não é mencionado nessas escrituras a quantidade de patas
do pássaro lendário, apesar de várias simbologias derivadas deste mito serem
representadas por um corvo de três patas, na própria cultura japonesa.
Segundo Kawagoe, podemos encontrar respostas na mitologia chinesa,
que por sua vez, tem uma forte influência nas origens japonesas. “A origem do
Yatagarasu é amplamente atribuída ao mito chinês dos dez corvos empoleirados
em uma amoreira” (KAWAGOE, 2011). O mito é sobre a origem do sol,
representado pelo corvo de três patas, filho da deusa do sol Xi He com o
imperador Jun. Nas versões dos livros japoneses antigos também há a relação
com o sol. Segundo o Kojiki, a deusa do sol Amaterasu Omikami, percebendo
10

os problemas do Imperador Jimmu e seus guerreiros no mundo terrano, envia o


corvo gigante para norteá-los. A ave guia os homens, fazendo-os conquistarem
seus objetivos. Na tradução do Nihongi, segundo Aston, a história é similar, com
uma diferença na aparição da deusa, que ocorre num sonho.

Então, numa noite, Amaterasu Omikami, aparece no sonho do


Imperador, dizendo: “Vou te enviar o YataGarasu, deixa-lo guiar-te pela
terra.” Então, no dia seguinte, de fato, surgiu Yatagarasu, voando da
grande expansão do céu. O Imperador disse: “A vinda deste pássaro
significa a realização do meu sonho esperançoso. Que grandioso! Que
esplêndido! Nossa ancestral, Amaterasu Omikami, deseja nos ajudar
na fundação do nosso império. (ASTON, 1896, p. 115; tradução minha)

Em termos da simbologia, na mitologia japonesa, o aparecimento de


Yatagarasu é interpretado como uma “prova da vontade do Céu ou intervenção
divina nos assuntos humanos”. (KAWAGOE, 2011; tradução minha).

2.1.2 Fábula da Gralha-azul

A lenda que serve de base para este estudo está no livro A sombra dos
pinheiros (1925), de Eurico Branco Ribeiro, uma das primeiras publicações e,
possivelmente, uma das raízes do conto popular. E foi justamente uma versão
desse conto que motivou meu interesse e a busca da lenda. A versão resume
bem o conto e por isso a cito na sua integridade.

Uma certa gralha negra, dormia num galho de pinheiro e foi acordada
pelo som dos golpes de um machado. Assustada, voou para as
nuvens, para não presenciar a cena do extermínio do pinheiro. Lá no
céu, ouviu uma voz pedindo para que ela retornasse para os pinheirais,
pois assim ela seria vestida de azul celeste e passaria a plantar
pinheiros. A gralha aceitou então a missão e foi totalmente coberta por
penas azuis, exceto ao redor da cabeça, onde permaneceu o preto dos
corvídeos. Retornou então aos pinheirais e passou a espalhar a
semente da araucária, conforme o desejo divino.

(Fonte: SóHistória. Lendas & Mitos. Disponível em:


Acesso em: setembro, 2014)
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Essa esplendorosa ave, tanto nas cores como no espírito, atraiu nossos
olhares mais íntimos, seduzindo a nossa alma às diversas interpretações que
temos dela, seja poesia, conto, música, dança, arte, entre outras representações
afetivas. Até mesmo uma lei foi criada em sua homenagem.

É declarada ave-símbolo do Paraná o passeriforme denominado


Gralha-azul, Cyanocorax caeruleus, cuja festa será comemorada
anualmente durante a semana do meio ambiente, quando a Secretaria
da Educação promoverá campanha elucidativa sobre a relevância
daquela espécie avícola no desenvolvimento florestal do Estado, bem
como no seu equilíbrio ecológico”. (Lei Estadual Nº. 7957 de 12 de
novembro de 1984, no Artigo 1º)

Há relatos sobre um comportamento nobre da gralha, que reafirmam a


sua contribuição ao reflorestamento das araucárias, outro símbolo do Paraná.
Não cabe a este estudo uma discussão sobre as atividades biológicas da ave e
da árvore, mas uma rápida noção de sua existência enriquece neste estudo a
força simbólica da lenda. Portanto, longe de ser uma explicação, temos uma fala
da galha, na lenda do historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo.

Ali está a cova que eu fazia e, além, o pinhão já sem cabeça, que eu
devia nela depositar com a extremidade mais fina para cima. Tiro-lhe a
cabeça porque ela apodrece ao contato da terra e assim apodrece o
fruto todo, e planto-o de bico para cima a fim de favorecer o broto. Vai.
Não sejas mais assassino. Esforça-te, antes, por compartilhar comigo
nesta suave labuta". (CASCUDO, 2006, p. 72)

2.2 Metodologia

Para este trabalho, primeiramente foi foi feita uma pesquisa de cunho
teórico e qualitativo, buscando uma compreensão de assuntos e questões
particulares e não uma resposta para todas elas “com a formulação de leis
generalizantes, como fazem as ciências naturais”. A isso, reforço com o conceito
verstehen, “que visa à compreensão interpretativa das experiências dos
12

indivíduos dentro do contexto em que foram vivenciadas.” (DILTHEY, apud


GOLDENBERG, 1997, p.19).
Em um segundo momento, também foram realizadas pesquisas visuais,
musicais e audiovisuais, as quais ao mesmo tempo que buscava referências,
desenvolvia melhor a absorção do material teórico em questão. Afinal, estas
possuem níveis de entendimento que beiram a nossa consciência intelectual,
como já foi discutido no segundo capítulo. Dizendo de outra forma, uma imagem
pode enriquecer mais de mil palavras, assim como as percepções sonoras e
outras.
Apropriando-se do conceito proposto por Dilthey, Weber, diz que o
“principal interesse da ciência social é o comportamento significativo dos
indivíduos engajados na ação social”, e “os cientistas sociais que pesquisam os
significados das ações sociais de outros indivíduos e deles próprios, são sujeito
e objeto de suas pesquisas.” (WEBER, apud Ibidem). E dessa forma o sou,
considerando os mitos e os simbolismos como relações dos indivíduos consigo
mesmos e com aqueles e aquilo que os cercam.

2.2.1 Métodos da Pesquisa e do Trabalho

No delineamento dessas pesquisas, a técnica predominante foi a


pesquisa bibliográfica, “desenvolvida a partir de material já elaborado,
constituído principalmente de livros e artigos científicos”. (GIL, 2008, p. 50). E
através da relação entre os simbolismos observados nas histórias de diferentes
épocas e culturas, foi utilizado o método comparativo, que segundo o mesmo
autor, “procede pela investigação de indivíduos, classes, fenômenos ou fatos,
com vistas a ressaltar as diferenças e similaridades entre eles.” (ibidem, p. 16).
Da concepção da animação até a sua pós-produção, foi utilizado um
fluxograma criado numa necessidade anterior a fim de entender e separar as
etapas do processo. Para facilitar o entendimento dos métodos do trabalho,
traçarei uma linha imaginária, seguindo os procedimentos desse fluxograma, que
não são necessariamente lineares, explicando em cada etapa como foram feitas
13

as pesquisas, como foram escolhidos o conto e o mito, suas estéticas, as trilhas


sonoras e quais foram os critérios para tais escolhas.
A primeira etapa é a criação do roteiro. E antes de sua decupagem, o
enredo. Fiz uma busca inicial de vários contos, lendas, folclores e mitos
brasileiros e japoneses. O filtro foi simples: histórias com um tom otimista. O
conto da Gralha-azul foi encontrado com facilidade. E rapidamente veio o mito
de Yatagarasu, mas este tomou um tempo até processá-lo e entendê-lo como
uma narrativa. Foi necessária uma investigação em fontes antigas e traduções
destas, como explicado no início do capítulo, até chegar numa primeira
compreensão do mito em condições de iniciar a recriação da trama.
A próxima etapa consiste na pesquisa de referências imagéticas e
sonoras para as definições estéticas do produto. A proposta inicial era adaptar a
história brasileira à estética japonesa e vice-versa. Surgiu, então, a necessidade
de encontrar estéticas marcantes culturalmente, com diferenças bem definidas.
Durante esta e a terceira etapa, que consiste na decupagem do roteiro, a criação
do storyboard e do animatic, as referências vem e vão, numa dinâmica
importante para as decisões finais dessas primeiras definições.
O animatic é uma maneira de pré-visualizar as animações, de filmes ou
produtos audiovisuais em geral. É uma etapa extremamente importante, pois
aqui é onde conseguimos sentir o ritmo, o sentimento das sequências e do todo.
E justamente nesse momento poderão e serão feitas a maior parte das
mudanças. Portanto, para a sua finalização é interessante ter montado, além dos
quadros do storyboard, um esqueleto inicial da trilha-sonora. Nessa fase, foram
escutadas dezenas de melodias.
O taikô, percussão dos tambores orientais, é derivado da cultura chinesa.
Porém, sua expressão na cultura japonesa é bastante forte e singular. Como ex-
praticante da arte, a bagagem de repertório ajudou bastante e, no fim, a música
Yumi ga Hama do tradicional grupo japonês Kodo veio a calhar no ritmo das
cenas. Na busca e na seleção das músicas japonesas, as conversas com meu
pai foram curiosas, reveladoras e de caráter essencial para chegar na música
Nanatsu-no-ko. Ao ouvir meu pai, nascido do outro lado de suas origens,
reconhecer a melodia e cantar boa parte da letra dessa cantiga infantil do folclore
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japonês depois várias décadas, percebi o quão importante ela era para este
trabalho.
Gralha-azul é o nome do animal da fábula, da própria fábula e também da
segunda trilha sonora que predomina na animação. Música composta por Inami
Custódio Pinto, um importante folclorista do Sul do Brasil. A letra é a lenda em
si, o que desperta outras curiosidades sobre a composição no seu todo: os
arranjos, os instrumentos, sua história. Foram encontradas muitas versões da
canção, pertencentes a região do Paraná. O foco da procura era a caracterização
sulista.
Por isso, paralelamente, outras referências foram muito bem-vindas,
como as boleadeiras de Jonh Gaúcho, sapateador e coreógrafo nascido no Rio
Grande do Sul. Estas, que ele usa como instrumento para produzir uma espécie
de percussão musical, são antigas armas datadas do século XVII utilizadas para
caçar animais nas grandes pradarias do pampa rio-grandense. Na expressão
musical, isso compreende os mitos, os ritos e os folclores da região. Em um
evento promovido pela Volkswagen em Angra dos Reis no ano de 2008, Gaúcho
se apresenta juntamente com Renato Borghetti, acordeonista e também
folclorista, muito conhecido pela sua gaita-ponto. Este instrumento é muito
tocado no Nordeste e no Sul, região cuja cultura foi expandida através de
Borghetti.
Devido a esse grande envolvimento com a cultura da região que surgiu o
mito, um trecho de vinte segundos da música Milonga para as Missões, de
Borghetti, foi adaptado a trilha que inicia o terceiro ato da trama, em que a
resolução do conflito principal é mostrada na transformação divina da
personagem. Emendada a este trecho, uma fantástica versão de Gralha-azul,
originalmente de Inami, fez a sua revelação junto com a superação do ato. Ela
foi desenvolvida pela gravadora Gramofone, localizada em Curitiba, no projeto
Nhengarí Inami, concebido por Lydio Roberto, musicoteraupeta paranaese. Além
de toda a conexão da música, dos instrumentos e da regionalidade com tal
momento da animação, há uma frase no site da gravadora que resume a
intenção de sua escolha: “Vocação para Selo Musical, produção e difusão da
música paranaense no Brasil e no mundo”. (Fonte: Gramofone. Disponível em:
<http://gramofone.com.br/musical/> Acessada em setembro de 2014).
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Finalizada a trilha, com a aprovação do concept e do animatic, vem a


