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SUPER-HERÓIS,
CULTURA E SOCIEDADE
Aproximações multidisciplinares
sobre o mundo dos quadrinhos
EDITORA
JÊIDÉIAS&
%LETRAS
D ir e t o r E d it o r ia l : R e v is ã o :
C o p id e s q u e : C a pa : Apresentação ............................................................................................... 7
L eila C ristina D inis Fernandes Alfredo Castillo
Iuri Andréas Reblin
Prefácio.................................................................................................. 11
Todos os direitos reservados à E ditora Idéias & Letras, 2011. Nildo Viana
OS SUPER-HERÓIS E NÓS
diante. Aqui há uma dupla revelação: do mundo dos super-heróis e de o labirinto das mentes que produziram seres fantásticos, que realizam
alguns dos reveladores desse mundo na perspectiva analítica que busca aventuras fantásticas, que bem poderiam ser nossas aventuras, se pu
relacioná-los com a cultura e a sociedade. déssemos trocar o cotidiano repetitivo, burocrático e mercantil que vi
O texto que apresenta uma “Breve história dos super-heróis”, de vemos por um mundo de ações heróicas e significativas. A tentação
minha autoria, abre a coletânea e focaliza o desenvolvimento histórico de sonhar ser o que se gostaria de ser é apenas outra face da recusa do
do gênero superaventura, partindo do pressuposto de que sua histori que somos, do que nos faz ser o que somos, ou seja, de nossa sociedade.
cidade não é autônoma e independente, e sim dependente da histori Os super-heróis não são meras fantasias para crianças, e sim um pro
cidade da sociedade que lhe engendrou. É uma pequena contribuição fundo revelador de nosso inconsciente e, ao mesmo tempo, produção
para a história social dos super-heróis. Iuri Reblin traz uma discussão social e histórica que mostra, cabal e principalmente em determinados
interessante sobre super-heróis, relacionando-os com a teologia, sendo momentos históricos, o exercício do poder através da axiologia, dos
mais uma contribuição sua neste aspecto, já iniciada em outras publica ideologemas, de sentimentos negativos.
ções de sua autoria. Ele acaba focalizando um aspecto da cultura e sua O bem e o mal em um romance astral, como já dizia Raul Seixas.
relação com o mundo da superaventura. O texto de Edmilson Marques M as as categorias metafísicas de bem e mal só são eficazes no mundo
já aborda as conexões entre ficção e realidade, focalizando o processo do fictício dos super-heróis, pois, em nosso caso, o que temos são pessoas
real por detrás do imaginário e destacando o processo de mercantiliza- de carne e osso, com grandezas e pequenezas, com capacidade criativa
ção e burocratização dos quadrinhos. Uma ampla e reveladora análise e destrutiva, que não são naturais, e sim produtos da sociedade que as
sobre os quadrinhos é apresentada, mostrando conexões nem sempre produzem. O desejo do ser humano de ser livre significa a vontade de
claras entre a ficção e a realidade. Já Denise Tardeli aborda o potencial superar sua pequenez produzida socialmente, e o super-herói encarna
dos super-heróis para a formação moral e da identidade de crianças e inconscientemente esse projeto, bem como encarna seu contrário, a pe
adolescentes, relacionando a superaventura com a construção da iden quenez, quando olhamos para sua face consciente e visível. Nós, escri
tidade e da personalidade. O texto de Waldomiro Vergueiro relaciona tores, analistas e leitores, temos de superar a pequenez e torcer para os
a história dos super-heróis com a história dos Estados Unidos, com a super-heróis fazerem o mesmo, inclusive lutar contra nós mesmos para
cultura norte-americana. Os processos sociais e culturais dos EU A são não nos cegarmos diante da pequenez dos super-heróis, por admirá-los
relacionados com as mutações do universo dos super-heróis. Valério por sua grandeza. Neste jogo há uma constante luta e, nesta luta, seus
Schaper discute os super-heróis a partir de uma análise do problema produtos e, entre seus produtos, o presente livro, que interfere nela.
moral, focalizando o Surfista Prateado, personagem no qual se pode ver A complexidade dessa situação revela a problemática do mundo
o dilema moral de forma cristalina. Enfim, um conjunto de textos que dos super-heróis, e o presente livro ajuda a refletir sobre o irrefletido,
cercam os super-heróis sob diversos ângulos e mostram como nós nos e isto, em si, já é uma grande contribuição. Então resta aos leitores
relacionamos com eles. prepararem-se para uma aventura intelectual sobre as fantásticas aven
Assim, o presente livro pode ser considerado uma viagem. M as não turas sociais, históricas, culturais e psíquicas dos super-heróis.
uma viagem comum, e sim uma viagem por mundos diferentes, distan
tes, partindo dos labirintos das mentes que pilotam a nave para revelar Nildo Viana
BREVE HISTÓRIA DOS SUPER-HERÓIS
Nildo Viana
o que provocou tais mudanças. Obviamente a historicidade do gênero su- a) a época do nascimento, que vai da criação do Superman até o
peraventura é uma historicidade dependente da historicidade da sociedade final da Segunda Guerra Mundial;
e, portanto, a periodização da história da superaventura está intimamente b) a época da crise, que vai de 1945 até o final da década de 1950;
relacionada com a historicidade da sociedade moderna (V iana , 2007a). c) a época da retomada e renovação, que ocorre a partir do final da
Porém, como se trata de uma totalidade no interior de outra totalidade década de 1950 até o final dos anos 1960;
mais ampla, a história do gênero da superaventura possui períodos que d) a época do “envelhecimento” dos super-heróis, que vai do final
estão ligados a aspectos mais específicos da sociedade moderna e, por isso, da década de 1960 até 1980;
pode ter períodos que não são da mesma quantidade que os daquela. e) a época da reorganização e inovação, que vai de 1980 até os dias
Assim, a história da sociedade moderna pode ser periodizada a de hoje.
partir da sucessão de regimes de acumulação, e estes foram o extensivo
(a partir da Revolução Industrial até a segunda metade do século 19); Esta periodização, sem dúvida, entra em conflito com a periodi
o intensivo (que vai da segunda metade do século 19 até o final da zação tradicional realizada pelos próprios agentes da produção dos
Segunda Guerra Mundial); o intensivo-extensivo (que abarca o perí quadrinhos, que distinguem em idade de ouro, prata, bronze, pois os
odo do término da Segunda Guerra M undial até a década de 1970), critérios para tal são pouco convincentes e, muitas vezes, marcados por
e o integral (que se inicia na década de 1980 e permanece até os dias determinados valores e concepções que são prejudiciais a uma real per
atuais). Esses regimes de acumulação expressam determinada forma cepção da história dos super-heróis.4
de organização da acumulação capitalista, através de uma cristalização Assim, há mudança na superaventura no final dos anos 1950, o
da luta de classes em determinada forma de organização do trabalho que não ocorre no regime de acumulação. A explicação disso se deve
(processo de valorização), de formação estatal e relações internacionais, ao fato de que ocorrem mudanças nos regimes de acumulação (uma
o que não poderemos desenvolver mais detalhadamente aqui.2 coisa é a mudança de regime de acumulação, ou seja, a passagem de um
O que é importante ressaltar aqui é que esses regimes de acumu regime para outro; outra coisa é a mudança no interior de um regime
lação marcam a história da sociedade moderna e determinam as m u de acumulação, ou seja, a mudança em seu interior) e de que, em países
danças culturais, atingindo também o gênero da superaventura. Porém diferentes, estas evoluem sob formas diferentes, entre outras determi
a periodização da superaventura é um pouco diferenciada. Nós perio nações, que mostram que o concreto é o resultado de suas múltiplas
dizamos a superaventura, com base na superaventura produzida nos determinações.
EUA,3 da seguinte forma: Antes de iniciarmos, porém, é necessário esclarecer que nosso
ponto de partida é orientado pelo método dialético, que busca desco
brir as determinações do fenômeno e, em especial, sua determinação
fundamental. Buscaremos reconstituir as múltiplas determinações do
2 Para um a discussão sobre os regimes de acumulação e seu detalhamento, cf. V ia n a ,
2 0 0 3 ,2 0 0 9 .
3 Por questão de espaço e tempo, não abordaremos aqui os super-heróis surgidos em
outros países, a não ser em raras exceções e relacionados com os norte-americanos,
tal como os brasileiros e japoneses. 4 O caráter valorativo (e axiológico) dos termos ouro, prata e bronze é, por si só, evidente.
18 N ildo Viana Breve história dos super-heróis 19
fenômeno da mudança no mundo dos quadrinhos e, assim, não ape daí vêm seus poderes, pois é filho de uma humana e um atlante. O To
nas descrever, mas explicar tais mudanças. Neste sentido, começaremos cha Original foi criação de um cientista, Phineas H orton, que buscava
com a determinação fundamental e passaremos para a determinação criar um ser humano sintético; conseguiu, embora com o problema de
formal, e - sendo possível - abordaremos ainda outras determinações que ele se transformava numa imensa tocha, devido ao contato com o
do fenômeno, sendo que a determinação fundamental tem sua base oxigênio. A origem dos super-heróis, por conseguinte, estava relacio
no processo social marcado pela luta de classes, cristalizada em um nada com experiências científicas ou alienígenas.
determinado regime de acumulação e que se manifesta além dessa base Sem dúvida, a existência dos heróis e, mais ainda, dos heróis dos
estabilizada com as rupturas e os processos extraordinários que irrom quadrinhos era uma das principais condições de possibilidade de sur
pem e desestabilizam a sociedade. gimento dos super-heróis. Estes foram os verdadeiros precursores dos
super-heróis. O individualismo da sociedade moderna abre espaço
para a valoração do herói real e também do herói fictício. Os heróis dos
O nascimento dos super-heróis quadrinhos realizavam ações fantásticas, como Tarzan, Flash Gordon,
Buck Rogers, entre outros, e alguns já possuíam poderes incríveis. Este
Alguns buscam encontrar a origem dos super-heróis na mitologia é o caso de Fantasma e M andrake. Estes dois podem ser considerados
grega ou nórdica. Sem dúvida, os deuses da mitologia grega inspira os precursores mais diretos dos super-heróis, pois o realismo foi aban
ram a criação de alguns super-heróis. Shazam foi criado a partir dessa donado, principalmente no caso do último, com seus poderes mágicos.
