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O Símbolo do Demônio das Cinzas

“Ouço tambores desritmados no horizonte.


As sombras de mil espíritos de ódio
pairam sobre os rios mirrados,
eles contam mentiras sobre mim
e eu, humano, acredito em todas.”
-- Viagem aos Lagos do Abismo, capítulo 11

As trevas caem sobre as Minas Ocas, os dois rios que cruzavam os montes
sussurram segredos por entre as rochas ancestrais até encontrarem-se para juntos
mergulhar no mar bravio do oeste. Ecos indecifráveis vagam pelas cavernas abertas
durante séculos de escavações pelas mãos dos homens descendentes do povo que seguiu
o Profeta. Há muito as minas deixaram de ser fonte de extração de minérios dados como
valiosos, para tornarem-se refúgio de criminosos e outras coisas que os estudiosos
preferem não mencionar em seus livros.
Quando a noite cai, as rotas nas Minas Ocas, assim como as estradas que
atravessam as cidades, esvaziam-se. A escuridão é inimiga do homem, a raiz de seus
medos e o que está oculto no breu, como dizem os mais velhos, deve ser mantido assim.
Mas naquela noite ainda havia uma trilha movimentada, a luz das tochas envolvia o
pequeno grupo que caminhava com cuidado sobre a encosta de um monte, seus trajes
negros os tornavam vultos na escuridão frígida e ainda assim o mais jovem deles temia o
cheiro de morte no ar.
― Você não é de falar muito não é, Corvo-Branco? ― o rapaz tinha o cabelo
castanho curto, o rosto fino e uma expressão jovial. Como os companheiros usava um
gibão grosso, calças, botas e capa, pretos como carvão.
― Não tenho muito o que falar ― a mulher disse. Ela tinha a lateral dos cabelos
loiros raspados e o lado esquerdo do rosto era coberto por tatuagens.
― Antes falar qualquer coisa a ficar nesse silêncio mórbido ― o mais jovem falou.
O terceiro membro do grupo era um homem de meia idade, pele bronzeada, cabelos
perdendo a cor e queixo largo. Era o único dos três que carregava uma espada no cinto e
enquanto caminhava mantia a mão esquerda pousada no cabo da arma.
― Desista, Kalen ― o mais velho disse. ― Não vai arrancar nada dela.
― Pensei que o chefe tivesse me mandado com vocês como parte do treinamento
― o jovem disse tentando parecer mais irritado do que realmente estava. ― E até agora só
aprendi a andar muito e dormir com fome.
― Não somos do tipo de cão que aprende alguma coisa treinando ― Corvo-Branco
falou ainda olhando para frente. ― Ou sabemos ou morremos.
― Não se preocupe com ela ― o mais velho passou o braço direito pelos ombros de
Kalen. ― A vida de cada um dos membros do bando foi difícil e Corvo-Branco acha que
isso é um pré-requisito para ingressar nos Cães da Noite.
― Só porque nasci em um berço nobre não significa que não tive uma vida dura ―
Kalen rebateu.
Corvo-Branco olhou para trás, os desenhos em sua face pareciam ainda mais
assustadores iluminados apenas pela tocha que ela carregava.
― Deveria ficar mais tempo calado Timot ― ela disse.
― Ouviu ela, rapaz― ele disse se recompondo.

***
A trilha seguia subindo o monte, a vegetação baixa confundia a visão e vez ou outra
via-se uma silhueta ao longe, que Kalen esperava que fosse de uma raposa ou lobo. Ainda
assim Corvo-Branco parecia certa do onde estava indo e Timot confiava nela como um
homem do mar em sua bússola, mas o jovem não acreditava que uma caçada a noite fosse
uma boa escolha.
― Como sabe que estamos no caminho certo?
― Tenho farejado ela durante todos esses dias― a mulher respondeu.
― Acredite ― Timot falou. ― Já vi cães de caça menos precisos que ela. Não foi
atoa que Pestilento a colocou no comando da missão.
Kalen não duvidava das habilidades de nenhum dos dois, afinal os Cães da Noite
conquistaram sua fama com seus soldados competentes. Ele duvidava que os três não
fossem suficientes para capturar o alvo.
― E não poderíamos encontrá-la durante o dia?