penúltima etapa do processo. A da ilustração, da animação e da sonorização.
Esta, devido a trilha montada e a quantidade de elementos a sonorizar, foi a
parte menos laboriosa, mas nem por isso, foi menos prazerosa. Esse é o estágio
que mais consome tempo e energias. É quando, no processo criativo, as ideias,
os rascunhos tomam forma, movimento e vida através do sopro anímico. A essa
altura, as estéticas só estão esperando serem experimentadas. Definidas,
vamos a elas.
Como técnica visual oriental elegi o Sumi-ê1, outra arte milenar e de
grande expressão japonesa, tem uma relação muito forte com a arte da caligrafia
oriental. A fluidez e a precisão dos movimentos foram consideradas no
sentimento da primeira parte do enredo. A busca pela técnica foi um caminho de
inúmeros testes, até encontrar essa maneira, que se adequou ao cronograma.
Para a estética brasileira, foi escolhido o Naïf2. Devido a abrangência, o
Naif inspirado para a produção deste trabalho tem influências culturais
brasileiras. Apesar de não determinar uma região específica nas buscas das
referências dessa estética, podemos observar nas pesquisas autores das
regiões sul, sudestes e nordeste, com artistas naturalizados dos estados do
Paraná, do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Bahia, com influências de regiões
próximas e, claro, do Naif europeu, onde tem forte presença. Pela definição, as
características de ingenuidade, originalidade, espontaneidade conversam muito
bem com as personagens da animação e com as representações sugestivas e
poéticas do mito. Essa arte é muito difundida no Brasil. Nas palavras de Andrade:

A importância da arte naif em nosso país, de ricas tradições populares,


está na maneira pela qual os pintores procuram captar uma linguagem
brasileira do olhar a realidade ao seu redor. Conseqüentemente,
armazenam na memória coletiva do povo uma documentação visual de

1
Sumi significa tinta preta e E significa caminho ou pintura.
2
O termo arte naïf aparece no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua,
original e/ou instintiva, produzida por autodidatas que não têm formação culta no campo das
artes. (Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural)
16

nossos usos e costumes, comportamentos urbanos e regionais, sem


intelectualismo, com a visão simples e sem rebuscamento de quem vê
as coisas puras da vida. Suas raízes, enfim”, escreveu o crítico de arte
Geraldo Edson de Andrade.
(Fonte: Ardies. Disponível em:
Acesso em: setembro, 2014)

Voltando às primeiras etapas, na criação do roteiro mais especificamente,


foi proposta uma terceira estética, em 3D, que contrastasse com as outras duas.
Pode ser considerada uma espécie de estética de transição, de passagem ou de
quebra. Porém, a ideia era retratar também esse segundo ato, iniciado logo após
a fuga da ave causada pela destruição de seu lar. O contraste dela reside
basicamente na oposição entre o traço estilizado e o realista. As estéticas do
Sumi-ê e do Naif trabalham elementos bidimensionais, chapados nas formas e
nos tons, sem muito comprometimento com as noções de perspectiva,
profundidade, iluminação, contrapondo-se a terceira. Outra reflexão para a
inserção desta foi sobre os momentos de passagem da personagem. A gralha
acaba de subir acima das nuvens e nessa ascensão literal e simbólica, ela
transcende uma fase. E numa última transcendência, retorna ao lar transformada
na gralha-azul ou no corvo mitológico Yatagarasu. Portanto, mais uma reflexão
sobre essa estética. Esta, devido a sua técnica, é considerada uma tentativa de
realismo ou de aproximação com a realidade. No caso, porém, ela representando
o contato com o divino, além da compreensão da realidade.
Concluindo este capítulo, a última etapa consiste na finalização de todos
os processos, em que as animações das cenas, dos planos e das sequências
serão renderizadas, editadas e montadas numa timeline, juntamente com a trilha
e os efeitos sonoros, ajustando e fazendo os tratamentos finais nas cores, no
tempo, no volume, no ritmo. Concluído o filme, foram feitas abordagens
simbólicas sobre o trabalho em geral, analisados no quarto capítulo. Antes de
prosseguir, alguns conceitos importantes sobre os mitos, o imaginário, os
símbolos e os arquétipos serão discutidos a seguir.
17

Capítulo 3: Desenvolvimento Teórico

3.1: Imaginário

Vivemos a todo o momento um mundo de representações. São infindáveis


ideias, conceitos, imagens, símbolos nessa dinâmica de construção,
desconstrução e reconstrução do universo mental criado pelo homem. Essas
representações são resultantes de um processo perceptivo, em que o imaginário
percebe, compreende e traduz a realidade exterior. Segundo Laplantine, essa
realidade consiste na existência das coisas, da natureza, do homem em si
mesmos, sem a interpretação carregada de significados. Já a realidade traduzida
para o mundo das ideias seria o que ele chama de real. E é neste real que o
imaginário se apoia, modificando-o, para criar novas relações.

Para construir o processo do imaginário é preciso mobilizar as imagens


primeiras, como dos homens, cidades, animais e flores conhecidas,
libertar-se delas e modificá-las. Como processo criador, o imaginário
re-constrói ou transforma o real. Não se trata, contudo, da modificação
da realidade, que consiste no fato físico em si mesmo, como a trajetória
natural dos astros, mas trata-se do real que constitui a representação,
ou seja, a tradução mental dessa realidade exterior. O imaginário, ao
libertar-se do real que são as imagens primeiras, pode inventar, fingir,
improvisar, estabelecer correlações entre os objetos de maneira
improvável e sintetizar ou fundir essas imagens. (LAPLANTINE e
TRINDADE, 1997, p. 8)

A negação do real seria o que o autor começa a definir no conceito de


ilusão, caracterizado “essencialmente pela imprecisão, ambiguidade, confusão
de discursos, perda da lógica interna do imaginário”, ocorrendo “quando o objeto
do desejo é indefinido ou quando é negado qualquer objeto preciso que faça
parte do domínio do real ou do imaginário contextualizado” (Ibidem, p. 10). Não
cabe a este estudo a discussão sobre tal conceito, mas vale o pensamento de
18

que, no imaginário, mesmo com a modificação do real, restarão elementos


coerentes com a percepção desse universo, ou seja, esse novo real é razoável
na imaginação.
Partindo desse raciocínio, Laplantine difere ilusão de fantástico e
maravilhoso. Nestes, a inserção de elementos aparentemente contraditórios a
realidade percebida pode ser justificada com uma suspensão de julgamentos, no
primeiro caso; ou com uma aceitação de um novo universo, no segundo caso,
onde regem novas regras. O fantástico supõe “uma oscilação e uma hesitação
sem fim entre o real e o sobrenatural, entre o que diz respeito a fenômenos
naturais, logo físicos, que podem ou poderão "um dia ser explicados", e
hipóteses metafísicas.” (TODOROV, apud LAPLANTINE e TRINDADE, 1997)
Jacqueline Held limita a ideia de fantástico como sendo aquilo “que é
apenas imaginável; o que não é visível aos olhos de todos, que não existe para
todos, mas que é criado pela imaginação, pela fantasia de um espírito.” (HELD,
1980, p. 24).

A narração fantástica reúne, materializa e traduz todo um mundo de


desejos: compartilhar da vida animal, libertar-se da gravidade, tornar-
se invisível, mudar seu tamanho e – resumindo tudo isso – transformar
à sua vontade o universo: o conto fantástico como realização dos
grandes sonhos humanos, sonhos frequentemente retomados pela
ciência. (Ibidem, p. 25)

Seja o fantástico, o maravilhoso ou quaisquer outras representações no


imaginário, estas são formas de expressar as necessidades e os sentimentos
mais intrínsecos do inconsciente humano, em busca da compreensão e do
entendimento de si e do que está a sua volta. É, portanto, “a busca incessante,
a aprendizagem da vida, que nos faz reunir as necessidades primordiais da
humanidade.” (Ibidem, p. 21). É a fantasia de um que reúne a fantasia de todos.

