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Capa
Folha de rosto
Sumário
Apresentação
Os irmãos de Mowgli
Canção de caça da Alcateia de Seeonee
A caçada de Kaa
Canção de estrada do Bandar-log
“Tigre! Tigre!”
Canção de Mowgli
Como surgiu o medo
A Lei da Selva
O avanço da Selva
Canção de Mowgli contra os homens
O aguilhão do rei
Canção do Pequeno Caçador
Cão Vermelho
Canção de Chil
A corrida da primavera
Canção da despedida
Apêndice: Dentro da rukh
Créditos
Apresentação
No século XXI, mesmo que não exista mais quase nenhum confim da
Terra intocado pelo homem, quase nenhuma “Selva” — no sentido
profundo que ele dava ao termo —, Kipling talvez tenha ainda muito a
dizer aos meninos e adolescentes das cidades. Sua percepção dos laços
de amizade e de honra é eterna; sua sensibilidade objetiva para os
detalhes do amadurecimento é sempre exata e sucinta; sua capacidade
de transpor, para o entendimento humano, os comportamentos das
espécies animais, e, no sentido contrário, de emprestar-lhes os
atributos humanos, é incrivelmente bem-sucedida; seu talento para as
descrições do meio natural é extraordinário. Suas histórias e seus
personagens recriam, a todo momento, a ternura de quem experimenta
a vertigem dos prazeres e das dores da vida, com todas as suas
contradições.*
* Esta é uma versão editada da apresentação de Alexandre Barbosa de Souza e Rodrigo Lacerda
para a edição comentada e ilustrada de Os livros da Selva, publicada pela Zahar em 2016.
Os irmãos de Mowgli
Eram sete horas de uma noite muito quente nas colinas de Seeonee,
quando Pai Lobo acordou de seu descanso diário, coçou-se, bocejou e
esticou as patas, uma de cada vez, para espantar o sono até da ponta
dos dedos. Mãe Loba estava deitada, cobrindo com o grande focinho
cinzento os quatro filhotes, que, trêmulos, ganiam, e a lua brilhava na
boca da caverna onde todos moravam.
— Ahhhhhh! — bocejou Pai Lobo. — Está na hora de caçar outra
vez.
Quando ele estava prestes a descer correndo a colina, uma pequena
sombra de cauda fofa atravessou a entrada da caverna e guinchou:
— Que a boa sorte o acompanhe, ó Chefe dos Lobos. Que a boa sorte
e dentes brancos e fortes acompanhem as nobres crias, que elas nunca
se esqueçam dos que passam fome neste mundo.
Era o chacal — Tabaqui, o Lambedor de Pratos —, e os lobos da
Índia desprezam Tabaqui, porque ele vive por aí fazendo maldades,
contando fofoca e comendo trapos e restos de couro das pilhas de lixo
da aldeia. Mas eles também o temem, pois Tabaqui, mais do que
qualquer um na selva, é capaz de enlouquecer, então se esquece do
medo e corre pela fioresta mordendo tudo o que encontra pelo
caminho. Até o tigre se esconde quando Tabaqui fica maluco, pois a
loucura é a maior desgraça que pode acontecer a uma criatura
selvagem. Chamamos isso de hidrofobia, mas eles chamam de dewanee
— a loucura — e saem correndo.
— Pois então entre e veja você mesmo — respondeu secamente Pai
Lobo. — Não temos comida nenhuma aqui.
— Talvez não para um lobo — retrucou Tabaqui —, mas, para uma
pessoa má como eu, osso seco é banquete. Quem somos nós, do Gidur-
log [o povo chacal], para escolher o que comer?
Ele foi até o fundo da caverna, onde encontrou um osso de cervo com
um resto de carne, e sentou alegremente para roer a ponta.
— Muito obrigado pela boa refeição — agradeceu, lambendo os
beiços. — Como são belas as crias da nobreza! Que olhos grandes elas
têm! E ainda tão jovens! Sim, sim, é verdade, eu devia lembrar que as
crias dos reis já nascem adultas.
Ora, Tabaqui sabia muito bem, como todo mundo, que não existe
nada tão inadequado quanto elogiar uma criança na sua presença. Mas
ele queria ver Mãe e Pai Lobo incomodados.