inspiração, o que se percebe a partir da origem de seus superpoderes No entanto os heróis fornecem apenas alguns elementos para a cria
e de seu próprio nome, cujas iniciais reproduzem os nomes de figuras ção dos super-heróis; seria necessário complementar com outros ele
mitológicas, a saber: Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e M ercú mentos, só possíveis com o desenvolvimento histórico. Os super-heróis,
rio. A Marvel Comics produziu super-heróis (e supervilões) inspirados tal como os conhecemos e com suas características definidoras, são pro
na mitologia nórdica (Thor e Loki são os mais expressivos ao lado de dutos da sociedade moderna. Os deuses antigos são superpoderosos, mas
toda a população de Asgard: O din, Sif, Balder etc.) e na mitologia gre são vistos como verdadeiros por seus produtores e reprodutores até serem
ga (Hércules, Zeus etc.). Porém isso não serve para explicar a origem transportados para o mundo da ficção, enquanto que os super-heróis são
dos super-heróis, mesmo porque os primeiros super-heróis não foram reconhecidos como produtos fictícios, tanto por seus produtores quanto
inspirados na mitologia. por seus leitores. Os heróis - tanto os fictícios quantos os reais - são seres
Vejamos o caso dos primeiros super-heróis. O Superman é um habilidosos, corajosos, excepcionais, mas sem superpoderes.
alienígena e, por isso, possui superpoderes. O caso do Capitão América A formação dos super-heróis só foi possível através da conjugação
já é um pouco diferente. Ele recebe um soro que lhe fornece sua força de diversas determinações, entre as quais estão os avanços tecnológicos,
sobre-humana e um escudo que se torna uma das armas mais podero o individualismo, a necessidade de homens fortes em períodos de crises
sas; aliados a suas habilidades próprias, eles o tornam um super-herói, etc. Os precursores mais próximos dos super-heróis são os próprios
sem grandes poderes, sem dúvida, mas muito mais poderoso do que um heróis dos quadrinhos. Os heróis dos quadrinhos se diferem dos super-
ser humano comum. N am or é oriundo de outra civilização, Atlântida, e -heróis, porque estes últimos possuem superpoderes, e não apenas qua
20 Nildo Viana Breve história dos super-heróis 21
lidades humanas excepcionais, e vivem num mundo povoado por seres letivo ( V i a n a , 2005). O Superman, assim, pode ser considerado expressão
superpoderosos (V ia na , 2005). A emergência de heróis como Tarzan, do dilema do indivíduo norte-americano de sua época, mas que permane
Flash Gordon, Jim das Selvas, Brick Bradford, DickTracy, entre ou ce existindo em muitos aspectos até os dias de hoje.5 Isto é observável, por
tros, abre caminho para o herói fantástico, um avanço rumo ao super- exemplo, em sua dupla identidade, a de homem comum, preso nas malhas
-herói, tal como no caso de M andrake, com seus poderes mágicos, mas burocráticas e oprimido, e a de Superman, invencível e imbatível, que de
que não vive num mundo com outros seres superpoderosos. Eles são a safia as leis da natureza e supera todos os limites humanos. A recepção
condição de possibilidade para o surgimento dos super-heróis. do Superman foi resultado das tendências da época e das necessidades
A emergência dos super-heróis está ligada ao processo de crise do inconscientes dos indivíduos presos no mundo burocrático e mercantil.
regime de acumulação intensivo, que se prolonga desde a década de 1920 O Capitão América nasce um pouco depois, mas no mesmo contex
até o final da década de 1930. A guerra assumiu um papel fundamental to de crise e guerra. Porém sua relação com a guerra é mais direta, bem
nesse processo, pois, além da crise e da necessidade de heróis de carne como com as questões políticas, ideológicas envolvidas. O Super-Sol-
e osso para o combate e para suportar as situações adversas de uma so dado criado ganhou um escudo poderoso, e através de um soro, ganhou
ciedade em crise, também se tornou necessário pensar em seres sobre- força e habilidade física descomunal, além de ser um ser humano com
-humanos e ter esperança na vitória e satisfação imaginária substituta. capacidade de liderança e grande inteligência, segundo o que é expresso
No reino da ficção, a vitória é garantida e reconfortante; os justos sempre em suas histórias. Ele devia combater em guerra, junto com Namor e o
vencem, pois todos os lados em uma guerra se consideram justos. Tocha Hum ana Original, os nazistas e seus supervilões, especialmente
O Superman é produto de sua época. Era a resposta americana ao Barão Nemo e Caveira Vermelha. O Capitão América cumpre o mesmo
nazismo e a sua ideologia da “raça superior”, e, ao mesmo tempo, um apelo papel que o Superman e outros super-heróis criados. Nos momentos de
ao homem comum para que seja forte e suporte todas as situações desfa maior conflito entre as potências imperialistas, eles criam os seus repre
voráveis (a crise da época), bem como um grito de liberdade inconsciente. sentantes fictícios. Capitão América e seus companheiros representam
A criação do Superman cumpria uma função parecida com a de um herói os Estados Unidos; Caveira e os supervilões representam os nazistas e
forte e que suporta as dores e pressões de um mundo em guerra, já que, tal fascistas; e Guardião Vermelho representava a Rússia e, por isso, era um
como o filósofo alemão Nietzsche (assimilado pelo nazismo) pregava, era aliado visto com desconfiança. A aparência horrível do Caveira Vermelha
o protótipo do homem-forte, que suportava as misérias do mundo. Aliás, (um rosto de caveira na cor vermelha) e do Barão Nemo (uma máscara
o Superman foi um nome apontado por Nietzsche, mas em outro sentido, que tampa todo o resto devido à fealdade do mesmo) é apenas uma for
embora havendo semelhanças. Também era a resposta fictícia dos ame ma de representar o inimigo como alguém do mal e, tal como é comum
ricanos ao nazismo: precisamos de soldados, heróis de carne e osso, e os na cultura ocidental, unir fealdade e maldade. O Guardião Vermelho foi
heróis fictícios são exemplos a ser seguidos, são inspiradores e amados pelo
público. Mas têm também um lado não intencional, que revela, para utili
zar a linguagem psicanalítica, o desejo inconsciente de liberdade, de ultra 5 Superman é o modelo exemplar de super-herói, papel que ganhou por ter sido o
primeiro da longa linhagem de super-heróis que existem e nascem até hoje. Também
passar os limites de uma sociedade burocrática, mercantil, sem aventuras,
é o modelo físico do super-herói, que expressa o indivíduo norte-am ericano do sexo
uma cotidianidade vazia e sem sentido, manifestação do inconsciente co masculino ( R e b l i n , 2008).
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suportado por haver um inimigo mais importante a ser combatido. O -heróis, o fim da crise gera o fim dos super-heróis. A partir de 1945, há
conflito EUA-URSS e a Guerra Fria ocorrerão no período posterior, e a um visível retrocesso no consumo e na produção de histórias em quadri
grande ameaça para o primeiro era a expansão do Eixo nazi-fascista, que nhos e, mais ainda, de super-heróis. O gênero da superaventura sofrerá
já havia dominado grande parte da Europa e tinha o Japão, no oriente, os golpes mais fortes dessa crise. A razão principal disso já foi exposta,
buscando avançar no espaço imperialista nessa região. pois os seres superpoderosos que surgem para fazer os homens comuns
Desta forma, o nascimento dos super-heróis foi produto da crise e da suportarem a crise e a guerra, os soldados lutarem e o heroísmo ser um
guerra, que criaram uma situação de desemprego, angústia, necessidade de ponto de apoio para a investida bélica, tornam-se supérfluos em um pe
soldados, de homens fortes. Isto ligado ao desenvolvimento tecnológico ríodo de paz entre as nações imperialistas e a reconstrução europeia. Os
e ao individualismo da sociedade moderna, além da existência de heróis super-heróis são de origem norte-americana e isto também fez com que
dos quadrinhos e alguns excepcionais, como Fantasma e Mandrake, bem não fossem requisitados em outras partes do mundo.
como a expansão da ficção científica na literatura, no cinema e nos qua Após a Segunda Guerra M undial, um novo regime de acumula
drinhos, especialmente Flash Gordon, temos, assim, os ingredientes ne ção é instaurado, paulatinamente marcado pelo Estado Integracionis-
cessários para a produção dos super-heróis. A determinação fundamental ta (“de Bem -Estar Social”), pelo Fordismo e pela expansão do capital
foi, sem dúvida, a crise do capitalismo e os conflitos derivados, e as demais transnacional. A mensagem guerreira teria de ser substituída por algo
determinações (heróis de quadrinhos, individualismo, desenvolvimento mais ameno. O Capitão América era muito bélico para ser mensagei
tecnológico, ficção científica, entre outras) ajudam a compor este novo ro do domínio do capital transnacional, bem como o Super-Hom em
tipo de ficção, mais fantástico e complexo do que as histórias do gênero seria muito pretensioso para representar a nova forma de exploração
aventura. Os super-heróis são filhos de sua época e, por isso, tal como o internacional. Ambos tornariam visível o que deveria ser ocultado. A
Capitão América, são manifestações da axiologia, dos valores dominantes, estratégia não era mais a do herói colonizador, como Tarzan, Fantasma,
vinculados às necessidades da classe dominante na época (Viana , 2005). nem a de super-heróis militares, a serviço de estados beligerantes.
reprodução de revistas em quadrinhos não constitui uma crise em si. Também o fato
A crise e a guerra fizeram emergir os super-heróis e, uma vez supera
de que, nesse período, os heróis tenham “entrado na guerra” e os super-heróis tenham
da essa situação, os super-heróis perdem espaço.6 Se a crise gera os super- sido criados para guerrear não significa um a crise, a não ser partindo de um a pers
pectiva apologética e conservadora dos quadrinhos. Para essa perspectiva, a entrada
na guerra de heróis e super-heróis consiste numa crise por ter significado o fim de
um a suposta e inexistente neutralidade e inocência dos quadrinhos, enquanto que, na
6 Alguns autores ( B i b e - L u y t e n , 1987; G u b e m , 1979) afirmam que a crise dos qua verdade, apenas revela o que estava oculto, tornando visível o que antes estava invi
drinhos ocorre a partir de 1939. Segundo essa periodização, a “idade de ouro” dos sível, ou seja, o caráter social, histórico, político, axiológico dos quadrinhos ( V i a n a ,
quadrinhos seria o período em que o gênero aventura foi hegemônico, isto é, do 2005), pois a guerra apenas mostra a visibilidade do significado social dos heróis e
final da década de 1920 até o final da década seguinte. O período de emergência dos super-heróis, como dos quadrinhos em geral. N a verdade, o apogeu dos super-heróis
super-heróis seria a época da crise dos quadrinhos. Porém este procedimento analí foi justam ente neste período e, após a Segunda G uerra M undial, ocorre seu recuo,
tico é bastante questionável. O fato de haver um a crise do papel e isto ter atingido a sendo, pois, um a crise do gênero superaventura, que só se recuperará nos anos 1960.