Essa relação do indivíduo consigo mesmo e com o coletivo se insere no


que Backzo chama de imaginário social. Uma projeção do inconsciente humano
que explica e rege as regras, as normas, os valores e os mitos de um grupo, de
uma comunidade, de uma cultura, de um conjunto. Para o autor, esse universo
19

é “composto por um conjunto de relações imagéticas que atuam como memória


afetivo-social de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela
comunidade”. Em outras palavras, seria um imaginário onde os indivíduos
pertencentes a um mesmo grupo depositam suas memórias, vivências e leituras
da sua realidade. Portanto, um mundo de representações importante para
compreensão da coletividade, das percepções que cada um tem em relação a si
mesmo e de uns em relação aos outros. Backzo ainda explica o termo como
“uma das forças reguladoras da vida coletiva”. Dessa forma, além de garantir a
identificação dos integrantes com seus grupos e com as estruturas criadas no
imaginário, as referências simbólicas:

definem também de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis


das suas relações com ela, com as divisões internas e as instituições
sociais, etc. [cf. Gauchet 1977]. O imaginário social é, pois, uma peça
efetiva e eficaz do dispositivo de controlo da vida colectiva e, em
especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele
torna-se o lugar e o objecto dos conflitos sociais. (BACKZO, 1985, p.
309)

Para o meu problema de pesquisa, considero fundamental a noção de


imaginário como um universo de possibilidades simbólicas. Tão importante
quanto entender essa força reguladora, as identidades, os papéis das posições
sociais, as normas e os valores do coletivo, é entender também que cada
universo simbólico tem a sua “realidade primeira”, como colocam alguns autores,
ou o “real primeiro”, nas palavras de Held, considerando o termo real como uma
realidade já traduzida, segundo Laplantine. Ainda citando Held, “cada um de nós
retira do real seu próprio universo. [...] De certa maneira, produzo meu próprio
real. Por isso mesmo, meu real é fantástico, assim como meu fantástico é real.”
(HELD, 1980, p. 24). Concluindo o raciocínio sobre universo de possibilidades,
considero plausível uma compreensão sobre as relações entre diferentes
imaginários, em que uma esfera pode atravessar outra, interseção esta que será
abordada mais para frente.
20

3.2: Símbolo

Como já foi abordado no capítulo anterior, os símbolos estão


compreendidos na esfera do imaginário. São atribuídos à realidade percebida, a
fim de construir um real interpretativo. O imaginário, para exprimir-se e existir,
utiliza o simbólico, ou seja, uma linguagem que se apropria de símbolos para se
expressar. Portanto, “o simbólico pressupõe a capacidade imaginária”.
(LAPLANTINE e TRINDADE, 1997, p. 7). Ou seja, os símbolos têm função
interpretativa, podendo representar qualquer tipo de ideia das mais variadas
formas. Segundo o autor, eles constituem-se de “aspectos formais (significantes)
e de conteúdos polissemânticos (significados)”. (Ibidem, p. 28). Essa
característica é fundamental para a compreensão da relação entre os símbolos
e o imaginário.
Segundo Laplantine, o caráter afetivo contido no Imaginário o faz diferir
do conceito de imaginação, encontrado no processo científico. Esta utiliza-se de
signos diretamente ligados aos seus significantes, remetendo a direções únicas
com significados limitados dentro do seu universo formal. O Imaginário, por sua
vez, trabalha com uma diversificação de significados simbólicos, dependendo do
contexto que se insere. Numa curta definição, Backzo diz que “o símbolo parece
ser o intermediário entre o sinal e o signo: concreto como o primeiro; inscrito
numa constelação de relações como o segundo.” (BACKZO, 1985, p. 311)
Consoante com as noções de símbolo apresentadas, Peirce também faz
uma distinção de termos. Ele define ícone como um signo determinado pelo seu
objeto, em virtude de sua natureza interna e o difere de símbolo:

O símbolo é convencional, enquanto a imagem, não o é, devido à sua


identidade com o objeto. Nessa perspectiva, o autor define símbolo
como um signo que é determinado pelo seu objeto dinâmico somente
no contexto em que ele é interpretado. (PEIRCE, apud LAPLANTINE e
TRINDADE, 1997.)

Os símbolos têm intenção e são produzidos nas interações entre os


homens num dado contexto, baseado em algum discurso. Ao mesmo tempo,
21

esse discurso não reduz seus significados àquele que lhe é atribuído. A essência
do símbolo permanece, mesmo que não seja interpretado no seu todo. Segundo
Durand, “a matéria primeira, ou seja a imagem, está contida no inconsciente do
qual emana o sentido” (DURAND, apud LAPLANTINE e TRINDADE, 1997).
Dessa forma, no símbolo há uma unificação do consciente com o inconsciente,
daquilo que está sendo interpretado com o que não está.
Laplantine afirma que para os autores de tradição neoplatônica o símbolo,
devido ao seu caráter sincrético, “fala por si mesmo e conduz os homens à
reminiscência de um sentido primordial que é constitutivo da imagem simbólica.”
(LAPLANTINE e TRINDADE, 1997, p. 6). Apesar de o símbolo conduzir a essas
lembranças do passado, o homem não necessariamente percebe esse retorno.
Segundo Ricoeur, citado por Laplantine (Ibidem, p. 4), existem nos símbolos “os
mesmos sentidos que os homens irão redescobrir”. Sendo o Imaginário um
depositário de significados, o autor conclui que “toda e qualquer imagem, ao
mesmo tempo produto e produtora do imaginário, passa a ter o caráter de
sagrado, devido à sua universalidade e à sua emergência do inconsciente”.
(Ibid.)
Para finalizar as exposições de tais conceituações, nas palavras de
Jung, “o símbolo é a melhor expressão possível para um conteúdo inconsciente
apenas pressentido, mas ainda desconhecido”. (JUNG, 1976, p.18). Ele é a
unidade que constitui a base da linguagem que faz o intermediário da
compreensão humana com o incompreensível.
22

3.3: Mito

O mito é uma fala. É uma narrativa, é um discurso, é uma mensagem.


Essa é uma das afirmativas mais amplas que nos deparamos ao iniciar a busca
pela sua compreensão. E já nesse começo somos alertados por vários autores
que a sua definição não seria fácil, apesar da frequência que o termo é utilizado.
Uma noção comum sobre ele está no fato deste surgir de uma imaginação
mitopoética, em que Randazzo explica que os mitos “surgem da experiência
humana intuitiva do mundo”. (RANDAZZO, 1996, p. 55). De forma parecida,
Rocha diz que o mito é uma “forma de as sociedades espelharem suas
contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações [...] uma
possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de "estar
no mundo" ou as relações sociais. (ROCHA, 1996, p. 4).

Ainda que o mito fale sobre as origens da humanidade e das


necessidades mais primitivas, buscar a sua origem não parece ser um caminho
razoável, afinal “a origem de uma coisa não garante a explicação do seu estado
atual”, (Ibid.). Como foi dito antes, o mito é uma fala. Porém, não é uma fala
simples. Não devemos limitá-lo as estruturas da nossa compreensão linguística.
Portanto, localizar suas origens parece uma tarefa improvável. Assim como o
conteúdo que vaga pelo imaginário, o mito está, efetivamente, ligado à
possibilidade de ser interpretado. Tal como os símbolos, ele é uma forma de
expressão do inconsciente. E mais, é através dos símbolos que o mito se
comunica. É uma “manifestação em imagens simbólicas, metafóricas das nossas
energias internas”. (O poder do Mito, 1988, cap. 2)

O mito carrega consigo uma “mensagem cifrada, que não está dita
diretamente” (ROCHA, 1996, p. 4). O autor diz ainda que o mito esconde alguma
coisa. Pode não ser o seu intuito, mas de fato, ele nunca se mostra por inteiro.
Seu discurso é em níveis e a sua leitura vai variar de acordo com as
necessidades para a sua compreensão. O mito “será, em larga medida, aquilo
que a interpretação quiser que ele seja”, apresentando “sua face como refletida
no espelho de cada interpretação”. (Ibidem, p. 20). Complementando a isso,
Campbell diz que uma boa leitura de mito se dá de forma conotativa. Dessa
23

forma é possível alcançar ou aproximar-se do nível de referência em que está o


mito, onde as “metáforas se referem a coisas absolutamente transcendentais”.
(O poder do Mito, 1988, cap. 2). Um contraponto a isso e, também, uma
percepção comum que se tem do mito, é a sua associação com eventos que
nunca ocorreram, com algo inventado. Longe de perceber o mito como uma
mentira, mas a tentativa de julgar a sua veracidade, não parece novamente um
caminho razoável. Não existem mitos ou interpretações mais verdadeiros do que
outros. Todos são verdadeiros em sentidos diferentes. Citando Rocha para
concluir esse raciocínio:

A eficácia do mito e não a verdade é que deve ser o critério para pensá-
lo. O mito pode ser efetivo e, portanto, verdadeiro como estímulo forte
para conduzir tanto o pensamento quanto o comportamento do ser
humano ao lidar com realidades existenciais importantes. (ROCHA,
1996, p. 5).

Resgatando a questão da pluralidade de significados simbólicos que


percorrem o imaginário; o mito, alimentado por quaisquer simbolismos, se deixa
eternamente interpretar e a cada vez que isso acontece, surge um novo mito,
uma nova leitura. Entretanto, sua essência, aquilo que o fez se expressar,
permanece. É o que Rocha julga ser uma das características mais sedutoras do
mito, o fato dessas leituras e releituras se agregarem a ele “como novas formas
de o mito expor suas mensagens” e, portanto, “as interpretações não esgotam o
mito”. (ROCHA, 1996, p. 21)
Ainda falando sobre as interpretações, mas agora sobre o termo mito,
Rocha faz uma breve citação da ideia que ficou conhecida pelo nome de
animismo, em que “todos os elementos da natureza poderiam ser
personificados. Toda a natureza era susceptível de adquirir [...] um sentido de
animação e personificação”. (TYLOR, apud ROCHA, 1996, p. 14). Para o
exercício que proponho neste trabalho, levarei em conta uma reflexão sobre o
conceito apresentado. Ao mesmo tempo que a criação mítica se presta aos
desejos do entendimento dos fenômenos naturais, existe também a
interpretação ativa em que o homem se projeta nos elementos que o cercam. É
a “experiência humana de representar seu próprio espírito, de supor sua alma”,
24

o que “permitiria pensar nesta mesma possibilidade para o resto do universo”.