― Já estamos perto e o alvo está parado ― Corvo-Branco disse. ― Ou atacamos
agora ou a perdemos.
― Se ela for tão perigosa quanto dizem, acha mesmo que damos conta?
A mão calejada de Timot caiu leve sobre o ombro de Kalen.
― Escuta, rapaz. Se quiser ser da Matilha tem que estar pronto para morrer, mas
acreditando que pode vencer ― a voz do veterano era pesada como golpes de martelo. ―
Não há uma coleira no seu pescoço, pode voltar pro berço quente dos Vinhonegro agora
mesmo.
Kalen pensou em defender-se, mas preferiu calar-se.
― Fiquem atentos ― Corvo-Branco alertou. ― Ela já deve saber que estamos aqui,
percebeu que fugir não adiantaria.
― Melhor estar pronto, Kalen ― Timot desembainhou a espada longa.
Kalen Vinhonegro se armou com duas adagas que estavam no cinto. A escuridão da
noite não escondia seu nervosismo, as mãos tremiam dentro das luvas, o rosto pingava de
suor e brilhava a luz da tocha que Timot carregava. Nunca vira um Guarda-Mácula antes e
duvidava que suas lâminas, que agora pareciam ainda menores, servissem contra um
demônio como Deoga. Ela era caçada por matar um membro do Séquito em Córina,
incendiar uma vila próxima da Fortaleza Tempestuosa, de compactuar com as bruxas do
Bosque Longanoite entre outras atrocidades. Seu assassinato foi encomendado pelo
próprio duque Karst que ofereceu prata o suficiente para encher novamente os corredores
das Minas Ocas.
― Se ela tiver asas, como vamos pegá-la? ― o jovem perguntou.
― Ela não tem asas ― Timot respondeu.
― Como sabe?
― Primeiro que nunca ouvi falar de um Guarda-Mácula com asas e segundo ela já
teria voado para longe quando tivesse notado que estamos perseguindo-a.
“Tem razão”, Kalen pensou. Estava nervoso demais para perceber coisas tão
simples.
A caminhada continuou subindo a trilha até que mais a frente viram a entrada de
uma mina e Corvo-Branco rumou para lá. O vento soprou mais forte alertando-os do perigo
adiante, Kalen nunca foi supersticioso, mas naquele momento acreditaria em qualquer sinal
que mostrasse a ele que deveria dar as costas e voltar para casa abandonando as armas e
a capa.
Não foi o que ele fez.
Kalen acompanhava ao lado de Timot a mulher que os guiava, entrando na mina
houve um silêncio abrupto, o único som que ecoava pelas paredes rochosas era o barulho
das passadas deles dentro do corredor. Corvo-Branco olhou para trás e acenou levemente
com a cabeça, informando que o inimigo estava ali e aguardando por eles. Não demorou
para que a caminhada dentro da mina fosse interrompida por uma voz feminina vinda das
ramificações dos corredores, também não demorou para que a mesma voz lhes gelasse a
alma.
― Uma cadela… Um cão velho… E um filhote ― o grupo não sabia de onde a voz
vinha então colocaram-se um de costa para o outro aguardando um ataque.
― Não sairá daqui, Guarda-Mácula ― Timot respondeu, deixando suas palavras
viajarem pelas paredes frias da mina.
Kalen ouviu passos vindos do corredor a sua direita, cada pisada era lenta e
confiante, mais do que o medo natural ela parecia causar nele uma certeza de morte.
“Talvez seja uma espécie de feitiço”, pensou.
― Admiro a confiança dos Cães da Noite ― Deoga disse aproximando-se da luz da
tocha. ― Apenas três de vocês para me pegar.
Deoga Guarda-Mácula vestia calças e gibão de couro delineando as curvas de seu
corpo esbelto, a pele era cinza e os cabelos brancos presos em um rabo de cavalo. Seus
olhos amarelados pareciam brilhar no rosto pálido, em uma das mãos elas carregava uma
bainha de espada longa e na outra a lâmina que parecia, assim como a dona, sedenta por
sangue.
― Não baixem a guarda em nenhum momento ― Corvo-Branco alertou.
― Ela tem razão ― Deoga disse abrindo um sorriso e partindo em investida.