24 N ildo Viana Breve história dos super-heróis 25
Ao lado disso, novos personagens de quadrinhos foram criados e/ marchartismo, e na esfera dos quadrinhos, com o lançamento do livro
ou passaram a ganhar cada vez mais espaço, tal como a família Disney, A Sedução do Inocente (1954), de Fredric W ertham. Foi realizada toda
com o Pato Donald, o T io Patinhas e outros, bem como o rato que uma campanha contra os quadrinhos. W ertham conseguiu apoio e in
anda com os patos, Mickey Mouse. Também, no período que vai de fluenciar parte da população. Isto provocou “uma onda de protestos”
1945 a 1965, temos o que Renard (1981) chamou de “idade de ouro” dos representantes dos pais, professores, família etc. (M oya, 1972) e
dos quadrinhos franco-belgas, marcada por uma produção quantita contou com o apoio de “certos meios pedagógicos” (G ubem , 1979). No
tiva de personagens bastante elevada e com alguns grandes sucessos caso específico dos super-heróis, W ertham denunciou uma suposta ho
internacionais, tal como T in tin e os engraçadíssimos Lucky Luke e mossexualidade de Batman e Robin (M oya, 1972), cuja comprovação
Asterix. O protecionismo francês, a partir de 1947, também faz parte não era mais do que os delírios de W ertham. O resultado disso tudo foi
desse contexto (Baron -C arvais, 1989). Os quadrinhos ingleses, assim a criação de um código de autorização para os quadrinhos:
como os de outros países, também produziram novos e interessantes
A parte industrial, financeira e editorial dos comia fraquejou diante
personagens, que conseguiram um relativo sucesso além das frontei
de tam anha campanha e chegaram as partes a um m eio-term o: um có
ras da ilha onde foram produzidos, tal como os personagens Bristow, digo. Tal como aquele que fora feito havia muito tempo em Hollywood
considerado por alguns como um “antiburocrata”, e Andy Capp (Zé do e debilitara o cinema americano diante da agressividade realista do ci
Boné, no Brasil), ambos tematizando o cotidiano e a monotonia que nema europeu. Com a concorrência da T V americana e do cinema da
Europa, já caía o código Hayes no cinema. M as com os comics, sem
lhes acompanham, estando, portanto, muito longe do mundo extraor
concorrência, sucedeu uma queda diante da T V e da onda moralista
dinário dos super-heróis. ( M o y a , 1972, p. 72).
O intervencionismo estatal foi outra determinação na crise da su-
peraventura. O protecionismo francês apenas revela os interesses co Os alvos principais desse ataque eram os quadrinhos de horror e
merciais de um país que afetou os super-heróis norte-americanos, mas de heróis (G ubem , 1979), mas os super-heróis, mesmo enfraquecidos,
a censura política cumpriu um papel igualmente poderoso para o recuo não foram poupados, tal como colocamos anteriormente no caso de
da superaventura. O fim da Segunda Guerra M undial transformou os Batman. Este foi um período de recuo para o mundo dos super-heróis,
Estados Unidos na grande potência mundial, bem mais forte do que já tanto no que se refere à produção quanto no que se refere ao consumo.
era antes disso. Porém outra grande potência emergiu, a URSS, e esta A produção diminuiu quantitativamente, encontrava concorrentes nos
passou a ser o inimigo a ser combatido, pois já dominava suas repú quadrinhos de humor, na família Disney, em Pogo, Peanuts e outros, e
blicas e ainda passou a dominar o Leste Europeu, e a exercer grande também não conseguiu apresentar uma renovação criativa, sendo que
influência em diversos países pelo mundo, através dos partidos comu a maior reação do período foi o fato de Batman e Superman lutarem
nistas satelizados por Moscou. A Guerra Fria entre o capitalismo pri juntos. No caso da Marvel, houve apenas o triste episódio do Capitão
vado comandado pelos EUA e o capitalismo estatal capitaneado pela América lutando contra os agentes “comunistas” da União Soviética,
URSS passa a atingir a produção cultural nos Estados Unidos e a in expressando uma manifestação ideologêmica na superaventura, no
fluenciar outros países, de uma forma ou de outra. O intervencionismo contexto da Guerra Fria. Os super-heróis, e seus criadores, estavam
estatal vai manifestar-se na esfera da produção cinematográfica, com o
26 N ildo Viana Breve história dos super-heróis 27
preparados apenas para a guerra. Isto, obviamente, atingiu o consumo, poderes, mas que enfrentam feiticeiros, e depois de maneira mais clara
que já havia diminuído seu interesse pela superaventura por causa da com a retomada de Flash, por Carmine Infantino, em 1959. Em 1960,
era criada uma “Justice League o f America” para agrupar diversos su
concorrência de outros gêneros, personagens etc., o que era ainda mais
per-heróis, tal como acontecera com a antiga “Justice Society o f A m e
forte na Europa, devido ao que colocamos anteriormente. A supera rica”, nos anos 40. Foram assim ressuscitados G reen Lantern (1960),
ventura só poderia recuperar seu espaço através de algumas mudanças por Gil Kane, Sid Green e depois Neal Adams; The A tom por Gil
que só ocorrerão a partir do final dos anos 1950. Kane sobre textos de G ardner Fox; Hawkm an (1964), pelo desenhador
M urphy Anderson sobre argumento de G ardner Fox; Batman (1966)
por Bob Kane, D ick Giordano, Neal Adams e outros; finalmente, The
Spectre (1967), por M urphy Anderson e depois Neal Adams. Os anos
A retomada e a renovação dos super-heróis 1966-1967 conheceram um a corrente de “Batmania”, que deu origem
à produção intensa de distintivos deste super-herói, de batmobiles em
brinquedos m iniatura etc. ( R e n a r d , 1981, p. 98).
O capitalismo oligopolista transnacional que emerge a partir da
supremacia do regime de acumulação intensivo-extensivo não é es
tático. A guerra m undial produziu um a ampla destruição das forças Mas, além de ressuscitar super-heróis, a D C também produziu
produtivas, principalm ente na Europa, e a reconstrução europeia novos super-heróis: Adam Strange (1960), Deadm an (1967), Captain
mobilizou e possibilitou um a retom ada da acumulação capitalista Action (1968). A Charlton Comics entrou em cena e produziu através
em grande escala. A partir de 1945, a reconstrução da Europa marca de Steve D itko uma safra de super-heróis composta por Captain Atom
um processo ascendente e que foi acom panhado por um processo (1965) e The Question (1968), além de retomar Blue Beetle (1967), tal
de m aior intervenção estatal em todas as instâncias da vida social, como coloca Renard (1981). Porém, a fábrica de super-heróis de maior
bem como pela expansão do capital transnacional e do fordismo, e produção e destaque foi a Marvel Comics:
tudo que lhe acom panha (uso da tecnologia para aum ento da pro
Sob o impulso do argumentista Stan Lee, que é um dos mais fe
dutividade, ou seja, extração de mais valor relativo, produção em cundos e imaginativos criadores de super-heróis, foram criados nume
série, sistema de crédito etc.). Este processo vai gerar, nos países rosos personagens, não apenas retomados ou modernizados. As criatu
im perialistas, especialmente EU A e Europa, um aum ento conside ras de Stan Lee diferem bastante dos super-heróis tradicionais. É certo
que também possuem um vestuário ou um aspecto original, um corpo
rável do poder aquisitivo e do mercado consumidor, bem como o
de atleta, uma identidade dupla, assim como poderes maravilhosos, mas
crescimento de determ inados setores de consumo. estes são simultaneamente mais extraordinários e especializados; Su-
H á, neste contexto, uma retomada da produção de quadrinhos do perman e Batman são de certo modo polivalentes, enquanto que The
gênero superaventura. Por um lado, temos uma retomada por parte da Human-Torch já é um especialista em incêndios; a Invisible Girl só pode
contar com sua invisibilidade; e M edusa apenas pode recorrer a seu cabe
D C Comics.
lo para agarrar pessoas ou objetos. Por outro lado, os super-heróis de Stan
Lee, contrariamente aos anteriores à guerra, possuem uma personalidade
A D C Comics lançou o movimento a partir de 1957, prim eira quase neurótica, mesmo quando se apresentam como super-heróis; têm
m ente de maneira tím ida com a série de Jack Kirby, Challengers o f the os defeitos e complexos dos homens normais, conhecem o ódio, o amor,
Unknown, pondo em cena um a equipe de heróis atléticos, sem super- o egoísmo. Alguns deles são mesmo antigos “supermaus”, como Sub-
28 N ildo Viana Breve história dos super-heróis 29
M ariner ou Silver Surfer. Finalmente, e muito mais do que os primeiros qualificou-a com mais precisão de “sociedade burocrática de consumo
super-heróis, os dos anos 60 têm muito a ver com a Energia ou as ener dirigido” (L efeb v re, 1 9 9 1 ). O utro elemento que acompanha este pro
gias: fogo, água, terra e ar, e ainda a eletricidade, o átomo, o raio laser, a
cesso é a consolidação da juventude como grupo social (V ia n a , 2 0 0 4 )
antimatéria e energia Psi etc. ( R e n a r d , 1 9 8 1 , p. 9 8 - 9 9 ) .
e seu crescimento quantitativo na Europa, com o rejuvenescimento da
população a partir do final dos anos 1950, bem como o seu potencial
Stan Lee, ao lado de grandes desenhistas e colaboradores como
de consumo.