(Ibid.). Possivelmente, aqui nos encontramos com a leitura conotativa que
Campbell se refere ao que já foi citado anteriormente. Quando o homem
personifica o seu objeto de observação, este ganha vida no mundo das
representações; podendo, dessa maneira, alcançar o misterioso, aquilo que
transcende os nossos pensamentos. Afinal, como disse Campbell, “os mitos são
pistas para as potencialidades espirituais da vida humana”, que ajudam o homem
a se encontrar dentro de si mesmo. Para ele, o que buscamos na verdade não é
um sentido para a vida, mas sim a experiência de nos sentirmos vivos, de tal
forma que “nossas experiências de vida, num nível físico, tenham ressonâncias
internas no mais profundo do nosso ser e da nossa realidade”. (O poder do Mito,
1988, cap. 2).
Refletindo um pouco mais sobre essas últimas afirmações, julgo como
pertinente um resumo dos níveis e das funções que os mitos atuam, de acordo
com Campbell. Num primeiro momento, o mitólogo explica que a função básica
do mito é abrir o mundo para a dimensão do incompreensível, percebendo a
maravilha que é universo, que é o homem e todo o mistério do que transcende
a nossa compreensão.
A segunda função ele chama de Cosmológica. O intuito nesse nível é ver
o mistério tal como se manifesta através de todas as coisas, de modo que o
universo do imaginário se torna uma espécie de imagem sagrada, a qual
atribuímos o mistério transcendental, em que os mitos “ajudam-nos a entender
o universo e o lugar que ocupamos nele”. (CAMPBEL, apud RANDAZZO, 1996,
p. 59).
Já num terceiro nível, o autor apresenta a função sociológica, que valida
e conserva uma certa sociedade ou sua ordem social. Campbell destaca que
esse é o lado do mito que passou a predominar no nosso mundo, podendo os
mitos variarem de acordo com a cultura ou o grupo social, justificando suas
próprias convenções.
Por último, ele encerra com a função pedagógica, alegando que o mito
pode ensinar “como viver a vida humana sob quaisquer circunstâncias” (O poder
do Mito, 1988, cap. 2). Campbell ilustra o que ele quis dizer sobre esta última
função com a história de Brahma-Vaivarta Purana, de um texto religoso Hindu,
25

datado do século 10 d.C. Resumidamente, ele interpreta da história que o


homem pode representar, em vida, a eternidade, na forma simbólica da verdade
final e do que há de mais transcendental, Deus. O autor finaliza, dizendo ser a
favor de obter o máximo possível dessa experiência enquanto estamos vivos. O
aqui e o agora é o lugar e o momento para ter essas experiências, podendo
assim chegar a sentir realmente o êxtase de estarmos vivos.
Antes de prosseguir ao próximo tópico e para concluir este, vou recuperar
a ideia de universalidade dos mitos e dos componentes do imaginário, em que o
mito de um representa o mito de vários. Essa enigmática onipresença do mito e
daquilo que compõe o imaginário é uma das qualidades que mais fascinam o
homem. Jung diz que os mitos são “fenômenos psíquicos que revelam a
natureza da alma”. (JUNG, apud RANDAZZO, 1996, p. 63). Na compreensão de
Randazzo, os mitos são “padrões arquetípicos da experiência humana que
existem desde o começo dos tempos e atravessam todas as culturas [...] A
aparente simplicidade disfarça sua profundidade”. (Ibid.).
26

3.4 Arquétipo

“A pisque humana é essencialmente a mesma no mundo inteiro” (O poder


do Mito, 1988, cap. 4). Usarei essa noção comum que trata do arquétipo como
ponto de partida. Jung atribui à natureza arquetípica fenômenos que dependem
da “existência de uma imagem primordial autônoma, universalmente dada de
modo pré-consciente na disposição da psique humana. (JUNG, 1976, p.210)”.
Dito de outra forma, os arquétipos são um conjunto daquilo que forma a nossa
psique, da psique de todos. Campbell justifica que essa essência compartilhada
é devida ao aspecto similar dos corpos humanos, que possuem “os mesmos
órgãos, instintos, impulsos, conflitos e temores.” (O poder do Mito, 1988, cap. 4).
Acerca dessa universalidade, Jung também dá o nome de tema ou motivo
às repetições dessas imagens e situações primordiais. Elementos estes que
navegam pelo inconsciente coletivo, que por sua vez não é fruto de um processo
individual, mas sim de uma herança de gerações anteriores. Para ele:

O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o


qual se modifica através de sua conscientização e percepção,
assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual
na qual se manifesta (JUNG, 1976, p.17). (Grifo meu)

Explorando um pouco mais o termo, os arquétipos são a fonte das


experiências do imaginário. Através de seus simbolismos, o homem interpreta
mensagens do inconsciente coletivo, em que todos possuímos da experiência
coletiva da humanidade. Ressaltando, porém, que o que chega a consciência
humana é uma modificação daquilo que seria o arquétipo, ou seja, uma forma
arquetípica, que “a consciência humana consegue apreender através de
projeção - isto é, espelhadas nos fenômenos da natureza”. (JUNG, 1976, p.18)
Apresentadas algumas de suas definições, pretendo destacar e discorrer
sobre três aspectos do arquétipo. São eles: os padrões recorrentes, o caminho
percorrido do inconsciente para o consciente e, por último, as suas ramificações
simbólicas.
Para reforçar a ideia da existência das repetições de determinadas formas
na psique no tempo e no espaço, buscarei como exemplo uma passagem que
27

Jung analisa o motivo da dupla descendência ou do “segundo renascimento”,


nas palavras do autor. Ele comenta uma discussão de Freud, acerca do quadro
A Virgem e o Menino com Santa Ana, de Leonardo Da Vinci. Sem adentrar na
discussão, Jung questiona a explicação de Freud sobre a origem do quadro a
partir do fato de da Vinci ter tido duas mães. O psiquiatra chama atenção que
nesse episódio, “se entretece a um motivo aparentemente pessoal um motivo
impessoal bem conhecido em outros campos”, no caso o arquétipo em questão.
Para ele, esta é uma ideia-base de todos os mistérios do renascimento, inclusive
do Cristianismo. “O próprio Cristo nasceu duas vezes: através de seu batismo
no Jordão ele renasceu pela água e pelo espírito.” (JUNG, 1976, p.55).
Somando mais exemplos, Jung menciona o mito grego de Héracles, que
alcança a imortalidade ao ser adotado por Hera, e o compara com o ritual egípcio
do Faraó, entendendo este como um ser humano e divino. “Nas paredes da
câmara de nascimento dos templos egípcios vê-se representada a segunda
concepção e nascimento divinos do Faraó - ele "nasceu duas vezes”. (Ibid.)
Em resumo, Jung diz que esse tema é muito recorrente. Seja nos
primórdios da medicina como um meio mágico de cura, seja na experiência
mística de várias religiões ou na fantasia infantil de ter sido adotado.
Seguindo ao próximo aspecto, apresentarei noções que diferenciam e, ao
mesmo tempo, ajudam a definir a ideia de consciente e o inconsciente. Para isso,
retomo rapidamente o capítulo sobre símbolo, no qual Laplantine afirma que o
Imaginário possui um caráter afetivo, em que o homem busca sentidos e
compreensões, cujas explicações remetem a estruturas do inconsciente.
(LAPLANTINE e TRINDADE, 1997, p. 28). Nas palavras de Jung:

Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os


complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade
pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por
outro lado, são chamados arquétipos. (JUNG, 1976, p.16)

Portanto, o conceito de "archetypus" só se aplica às representações


coletivas, pois são componentes autênticos do nosso mundo interior que ainda
não foi visitado por alguém com intenção de interpretá-lo. Em síntese, os
arquétipos são o que são, independente do que é elaborado pela nossa mente.
28

Enquanto o inconsciente pessoal é composto por experiências pessoais


contextualizadas, que começam e terminam no individual, o inconsciente coletivo
reúne infinitas experiências que, no fundo, não pertencem a ninguém, mas sim
a humanidade. Entendo essa diferença entre o inconsciente pessoal e o coletivo
como ponto chave para compreender da universalização do arquétipo.
Importante para sua compreensão e não necessariamente a sua definição, já
que está além da nossa capacidade intelectual, em termos linguísticos.
Finalmente, a última característica sobre o arquétipo que me proponho a
dissertar é de extrema importância para o produto realizado neste trabalho.
Dando continuidade as diferenças entre as esferas pessoal e coletiva, também
podemos distinguir o arquétipo de suas variações simbólicas.
De acordo com Jung, “a humanidade sempre teve em abundância
imagens poderosas que a protegiam magicamente contra as coisas abissais da
alma, assustadoramente vivas”. Tais imagens tinham um valor de proteção e de
cura em relação aos “perigos do inconsciente”.

Até parece que essas imagens simplesmente surgiam e eram aceitas


sem questionamento, sem reflexão, tal como as pessoas enfeitam as
árvores de Na- tal e escondem ovos de Páscoa, sem saberem o que
tais costumes signifi- cam. (JUNG, 1976, p. 23)

Jung explica que as imagens arquetípicas são tão profundas,


simbolicamente, que não conseguiríamos chegar ao seu sentido real ou original,
questionado apenas até onde a nossa compreensão alcança. “Por isso os
deuses morrem, porque de repente descobrimos que eles nada significam, que
foram feitos pela mão do homem, de madeira ou pedra, puras inutilidades”. (Ibid.)
Entretanto, para o psiquiatra, essa é apenas uma leitura míope do homem,
que ao recorrer a “razão”, se distancia da esfera do imaginário. Da mesma
maneira que Randazzo se expressa:

O mundo moderno foi desmitologizado e desencantado pela ciência e


pela tecnologia. Já não temos ouvidos para a canção mágica do
universo. Já não nos sentimos ligados à natureza, às montanhas, aos
rios, às árvores. (RANDAZZO, 1996, p. 60)
29

Voltando a discussão, conseguimos então diferenciar o arquétipo de seus


desmembramentos, em que imagens, sensações, símbolos arquetípicos são
manifestações do arquétipo. Contudo, é a manifestação de uma parte e jamais
de seu todo, na sua essência mais pura, que como vimos, transcende as nossas
simbologias. Comparo a isso o que Jung chama de arquétipos de transformação.

Estes não são personalidades, mas sim situações típicas, lugares,


meios, caminhos, etc, simbolizando cada qual um tipo de
transformação [...] símbolos verdadeiros e genuínos [...] na medida em
que eles são ambíguos, cheios de pressentimentos e, em última
análise, inesgotáveis. (JUNG, 1976, p.47)
30

Capítulo 4: Simbolismos

A proposta deste capítulo é explorar os mais variados significados de dez


símbolos que foram separados para este trabalho. Para um trabalho completo,
como aponta Jung:

[...] é necessário conhecer o significado funcional de um símbolo


individual. Depois descobriremos se o símbolo mitológico dado como
paralelo pertence à mesma circunstância e se tem o mesmo significado
funcional. Estabelecer tais fatos não é apenas uma questão de
pesquisa laboriosa, mas também um objeto ingrato de demonstração.
(JUNG, 1976, p.60)

Entretanto, um estudo aprofundado não viável neste trabalho. Por isso o


intuito é iniciar uma exploração mais superficial sobre os simbolismos, em cima
de outros trabalhos, estes sim laboriosos e profundos. Portanto, duas fontes são
importantes para material apresentado aqui; os dicionários de símbolos, um do
francês filósofo e teólogo Jean Chevalier (1969) e o outro do espanhol mitólogo
Juan Eduardo Cirlot (1958).