Tabaqui sentou e ficou ali parado, desfrutando da própria maldade,
então, perverso, anunciou:
— Shere Khan, o Grande, não caça mais no mesmo lugar. Vai caçar
aqui nestas colinas até a próxima lua, segundo ele próprio me contou.
Shere Khan era o tigre que vivia perto do rio Waingunga, a trinta
quilômetros dali.
— Ele não tem esse direito! — começou Pai Lobo, já irritado. — Pela
Lei da Selva, ele não pode mudar de território sem aviso prévio. Assim
vai assustar toda a caça num raio de quinze quilômetros, e eu… eu
tenho que matar por dois atualmente.
— Não é à toa que a mãe o chamou de Lungri [o Manco] —
comentou baixinho Mãe Loba. — Manca de uma pata desde que
nasceu. É por isso que só mata gado. E agora que os habitantes das vilas
do Waingunga estão bravos com ele, vem irritar os habitantes das
nossas vilas. Vão percorrer toda a selva atrás dele, mas ele vai estar
longe, e nós e nossas crias vamos ter de fugir quando vierem pôr fogo
no mato. Temos mesmo muito que agradecer a Shere Khan!
— Posso contar a ele da sua gratidão? — ironizou Tabaqui.
— Fora daqui! — disparou Pai Lobo. — Fora, vá caçar com o seu
senhor. Já causou problemas demais para uma noite só.
— Eu vou — anunciou calmamente Tabaqui. — Ouça Shere Khan lá
embaixo, na mata. Eu podia nem ter transmitido o recado.
Pai Lobo espichou as orelhas e, lá no vale que terminava num riacho,
ouviu o grunhido cantarolado, seco, tenso e raivoso de um tigre que
ainda não pegou nada e não se importa que toda a selva saiba disso.
— Que tolo! — exclamou Pai Lobo. — Começar a noite de trabalho
fazendo todo esse estardalhaço! Ele pensa que os nossos cervos são
como os bois gordos do Waingunga?
— Shhh… Esta noite não é nem de boi nem de cervo que ele está
atrás — sussurrou Mãe Loba. — é de homem.
O grunhido havia se transformado numa espécie de ronronar
contínuo que parecia vir de todas as direções da bússola. Era o som que
apavorava os lenhadores e os ciganos dormindo ao relento, que às vezes
os fazia sair correndo bem para dentro da boca do tigre.
— Homem! — espantou-se Pai Lobo, mostrando todos os seus dentes
brancos. — Que nojo! Já não bastam os besouros e as rãs das lagoas, ele
precisa comer homem, e em nosso território!
A Lei da Selva, que nunca ordena nada sem motivo, proíbe os bichos
de comerem o homem, a não ser que ele esteja matando só para
mostrar a seus filhos como se mata, tendo por isso de caçar longe do
território de seu bando ou tribo. O verdadeiro motivo de ser assim é
que matar humanos significa, cedo ou tarde, a chegada de homens
brancos armados e montados em elefantes, e centenas de homens
marrons com gongos, rojões e tochas. E aí todos na selva padecem. A
explicação que os bichos dão para si mesmos é que o homem é o mais
fraco e indefeso de todos os seres vivos, portanto molestá-lo é falta de
espírito esportivo. Dizem também — e é verdade — que os comedores
de humanos ficam sarnentos e perdem os dentes.
O ronronar ficou mais alto e acabou no gutural “Rooaar!” do tigre
atacando.
Seguiu-se um uivo — um uivo nada digno de um tigre —, dado por
Shere Khan.
— A presa escapou — comentou Mãe Loba. — O que era?
Pai Lobo correu alguns passos e ouviu Shere Khan reclamar e
resmungar selvagemente ao tropeçar num arbusto.
— O tolo achou uma boa ideia pular em cima da fogueira de um
acampamento de lenhadores e queimou a pata — respondeu, com um
grunhido. — Tabaqui está com ele.
— Tem alguém subindo a nossa colina — disse Mãe Loba, retesando
uma orelha. — Prepare-se.
Ouviu-se um breve farfalhar de arbustos na mata, e Pai Lobo
encolheu-se sobre as patas traseiras, pronto para saltar. E se você
estivesse vendo a cena teria presenciado a coisa mais maravilhosa do
mundo: o lobo parou bem no meio do salto. Dera o impulso antes de
identificar o alvo e depois tentou conter a si mesmo. O resultado foi que
estacou em pleno ar, a mais de um metro do chão, e aterrissou quase no
mesmo lugar de onde saíra.