Jack Kirby, Steve Ditko e vários outros, fez reaparecer Nam or e C a
pitão América e criou toda uma nova safra de super-heróis: Quarteto Nos países que tom aram parte da Segunda G uerra M undial,
Fantástico, H om em -Aranha, Hulk, X -M en. Estes novos super-heróis foram sacrificadas principalm ente as gerações jovens. A Europa fi
conquistaram um grande espaço no interior do capital comunicacional cou convertida em um continente de hom ens e mulheres velhos e de
crianças. A “G uerra Fria” foi acima de tudo assuntos desses “velhos”,
e passaram a expressar uma nova fase do mundo dos super-heróis, ago
conforme se pode verificar a idade dos políticos da época. N a verdade,
ra marcada pela retomada e renovação, com a concomitante ampliação as crianças daqueles anos se transform aram em hom ens por volta do
da produção, da qualidade, da diversidade e do consumo. fim dos anos 50, década que, por outro lado, assistia ao desapareci
Como explicar esse processo? Sem dúvida, a iniciativa de retomar m ento dos anciãos, que até então dirigiam as nações. Isto fez com
os super-heróis por parte da D C Comics e Charlton Comics foi im que, de súbito, se registrasse o crescimento da problem ática juvenil
como um fenôm eno característico. Porém, esta juventude não tinha
portante e, principalmente, a produção da Marvel Comics. A hege muito a ver com o passado bélico que havia oposto e destruído os
monia da D C Comics no primeiro período dos super-heróis, graças seus ascendentes. Portanto, o salto que surgiu entre a sensibilidade do
ao Superman e ao Batman, foi suplantada pela hegemonia da Marvel passado e a do presente não podia ser maior, na falta de um a geração
Comics com uma grande diversidade de super-heróis, com destaque interm ediária que agisse como ponte. A população que saudou a che
gada dos anos de 1960 era fundam entalm ente jovem. A diminuição
para o H om em -Aranha, mas também com Hulk, Quarteto Fantástico,
da m ortalidade infantil, cada vez mais notória nos países desenvolvi
Demolidor, Namor, Capitão América, Thor, H om em de Ferro, entre dos, contribuiu notavelmente para este rejuvenescimento tão visível
inúmeros outros. Porém esses novos produtos culturais não surgem do ( C a r a n d e l l i , 1979, p. 35-37).
A população juvenil também passou a ter um crescimento em seu po que foi provocado por viagem espacial;7 o H ulk surge graças à exposi
der aquisitivo, tornando-se um nicho de mercado visado pelo capital ção do cientista Bruce Banner aos raios gama; grande parte dos super-
comunicacional (“indústria cultural”) e explorado pela produção cine -heróis e dos supervilões são alienígenas que aterrizam no planeta Ter
matográfica, musical etc., e por outras frações do capital que podiam ra: Galactus, Surfista Prateado etc.
usufruir dessa nova faixa do mercado consumidor. Stan Lee cumpre um papel fundamental nesse processo, pois ele
A nova safra de super-heróis da Marvel Comics é produto des buscava reunir a ficção e o extraordinário com a racionalidade. Isto
sas mudanças históricas e outras relacionadas. Uma delas é a da força pode ser exemplificado numa entrevista na qual comparou os super-
do arsenal nuclear que veio à luz com a Segunda Guerra M undial, e -heróis da M arvel com os da D C Comics e afirmou não compreender
Hiroshim a foi o grande exemplo. A corrida armamentista da Guerra como o Superman podia voar. Namor, dizia ele, possuía pequenas asas
Fria e a corrida espacial que lhe acompanhou promoveram uma nova nos pés; Thor era guiado por seu martelo de Uru (posteriormente ba
onda de interesse por ficção científica, bem como o “equilíbrio do ter tizado no Brasil de Mjolnir); o H om em de Ferro tinha os jatos de sua
ror” entre as duas superpotências, e proporcionaram uma percepção da armadura e assim por diante. Claro que as asas dos pés de Nam or são
ciência e da tecnologia marcada pelo temor. O efeito do temor social desproporcionais em relação ao corpo do super-herói e jamais conse
dos produtos científico-tecnológicos estará presente na literatura de guiriam fazer alguém voar, mas isto não vem ao caso. A explicação é
ficção científica, no cinema e nos quadrinhos. Porém, o temor social problemática, mas existe. Assim, Stan Lee vai ter um papel importante
irá, num primeiro momento, provocar um recuo da ficção científica e, na renovação e no papel concedido para a ficção científica nesse pro
num segundo momento, promover o interesse baseado no “retorno do cesso. Obviamente que tal contribuição está ligada ao contexto e renas
reprimido”. É por isso que a ficção científica no cinema será bastante cimento da ficção científica em geral, bem como ao público juvenil que
reduzida até 1949 e somente após 1955 irá ampliar sua produção. “Ve se formava nessa época.
rifica-se de 1945 a 1949 um afrouxamento da produção de filmes de E neste contexto que podemos entender o surgimento da nova safra
ficção científica na América” (S iclier e L abarthe , [s.d.]: 70). A partir de super-heróis e suas características. Alguns exemplos poderão escla
de 1950, há uma retomada da ficção científica, que vai consolidar-se no recer isso. O surgimento do H om em -A ranha está intimamente ligado
final dessa década e nos anos 1960. a esse processo de mudanças sociais. Em primeiro lugar, a origem dos
Isto não será diferente com o mundo dos super-heróis. A supera- superpoderes desse personagem está em uma aranha contaminada por
ventura passa a ter no efeito do temor social dos produtos científico-
-tecnológicos um dos seus principais leitmotiv. Se a retomada da supe-
raventura por parte da D C e da Charlton Comics não forneceu tanta 7 O objetivo da viagem espacial seria “científico”, mas, no entanto, fazia parte da com
ênfase a esse efeito de tem or social, a renovação da Marvel Comics, petição com a URSS, que havia lançado Yuri G agarin ao espaço. A nave foi lançada pre
m aturam ente, devido ao cancelamento do financiamento pelo Governo. H á uma frase
graças principalmente a Stan Lee, teve nele sua grande inspiração. O reveladora da M ulher-Invisível (Sue Storm) para convencer Ben G rim m (O Coisa) a
H om em -A ranha é um jovem comum que ganha seus poderes devido pilotar a nave: “Ben, nós temos que tentar! A não ser que você queira que os comunistas cheguem,
na fren te”, e é por isso que os números seguintes da revista serão marcados por inimigos
à picada de uma aranha contaminada por radioatividade; o Quarteto “comunistas”. O Q uarteto Fantástico surge, assim, no contexto da G uerra Fria e fazendo
Fantástico tem sua origem através do contato com raios cósmicos, o parte dela.
32 N ildo Viana Breve história dos super-heróis 33
radioatividade, o que permitiu a transmissão de algumas de suas carac qual a escolarização assume papel fundamental, e a condição ambí
terísticas para Peter Parker. A ficção científica mostra-se presente na gua do jovem, integrado parcialmente na sociedade e trazendo em si
explicação da origem de seus superpoderes, bem como no uso do fluido a recusa do futuro papel de adulto, simultaneamente com o desejo das
que ele produz para produzir suas teias e o mecanismo para lançá-las. vantagens desse papel, é similar ao dilema do H om em -Aranha, entre
O personagem Peter Parker era um jovem colegial, o que torna mais ser herói ou ser uma pessoa descomprometida com tal dever. Parker
fácil a identificação com ele por parte do público juvenil. N a capa do precisa ganhar dinheiro para sustentar sua tia viúva que o criou e cuja
número 01 da revista do H om em -A ranha, ele aparece carregando uma viuvez era responsabilidade que ele atribuía a si mesmo.
pessoa pelo ar, segurando sua teia e afirmando: “Embora o mundo pos Ele era um colegial, tal como milhares de leitores do Hom em -
sa zombar de Peter Parker, o jovem tímido, logo se maravilhará diante -Aranha, em constantes atribulações com as garotas e com as amizades.
do poder do H om em -A ranha”. Desta forma, o H om em -A ranha é a Além disso, o H om em -A ranha satisfazia as novas demandas imaginá
realização imaginária de um desejo inconsciente da juventude, o jovem rias da época e da juventude: era um individuo comum, pacato, com
real e o jovem ideal, Peter Parker e o H om em -A ranha. O texto da capa os problemas de qualquer outro jovem; mas, vestindo uma fantasia,
mostra justamente isso, o que o jovem é e o que ele quer ser. tornava-se um super-herói, aquele que não precisa ter dúvidas quan
Os super-heróis como Capitão América, Batman e Superman to ao que deve fazer, que pode ironizar, lutar pela liberdade e exercê-
eram relativamente sem personalidade, um tanto quanto vazios, além -la parcialmente. Os diálogos do H om em -A ranha nos combates com
do sentido de dever, do bom-mocismo e do moralismo. A juventude seus inimigos são recheados de ironia, hum or e irreverência, mostrando
emergente exige uma maior complexidade dos personagens; e a irreve uma transgressão imaginária, um desejo de liberdade que acompanha
rência, a ironia, a ambiguidade, marcada pela situação da juventude na o inconsciente coletivo e especialmente a juventude (V iana , 2005).
sociedade moderna (V ia na , 2004), provocam uma composição mais Ele é uma reprodução dos dilemas juvenis, e os conflitos interiores
complexa dos personagens. É por isso que Renard (1981) irá afirmar do personagem refletem isso, tornando-o um personagem que agrada
que os super-heróis da Marvel são mais humanos, possuem defeitos e a juventude. Assim, o público jovem precisa do herói ou super-herói
sentimentos. para realizar na fantasia o que não pode ser feito na realidade, devido
O jovem Peter Parker não queria ser um super-herói. Ele vestiu a ao processo de opressão e ressocialização a que está submetido. É esta
fantasia de H om em -A ranha para lutar no ringue e ganhar dinheiro. situação do jovem que o predispõe para se inspirar e cultuar os heróis
Sua opção por ser um super-herói foi provocada pela morte de seu tio e super-heróis. É por isso que alguns, tal como Sidney H ook (1962),
e pelo sentimento de culpa, pois antes ele havia se encontrado com o naturalizam “o culto juvenil do herói”, não percebendo que se trata de
assaltante e não impediu sua fuga por não considerar problema dele. um fenômeno social.