1. Corvo

O fato do corvo e da gralha serem da mesma família, mas de espécies


diferentes, é bem interessante ao tema deste trabalho. Há uma dificuldade em
diferenciá-los. Essas aves são muito parecidas. Para os olhos leigos são os
mesmos pássaros. De forma similar acontece com as várias leituras de alguns
mitos, sejam elas histórias, ideias transmitidas através de contos, fábulas,
lendas, músicas, pinturas, filmes, esculturas, e por aí vai. Em resumo, todas
essas interpretações têm uma mesma essência, mas com diferenças
contextuais.
A personagem em Yatagarazul, título do produto; seria, portanto, ao
mesmo tempo corvo e gralha. A necessidade de diferenciá-las está na relação
31

fábula-mito a qual cada espécie pertence. Portanto, para a busca de seus


significados simbólicos, vamos considerar apenas o corvo.
Para nós do ocidente, há uma forte associação do corvo com o mau
agouro, a morte, devida a “cor deste pássaro, seu grito fúnebre e o fato de que
se alimenta de animais mortos” (CHEVALIER, 1969, p. 390, tradução minha).
Entretanto, a cor preta também é associada com a “ideia de começo, tal como
expresso nos símbolos da noite materna, trevas”, característica que também é
atribuída pelos primitivos no termo “nigredo, que é tanto associado ao estado
inicial da matéria como a condição produzida pela separação dos Elementos,
putrefactio.” (CIRLOT, 1958, p 71, tradução minha). A ideia do princípio, do início
ou da origem também é percebida em muitas culturas primitivas, que associam
ao corvo o significado de “distante alcance cósmico”. “De fato, para os Red
Indians norte-americanos, ele é o grande civilizador e criador do mundo visível,
significado parecido em tribos celtas, germânicas e siberianas”. (CIRLOT, 1958,
p 71, tradução minha). Na mitologia escandinava, dois corvos estão à altura da
cabeça no trono de deus Odin, enquanto dois lobos estão sentados ao lado.
Hugin, representando o espírito e Munnin, a memória. Eles representam “o início
da criação, enquanto os lobos a destruição” (CHEVALIER, 1969, p. 391,
tradução minha). Significados estes também encontrados, com outras
associações simbólicas, na mitologia hindu e japonesa. Nesta, temos Amaterasu
e Tsukuyomi, como de deuses da criação do mundo, em que a primeira
representa o Sol, o grande espírito que ilumina os céus, enquanto o segundo
representa a Lua, o passado e a memória.
Ainda na questão da criação, nas definições segundo Cirlot, a associação
com a atmosfera e com o voo, considera o corvo “como mensageiro, símbolo de
criatividade, poder demiúrgico e força espiritual.” O corvo é o profeta, que faz o
intermédio do mundo inferior com o superior. E de acordo com a simbologia
cristã, o corvo, como as aves que voam, assume “a alegoria de solidão”,
significando o “isolamento de que vive no plano superior” (BEAUMONT, apud
CIRLOT, 1958, p. 71, tradução minha), que segundo Chevalier, seria “igualmente
um atributo da esperança, ao repetir sempre o corvo, nas palavras de Suetonio,
‘cràs, cràs, cràs’, que em latim significa ‘amanhã, amanhã, amanhã’.
(CHEVALIER, 1969, p. 391, tradução minha). O autor também explica que,
32

apesar de não existir essas implicações nas culturas clássicas, ainda resta
nestas um caráter místico do corvo, “a habilidade de prever o futuro”, justificando
a “utilização da sonoridade de seu pio em ritos de adivinhação”. Essa definição
foi muito esclarecedora na cena em que o corvo tem as visões durante a fuga.
Lembro de tentar trabalhar a lembrança, evitando uma sensação nostálgica,
propondo um sentimento de esperança. E só agora compreendi esse flashback
como uma visão do futuro.
Concluindo as noções simbólicas do protagonista, há um contraste entre
o simbolismo ocidental e o oriental. Ainda num plano divino, mas diferentemente
da associação à morte, na China e no Japão, o corvo é símbolo de “gratidão filial,
pelo fato de também alimentar os pais [...] considerada um prodigioso
restabelecimento da ordem social”. A música Nanatsu no Ko, ensinada nas
escolas primárias, fala sobre desse amor familiar da mãe-corvo com os seus sete
filhotes. “O mensageiro divino” na cultura japonesa representa, portanto, “o bom
presságio, o anunciador dos triunfos e signo de virtude”, como interpretado pelos
“Tchen”. (CHEVALIER, 1969, p. 390, tradução minha). Como já foi dito no
capítulo anterior, as mitologias japonesa e chinesa associam este pássaro com
o Sol, simbolizado pela figura do corvo com três patas, “segundo pedras
esculpidas do tempo dos Han”, sendo elas uma “correspondência à alvorada, ao
zênite e ao pôr do sol”, (Ibidem, tradução minha)

2. Árvore

Das suas infindáveis e complexas simbologias, chamarei a atenção, em


três momentos, para algumas leituras desse símbolo universal. Primeiramente,
há um significado muito geral, em que a árvore “denota a vida do cosmos, sua
consistência, crescimento, proliferação, processos generativos e
degenerativos[...] E representa a vida inesgotável, equivalendo ao símbolo de
imortalidade.” (CIRLOT, 1958, p. 347, tradução minha). Por sua vez, esse
conceito de vida sem morte, representa a árvore como “a realidade absoluta, do
centro do mundo.” (ELIADE apud CIRLOT, ibid., tradução minha). Ela simboliza
a vida, o presente, o agora, a realidade, a origem do universo.
33

Já numa outra perspectiva, temos a simbologia do ciclo da vida. Conforme


escrito no dicionário de Chevalier, as árvores de folhas caducas, as quais caem
numa época do ano e voltam a nascer em outra, “simbolizam a natureza cíclica
da evolução cósmica, morte e regeneração”. (CHEVALIER, 1969, p. 118,
tradução minha). Apesar da Araucária ser, pelo contrário, uma árvore de folha
perene, tal interpretação simbólica neste trabalho considera o ato de
desmatamento ou às atividades em direção a este e o ato de reflorestamento,
fechando o ciclo.

Em terceiro lugar e agora sim mais diretamente com a Araucária, a


simbologia da longevidade e da imortalidade é marcante em culturas orientais.
Na chinesa, são frequentes as pinturas daquelas que são conhecidas como “as
três amigas”, sendo elas o bambú, a cerejeira e o pinheiro. O agrupamento
destas e tal simbolismo se deve à característica já exemplificada das folhas, o
que deixam essas árvores verde o ano inteiro. (Ibidem, tradução minha)

3. O Número Três

Não tinha como não tratar do simbolismo do número 3. É a terceira pata,


são três árvores, são três atos. Enfim, podemos achar essa contagem na
composição, no processo e na leitura de todo o trabalho. Começando e
resgatando o que já foi dito sobre a terceira pata, ela representa, segundo
mitologias do oriente, as três fases do ciclo solar. E dessa forma, também são
representados, como na estrutura dos atos, o início, o meio e o fim. Assim como
os conceitos de presente, passado e futuro, analisados na questão do flashback-
premonitório.

Perto do final do último ato, três ações são sequenciadas. A primeira pata
cavando um buraco. A segunda enterrando a semente. E uma terceira esconde
o feito com três folhas. Assim como a origem difusa da terceira pata, a percepção
dessa última pata na terceira ação seria uma leitura nas entrelinhas, com a
sutiliza conotativa do mito. Rapidamente sobre o buraco, a este vale uma pausa
para reflexão. No processo criativo, o intuito do enquadramento era evidenciar a
34

subtração da terra, uma perda. E se a isso continuamos o raciocínio de que para


toda perda há um ganho, uma recompensa; há, então, um sacrifício do solo,
daquilo que concebe a vida, da mãe-terra. O buraco é então símbolo de
fertilidade, que segundo Chevalier, este num plano biológico e de
espiritualização, num plano psicológico. (CHEVALIER, 1969, p. 65, tradução
minha)

Sem aprofundar muito, parece forte também a simbologia da trindade,


num sentido mais amplo, como definido no dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa: “conjunto de três entidades, seres, objetos etc. de igual natureza”;
em que deriva do latim, significando ‘reunião de três’. E desse sentido mais
amplo, interpretamos a santíssima trindade, na simbologia Cristã, em que “o Pai,
o Filho e o Espírito Santo, representam respectivamente, o poder, a inteligência
e o amor.” (Ibidem, p.1025, tradução minha). De forma similar, a tríade céu-terra-
homem também é evidente na interpretação do mensageiro transcendendo os
mundos.

Numa outra definição que Chevalier nos apresenta, “a Cabala diz que tudo
procede de três, que por sua vez, não são mais do que um”. E essa unidade
tripla consiste no “princípio atuante (sujeito), ação desse sujeito e o objeto (efeito
ou resultado)”. (Ibidem, tradução minha). Em síntese, esse é a questão da
inseparabilidade, em que os elementos se necessitam reciprocamente, como
exemplificado por Wirt, “A criação e implica um criador, um ato de criar e a
criatura [...] sendo o primeiro ativo, o segundo é intermediário, e o terceiro
passivo” (WIRT apud CHEVALIER, Ibidem, tradução minha).
Complementando a simbologia anterior, o triângulo é uma representação
geométrica desse ternário. E segundo o dicionário de Cirlot:

na sua posição normal com seu vértice para cima ele representa [...] a
aspiração de todas as coisas em direção a unidade superior – o desejo
de escapar da extensão (significado pela base) para uma não-extensão
(vértice) ou em direção ao ponto original ou irradiador. (CIRLOT, 1958,
p. 350, tradução minha)

Na animação essa definição se refere ao penúltimo quadro.