— Homem! — gritou. — Um filhote de homem. Veja!
Bem na sua frente, apoiando-se num galho baixo para ficar em pé,
havia um bebê marrom e sem roupas que mal conseguia andar, um
pingo de gente roliço e com covinhas, como a noite jamais trouxera à
caverna de um lobo. Ele levantou os olhos até a cara de Pai Lobo e
sorriu.
— Isso é um filhote de homem? — perguntou Mãe Loba. — Nunca
tinha visto. Traga aqui.
Um lobo acostumado a transportar os próprios filhotes é capaz, se
necessário, de morder um ovo sem quebrá-lo, e, embora a mandíbula de
Pai Lobo tenha se fechado bem na nuca da criança, dente nenhum
arranhou sua pele quando ele a depositou entre os lobinhos.
— Tão pequeno! Tão pelado e tão… corajoso! — comentou Mãe
Loba suavemente. O bebê se espremia por entre os filhotes para se
aproximar do calor de seu pelo. — Ora essa! Está se alimentando com
os outros. Então isso é uma cria humana. Nunca ouvi lobo nenhum se
gabar de ter um filhote de homem entre os seus!
— Já ouvi falar de um ou outro caso assim, mas nunca na nossa
alcateia ou na minha época — acrescentou Pai Lobo. — Ele não tem
cabelo nenhum, e eu poderia matá-lo com um toque da minha pata.
Mas veja, ele me olha sem medo.
O luar sumiu da boca da caverna, pois a cabeçorra quadrada e os
grandes ombros de Shere Khan taparam a entrada. Tabaqui, atrás dele,
gania:
— Meu senhor, meu senhor, ele entrou por aqui!
— Shere Khan nos honra com sua presença — disse Pai Lobo, mas
seus olhos demonstravam muita raiva. — Do que Shere Khan precisa?
— Do meu pedaço de carne. Um filhote de homem veio nessa
direção — respondeu Shere Khan. — Os pais fugiram. Me dê o menino.
Shere Khan havia pisado numa fogueira de lenhadores, como Pai
Lobo dissera, e estava furioso com a dor das patas queimadas. Mas Pai
Lobo sabia que a entrada da caverna era muito estreita para um tigre
passar. Mesmo ali onde estava, os ombros e as patas dianteiras de Shere
Khan ficavam apertados por falta de espaço, como os de um homem
que tentasse lutar dentro de um barril.
— Os lobos são um povo livre — retrucou Pai Lobo. — Recebem
ordens do Chefe da Alcateia, e não de um matador de gado cheio de
listras. O filhote de homem é nosso… até para matá-lo, se for essa a
nossa escolha.
— Você escolhe e não escolhe! Que conversa é essa de escolher? Pelo
touro que matei, eu ter que me enfiar no seu covil de cão pelo que me é
devido? Sou eu, Shere Khan, quem está falando!
O rugido do tigre encheu a caverna com um estrondo. Mãe Loba se
desvencilhou dos filhotes e saltou para a frente, os olhos, como duas
luas verdes no escuro, encarando as pupilas faiscantes de Shere Khan.
— E sou eu, Raksha [o Demônio], quem está respondendo. O filhote
de homem é meu, Lungri… meu e só meu! Ninguém vai matá-lo. Ele
viverá para correr com a alcateia e caçar com a alcateia; no fim, seu
caçador de filhotinhos pelados, comedor de rã, assassino de peixe, ele
vai é caçar você! Agora tome o seu rumo, ou, pelo sambar que matei
(pois não como gado magro), volte para a sua mãe, bicho queimado da
selva, mais manco do que era quando veio ao mundo! Fora daqui!