Neste contexto, o H om em -A ranha era o “tipo ideal”, pois ele mesmo Outro personagem juvenil da época é o Tocha Humana. A origem
era jovem e assumia a identidade juvenil com suas irreverências e iro do Tocha Humana, tal como a de todo o Q uarteto Fantástico, são os
nias, abrindo caminho para a popularidade na faixa da população que raios cósmicos. O Tocha H um ana também é jovem, suas aparições são
mais consumia quadrinhos na época. A juventude não é algo dado pela bem-humoradas, tal como em suas contendas com o Coisa, bem como
idade ou pela biologia; ela é sim um produto social ( V i a n a , 2004), no mostra outros interesses juvenis, como o namoro, inclusive sua aproxi-
34 N ildo Viana Breve história dos super-heróis 35
mação com Cristal (posteriormente batizada de Cristalis),8 integrante viram os desenhos das primeiras histórias de H ulk e os filmes citados,
do grupo Os Inumanos, raça de superseres comandados por Raio N e poderão observar a semelhança na aparência dos dois monstros. D a
gro e de origem alienígena (esse grupo foi criado em 1964 e sempre mesma forma que M ister H ide, H ulk não se controla e, quanto mais
aparecia nas histórias do Q uarteto Fantástico). perde o controle, mais forte fica. A origem do H ulk e sua aparência
O período histórico de 1949 a 1955 não foi uma época de muitos dem onstram a mesma crítica dos produtos científico-tecnológicos
monstros. Após o crescimento espetacular dos monstros no cinema, que já se encontra em O Médico e o Monstro. Este é o caso também do
nos anos 1930, através da Universal Pictures (Drácula, Frankenstein, Coisa, tam bém de aparência horrível, seu principal dilema. A viagem
Homem-Invisível, M úmia, Lobisomem), houve uma diminuição na espacial e o contato com raios cósmicos - só possível com uso de
produção cinematográfica e um novo crescimento começa paulatina naves e aparelhos tecnológicos - transform am -no em um monstro,
mente a partir de 1955. Os super-heróis anteriores nunca foram apre de forma involuntária e apenas na aparência, pois ele controla suas
sentados como monstros, pois esse papel cabia aos supervilões. Porém, ações. Sua origem, portanto, está intim am ente ligada aos produtos
o Incrível H ulk e o Coisa são super-heróis. Esses dois super-heróis não científico-tecnológicos que possibilitam sua mutação/deformação, o
são da linha do sobrenatural, tal como Drácula, Lobisomem e outros, que se revela em sua aparência física.
ou como supervilões deformados como alguns inimigos de Batman, O utros super-heróis da M arvel Comics estão intim am ente li
Pinguim, por exemplo, ou inimigos do Capitão América, tal como o gados com o desenvolvimento tecnológico e científico, como os X-
Caveira Vermelha. Eles estão mais próximos da criação humana, tal M en, Inumanos, H om em de Ferro etc. Porém existiam exceções. Os
como Frankenstein e M ister H ide (Dr. Jekill). Eles compõem a “via seres superpoderosos ganham seus poderes ou nascem com eles. G e
B”de construção de monstros, segundo terminologia de Lenne (1974), ralmente, são os alienígenas e deuses que nascem com superpoderes.
que não se fundam enta no sobrenatural, que seria a “via A”, e sim no No caso da M arvel, a mitologia nórdica forneceu a base para o surgi
próprio ser humano. Frankenstein é produto de um cientista e Dr. Jekill mento de Thor, o Deus do Trovão, e todos os deuses de Asgard (Odin,
é um médico que se transforma em monstro. A inspiração para a cria Balder, Sif, Karnak, Voolstag, H eidall etc.), inclusive os maus, como
ção do Hulk, segundo Stan Lee, foi justam ente O Médico e o Monstro, Loki, m eio-irm ão de Thor e seu grande inimigo, além de inúmeros
ou seja, a história de Dr. Jekill e Mr. H ide, que, além do livro, já pos seres (os Krolls, por exemplo) e monstros poderosos, como Ragnarok.
suía, nessa época, duas versões cinematográficas (1939 e 1943). Assim, Zeus e Hércules são outros deuses que, inspirados na mitologia grega,
H ulk não apenas recorda Dr. Jekill, como coloca Renard (1981), mas é convivem, neste mundo fantástico, no mesmo universo fictício que a
inspirado diretamente nele. população de Asgard.
O cientista Bruce Banner foi exposto aos raios gama e se transfor Essas exceções não anulam o processo fundamental da influên
ma num a figura gigantesca, poderosa e horrível. Para aqueles que já cia do desenvolvimento científico-tecnológico e da ficção científica
na produção dos super-heróis da M arvel Comics. Os Deuses e seres
mágicos (como D outor Estranho) não possuem seus poderes por se
8 O s nomes dos super-heróis sofreram alterações dependendo da época e editora res
rem alienígenas (Superman), por usarem aparato tecnológico (Batman,
ponsável no Brasil, e não apenas seus nomes, mas outros elementos, tal como o M ar
telo de Thor, que de U ru passou a ser de Mjolnir. H om em de Ferro), por terem sido afetados por radioatividade ou qual
36 N ildo Viana Breve história dos super-heróis 37
quer outra experiência científica (Q uarteto Fantástico, Hulk, Tubarão, tórias em quadrinhos mudam neste contexto, pois o processo de ascen
Demolidor, X -M en) ou por pertencerem a outra raça (Namor e os são das lutas sociais promove o recuo da intervenção estatal e da classe
Atlantes, e os Inumanos). A fonte de seus superpoderes é misteriosa e dominante em determinadas esferas. Isto se manifesta especialmente
esta é a diferença. Q uando a supervilã Feiticeira lança um feitiço sobre no plano cultural, realizando o que Marcuse (1971) denominou con-
uma moça louca e a transforma em Valquíria (integrante do grupo Os trarrevolução preventiva. Sendo assim, a partir de 1970, ocorrem m u
Defensores, junto com D outor Estranho, Hulk, Namor, Gavião, Sur- danças sociais e, nos quadrinhos, elas atingem diretamente o mundo
fista Prateado, entre outros), descobre-se como esta última se tornou dos super-heróis. Além do que já foi colocado anteriormente, é neste
uma super-heroína, ao se libertar do domínio da outra, mas o super- período que ocorre a liberalização do código e afrouxamento da cen
poder da outra, origem do dela, permanece um mistério. Não existe sura sobre os quadrinhos, como parte do processo de contrarrevolução
nenhum apelo místico ou religioso em tais super-heróis e supervilões. preventiva: “Em janeiro de 1971 os quadrinhos podem por fim abor
Eles são como qualquer outro super-herói, tendo virtudes e defeitos, dar determinados temas tabus, como a sedução e a droga, e também
bondade e maldade. E vivem num mundo fictício lógico e organizado mostrar certa simpatia pelos criminosos, e até duvidar das autoridades
racionalmente. Thor é um Deus que luta com seres humanos superpo- oficiais” (Baron -C arvais, 1989, p. 30). Embora ainda com restrições,
derosos (Os Vingadores) ou contra eles (supervilões, Os Defensores). no caso dos EUA, a censura é abrandada.
Isto mostra o quanto os deuses do mundo Marvel foram secularizados, O público juvenil dos períodos anteriores torna-se adulto, e par
e seu único diferencial é a origem misteriosa de seus superpoderes, o te continua lendo super-heróis, o que também reforça a tendência de
que, no entanto, é semelhante à origem dos superpoderes dos alieníge reformulação do mundo dos super-heróis. Isto é reforçado por uma
nas e raças diferentes, já que nascem com tais superpoderes. maior politização da juventude nesse período. Os personagens devem
tornar-se mais complexos, os temas mais sérios e assim por diante. No
início dos anos 1960, o Batman com sua batfamília (Batwoman, Batgirl,
O envelhecimento dos super-heróis Batmirim, Batcão...), que fornecia um ar conservador e familiar para
resistir a críticas como a de W ertham, significou a infantilização desse
O mundo dos super-heróis foi abalado pelas mudanças sociais super-herói em grande escala, o que foi reforçado pela série da T V nos
ocorridas a partir da segunda metade dos anos 1965, principalmente anos 1960, tal como Superman também tinha sua família; e, a partir do
a partir de 1968. O mundo inteiro foi abalado e a ficção também. Já a final dos anos 1960, com Neal Adams, que passa a ser um super-herói
partir dos anos 1965, há uma mudança provocada pelas transformações mais complexo.