Curiosamente, neste frame do stotyboard o triângulo formando está de cabeça
35

ou ponta para baixo, mas na execução final ele está voltado para cima, valendo
a discussão do parágrafo anterior.
Por fim, gostaria de compartilhar uma última interpretação que conecta e
que possa esclarecer um pouco mais a relação da abordagem teórica com o
produto final. Todas as simbologias do três ligado a fábula da Gralha-azul e
dessa animação como processo e produto, está inserido de alguma forma na
terceira pata do mito de Yatagarasu.

4. Apocalipse

O ato cruel da derrubada das árvores é visto com repúdio por muitos.
Talvez não a ação em si, mas o que ela representa. Um mito vivo na atualidade
é do apocalipse. Entenda este na sua leitura como fim do mundo, que estará
marcado por “fenômenos espantosos, gigantescos, maremotos, deslizamentos
de montanhas, rachaduras abismais da terra, o céu em chamas num estrondo
indescritível”. (CHEVALIER, 1969, p. 110, tradução minha). Nas palavras de
Campbell: “O homem não tece a teia da vida. Ele é apenas um fio dela. O que
fizer à teia, fará a si mesmo. [...] Ao destruir a natureza, o homem estará
destruindo a sua própria natureza”. (O poder do Mito, 1988, cap. 4).
No primeiro ato temos a floresta engolindo o espectador na câmera
subjetiva. Essa é uma visão apocalíptica. Entretanto, no segundo ato, quando a
personagem é iniciada, também existe a visão apocalíptica, mas na
interpretação de revelação, no sentido etimológico da palavra de origem grega,
significando o ato de descobrir. No Cristianismo e no Judaísmo, é a revelação
divina feita a um profeta escolhido por Deus. Porém, “estas visões não têm valor
por elas mesmas, mas sim pelos simbolismos que carregam”. No caso das três
cenas que refletem no olho gralha, estas fazem parte da revelação percebida e
interpretada pela personagem. Ou seja, não é desenhado ao espectador as
figuras recebidas por ela.

5. Olho e Sol
36

A essência da questão envolvida aqui está contida na palavra de Plotinus:


“que o olho não iria ser capaz de ver o Sol, se, de uma maneira, não fosse o
próprio Sol. (PLOTINUS, apud CIRLOT, 1958, p. 99). Apesar de não ter o
desenho do símbolo do Olho da Providência, representado pelo desenho do olho
dentro de um triângulo; este tem uma ligação simbólica com o olho que tudo vê,
o olho divino, “que também se figura pelo sol: é o olho do mundo, correspondente
a Agni (divindade Hindu), e também a Buda.” E somando aos significados de
buraco, tratado no início das simbologias do número três, o olho “é também o
buraco no topo da cúpula, porta do sol que é a vista divina abraçando o cosmos,
mas também a passagem obrigatória para sair dele.” (CHEVALIER, 1969, p. 772,
tradução minha)
Ainda relacionando o olho ao sol, na mitologia japonesa a deusa do sol
Amaterasu nasce do olho esquerdo de Izanagi, outra divindade da criação do
mundo. Enquanto do direito nasce Tsukuyomi, o deus da lua. Este, como já dito
no começo desse capítulo, representa a memória. E é justamente através do
olho direito que se dão as lembranças da gralha. Já a transformação no sol,
representaria também a transformação no olho que representa a deusa que traz
a luz e a esperança aos mistérios obscuros das profundezas da lua, no buraco
da pupila. Mais uma vez o buraco na sua representação de portal entre os
mundos.
“O olho do coração é o homem vendo a Deus, mas também Deus vendo
o homem. É o instrumento da unificação de Deus e a alma, do princípio e da
manifestação”. (CHEVALIER, 1969, p. 771, tradução minha). Esta passagem
reforça a simbologia do profeta. A gralha, ao olhar pra dentro, entra em contato
com o Divino é o manifesta. E na fusão com o sol, ela já é a Gralha-azul, o
Yatagarasu, o guardião. Nessa cena, o brilho do sol se intensificando, além de
evidenciar a transformação, “simboliza o princípio heroico, brilhando no seu
máximo.” (CIRLOT, 1958, p. 317, tradução minha).
Continuando nas definições colocadas por Cirlot e reforçando a
simbologia divina do sol e o mito japonês da origem do sol e da lua, Eliade
observa que “para os os Pigmies e Bushman, o sol é o olho do deus supremo.
Já os Samoyeds viam o sol e a lua como olhos do céu, sendo o primeiro o olho
bom e o segundo, o olho mau”. (Ibidem, tradução e grifo meus).
37

Por último, há também a ideia de invencibilidade do sol. Resumindo


definições dos dois dicionários, há uma crença de que o sol é imortal, enquanto
a lua sofre fragmentações, devido as suas fases, “antes de atingir o seu estágio
mensal de três dias de desaparecimento”. O sol, por sua vez, não precisa “morrer
para descer ao inferno; ele pode atravessar o oceano sem ser dissolvido”
(Ibidem, tradução minha). Assim, o desaparecimento do sol não é considerado
uma morte verdadeira. Ele é levado pela sua mãe deusa Xi He para um passeio
numa carruagem de ouro, retornando à noite com medo de Hou Yi, o arqueiro,
cuja história é contada na China. História do mito da origem do sol, que segundo
Kawagoe, tem influências na origem do mito japonês, como foi explicado no
capítulo anterior. Acerca disso, no final da animação o sol nascente japonês
simboliza o recomeço, o passeio do novo dia, a imortalidade do sol e da história.

6. Semente

Símbolo da esperança contra toda a destruição causada a natureza, ao


mundo. É a “latência, as forças não manifestadas ou as misteriosas
potencialidades [...] Potencialidades que também simbolizam o centro místico –
o ponto não-aparente que é a origem irradiadora de cada ramo e broto da grande
Árvore do Mundo.” (CIRLOT, 1958, p. 282, tradução minha). Sendo assim, a
semente representa o poder de cura em potência. A cura contra o fim do mundo,
a cura interior, que emana de dentro para fora. Resumindo numa frase, o
potencial da semente se compara ao potencial da gralha. Na busca da luta
interior contra os seus medos, ela recebe uma ajuda divina, mas no fim é quem
ela derrota o próprio medo e, dessa forma, retorna transformada e transformando
o seu mundo comum.

7. Pena – penugem e pena voando (sacrifício)

A busca das simbologias da pena tem o intuito de reforçar o caráter divino


na transformação da personagem. Portanto, um primeiro significado refere-se
aos “rituais xamânicos de ascensão celeste, em que as penas representam
38

clarividência e adivinhação”, associadas também a fertilidade, no sentido


ascensional, que “as penas e as orações sobem aos céu, seguido pela
abundante chuva fertilizante”. (CHEVALIER, 1969, p. 844, tradução minha)

É também o símbolo de poder, “que adornam as coroas de reis e príncipes


[...] reservada aos seres predestinados [...] o rito da coroação está relacionado
aos ritos de identificação com Deus e a delegação de um poder celeste”, ou seja,
significa uma “suprema autoridade de origem celeste [...] que implica um dever
de justiça”. Justiça que para os egípcios estava simbolizada na leveza de uma
pena, suficiente para romper o equilíbrio dos pratos da balança. (Ibidem). Sendo
assim, a plumagem azulada é o manto divino que veste a gralha com uma grande
responsabilidade. Ela se torna uma guardiã, a quem foi confiada a missão de
proteger a floresta das Araucárias.
Há ainda a interpretação de que a pena é o símbolo do sacrifício.“[...]
galinhas e frangos eram sacrificados aos deuses e somente as penas restavam
expostas ao redor do altar. Elas testemunhavam que o rito tinha sido comprido
perfeitamente.” (Ibidem).
Mais um fato curioso no storyboard. Na primeira versão, a cena da
transformação era sugerida por uma única pena azul flutuando a frente do sol,
simbolizando a morte da gralha. Entretanto, não parecia claro o seu segundo
nascimento. Devido a isso, a correção feita evidenciava a sua metamorfose, na
coloração gradativa das penas. De qualquer modo, a representação do sacrifício
se dá pela renovação das penas. Simbolicamente, a gralha precisou morrer, para
nascer a Gralha-azul.

8. Sacrifício

Começando onde terminou o último tópico, as asas abertas da Gralha-


azul ao sol fazem alusão a Fênix, símbolo de imortalidade e de renascimento,
comumente representada nessa posição frontal, com as asas abertas, formando
também a cruz da ressurreição. Esta representa “a vitória sobre a morte”,
diferentemente dos “sofrimentos e da morte de Cristo, representada pela cruz da
paixão.” (CHEVALIER, 1969, p. 363, tradução minha). A vitória é a percepção do
39

sacrifício como ganho e quando ela é “personificada como uma figura alada, a
alusão feita é em relação ao seu valor espiritual”. (CIRLOT, 1958, p. 360,
tradução minha).
Há uma particularidade interessante no pensamento hebraico sobre o
sacrifício, que fiz que “a vida deve ser constantemente preferida à morte”, já que
esta como sacrifício da existência, ou seja martírio, “não tem valor na medida em
que se trata se sacrificara vida mortal para testemunhar uma vida superior na
unidade divina”. (CHEVALIER, 1969, p. 904, tradução minha). Aponto esse
pensamento à morte da Araucária, da devastação de sua floresta. Ela não deve
ser considerada como sacrifício no contexto da trama, pois a sua queda
simboliza a sua morte, o seu fim, a sua extinção junto com o todo que está a sua
volta. O todo aqui pode ser entendido como a unidade, ainda segundo o
pensamento hebraico.

O sacrifício nunca é mutilação da natureza, porque há uma unidade


entre o corpo e a alma, eles se combinam e se ajudam mutualmente
em seus lugares respectivos. Esta união é tão intensa e íntima, em que
a alma [...] possui um suporte material no sangue.” (CHEVALIER, 1969,
p. 904, tradução minha).

Em sua simbologia, o sacrifício envolve, então, o conceito de trindade em


relação a inseparabilidade. Dito de outra forma, ele deve ser compreendido como
a perda e o ganho ao mesmo tempo, como o renascimento da gralha e também
a fertilidade do buraco (ver no item 3).