Pai Lobo observou a cena embasbacado. Quase havia esquecido o
tempo em que conquistara Mãe Loba numa luta justa contra cinco
outros pretendentes, na época em que ela corria com a alcateia e ainda
não era chamada de Demônio apenas por deferência. Shere Khan
talvez tivesse enfrentado Pai Lobo, mas não desafiaria Mãe Loba, pois
sabia que, ali onde estava, ela tinha a vantagem do terreno e lutaria até
a morte. Por isso voltou atrás, rosnando ao deixar a boca da caverna, e,
ao se ver do lado de fora, gritou:
— Cada cão late no seu quintal! Vamos ver o que a alcateia diz sobre
adotar um filhote de homem. O filhote é meu e vai acabar vindo para os
meus dentes no final, seus ladrões de rabo peludo!
Mãe Loba voltou ofegante para sua ninhada, e Pai Lobo disse a ela,
solenemente:
— Nisso Shere Khan fala a verdade. Temos de mostrar o filhote à
alcateia. Ainda quer ficar com ele, mãe?
— Ficar com ele?! — arfou ela. — Ele chegou sem roupa, à noite,
sozinho e faminto; e nem assim teve medo! Veja, já empurrou de lado
um dos meus bebês. E aquele açougueiro manco o teria matado e
fugido para o Waingunga, enquanto os homens da aldeia caçariam aqui
em nossa casa como vingança! Se vamos ficar com ele? Com certeza
que vamos! Pare quieta, rãzinha. Sua Mowgli, pois vou chamá-lo de
Mowgli, a rã… Um dia Mowgli há de caçar Shere Khan, como ele o
caçou.
— Mas o que o bando vai dizer? — exasperou-se Pai Lobo.
A Lei da Selva dispõe muito claramente que, quando casa, todo lobo
pode deixar a alcateia a que pertence. Mas assim que seus filhotes estão
grandes o bastante para se sustentar nas quatro patas, ele deve levá-los
ao Conselho da Alcateia, que costuma acontecer uma vez por mês na
lua cheia, para que os outros lobos possam identificá-los. Depois dessa
inspeção, os filhotes estão livres para correr aonde bem entenderem, e
até que tenham abatido o primeiro cervo não há perdão se um lobo
adulto da alcateia mata um deles. A pena é a morte onde quer que o
assassino seja encontrado; e, se você parar para pensar um minuto, verá
que deve mesmo ser assim.
Pai Lobo esperou até que seus filhotes conseguissem correr um
pouco e, na noite do Conselho da Alcateia, levou-os todos com Mowgli
e Mãe Loba para a Pedra do Conselho — o topo de uma colina coberta
de rochas e lajes, capaz de abrigar uma centena de lobos. Akela, o
grande e cinzento Lobo Solitário que liderava a alcateia com força e
astúcia, estava esparramado em sua pedra, e embaixo dele estavam
sentados quarenta lobos ou mais, de todos os tamanhos e cores, desde
veteranos cor de texugo que conseguiam matar um cervo sozinhos a
jovens pretos de três anos que se achavam capazes de tal proeza. O
Lobo Solitário já era o líder havia um ano. Caíra duas vezes em
armadilhas quando jovem e, numa delas, fora espancado e dado como
morto; de modo que conhecia as maneiras e os costumes dos homens.
Quase não se conversava na pedra. Os filhotes se amontoavam no
centro do círculo formado pelas mães e os pais sentados, e, de quando
em quando, um lobo velho ia até um filhote, olhava bem para ele e
voltava para seu lugar a passos silenciosos. Às vezes, uma mãe loba
empurrava o filhote para o facho do luar para garantir que fosse bem
visto por todos. Do alto de sua pedra, Akela gritava:
— Vocês conhecem a lei, vocês conhecem a lei. Olhem bem, ó lobos!
E, afiitas, as mães faziam coro:
— Olhem, olhem bem, ó lobos!
Por fim — os pelos do pescoço de Mãe Loba se eriçaram quando
chegou a hora —, Pai Lobo empurrou “Mowgli, a rã”, como o
chamavam, até o centro, onde ele sentou, sorrindo e brincando com
seixos que reluziam à luz da lua.
Akela não chegou a erguer a cabeça de entre as patas, mas interveio
com o grito monótono:
— Olhem bem!
Um rugido abafado se ouviu detrás das pedras; a voz de Shere Khan,
exclamando:
— O filhote é meu. Entreguem-me o filhote. O que o Povo Livre quer
com um filhote de homem?
Akela nem moveu as orelhas. Tudo o que disse foi:
— Olhem bem, ó lobos! O que o Povo Livre tem com as ordens de
quem não é do Povo Livre? Olhem bem!