O primeiro ataque veio na direção de Kalen, que ficou imóvel aguardando o aço abrir
seu crânio, mas o que viu foi a espada de Timot aparar o golpe com precisão. O mercenário
mais velho revidou o ataque com uma estocada e depois outra, mas Deoga esquivava-se
dos golpes com tranquilidade. Timot colocou a mão no peito de Kalen e o empurrou quase
derrubando o jovem paralisado.
― Se não for ajudar não atrapalhe ― Timot gritou.
Deoga desferiu um golpe e a lâmina cortou o vento da esquerda para a direita, Timot
defendeu com a espada sentindo o peso do ataque, tentou reagir, mas a Guarda-Mácula
era mais rápida. Um golpe vindo da direita, aparado por Timot, depois por cima e o velho
soldado não encontrava brechas para atacar. Kalen fechou os punhos nos cabos das
adagas e mesmo em seu estado de terror partiu para o ataque, ele saltou para cravar as
armas na Guarda-Mácula e ela esquivou-se com dois passos rápidos para trás.
― Quer brincar também, filhote? ― ela falou para irritar Kalen.
O jovem Vinhonegro partiu para atacar, mas foi impedido pela mão pesada de Timot
em seu ombro.
― O que… ― por um momento Kalen havia esquecido da presença de
Corvo-Branco, mas ao olhar para Timot, viu por sobre o ombro dele a mulher concentrada e
seus lábios movendo-se rapidamente.
Corvo-Branco de cenho franzido parecia dar-lhes o sinal. Quando ela deixou a tocha
cair no chão os sussurros cessaram e foi como se o tempo congelasse.
― Morra desgraçada!
As mãos de Corvo-Branco baixaram e ela inclinou-se até que seus dedos tocassem
o chão, logo em seguida ela levantou e sons como de leves estalos começaram a vir de
dentro dos corredores da mina. Kalen pôde sentir os pelos dos braços debaixo das mangas
longas arrepiarem-se, então foi jogado para o lado enquanto Timot saltava para o outro.
Feixes de eletricidade vinham das paredes e do solo para encontrar-se nas mãos de
Corvo-Branco. Tudo tão rápido que Deoga não teve tempo de esquivar-se, apenas colocou
a espada diante de si para defender o golpe.
Então veio a luz.
A descarga elétrica partiu das mãos de Corvo-Branco como um feixe de luz e
encontrou Deoga que foi arremessada contra a parede. Parte da pele cinza e do cabelo
branco da Guarda-Mácula enegreceram, fumaça subia do corpo dela estirado no chão
dando leves espasmos. Kalen olhou para a inimiga derrotada, depois para a companheira
parada de pé na mesma posição.
― Não foi tão difícil assim… ― Kalen disse até ser interrompido por Timot.
― Levanta, ela ainda está viva ― o veterano colocou-se de pé com um salto.
Timot segurou firme a espada e partiu em um ataque a Deoga que aos poucos
punha-se de joelhos. O golpe veio de cima para baixo, mas a Guarda-Mácula defendeu com
a sua arma e revidou.
― Cadela ― Deoga urrou virando o rosto na direção de Corvo-Branco que
começava a sussurrar um novo feitiço.
Kelen ficou de pé com as adagas prontas para atacar, mas ao primeiro passo foi
atingido novamente por aquele medo sobrenatural, sentiu os ossos pesarem e o corpo
inteiro retrair-se. Ele viu Deoga e Timot trocando golpes ferozes. Viu Corvo-Branco gritar
em uma língua que ele não conhecia. Viu as paredes da mina tremerem, as adagas em
suas mãos caírem e o mundo apagar lentamente.
Depois disso, não viu mais nada.

***
Kalen despertou. Sentiu areia sobre o rosto, um gosto amargo na boca e o corpo
pesado. Abriu os olhos lentamente para ver embaçadas diante dele as botas de Timot.
― Vamos, levanta ― o veterano disse e Kalen acredito que seria com ele.
O jovem tentou erguer o corpo dando um gemido de esforço. A cabeça e os ombros
ficaram a um palmo do chão até despencarem.
― Não consigo ― ele disse.