9. Céu

A morada dos deuses, o Olimpo. O lugar sagrado onde “nenhum ser vivo
da terra pode alcançar”. Sendo assim, para se chegar lá é preciso que haja
manifestação da transcendência, ao mesmo tempo que esta “se revela na sua
inacessibilidade, na sua infinidade, na sua eternidade e força criadora do céu.”
(CHEVALIER, 1969, p. 281, tradução minha), Como a maioria das aves, a gralha
voa pelo céu, mas só conseguirá chegar a esfera celeste quando deixar o seu
40

mundo. No segundo ato, o céu simboliza a infindável fuga e também o nível


sagrado atingido pelo pássaro, reafirmando a identidade divina daquele que faz
o intermédio dos mundos.

10. Nuvem

Novamente a simbologia do portal, “divisória que separa graus cósmicos”.


Nos enquadramentos em que ela prevalece, mesmo em segundo plano, a nuvem
simboliza a passagem. No nível superior a camada de nuvem é o chão do céu.
No inferior ou médio, ela é o teto.

Na tradição chinesa, a nuvem indica a “transformação que o sábio deve


sofrer para aniquilar o disco de jade, conforme os ensinamentos esotéricos”.
Transformação e sacrifício simbolizados pela “dissolução no éter, para que o
sábio conquiste a eternidade”. A nuvem é, portanto, símbolo de metamorfose,
“não no seu fim, mas no seu devir”. (CHEVALIER, 1969, p. 757, tradução minha).
Ela é representa a reviravolta da história, os momentos de mudança.

A nuvem também recebe uma reflexão estética. O 3D se aproxima mais


do mundo que observamos, em relação as cores, as formas, as tonalidades, a
luz e principalmente em relação a perspectiva. Recapitulando a cena da fuga no
segundo ato; a camada nebulosa, predominante, confere a característica realista
que foi proposta e reforça a contradição entre a esta e aquilo que a transcende.
A estética compreende uma representação fiel da nuvem, que por sua vez, se
dissolve nesse mundo acima da nossa compreensão, da realidade que
percebemos.

11. Azul

Segundo Chevalier, “o azul é a mais profunda das cores: nele, o olha


mergulha sem encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se até o infinito, como
diante de uma perpétua fuga da cor”. O azul, portanto, está na fuga do corvo no
infinito vazio de ar, na transparência que se perde no celeste ou na água dos
41

oceanos, revelando a sua “imaterialidade” na natureza. Ele também é a cor


mais fria e “a mais pura em seu valor absoluto, a exceção do total vazio do
branco neutro.” (CHEVALIER, 1969, p. 165, tradução minha).
Há uma definição poética do autor que descreve bem a linguagem
mitopoética na animação: “Os movimentos e os sons, assim como as formas,
desaparecem no azul, afogam-se nele e somem, como um pássaro no céu”. A
cor azul suaviza as formas, abrindo-as e desfazendo-as. Uma superfície que é
tingida já não é mais a mesma superfície. Assim como a gralha-azul deixa de
ser gralha. Nas entrelinhas, o azul representa a transformação divina do
pássaro, incompreensível assim como natureza imaterial. O imaterial que
“desmaterializa tudo aquilo que dele se impregna”. Chevalier ainda diz que o
azul sugere a separação do homem com os Deuses, do aqui com o além. O
azul simboliza a passagem entre os mundos, o portal que separa os atos da
narrativa de Yatagarazul. (Ibidem, p. 107)
Para os egípcios, o azul simboliza a verdade. As penas azuis dadas a
gralha simbolizam essa revelação feita a ave, que de acordo com a fábula é
uma forma de recompensa e status, em que ela seria reconhecida pelo ato
nobre. As penas azuladas representam, então, a transformação presenteada
pelo sol, pelo divino, por divindades num plano superior.
Podemos perceber as ligações do azul com o divino pela sua natureza,
pela interpretação poética do homem em relação a natureza. Um simbolismo
marcante de algumas doutrinas religiosas representa a cor da vestimenta azul
de Arcanjo Miguel como uma proteção, uma armadura que o veste para
combater o mal. Assim como a gralha recebe esse manto divino ao ser
encarregada da nova missão. Por fim, gostaria de compartilhar uma lenda
muito interessante sobre o caráter nobre e divino dessa cor. Na história da
humanidade, a cor azul era destinada a nobreza, por ser um pigmento difícil de
se obter. Essa era a cor do céu, admirado e inatingível pelos homens. Também
era a cor das águas dos oceanos, que desaparecia nas mãos que as
tentassem capturar. Portanto, somente divindades ou escolhidos por elas
poderiam manipular o azul.
Finalizando o capítulo, vale uma breve reflexão sobre as cores no seu
conjunto. Este representa a união do oriente com o ocidente. Começando pelo
42

o contraste da estética monocromática do Sumi-ê com as cores primarias


saturadas do Naif, há uma mistura num processo de comparação. Porém, ao
final, a mistura se dá como união, em que a complementação das histórias e
das estéticas são percebidas na junção das evidentes vermelhas rajadas do sol
nascente com o verde, o azul e o amarelo da nossa bandeira.

Capítulo 5: Conclusões

A questão central do trabalho voltou com frequência no decorrer de todo


o processo. E em vários momentos algumas conclusões precipitadas surgiram e
com convicção. Curioso como o conhecimento é uma constante metamorfose.
Isso parece óbvio, mas a cada definição, a cada significado, a cada releitura do
produto realizado, surgiam muitas outras tramas nas teias do conhecimento e
junto a elas, várias conexões interessantes. Foi um processo intenso e intrigante.
Lendo as anotações compiladas ao longo do trabalho, tive uma percepção mais
clara do processo como um todo e do desenvolvimento das interpretações.
Sobre o problema de pesquisa, um dos motivos que fazem as histórias
ultrapassarem as barreiras de tempo e espaço é a profunda relação que elas
têm com os anseios mais íntimos do ser humano. E, portanto, da humanidade.
Como interpreta Campbell, na ideia de que o corpo e a psique humana seriam
essencialmente os mesmos no mundo inteiro. Os padrões encontrados e as
formas recorrentes são as imagens autônomas, herdadas da psique da
humanidade, segundo Jung.
Como exemplo deste trabalho, temos as diversas divindades
representadas em várias culturas de forma similares, como a tribo dos Somoyeds
na Sibéria que compreendem o sol e a lua como os olhos do céu, enquanto a
mitologia japonesa associa esses astros a deuses que, por sua vez, são
associados aos olhos de outra divindade. Ainda sobre o Sol posso lembrar as
várias simbologias que o associam a deidades da origem do universo, do mundo.
Enfim, são discursos criados pelo homem para a humanidade, que para tratar de
dúvidas intrínsecas sobre a origem das coisas, criam seus deuses, suas crenças,
que são passados e aceitos por gerações posteriores e de todos os cantos.
43

A noção sobre o mito que engloba tudo isso é que a parte que não vemos
dele está no inconsciente, onde estão as infindáveis possibilidades e
potencialidades de interpretação. Ao termo potencial, faço referência a
simbologia da semente, que em estado latente tem a força criadora do universo
dentro de si. Dizendo de outro jeito e repetindo alguns autores, o mito fala pelas
entrelinhas. Na sua linguagem poética, o mito seria uma explicação do mundo
anterior a ciência. Dessa maneira, pode não ser de forma direta ou consciente,
mas a parte que compreendemos dele carrega consigo o que também não
compreendemos ou simplesmente o que não é objeto de interpretação. Entender
que os mitos, por mais simples que aparentem, estão carregados de
experiências, “vivências” da humanidade e do universo, modifica a nossa relação
com ele. E assim foi mudando a minha interação com o trabalho no seu
andamento.
De outra perspectiva, Held também fala de mito quando fala da narração
fantástica. Nas palavras dela, o fantástico aproxima do homem o seu mundo de
desejos: “libertar-se da gravidade, tornar-se invisível, mudar seu tamanho e –
resumindo tudo isso – transformar à sua vontade o universo”. Essa última frase
é incrível e importante para compreender a relação afetiva do homem com o
imaginário.
Voltando às conclusões precipitadas, uma diferença na postura em
relação ao problema de pesquisa fica nítida ao final desse trabalho. Não lembro
o momento que surgiu o objetivo de procurar a origem dos mitos. Pensando nele
como base de várias histórias e significados, justificaria tal inquietação. Porém,
esta não seria uma busca válida, porque não teria fim. Não há um significado ou
mito ou uma versão mais verdadeira do que outra. Todos são verdadeiros em
seus devidos níveis. A realização do produto e a reflexão de seus simbolismos
foram exercícios fundamentais que somaram a compreensão do caráter
interpretativo do mito e da linguagem que ele utiliza, os símbolos.
Por mais curioso, envolvente e revelador seja a busca de novas
interpretações dos símbolos, vale lembrar que estes são inesgotáveis. Portanto,
encontrar o ponto, a origem, o início que responderá todas as questões é um
caminho de chão com nuvens mutáveis. Não há, como dito anteriormente, uma
resposta universal. Há respostas para perguntas e elas não são imutáveis.
44

Portanto, não podemos ou não devemos tentar controlar os significados dos


símbolos, mas através deles, comunicar. O resto, eles fazem por si só.
Sobre esse pensamento, o exemplo mais concreto disso foi a realização
da animação. Mesmo não conhecendo até a pós-produção a maioria das
interpretações simbólicas feitas, todas elas fazem muito sentido e se conectam
de forma surpreendente. Reafirmando, os mitos e os símbolos falam por si.
Concluindo, recupero um trecho que está no quarto capítulo: “todas as
simbologias do três ligado a fábula da Gralha-azul e dessa animação como
processo e produto, está inserido de alguma forma na terceira pata do mito de
Yatagarasu”. Em outras palavras; diria que a narrativa, em sua superfície, se
aproxima da fábula da Gralha-azul, enquanto esta alimenta o mito de
Yatagarasu, um pássaro enviado do céu para guiar a humanidade a vitória.
Nas suas limitações, este projeto buscou uma reflexão sobre as diversas
interpretações que fazem do mito um discurso universal. Para futuros trabalhos
relacionados à animação e ao mito, considero muito válida uma passagem por
este estudo, visto que suas fontes são, no mínimo, instigadoras.