Ouviu-se um coro de rugidos guturais, e um jovem lobo de quatro
anos devolveu a pergunta de Shere Khan a Akela:
— O que o Povo Livre quer com um filhote de homem?
Pois bem, a Lei da Selva dispõe que, em caso de disputa do direito
sobre um filhote a ser aceito pela alcateia, pelo menos dois membros,
além do pai e da mãe, devem interceder em seu favor.
— Quem vai falar em nome desse filhote? — perguntou Akela. —
Entre o Povo Livre, quem se pronuncia?
Ninguém respondeu, e Mãe Loba se preparou para o que sabia ser
sua última luta, caso se chegasse a ponto de lutar.
Então a única outra criatura com permissão de tomar parte no
Conselho da Alcateia — Baloo, o dorminhoco urso-pardo que ensina a
Lei da Selva aos filhotes, o velho Baloo, que pode ir e vir aonde bem
entender, pois come apenas nozes, raízes e mel — levantou-se nas
patas traseiras e grunhiu.
— O filhote de homem, o filhote de homem? — perguntou. — Eu me
pronuncio em nome dele. Um filhote de homem não faz mal nenhum.
Não tenho o dom das palavras, mas falo a verdade. Deixem que corra
com a alcateia e que se misture aos outros. Eu mesmo vou lhe dar aulas.
— Precisamos de mais um — anunciou Akela. — Baloo já falou, e ele
é o nosso professor de filhotes. Alguém mais além de Baloo?
Uma sombra escura surgiu na roda. Era Bagheera, a pantera-negra,
cujo pelo era todo da cor do nanquim, mas com as manchas típicas das
panteras visíveis conforme a luz, feito um padrão de seda molhada.
Todo mundo conhecia Bagheera, e ninguém queria ficar no seu
caminho, pois era astuto como Tabaqui, corajoso como um búfalo
selvagem e desmedido como um elefante ferido. Mas ele tinha uma voz
tão suave quanto o mel silvestre que pinga da árvore, a pele macia como
o anoitecer.
— Ó Akela, ó Povo Livre — ronronou —, não tenho voto na
assembleia de vocês, mas a Lei da Selva diz que, não se tratando de um
caso de morte, se existe uma dúvida quanto a um novo filhote, a vida
dele pode ser comprada por um certo preço. E a lei não diz nada sobre
quem pode ou não pagar esse preço. Estou certo?
— Bem! Muito bem! — concordaram os lobos mais jovens, que estão
sempre famintos. — Escutem o que diz Bagheera. O filhote pode ser
comprado por um certo preço. Está na lei.
— Uma vez que não tenho direito à palavra aqui, peço sua licença.
— Pois fale — vinte vozes exclamaram.
— Matar um filhote nu é uma vergonha. Além disso, ele pode lhes
servir melhor depois de crescido. Baloo falou em seu favor. Agora, além
do voto de Baloo, acrescento um touro, e um bem gordo, que acabei de
matar a menos de um quilômetro daqui, para que o filhote de homem
seja aceito de acordo com a lei. Seria possível?
Ouviu-se um clamor de dezenas de vozes:
— Que importa? Ele não resistirá às chuvas de inverno. Vai
esturricar ao sol. Que mal pode uma rã sem roupas contra nós?
Deixemos que corra com a alcateia. Onde está esse touro, Bagheera?
Que ele seja aceito.
E enfim veio o grito profundo de Akela:
— Olhem bem, olhem bem, ó lobos!
Mowgli ainda estava muito absorvido pelos seixos e nem reparou
quando, um por um, os lobos vieram e o examinaram. Por fim, todos
desceram a colina atrás do touro morto, restando apenas Akela,
Bagheera, Baloo, Mowgli e sua família de lobos. Shere Khan ainda rugia
na noite, pois estava muito irritado por Mowgli não ter sido entregue a
ele.
— Eia, ruja bastante — disse Bagheera, por entre os bigodes —, pois
um dia essa coisa sem pelos há de fazê-lo urrar uma canção bem
diferente, ou nada entendo de homens.
— Foi melhor assim — comentou Akela. — Os homens e seus
filhotes são sábios. Com o tempo, ele pode vir a ser muito útil.