Quando Timot afastou-se o jovem pôde ver em volta. Uma dos corredores da mina
havia desabado, rochas espalhadas pelo chão, uma nuvem de poeira ainda pairava próxima
das paredes e no teto grandes rachaduras anunciavam que um novo desmoronamento
poderia ocorrer a qualquer momento. Kalen voltou os olhos para a tocha que iluminava o
local caída há alguns passos dele e viu Corvo-Branco amarrando os braços de Deoga,
agora desacordada e ferida. Ao ver a Guarda-Mácula Kalen sentiu suas forças retornarem e
ele colocou-se de pé com um salto.
― Então vencemos? ― ele perguntou desorientado.
A resposta de Corvo-Branco foi apenas um olhar de reprovação.
― Sim ― Timot interveio. ― Conseguimos capturá-la, mas não se alegre. Isso foi
apenas metade da missão, ainda precisamos levá-la com vida para ser julgada pelo Séquito
no ducado Karst.
Timot tomou Deoga pelos braços e a jogou sobre o ombro direito e caminhou em
direção a saída da mina seguido por Corvo-Branco. Vendo o esforço do velho soldado
Kalen sentiu que também era um fardo para os dois mercenários. Desde que entrou para os
Cães da Noite foi tratado como criança e nas oportunidades que teve para mostrar algum
valor acabou falhando. Ele queria trilhar o próprio destino, ser conhecido não só pelo nome
de sua família e sair de vez da sombra da irmã mais velha, Selih Vinhonegro.
― Vamos mesmo ficar lá fora? ― perguntou Kalen vendo os companheiros entrando
novamente na noite.
― Não vai querer ficar aí ― Timot disse olhando sobre o ombro.
Kalen não vira como eles venceram a luta, mas pelos ferimentos de Timot imaginava
que ele tenha protegido Corvo-Branco enquanto ela preparava suas magias. O jovem havia
visto poucos magos em sua vida, mas nunca tinha visto um em ação e entendeu o porque
de Pestilento enviar um grupo tão pequeno para caçar uma ameaça como Deoga, muitos
aliados só atrapalhariam os ataques da maga.
― Acamparemos perto da entrada da mina até amanhecer ― Corvo-Branco falou.
― Ainda temos suprimentos para um dia, o que é suficiente até chegarmos à próxima vila
que fica meio dia de viagem descendo o rio. E você ― ela apontou para Kalen. ― Já dormiu
demais, nobrezinho. Vai ficar com a primeira vigília.
― Tudo bem ― Kalen disse com a cabeça baixa.
― A única coisa que precisa fazer é nos alertar se o alvo despertar ― Corvo-Branco
atacou o jovem com seu olhar. ― Consegue fazer isso?
― Sim ― ele respondeu.
Timot deitou Deoga sobre a grama alta e olhou para Kalen, que acenou com a
cabeça. Entendeu que a partir daquele momento não poderiam haver mais erros, um
tropeço poderia significar o fim para os três.
― Não está esquecendo de nada? ― Timot perguntou.
― Acho… que não ― Kalen respondeu.
― O que fará se a Guarda-Mácula tentar te atacar?
― Eu… ― ele levou as mãos ao cinto e percebeu.
“Esqueci as adagas dentro da mina”, pensou e correu envergonhado para pegar as
armas de volta.
No fim ele ainda era só uma criança.

***
O vento estava calmo e Kalen agradeceu aos deuses, pois Timot preferiu não
acender uma fogueira. O veterano e a maga estavam dormindo enrolados em suas capas a
poucos passos do jovem mercenário, a meia lua distante iluminava o pico dos montes mas
as planícies ainda eram apenas um mar de escuridão. Kalen observava as formas negras
do horizonte aguardando o caminhar lento do das horas, sentado ao lado de Deoga ele
sentia a mesma sensação que o derrubou na luta dentro da mina, aquele medo que parecia
não pertencer a ele, embora agora em uma escala bem menor. O que o tranquilizava era
que a Guarda-Mácula estava desacordada e mesmo assim ele voltou os olhos na direção
dela para confirmar.
Os olhos do demônio estavam fixos em Kalen.
Dourados, frios e famintos.
O jovem apertou o cabo das adagas e colocou-se de pé, mas ela continuava lá, sem
desviar o olhar dele.
― Se tentar qualquer coisa acabo com você ― ele sussurrou, queria mostrar que
poderia manter a situação sobre controle sem a ajuda dos companheiros.
Amordaçada, Deoga não tentou dizer nada e nem precisava, só sua presença já era
capaz de amedrontar Kalen.