Por último, gostaria de fazer uma recomendação. É comum ver


profissionais colando o storyboard na parede, principalmente quando muitas
pessoas estão analisando. Já o freelancer pode não fazer esse uso com
frequência. Talvez por estar sozinho, pelo prazo curto ou até mesmo porque
imagina que para uma pessoa um papel grande, um monitor pode ser o
suficiente. Porém, nesse processo, não faço ideia de quantas vezes me voltei
para a parede e fiquei olhando, pensando, rabiscando. Foram muitas e assim
também as soluções e os insights. Pode até levar um tempo colar todos os
quadros, mas por outro lado, pode salvar muito mais até o fim do processo. É
uma vantagem ele já estar lá, sem você precisar abrir gavetas, pastas ou
arquivos digitais. De alguma forma, nos tornamos passivos e de outra, mais
ativos. Resumindo, o olhar é outro. Talvez essencial, principalmente quando não
temos ideia de quantas faces tem o nosso objeto de estudo.
45

Referências Bibliográficas

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A.D. 697, 2 vols. in 1 (London: Keagan and Co., 1896), vol. 2
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 5:
Antropos/homem. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da moeda, 1985.
CASCUDO, L. C. Lendas Brasileiras para Jovens. São Paulo: Global
Editora, 2006.
CHAMBERLAIN, B. H., trans. Kojiki; or, Records of Ancient Matters. Tokyo:
Transactions of the Asiatic Society of Japan, vol. 10, supplement, 1882.
CHEVALIER, Jean; Gheerbrant, Alan. Diccionario de los símbolos. Barcelona,
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CIRLOT, J. E. A Dictionary of Symbols, Translated by J. Sage (New
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GOLDENBERG, Mirian. A Arte de Pesquisar: Como fazer pesquisa qualitativa
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JUNG, C.G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. O.C. Vol. IX/1.
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LAPLANTINE. François, TRINDADE, Liana S. O que é imaginário? 1ª
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46

Bibliografias consultadas

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BAUER, Martin W. e GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa como texto,
imagem e som: um manual prático. 6. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
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COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro; a arte de escrever para cinema e
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DURAND, Gilbert. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da
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RIBEIRO, E. B. A Sombra dos Pinheiros. O plantador de Pinheiros, 1925.
SANTAELLA, Lucia. Comunicação e pesquisa: projetos para mestrado e
doutorado. São Paulo: Hacker Editores, 2001.
WUNENBURGER, J.J. O imaginário. São Paulo: Loyola, 2007.

Filmografia

ATTENBOROUGH, David. A Vida dos pássaros. BBC. Episídop 10: Os Limites


de Resistência. Reino Unido: 1999. 49 min.
CAMPBELL, Joseph, and Bill Moyers. O poder do Mito New York: Doubleday,
1988. Episódio 2: A mensagem do Mito. 56 min. Episódio 4: Sacrifício e
Felicidade. 56 min.
BESAS, Marco. La Leyenda Del EspantapáJaros (Título original). Espanha:
2005. 10 min.
47

Musicografia

BORGHETTI, Renato. Milonga para as Missões. LP: Gaita Ponto. São Paulo:
Continental, 1984. Duração: 2:03 min.
KODO, Yumi ga Hama. Best of Kodo. Japão: Sony Music Entertainment, 1994.
duração: 5:35 min.
MIYAKE, Rosa. Pobre pescador. (Urashima Taro – jingle da VARIG). São
Paulo: Target Audio, 1968. Duração: 1 min.
MOTOORI, Nagayo. Noguchi Ujō. Nanatsu no Ko (Seven Children). Publicado
na revista Kin no Fune, em julho de 1921.
MOTOORI, Nagayo. Noguchi Ujō, MÜLLER, Werner. Nanatsu no Ko. Álbum:
Holiday In Japan. Nova Iorque: London Records, Inc, 1958. Duração: 2:05 min.
MOTOORI, Nagayo. Noguchi Ujō, NAKAGAMI, Hitomi (soprano). FUKUYA,
Atsuhi (bandolin). Nanatsu no Ko. Japão: Music Studio March, 2014. Duração:
2:30 min.
MOTOORI, Nagayo. Noguchi Ujō, PIERRE, jean. Nanatsu no Ko. LP: Ensemble
Lunaire. Japan: Columbia Master Works Records M-35862, 1980. Duração: 2:21
min.
PINTO, Inami, CAMARGO, Ely. Gralha Azul. LP. Álbum: Folclore do Paraná.
Rio de Janeiro: CHANTECLER, 1966. Duração: 3:10 min
PINTO, Inami, LYDIO, Roberto. Gralha Azul. Álbum: Nhengarí Inami. Curitiba:
Gramofone, 2013. Duração: 4:59 min
48

ANEXO 1

Roteiro

YatagarAzul

EXT – FLORESTA DE ARAUCÁRIAS – ALVORADA

O Sol nasce desenhando as linhas dos pinheiros. Um travelling livre por eles
denuncia uma
leve brisa. Em movimentos fluidos, dança harmonicamente com a cantiga até
entrar floresta adentro, onde descansa uma ave. Sua plumagem negra logo
toma forma com a luz do dia.

INT – GALHO DO PINHEIRO-BRASILEIRO – DIA

Close na gralha em plano médio. Zoom gradativo até enquadrar seus olhos
fechados em plano detalhe. Ao fim da aproximação, ouve-se um barulho similar
ao som da borda de um okedo (tambor japonês), ao mesmo tempo que os
olhos se abrem. Silêncio. Plano Geral. Tudo parado. Apenas as folhas
balançam. Enquadra-se o pássaro de perfil. Parece uma estátua.

Novamente o som, agora acompanhado por um tremor. A gralha mexe a


cabeça, assustada
e perdida, mas atenta. A intensidade e as repetições do som aumentam
gradativamente.
O plano fechado no machado golpeando o tronco. Plano geral na vagarosa
queda da arvore. Plongée (Escher – olho de peixe) da árvore desabando em
direção ao espectador.
Um pequeno zoom out revela o olho umedecido da gralha. Fade to black.
Silêncio prolongado.
49

INT – FLORESTA – POUCA LUZ, MAIS SOMBRA.

Irrompe o ruído de uma serra elétrica.


Fade in. Plano geral, enquadrando as copas das árvores até a imensidão do
céu. Barulhos, tremores e folhas se espalhando no ar ditam o ritmo constante.
A gralha surge a esquerda cortando o céu em movimentos irregulares.
Desesperada, ela desvia das folhas esvoaçantes.
A câmera acompanha o movimento da ave, que alça voo ao infinito celeste. Em
uma panorâmica, a câmera rotaciona nos três eixos, indo de um contra-
plongée a um plongée, dando tridimensionalidade ao cenário. Continua
acompanhando num travelling transversal para trás, até que ultrapassa a
camada das nuvens. Whoosh. Silêncio repentino. Isolamento.

EXT – AZUL CELESTE – MEIO DIA (ZÊNITE)

O pássaro continua voando. Olha para trás. Segue voando. Olha mais uma
vez... ainda fugindo.
Pouco a pouco volta o silêncio, durante o voo monótono.
Não olha mais para trás. Continua voando sem sair do lugar.
Close no olho. Feedback do passado com os pinheiros. (Naif)
Relembra os sentimentos de proteção, de lar, de segurança, de sustento, de
alimento, de vida.

O redondo do olho clareia até se transformar no sol. Surge ao fundo o azul-


celeste e as nuvens. Take parado e centralizado no sol emitindo seus raios de
luz. Ouve-se um pio diferente, ecoante. Uma pena azul entra e sai flutuando
em primeiro plano.

Transição: “Gralha Azul”, de Inami Custódio Pinto.


50

EXT – MUNDO TERRANO – DIA

Plano muito aberto. As nuvens são o teto do frame. Dentre elas, acende um
feixe de luz. E de dentro dele, aparece a gralha-azul com a penugem
transformada. Ela desce cortando em rasantes, da direita pra esquerda, a
camada nebulosa. Lenta como um avião visto de longe. Aproximação em
cortes secos durante a descida da ave. Plano geral. Plano médio. Plano
fechado na gralha, que acaba de pousar ao lado de um tronco cortado.
Respiro...

Corte seco para o solo (plano fechado com distorção para dar a impressão de
ser um plano aberto). Uma pata gigante (devido ao close) abre um buraco na
terra.
Close na semente de pinhão presa no bico da gralha. Ela come a cabeça da
semente e deixa o restante cair. A câmera acompanha a queda até o pinhão
fincar no solo do buraco com a ponta mais fina virada para cima.
Top view - câmera subjetiva. Uma pata cobre o buraco e outra pata e puxa uma
folha por cima. Fade out.

Emerge um caule, que cresce e se desenvolve. Logo, vários tons da nova


floresta completam o quadro. O sol cai ao fundo com o entardecer. Close no
sol. Um galho na frente em primeiro plano e nele a silhueta de um corvo. Uma
terceira pata surge por detrás das outras.
Fade to Black.
51

ANEXO 2

Storyboard Final (folhas 1 e 2)


52

Storyboard Final (folhas 3 e 4)


53

ANEXO 3

“Storyboard-wall” (ponto de vista 1)

“Storyboard-wall” (ponto de vista 2)


54

ANEXO 4

Fluxograma
55

ANEXO 5

Gralha Azul, de Inami Custódio Pinto

Vem ver vem conhecer


minha cidade sorriso terra do pinheirais.
Vem ver nossas riquezas,
as mil e uma belezas um paraíso no sul.
Onde nasceu a Gralha azul. (2x)
O pinheiro dá a pinha.
A pinha da o pinhão.
Gralha Azul leva no bico,
vai fazer a Plantação. (2x)
Vôoa Gralha Azul, Gralha Azul. (2x)
Gralha Azul tu és pequenina, Ilustração de capa do livro:
mas é grande o seu valor. (2x) Gralha-Azul - a ave que planta árvores
És Paranaense bichino, Ed. Noovha America
és bom trabalhador. (2x) Disponível em:
Vôoa, vôoa. (2x) Acesso: nov. 2014

Nanatsu no ko, escrita por Noguchi Ujō e composta por Nagayo Motoori

Mãe Corvo, por que você


chora tanto?

Porque eu tenho sete filhos


bonitos no alto da montanha.

Adorável adorável esta mãe


corvo chora. Adorável
adorável, grita a mãe corvo.

Vá até a velha montanha e


você verá a volta das
crianças adoráveis.

(Tradução adaptada)

Música publicada na revista Kin no fune (1921)


(Fonte: Kokoro no Uta. Disponível em:
Acesso em: nov. 2014)

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