— É verdade, uma ajuda em hora de necessidade; pois ninguém pode
liderar a alcateia para sempre — concordou Bagheera.
Akela não respondeu. Estava pensando no momento, que chega para
todo líder de qualquer bando, em que suas forças se esvaem e ele vai
ficando cada vez mais fraco, até que por fim acaba sendo morto pelos
próprios lobos e surge um novo líder… para ser morto quando chegar
sua vez.
* Antiga moeda equivalente a 16a parte da rupia. No final do século XIX, quinze rupias
equivaliam a uma libra esterlina. (N. T.)
Canção de Mowgli
Cantada por ele na Pedra do Conselho, quando dançou sobre a pele de Shere Khan.
Para dar uma ideia da imensa variedade da Lei da Selva,traduzi em verso algumas poucas leis
que se aplicam aoslobos (Baloo sempre as recita como uma espécie de cantoria).Existem, é
claro, centenas e centenas de outras. Estas, no entanto, servirão de exemplo das regras mais
simples:
Banhe todo dia do nariz à ponta do rabo; beba bastante, mas não em
demasia;
Sempre se lembre de caçar à noite; jamais se esqueça de dormir de dia.
A toca do lobo é seu refúgio, mas se ele cava pouco e a toca fica rasa,
O conselho pode avisá-lo, para que ele faça tudo de novo.
A caça do lobo é a carne do lobo. Ele pode fazer com ela o que quiser,
Mas, enquanto ele não der permissão, o bando não pode devorá-la.
O direito do filhote é o direito das crias. De todo o seu bando, ele pode
exigir
Comer bastante, se o dono da caça não quiser mais; e ninguém pode
recusar isso a ele.
O direito da toca é o direito da mãe. Para cada cria, ela pode exigir,
De cada caça, um pernil; e ninguém pode recusar isso a ela.
Kaa, o píton, havia trocado de pele, quem sabe, pela ducentésima vez
desde que nascera, e Mowgli — nunca esquecendo que sobrevivera
graças a Kaa e seu trabalho de uma noite inteira nas Tocas Frias, de que
você deve se lembrar — foi cumprimentá-lo. A troca de pele sempre
deixa a serpente temperamental e deprimida, até que as novas escamas
comecem a brilhar e a ficar bonitas. Kaa nunca mais zombara de
Mowgli e passara a aceitá-lo, assim como os outros Povos da Selva,
como Senhor da Selva, levando até ele todas as notícias que um píton
do seu tamanho acabava ouvindo. O que Kaa não sabia sobre a Selva do
Meio — como chamam a vida rente ou embaixo da terra, a vida dos
buracos e das tocas — caberia escrito na menor de suas escamas.
Naquela tarde, Mowgli estava sentado no grande círculo das voltas
de Kaa, mexendo, com a ponta do dedo, os ocos de pele velha,
enovelada e retorcida entre as pedras, tal como Kaa a deixara. Kaa se
comprimira gentilmente debaixo dos ombros largos e nus de Mowgli,
de modo que o menino descansasse como se fosse uma poltrona de
verdade.
— É perfeita até nas escamas dos olhos — admirou-se Mowgli,
baixinho, brincando com a pele velha. — Deve ser estranho ver a
cobertura da cabeça jogada aos próprios pés!
— É, mas não tenho pés — respondeu Kaa. — E como é costume do
meu povo, não acho estranho. A sua pele também não fica velha e
áspera?
— Quando isso acontece, eu me lavo, seu cabeça chata. Mas é
verdade… no calor forte, às vezes tenho vontade de arrancar a pele
sem dor e sair correndo por aí.
— Eu me lavo e troco de pele. Que tal essa nova?
Mowgli passou a mão nos losangos de seu dorso gigante.
— A tartaruga tem as costas duras, mas não é tão bonita — disse,
judiciosamente. — A rã, minha xará, é mais bonita, mas não tão dura. É
muito bonita de se ver… como as pintas na boca do lírio.
— Precisa de água. Uma pele nova só ganha toda a cor depois do
primeiro banho. Vamos tomar banho.
— Eu levo você — ofereceu Mowgli, e desceu, rindo, para pegar o
corpo enorme de Kaa pelo meio, justo onde o bojo é mais largo.