― É você que está fazendo isso comigo não é?
Deoga continuou imóvel.
― Deve ter vindo do Abismo de Ur como dizem ― Kalen deu um passo à frente. ―
Não entendo como os deuses permitem que criaturas como você andem pelo mundo.
A Guarda-Mácula gemeu algo sobre a mordaça frouxa, algo que Kalen entendeu
bem.
“Não entendo como eles permitem que criaturas vocês andem pelo mundo”
― Ela está usando a “sombra” dela para te amedrontar ― Kalen nem percebeu a
aproximação de Timot. ― Intensificando o medo que você já sente para te paralisar.
― Isso não funciona em vocês? ― ele achou a pergunta estúpida depois que a fez.
― Funciona, mas com o tempo você acaba controlando medo ― Timot colocou a
mão sobre o ombro de Kalen. ― Agora vá dormir.
O jovem Vinhonegro embainhou as adagas e foi deitar-se perto de Corvo-Branco.
Os olhos de Deoga acompanhando-no como um caçador observando sua presa e ele a
encarava como se aquilo definisse o seu destino dentro dos Cães da Noite. Já fazia quase
uma estação que Kalen abandonara a família em Sur’Lark para viver como um mercenário,
ele nunca havia acreditado na vida gloriosa dos aventureiros das canções dos bardos, mas
também não esperava que teria dias tão duros e noites desoladoras.
“Talvez os risos e a cerveja venham quando entregarmos a Guarda-Mácula”,
pensou. De onde estava Kalen só conseguia ver a silhueta de Timot sentado amolando a
espada e Deoga deitada, ele sabia que ela olhava em sua direção. Acabou dormindo e logo
acordando com o eco de pedras caindo dentro da mina, ficar lá dentro seria mesmo uma
péssima ideia, mas a escuridão da noite do lado de fora não era menos assustadora.

***
Amanheceu e eles retomaram a caminhada. Corvo-Branco ia na frente guiando o
grupo, Kalen mais atrás comendo um pedaço de carne seca e Timot era o último, ele segura
firme uma corda presa às mãos de Deoga Guarda-Mácula.
― Ontem tive a impressão de que ela estava mais ferida ― disse Kalen observando
os arranhões e queimaduras de Deoga.
― E estava ― explicou Timot. ― A regeneração deles é bem mais rápida do que a
de um humano comum.
― O quão humanos eles ainda são? ― disse atacando Deoga com o olhar e ela lhe
retribuindo na mesma medida.
― Não sei dizer ― Timot voltou o rosto para trás para encarar a Guarda-Mácula. ―
Nem mulher, nem demônio. O que é você, Deoga?
Ela respondeu com um gemido abafado pela mordaça, baixo demais para que
qualquer um entendesse. Chegando ao sopé do monte eles aproximavam-se do rio, onde
Corvo-Branco foi para encher os cantis e os outros para lavar o rosto. A viagem continuou
seguindo pelas margens do rio, a grama pelo caminho ficava mais baixa e no horizonte já
era possível ver as primeiras casas da pequena vila. Corvo-Branco virou o rosto em todas
as direções como se o vento tivesse trazido um cheiro ruim e ela estivesse procurando,
seus passos ficaram mais lentos e Timot incomodando com a mudança de postura da guia
perguntou:
― Algum problema?
― Apenas uma sensação ruim ― ela respondeu.
Chegando na vila os sentidos de Corvo-Branco ficaram em alerta. Kalen olhou em
volta procurando algum morador, mas não havia ninguém, apenas o som do vento cruzando
as ruas vazias e mais ao longe o rio correndo em direção ao mar.
― O que está acontecendo? ― Kalen disse.
Timot desembainhou a espada e aproximou a lâmina do pescoço de Deoga.
― Tira a mordaça dela ― o veterano disse.
Kalen obedeceu.
― Foi você que fez isso?
Deoga abriu um sorriso e disse:
― Como eu poderia ter feito? Estava nas Minas Ocas, não perderia tempo vindo
aqui e…
― Cheiro de morte ― Corvo-Branco gritou.