sociais, como a contracultura, a ascensão de alguns movimentos sociais O envelhecimento do público também provoca o envelhecimento
(direitos civis, negro, feminista e estudantil), as lutas sociais que co dos super-heróis da Marvel Comics. Esse processo gerou no mundo
meçam a retomar certa radicalidade, entre outros fenômenos. É neste dos quadrinhos novos temas, personagens, acontecimentos. No caso do
contexto que o mundo dos quadrinhos passa a ter uma forte expansão Homem-Aranha, ocorreu a morte de Gwen Stacy, sua namorada, e foi
dos quadrinhos eróticos (Barbarella, Saga de Xam etc.) e de horror resultado do dilema entre matar a personagem ou promover seu casa
(Kriminal, Diabolik, Satanik). Isto continua até os anos 1970. As his mento com Peter Parker. A opção foi a primeira, mas sua existência já
38 N i/do Viana Breve história dos super-heróis 39
revelava que Peter Parker estava entrando no mundo adulto e a solução da década de 1960, como Ms. Marvel, criada em 1968 e que ganhou
foi apenas um adiamento em um dos aspectos da vida adulta, tal como revista própria nos anos 1970; M ulher-Aranha (1977); a Gata (1972),
muitos indivíduos o fazem. A decisão foi prorrogar a transição desse entre outras. Apesar da falta de criatividade na criação de personagens
personagem para a vida adulta e que só foi concluída em 1987, quando femininos, o que continua até hoje, visto que são geralmente versões fe
ocorreu seu casamento, com outra personagem. Assim, o Hom em-Ara- mininas de super-heróis masculinos, tal como M ulher-Aranha, M ulher-
nha dos anos 1970 é um meio-adulto, que passa a viver questões mais -Hulk, Shanna (era versão feminina de Tarzan para a Marvel e depois
complexas e profundas que no período anterior. Harry Osborn se mostra se tornou esposa de Ka-Zar, outra cópia do mesmo personagem, só que
novamente envolvido com LSD, o que é sugestivo e expressão da época. inserido no mundo Marvel), Ms. Marvel etc., que até os uniformes são
A Marvel Comics lança novos personagens, entre eles Luke Cage semelhantes aos de seus predecessores masculinos (Homem-Aranha,
e Falcão, ambos personagens negros. A criação de personagens negros, Hulk, Tarzan, Capitão Marvel, respectivamente). Raras foram as exce
que já existiam na Marvel, tal como Pantera Negra (1966) e Falcão ções, como Tempestade, do grupo X-M en. Também os sucessos da cul
(1969), que passa de criminoso para ajudante do Capitão América. tura mercantil e cinematográfica terão grande impacto na Marvel, e isso
A origem, na ficção, de Luke Cage e Falcão é o Harlem, bairro negro justifica a criação de A Tumba de Drácula e Blade, o Caçador de Vampi
norte-americano, e ambos são, inicialmente, criminosos. Já o Pantera ros, e os diversos personagens ligados ao Kung-Fu, na era de Bruce Lee e
Negra, é um príncipe de um fictício país africano. Porém é a partir dos filmes do gênero: Shang-Chi, o Mestre do Kung-Fu, foi o principal,
de 1970 que Luke Cage (1972) aparece e o Pantera Negra passa a ao lado de Punhos de Aço (ou Punhos de Ferro, dependendo da versão)
ter aventuras próprias. Em 1975, surge Tempestade, integrante dos X- e diversos outros (G uedes , 2008). A mudança formal também ocorre
-M en, e Golias Negro (1976). A D C Comics também cria diversos su- com os desenhos ganhando maior qualidade e precisão e substituindo
per-heróis negros: Vikin, o Negro (1971); Núbia, a irmã negra da M u- os traços menos realistas ou mais caricatos que ainda existiam. Os traços
lher-M aravilha (1973); o Lanterna Verde reserva que era negro, John se tornam mais precisos, e isto não é gratuito, ou seja, reflete o processo
Steward; Black Ligthtning —Raio Negro (não confundir com o outro axiológico por detrás dos super-heróis (R eblin , 2008).9
Raio Negro da Marvel Comics, líder dos Inumanos, e, muito menos,
com o super-herói brasileiro homônimo), entre outros. A emergência
de super-heróis negros está ligada ao processo de fortalecimento do
9 “No corpo dos super-heróis, encontram -se os modelos e padrões da cultura dom i
movimento negro nos anos 1960, ao uso dessa temática como novo nante. Por um lado, é um corpo axiológico, mas tam bém contextuai, pois ele mantém
filão de mercado e como parte da contrarrevolução preventiva. Os ne as características de uma época específica, que m udam com o tempo, como pode
ser verificado num a comparação entre os corpos do Super-H om em e do H om em -
gros passam a ocupar um lugar no mundo do capital comunicacional
-Aranha, bem como do próprio H om em -A ranha, em seu ano de concepção e o perí
e nos meios tecnológicos de comunicação como resultado das lutas odo atual” ( R e b l i n , 2008, p. 61 ). A axiologia se manifesta diferentem ente em épocas
diferentes, já que ela é “uma determ inada configuração do padrão dom inante de va
sociais e de seus efeitos posteriores, e isto irá atingir o capital editorial.
lores” ( V i a n a , 2007b) e por isso o super-herói vai possuir aparência física distinta em
Mas o capital editorial não se limitará a abordar a questão das dro épocas distintas, sendo, portanto, manifestações axiológicas de cada época histórica.
gas, a criar personagens negros, pois irá também expandir o número de M as existem outras determinações na produção da aparência física do super-herói e,
por isso, seu caráter axiológico depende de um estudo concreto (determinado super-
personagens femininas que expressam a ascensão do feminismo no final -herói em determ inada época, por exemplo).
40 N ildo Viana Breve história dos super-heróis 41
Na D C Comics, os super-heróis também começam a ganhar mais Se, em 1954, foi criada uma versão jovem do Superman, o Superboy,
complexidade. As histórias simples e ingênuas de Batman e Superman isto se devia ao fato de que a D C Comics não produziu novos super-
já não agradavam a totalidade do público. E, por isso, a D C teve de, atra -heróis adequados à época, como fez a M arvel Comics, e apenas bus
vés dos responsáveis por sua produção, complexificar os personagens. Neal cou adaptá-los, sem o mesmo êxito e qualidade.
Adams e Dennis O ’Neil foram os responsáveis pela remodelação do A r A D C Comics também buscou criar novos personagens adequados
queiro Verde. O Arqueiro Verde, ao lado do Lanterna Verde, envolvia-se à época, mas sem o mesmo brilho que a Marvel. Assim, a M ulher-
em debates mais sérios e politizados com o Lanterna, opondo-se a seu -Maravilha ganhou mais destaque por ser uma personagem feminina,
conservadorismo. Além disso, ele perdeu sua fortuna e passou a se pre e outras super-heroínas foram criadas, como Orquídea Negra. Tam
ocupar com questões sociais e a se aproximar das classes exploradas. Ele bém o Kung-Fu ganhou espaço, com Karatê Kid e Dragão do Kung
também ganhou uma “personalidade própria”, tornando-se mais tempera Fu, publicado na revista Kung Fu Fighter, não por coincidência nome
mental. Em uma das histórias, aparece o tema do vício em heroína de seu semelhante ao do grande sucesso musical da época: Kung Fu Fighting.
ajudante Ricardito, exemplo de sua aproximação com a realidade social. Esse processo todo teve como determinação fundamental as trans
Batman ficou mais complexo também, remontando suas origens. formações sociais ocorridas a partir da segunda metade da década de
Robin passou a ser um estudante universitário, e as histórias do H o- 1960, o que fez surgirem novas temáticas e super-heróis, bem como foi
mem-M orcego deixaram de ser em dupla e passaram a ser ambienta reforçado pelo público adulto leitor de quadrinhos, e uma maior poli-
das no período noturno. O Superman também ficou mais complexo e o tização da juventude, criando um mercado consumidor que reforçava
tema da morte também aparece, tal como quando foi infectado por um essa renovação temática. A crise do regime de acumulação intensivo-
vírus alienígena consciente e, devido a isso, quase morreu. A criação, -extensivo a partir do final dos anos 1960 e o processo de lutas sociais
em 1960, da ideia de uma “Terra 2”, um planeta Terra paralelo, onde forçam a concessões, novas temáticas, novos personagens, que estão liga
os super-heróis das origens de 1940 ainda existiam e envelheciam, só dos ao processo de contrarrevolução preventiva, que permeará a cultura
foi amplamente utilizada a partir dos anos 1970. Em 1966, surge o dos anos 1970. Porém, se os anos 1970 foram marcados por uma con
Superman da Terra 2. Mas é a partir de 1971 que se busca reformular o trarrevolução cultural preventiva e pela tentativa de resolver a crise do re
Superman e, por isso, Dennis O ’Neil é chamado para realizar a trans gime de acumulação intensivo-extensivo, sem alterá-lo, a partir de 1980,
formação desse personagem, tal como havia feito com Batman. temos a emergência de um novo regime de acumulação, o que provocará
Assim, as histórias do Superman mudam através do Superman da vários efeitos sobre os quadrinhos e o mundo dos super-heróis.
Terra 2, que envelhece, abandona o jornal Planeta Diário e passa a ser
apresentador de telejornalismo na rede W G BS, que adquiriu o refe
rido jornal. Ele perde parte de seus superpoderes para uma duplicata, A reorganização e a inovação no mundo dos super-heróis
através de uma experiência de laboratório, que também destrói toda
kryptonita existente no planeta Terra. A mudança mais significativa e A emergência do capitalismo neoliberal, marcado pelo regime de
que demonstra sua entrada definitiva na vida adulta é seu casamento acumulação integral, provoca várias mudanças no mundo dos super-
com Lois Lane. Porém o Superman era diferente do Hom em -Aranha. -heróis. O novo regime de acumulação foi formando-se paulatinamen-
42 Nildo Viana Breve história dos super-heróis 43
te a partir da reestruturação produtiva do neoliberalismo e do neoim- permitiu solucionar algumas contradições do Superman, mas criando
perialismo, sendo que avança mais rápido em alguns países, apesar de outra enorme confusão, principalmente na cabeça dos leitores. Ao con
suas especificidades. Os anos 1980 são marcados pela emergência desse trário da Marvel Comics, na qual a coerência era mantida, a D C tinha
novo regime de acumulação, sendo que, no final da década de 1980, já é histórias de Superboy e histórias em que o Superman só existe a partir
hegemônico e se consolida nos anos 1990.10 O que ocorre é que as his da idade adulta, o que as diversas “Terras” solucionavam, colocando um
tórias em quadrinhos passam a reproduzir, intencionalmente ou não, em uma Terra e outro em outra. Superman torna-se menos poderoso
características desse período. Como resultado do novo regime de acu e seu alterego, Clark Kent, deixa de ser uma figura exageradamente
mulação, temos o aumento da exploração dos trabalhadores, aumento simplória. Também deixa de ser o herói sem dilemas e até passa a ter o
do desemprego, intensificação da criminalidade, violência e pobreza, papel de joguete nas mãos de um governo, que, nos bastidores, é con
em todo o mundo. Já a partir do final dos anos 1990, há uma ascensão trolado por Lex Luthor, tal como em O Cavaleiro das Trevas II, história
das lutas sociais, o que abre espaço para novas mudanças no mundo dos de Batman, sem falar em crises de consciência e de identidade. A morte
quadrinhos, tal como mostraremos adiante. da Supermoça é outro elemento das mudanças da superaventura, sendo
Esse processo de mudanças começa a atingir o mundo dos super- assim a morte tematizada e concretizada no mundo dos super-heróis.