Era como um homem tentando levantar uma manilha de meio metro
de diâmetro; e Kaa ficou parado, bufando de excitação discreta. Então
começou a brincadeira que faziam todo final de tarde: o menino, no
ímpeto de sua grande força, e o píton, em sua nova e suntuosa pele,
puseram-se de pé, um contra o outro — numa prova de atenção e força.
Claro que Kaa seria capaz de esmagar uma dúzia de Mowglis se ele se
deixasse levar, mas brincava com cuidado e nunca reduzia um décimo
de seu poder. Assim que Mowgli ficou forte o suficiente para um
confronto mais duro, Kaa lhe ensinara essa brincadeira, que fortalecia
seus membros como nenhuma outra. Às vezes, Mowgli ficava todo
enrolado até o pescoço pelas espirais móveis de Kaa, esforçando-se
para livrar um braço e pegá-lo pela garganta. Então Kaa cedia
hesitante, e Mowgli, com pés ligeiros, tentava segurar o rabo imenso
que chicoteava para trás em busca de uma pedra ou um toco.
Balançavam para os lados, cabeça com cabeça, cada um esperando sua
chance, até que o belo grupo de estátuas se desfizesse num giro de
espirais negras e amarelas, pernas e braços agitados, para depois se
formar de novo.
— Agora! Agora! Agora! — dizia Kaa, fazendo fintas com a cabeça de
que nem mesmo as mãos rápidas de Mowgli conseguiam se esquivar. —
Atenção! Toquei aqui, irmãozinho! Aqui, aqui e aqui! Suas mãos estão
dormindo? Aqui de novo, agora!
A brincadeira sempre terminava da mesma maneira: com um golpe
direto e forte de cabeça que invariavelmente derrubava o menino.
Mowgli nunca conseguia aprender a se defender daquele golpe
lampejante, e, como Kaa disse, nem adiantava tentar.
— Boa caçada! — grunhiu Kaa, por fim, e Mowgli, como de costume,
foi jogado dez metros para longe e caiu tossindo e dando risada.
Levantou-se com grama grudada nos dedos e seguiu Kaa até o local
onde a sábia serpente tomava banho: um lago fundo, muito escuro e
cercado por pedras, que ficava mais interessante com os cepos de
árvores mergulhados ali. O menino entrou no lago à maneira da selva,
sem fazer alarde, e mergulhou até o outro lado. Saiu também sem
barulho e ficou de costas, braços atrás da cabeça, observando a lua
surgir acima das pedras e desfazendo o refiexo do luar na água com a
ponta dos pés. A cabeça de Kaa, em forma de diamante, cortou o lago
feito uma navalha e saiu para repousar no ombro de Mowgli. Deitaram-
se imóveis, aproveitando preguiçosamente o frescor da água.
— Isso é muito gostoso — suspirou Mowgli por fim, sonolento. —
Pelo que me lembro, a essa hora, no Bando dos Homens, eles se deitam
em pedaços duros de madeira dentro de uma armadilha de barro e
fazem questão de impedir todos os ventos limpos, cobrem as cabeças
pesadas com panos sujos e fazem sons ruins pelo nariz. A selva é muito
melhor.
Uma cobra apressada deslizou pela pedra e bebeu água, dizendo aos
dois, antes de ir embora:
— Boa caçada!
— Sssh! — exclamou Kaa, como se tivesse se lembrado subitamente
de uma coisa. — Quer dizer que a selva lhe dá tudo o que sempre
desejou, irmãozinho?
— Nem tudo — respondeu Mowgli, rindo —, ou, a cada lua,
apareceria um Shere Khan novo e forte para matar. Dessa vez, mataria
com as próprias mãos, sem pedir ajuda aos búfalos. E já desejei que o
sol brilhasse no meio das chuvas e que as chuvas cobrissem o sol no
meio do verão. Também nunca fiquei de barriga vazia, mas já quis
matar uma cabra. E nunca matei cabra, mas já quis que fosse um cervo;
cervo não, mas um nilgó. É assim para todos nós.
— Não deseja mais nada? — perguntou a grande serpente.
— O que mais posso querer? Tenho a selva e os favores da selva!
Existem mais coisas em algum lugar entre a aurora e o poente?
— Bem, a cobra disse… — começou Kaa.