Kalen caminhou até a janela de uma das casas de madeira e assustou-se ao ver os
corpos caídos sobre uma poça de sangue, sentiu o cheiro pútrido de carne em
decomposição e tremeu ao imaginar os outros moradores da vila. Olhou para trás e viu
saindo dos becos, homens e mulheres como fantasmas erguendo-se das sombras, eram
todos jovens portando facas, lanças e outras armas improvisadas ainda manchadas de
sangue.
― Pelos deuses ― Kalen sussurrou.
Os assassinos começaram a caminhar na direção dos mercenários, primeiro
devagar, depois acelerando a marcha.
― O que fez com eles? ― Timot urrou.
― Nada ― Deoga respondeu com calma. ― Diferente do que acredita, não tenho
poder para controlar ninguém.
Timot atacou e a Guarda-Mácula esquivou-se com um salto para trás, o Cão da
Noite insistiu na investida continuou com uma série de golpes.
― Ainda não entendeu? ― Deoga disse enquanto desviava dos ataques. ― Foram
vocês que fizeram de mim um demônio.
A espada de Timot acertou as cordas que prendiam os braços de Deoga,
libertando-a. A Guarda-Mácula então desferiu um chute no tórax do mercenário que caiu no
chão.
― TIMOT ― Kalen gritou correndo para ajudar o companheiro, mas foi impedido por
Corvo-Branco.
― Não adianta ― ela disse.
― Do que você tá falando? Ainda podemos salvá-lo ― Kalen falou tentando livrar-se
das mãos de Corvo-Branco segurando-o pelas vestes.
― Veja!
E Kalen viu.
Eles estavam cercados pelos assassinos.
― Quem são eles? Por que estão fazendo isso? ― o jovem disse desesperado.
― Eles estão seguindo a Guarda-Mácula ― Corvo-Branco respondeu. ― Um bando
de lunáticos cegos.
Deoga tomou a espada caída de Timot e com um pé sobre o peito dele disse
olhando para os outros dois mercenários:
― Não os chamei, eles que vieram. Talvez porque diferente dos deuses, eu ofereço
liberdade.
A ponta da espada baixou, as mãos de Timot foram rápidas para segurar a lâmina
no caminho, mas não o suficiente para impedir que ele ainda fosse perfurado. Os
seguidores de Deoga fecharam ainda mais o círculo em torno de Corvo-Branco e Kalen,
balançando as armas eles pareciam sedentos por mais sangue como se a adoração ao
demônio fosse apenas uma desculpa para externar seus desejos mais íntimos.
― Vão! ― Timot gritou sentindo o aço entrando cada vez mais em seu peito.
Corvo-Branco começou a entoar um cântico baixo em uma língua desconhecida
para Kalen que se viu novamente sem poder fazer nada. Estava apenas com as adagas nas
mãos, mas elas não poderiam proteger nem ele mesmo.
― Não podemos deixá-lo aqui ― Kalen sentiu finalmente a coragem surgindo.
O jovem olhou em volta e talvez pela certeza da morte não viu mais os seguidores
como uma ameaça, mas como obstáculos que ele poderia ultrapassar se quisesse. Ao lado
dele Corvo-Branco aumentava o tom de sua voz e seu olho esquerdo começava a derramar
lágrimas de sangue.
Deoga então segurou o cabo da espada com as duas mãos e jogou sua força sobre
a arma. Os dedos de Timot foram cortados e sangue banhou a lâmina que agora era
enterrada no peito do Cão da Noite arrancando dele a vida.
Kalen deu um passo e gritou algo, mas foi calado pela luz que veio a seguir. Um
estrondo como que de um raio caindo no chão e depois uma lufada de vento jogando para
trás o círculo de seguidores insanos. Quando a poeira baixou Corvo-Branco e Kalen haviam
sumido como se nunca tivessem estado ali. Os assassinos levantaram perguntando-se
onde estavam os mercenários até que Deoga interveio:
― Não adianta procurar, ela os levou para longe.
― Mas vamos deixar eles fugirem, senhora? ― um dos seguidores perguntou.
― Será melhor assim, agora me tragam um cavalo já cansei do cheiro desse lugar.
De todos os humanos, os que Deoga mais detestava era os que diziam seguí-la
como se ela fosse o profeta de alguma religião. A pele cinzenta, os olhos amarelos e os
órgãos alterados eram apenas criações dos próprios humanos e ela preferia ser chamada
de demônio a lembrar que era humana como eles.

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