-heróis. A principal mudança formal manifesta-se nos desenhos de O próprio Superman morre em 1993, para depois ressurgir das cinzas,
grande parte do mundo dos super-heróis: super-heroínas formosas e o que promoveu uma grande vendagem de sua revista que não andava
traços realistas e coloridos, alguns com maestria, tal como nos super- muito lucrativa.
heróis da Image Comics. A Mulher-Maravilha, por exemplo, passa a ter Batman, por sua vez, torna-se mais sombrio, voltando às origens e
uma representação de seu corpo semelhante às super-heroínas da Image indo além dela, pois ganha em violência e em dilemas existenciais. A
Comics, ganhando em sensualidade. O desenvolvimento tecnológico e a partir dos anos 1980, Batman passa a ser um herói que reflete a reali
nova era dos super-heróis promovem um aprimoramento formal. Porém dade de crescente violência e desesperança. Em O Cavaleiro das Trevas
as grandes mudanças ocorrem na instância do conteúdo das histórias. (1986), está num futuro sombrio, com mais de 50 anos, vivendo uma
A partir de 1986, John Byrne começa a modificar o Superman. crise de identidade e mostrando-se violento. Em Piada Mortal (1988),
Isto ocorre após a série “Crise nas Infinitas Terras”, na qual se busca há a repetição do problema existencial: Batman procura o Coringa
solucionar o confuso processo de existência de diversas “Terras”, o que para evitar que um mate o outro, além da violência também presente,
que atinge um grau elevado quando o Coringa tortura o comissário
Gordon ou então quando deixa Bárbara Gordon, a Batgirl, aleijada.
10 É comum chamar o período de 1970 a 1986 de “era de bronze dos super-heróis” (veja,
Em Cavaleiro das Trevas II, isso acaba repetindo-se, pois num futuro
por exemplo, G u e d e s , 2008). Porém consideramos a terminologia “era de bronze” abs sombrio e fascista comandado por Lex Luthor, Batman também se
trata e pouco esclarecedora e a nova fase surge um pouco antes, no final da década
de 1960, sendo que alguns elementos vão desenvolvendo-se e completando-se com o
revela sombrio e enfrenta Superman, fiel serviçal do poder.
passar dos anos, e o ano de 1986 para término do período já possui mais elementos a O mundo Marvel também sofrerá mudanças. A partir da década
seu favor, tal como o lançamento de Crise nas Infinitas Terras e Cavaleiro das Trevas, mas
de 1980, os personagens passam a ter novidades. O H om em -A ranha
deixa de lado o lançamento de Guerras Secretas, que lhe é anterior, 1984, e outras peque
nas mudanças que vão culminar com tais séries e outros desdobramentos posteriores. finalmente chega à idade adulta, com seu casamento com M ary Jane,
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em 1987, assim como outros super-heróis passam a ter modificações. A A busca de mercado consumidor fez ressuscitar os chamados cros-
partir da série “Guerras Secretas” (1984), há uma alteração importante sovers, embates entre super-heróis que tiveram grande sucesso, quando
no mundo Marvel. Este processo vai sendo ampliado e um super-herói foi lançado em 1976 a luta entre Superman e H om em -Aranha, e os
acaba destacando-se no mundo Marvel como símbolo da época: W ol leitores puderam ver Batman versus Hulk, bem como X -M en versus
verine. Um super-herói mais violento e agressivo, mas também mais Novos Titãs (grupo da D C Comics que teve vários personagens acusa
decidido. Este integrante do grupo X -M en terá uma ascensão e se tor dos de serem plágios dos mutantes da Marvel: Ravena de Tempestade;
nará no capitalismo neoliberal um dos principais super-heróis Marvel. Ciborg de Colossus etc.), entre outros. Porém a grande estratégia foi
O utra modificação no mundo dos super-heróis deste período re o lançamento das séries e minisséries. Foi devido a isso que surgiram
side na adequação ao admirável mundo neoliberal em seu processo de as séries Crise nas Infinitas Terras e Cavaleiro das Trevas (I e II), en
hipermercantilização, gerada pela necessidade de reprodução ampliada tre outras, da D C Comics, e Guerras Secretas (1984), Guerras Secretas
do consumo num mundo já consumista e de nível elevado de consu I I (1986), até chegar às mais recentes, tal como Guerra Civil (2006-
mo (por determinados setores da população e com maior índice em 2007), pela Marvel Comics.
determinados países, que fique claro). As modas e os produtos cultu O utra estratégia foi o lançamento das Graphic Novels,u que, no
rais passam a ser cada vez mais efêmeros, e a renovação deve ocorrer mundo dos quadrinhos dos anos 1980 até hoje, foram a forma para se
mais rápido. Isto significa, para o capital editorial dos quadrinhos, a referir às publicações encadernadas, com preço mais elevado e histó
necessidade de ampliar o mercado consumidor, criar novos nichos de rias mais longas, geralmente para o público adulto. Entre as principais
mercado, renovar mais rapidamente a produção, entre outras estraté Graphic Novels lançadas, temos Cavaleiro das Trevas (a minissérie enca
gias. Neste contexto, também há um acirramento da competição entre dernada) e A Morte do Capitão Marvel. Foi a partir dos anos 1980 que a
os oligopólios do capital editorial dos quadrinhos (especialmente D C Marvel lançaria a M arvel Graphic Novels, publicando mais de 35 obras.
Comics e Marvel Comics)11 e entre os demais concorrentes menores.12 A intenção das Graphic Novels é atrair os setores mais intelectualizados
e daí a maior complexidade das histórias, acompanhadas por questões
éticas, existenciais, políticas, entre outras. Se, na década anterior, bus
cou-se atrair o público adulto, na nova década, o público que se busca
agregar (além de nichos de mercado específicos, como mostraremos
11 A história em quadrinhos com certeza não é a galinha dos ovos de ouro que foi na
década de 70. A concorrência é brutal” ( Q u e l l a - G u y o t , 1994, p. 98). adiante) é principalmente o público formado pelos setores intelectua-
12 Existiram outras grandes produtoras de super-heróis, tal como C harlton Comics,
Atlas Comics, First Comics etc. Focalizamos aqui a M arvel Comics e a D C C o
mics por serem as duas maiores e mais significativas fábricas de super-heróis. São as
que produziram a maior quantidade e qualidade de super-heróis (embora houvesse 13 “Romances Gráficos”, em tradução portuguesa aproximada, cuja definição é polêmica
produções de qualidade semelhante ou, em certos aspectos, até superior a da D C e remete a certa confusão entre a ideia de usar os quadrinhos para trabalhar narrativas
Comics, mas sem conseguir vencer a competição capitalista no mercado editorial), longas e elaboradas, como M aus (Arnoul Spielgeman) e Contrato com Deus (escrito
e tam bém o maior sucesso de público e comercial. A D C Comics só conseguiu isso por W ill Eisner, criador de Spirit), com os usos das grandes produtoras de quadrinhos
porque Superman e Batm an tornaram -se grandes sucessos, devido a um a série de fa de aventura e super-heróis, tal como Sandman, W atchmen, entre outros. U m a term i
tores, o que foi suficiente para essa empresa conseguir m anter-se e buscar renovar-se nologia mais adequada seria tratar os primeiros como “romance em quadrinhos” e os
em outras estratégias que perm itiram um lugar ao sol. últimos como “Quadrinhos épicos”. Desenvolveremos isto em outra obra.
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lizados, ou seja, adultos mais exigentes e com maior poder aquisitivo. A busca do mercado consumidor também ganha espaço no ape
Segundo Quella-Guyot: lo para emoções mais fortes e mudanças mais bruscas. A morte da
Supermoça é apenas um dos elementos desse processo. Em Crise nas
O álbum se impõe, enquanto as revistas se resumem às pré-publi- Infinitas Terras, vários super-heróis da D C Comics morrem, embora
cações publicitárias, o que faz delas apenas catálogos de editores, sem
a maioria sem grande importância. O lançamento de A Morte de Su-
alma e, em consequência, sem público. Por outro lado, os álbuns apare
cem antes do fim da pré-publicação, o que em nada estimula os leitores perman provocou uma grande vendagem. Logo seria lançado O Retor
a continuar a sê-lo. Em 1 9 8 9 , 2 8 8 das 540 publicações novas foram ál no de Superman. M uitos outros morreram e ressuscitaram a partir de
buns “diretos” (ou seja, 53,3%), quer dizer, obras nunca pré-publicadas, 1980, embora alguns não tenham tido essa sorte. Os grandes confron
o que reduz muito a remuneração dos autores, que antes se beneficia
tos apocalípticos também atraíram o público, tal como Guerras Secretas
vam de direitos de cada aparecimento ( Q u e l l a - G u y o t , 1 9 9 4 , p. 9 7 ) .
e Guerra Civil, da Marvel, além das Crises da D C (Crise nas Infinitas
Terras, Crise de Identidade, Crise Infinita e Crise Final). Além disso, a
Com exceção do preço, o álbum (tanto o que é chamado Graphic
crise de identidade e os processos psíquicos ganham relevância, o herói
Novels, os quadrinhos épicos, quanto as séries e minisséries que são
já não é mais tão herói assim, bem como suas certezas se transformam
posteriormente encadernadas) traz para o leitor várias vantagens:
em incertezas. É isso que irá provocar o descontentamento dos leitores
O gosto pela obra completa, acessível a uma única leitura e que se mais antigos, acostumados a um mundo onde a linha entre o bem e o
pode organizar por autores à feição de outros livros, está na origem da mal é claramente delimitada.
alarmante rejeição das revistas, produto de aparência menos sólida e mais
perecível. De apresentação cada vez mais resistente (capa dura e edições Afinal, depois do bronze veio a ferrugem. Ferrugem nos sorrisos,
de luxo), os álbuns são o sinal evidente do sucesso do autor e marca de corações e mentes. E os nossos heróis, que sobreviveram bravamente
propriedade do leitor, que pode a todo momento reler “seu” livro. Esse a guerras secretas, invasões alienígenas e desafios infinitos, pereceram
público “ado-adulto” gosta de encontrar uma narrativa completa, se bem tristem ente na pior das armadilhas: o pântano dos burocratas que nun
que agora assistamos à publicação de quatro ou cinco títulos que dão uma ca, sequer, leram um gibi na vida ( B a r a l d i , 2 0 0 8 , p. 7 ) .
volta ao mundo. A revista apresentava o inconveniente essencial de apre
sentar tiras pouco apreciadas pelo leitor, que tinha de admitir em “sua”
revista autores de que não gostava. A compra de álbuns só oferece, dessa A época anterior é apresentada como sendo de emoção e inteligência,
perspectiva, vantagens (afora o custo) ( Q u e l l a - G u y o t , 1 9 9 4 , p. 9 7 ) . 14 época na qual “artistas talentosos trabalhavam em uníssono em animadas
redações e estúdios, afinados e orquestrados por um maestro genial que tinha
moléculas de HQ_em cada célula do sangue”. Período em que a produção
14 Sem dúvida, não é possível concordar com a totalidade das afirmações de Q uella-
era diferente “do processo de criação isolado, firio e impessoal de hoje”.
-G uyot, mas, no geral, ele expõe algumas tendências e dados estatísticos sobre o m er
cado dos quadrinhos. Para muitos, os nostálgicos e leitores antigos, bem como para Uma época na qual o Bem era realmente o Bem e o M al realmente o
os de baixo poder aquisitivo, as revistas ainda são as grandes opções, convivendo ou
Mal. M uito diferentemente das crises nas infinitas cabeças vazias que asso
não com a tolerância ou o consumo dos álbuns. O utro inconveniente das revistas é a
laram o mercado de hoje, embaralhando valores e varrendo noções de mo
necessidade de estar sempre indo às bancas para comprá-las, para não se perder nú
meros de séries. D e qualquer forma, houve um crescimento da produção e consumo ral e ética para alguma dimensão tão distante que nem o passivo e afetado
de álbuns e isto acabou influenciando a produção fictícia dos quadrinhos. personagem conhecido como O Vigia tem acesso... ( B a r a l d i , 2 0 0 8 , p. 7 ) .
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Esse posicionamento nostálgico parte de uma concepção que é a sido resolvido com a manutenção dos super-heróis, tal como existiam,
que predominou no mundo dos super-heróis na maior parte de sua e a criação de novos, adequados às novas exigências.
história: o moralismo e a defesa da ordem. Também não percebe que D e qualquer forma, houve uma mudança no mundo dos super-
a burocracia está mais presente nas redações e estúdios com um “ma -heróis da D C e da Marvel, expressão da ascensão do regime de acu
estro” (burocrata) comandando a “orquestra”. O que houve foi apenas mulação integral e, consequentemente, das mudanças sociais e cultu
uma mudança na organização burocrática devido à necessidade mer rais que ocorrem em decorrência dele. No entanto o mercado editorial
cantil do capital editorial. Q uando se coloca em questão isso, quando viu o nascimento de novas safras de super-heróis e não seria possível
o super-herói não é mais tão puro e honesto quanto se pensava, então esquecê-las em nome da hegemonia e do tradicionalismo da Marvel e
aquilo que ele simboliza também cai por terra. O Batman de Piada da D C Comics. Os super-heróis produzidos pela Image Comics e o
Mortal acaba rindo com o Coringa, e a história mostrou a pobreza, o exótico Authority merecem um espaço em qualquer análise do mundo
desemprego, o envolvimento com a criminalidade, a perda do filho e da dos super-heróis.
esposa e a perseguição por Batman, que o faz cair em um contêiner de A Image Comics surgiu a partir da saída de desenhistas e rotei
produto químico e tornar-se um supervilão, ou seja, mostra a produção ristas da M arvel Comics em 1992, por motivos relacionados à ques
social do criminoso. Claro que o substituto do super-herói conservador tão financeira e aos direitos autorais. Entre os super-heróis criados
não foi um super-herói melhor, e sim ambíguo, refletindo o relativismo pela Image, o maior sucesso foi Spawn, o Soldado do Inferno, mas
reinante no mundo contemporâneo. M as não é a volta ao mundo idíli Dragon, Angela, W itchblade e os grupos W ildC .a.t.s. e Gen, entre
co dos antigos super-heróis que é o desejável. outros, tam bém tiveram algum sucesso. A Image Comics produziu
A era das incertezas é a era do capitalismo neoliberal, marcado um conjunto de super-heróis conservadores e violentos. O conserva
pela ascensão da ideologia pós-estruturalista e pós-vanguardista, pela dorismo revela-se no fato de que grande parte deles trabalha para o
violência, pelo relativismo, pela falta de utopia. Neste contexto, as his sistema policial ou serviço secreto norte-am ericano, além de rótulos
tórias de Superman e Batman, por exemplo, não expressam nenhuma constantem ente utilizados como “comunas” (em um período no qual
crise como o chamando “fandom”15 e alguns especialistas a afirmam. a G uerra Fria já havia acabado). Usando linguagem torpe e desenhos
N a verdade, o que ocorreu foi um processo no qual os antigos e desa belos, incluindo as super-heroínas em trajes e formas atraentes, além
tualizados super-heróis já não se adequavam mais ao mundo contem da novidade e outros atrativos, a Image Comics conseguiu ultrapas
porâneo, no caso do público adulto e intelectualizado, bem como para sar a D C Comics, ficando em segundo lugar durante parte dos anos
o público juvenil mais politizado e/ou intelectualizado. Sem dúvida, a 1990, e teve um novo impulso com o lançamento do filme Spawn e
estratégia comercial foi problemática, pois desprivilegiou uma parte do seu sucesso, bem como, em m enor grau, com o seriado de T V Witch
público (crianças e pessoas menos intelectualizadas), o que poderia ter blade. O forte da Image Comics foi justam ente a “imagem”, isto é, os
desenhos, pois as histórias não tinham nem a riqueza, nem a com
plexidade da M arvel Comics, e mesmo da D C Comics em seus m e
15 Fandom é o conjunto de fãs de um determ inado produto artístico ou cultural, ou de
lhores momentos. A crise do capital editorial dos anos 1990 atingiu
seus realizadores, tal como quadrinhos (ou algum gênero em seu interior, ou, ainda,
personagem etc.), programa da televisão, artista etc. a Image, uma das responsáveis pela mesma e ligada à especulação dos
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quadrinhos nesse período, no qual se investia em revistas esperando detoná-los ou fazer menções irônicas ou cômicas. Assim, a politiza-
que, posteriorm ente, estas pudessem ser vendidas a preço de ouro, o ção acaba transform ando o A uthority em um grupo que defende a
que acabou revelando-se um a fantasia. democracia e não a transformação social, tal como os policiais norte-
O utro grupo de super-heróis criado foi o The Authority, que sur -americanos muitas vezes passam por cima da lei e dos superiores
ge em 1999 após a crise do mercado editorial, cujos criadores saem para fazer justiça com as próprias mãos, o que não altera nada nas
da Image Comics, e acaba sendo publicado pela D C Comics (sem relações sociais.
participar do mundo de super-heróis da D C Comics). The A uthority D esta forma, o surgimento dos super-heróis conservadores da
é um grupo de super-heróis que combatem não apenas supervilões e Image Comics ocorre justam ente na época em que o neoliberalismo
seres alienígenas poderosos, mas ditadores, governos e até Deus, que se torna o “pensamento único” e é instaurado em países que ainda
eles destruíram em um combate. Os super-heróis do A uthority são resistiam em aderir ao novo mundo político institucional. Já o The
mais politizados e querem “um m undo m elhor”. Por isso interferem A uthority é produto da ascensão das lutas sociais do final da década
na invasão russa na Chechênia, criticam os grandes capitalistas e o de 1990, incluindo o chamado “movimento antiglobalização”, com
governo dos Estados Unidos e possuem personagens homossexuais, suas diversas tendências, ambiguidades e sua influência do pós-estru-
que são os super-heróis Apoio e M eia-N oite, além de bissexuais. O turalismo, anarquismo e marxismo, revelando as mesmas indefinições
casamento de Apoio e M eia-N oite, que segundo alguns seriam ins desse movimento e as demandas de grupos ascendentes (ideologia
pirados em Superman e Batman, é o coroamento dessa aparição de do gênero, por isso há uma personagem feminista e homossexuais,
relações homossexuais no m undo dos super-heróis. que não só conseguem uma grande mobilização como se tornam um
Porém as histórias do The A uthority são um tanto quanto lim i novo nicho de mercado consumidor). A semelhança com o referido
tadas em m atéria de complexidade e profundidade. É uma equipe movimento tam bém é visível nas críticas e referências ao G 7 e outras
de super-heróis que mora em um a balsa e que viaja por espaços in- passagens. Assim, The A uthority pode ser considerado contestador,
terdimensionais, e que possui outros super-heróis de outros lugares, mas não revolucionário.
mas que são coadjuvantes. Os supervilões aparecem e são derrotados, Seu relativo sucesso desde seu surgimento em 1999 vai até 2001,
não possuindo nenhum a tram a mais duradoura ou complexidade no quando a censura e o atentado ao W orld Trade Center, em 11 de se
decorrer da narrativa. A linguagem torpe parece ter sido copiada dos tem bro de 2001, acabam corroendo suas bases e a D C Comics acaba
super-heróis da Image Comics, bem como o desenho das persona cancelando sua publicação. Ele retorna nos EUA, segundo alguns de
gens femininas, embora sem o mesmo resultado neste caso. O maior seus leitores, em versões mais moderadas e comuns. N a série Re-
saldo seria o aspecto político, mas, no entanto, se o grupo condena volution, o grupo assume o Governo dos EU A (o que não é nada
governos, ditadores, empresas (“você suporta Choco-Cola?” aparece “anarquista”, tal como alguns julgavam esse grupo) e acaba desilu
em um anúncio, bem como quando o grupo é derrotado e substituí dindo-se e separando-se, para depois se reunir novamente em outras
do por fantoches a mando do governo norte-am ericano, estes prepa sequências do grupo. Em Transferência de Poder, um quadro que tinha
ram um novo Deus pop para ser adorado, Religimon... referências à George Bush observando a situação dram ática de um personagem do
Coca-C ola e D igim on), não apresenta nenhum a alternativa além de grupo foi censurado e substituído por outro personagem.
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