— Que cobra? Aquela que foi embora não falou nada. Estava
caçando.
— Outra cobra.
— Tem muito contato com o Povo do Veneno? Sempre deixo que
sigam seu caminho. Eles levam a morte nos dentes da frente, e isso não
é bom, pois são muito pequenos. Mas que cobra é essa de que está
falando?
Kaa deslizou lentamente para dentro d’água, como um barco
navegando em ritmo de cruzeiro.
— Há três ou quatro luas — explicou —, fui caçar nas Tocas Frias,
local de que não vai se esquecer. E a criatura que eu caçava fugiu
gritando pelos tanques, até entrar naquela casa que derrubei uma vez
para salvar você. Então sumiu no chão.
— Mas o povo das Tocas Frias não vive em buracos no chão. —
Mowgli sabia que Kaa estava falando do Povo Macaco.
— Essa coisa não estava vivendo, mas tentando viver — respondeu
Kaa, com um tremular da língua. — A coisa correu para um buraco
bem fundo. Fui atrás e, depois de matar, adormeci. Quando acordei,
continuei em frente.
— Debaixo da terra?
— Para você ver… Por fim, deparei-me com um Capuz Branco [uma
cobra branca] que falou de coisas além do meu alcance e me mostrou
muitas outras que eu nunca tinha visto.
— Caça nova? Era boa? — Mowgli virou-se de lado, rapidamente.
— Não era caça e teria quebrado todos os meus dentes; mas o Capuz
Branco disse que um homem… e falava como se conhecesse esse
povo… que um homem daria o ar de dentro das costelas só para ver
aquelas coisas de perto.
— Então vamos lá ver! — exclamou Mowgli. — Agora me lembrei
que já fui homem.
— Devagar, devagar. A pressa matou a serpente amarela que comeu o
sol. Conversamos debaixo da terra, e comentei de você, dizendo que
era homem. E o Capuz Branco falou (ele é mesmo tão velho quanto a
selva): “Faz muito tempo que não vejo um homem. Traga-o aqui, e ele
vai poder ver todas essas coisas pelas quais muitos homens
morreriam”.
— Isso só pode ser um tipo novo de caça. E, no entanto, o Povo do
Veneno não nos avisa quando a caça está por perto. Eles não são nada
amigáveis.
— Não é caça. É… é… não sei dizer o que é.
— Vamos lá. Nunca vi um Capuz Branco e quero ver logo essas
coisas. São coisas que ele matou?
— São coisas mortas, todas elas. Ele disse que é seu guardião.
— Ah! Como o lobo em cima da carne que levou para a toca. Vamos
logo.
Mowgli nadou para a margem, rolou no mato para secar e os dois
foram para as Tocas Frias, a cidade deserta da qual você já deve ter
ouvido falar. Mowgli já não tinha medo do Povo Macaco, porém o Povo
Macaco nutria o mais declarado horror a Mowgli. Suas tribos, contudo,
estavam percorrendo a selva, e assim as Tocas Frias estavam vazias e
silenciosas sob a luz da lua. Kaa seguiu até as ruínas do pavilhão das
rainhas que havia no terraço, deslizou sobre os escombros e desceu a
escada atulhada que levava ao subsolo pelo centro do pavilhão. Mowgli
fez o chamado da serpente — “Somos do mesmo sangue, você e eu” — e
continuou a partir dali engatinhando. Arrastaram-se por uma longa
distância, descendo por uma passagem em declive, fazendo várias
voltas tortuosas, e, por fim, chegaram à raiz de uma grande árvore, de
quase dez metros de altura, que deslocara uma pedra maciça da parede.
Passaram por essa abertura e se viram dentro de um imenso fosso, cuja
cúpula também havia sido quebrada por raízes de árvores, permitindo
que alguns raios de luz penetrassem a escuridão.
— Uma toca fechada — comentou Mowgli, ficando de pé —, mas é
longe demais para vir todo dia. E agora, o que há para ver aqui?
— Eu não sou nada? — perguntou uma voz no meio do fosso.
Mowgli notou algo branco se mexendo, até que, pouco a pouco, a
maior cobra que já vira na vida surgiu diante de seus olhos — uma
criatura de quase dois metros e meio de comprimento, descolorida por
viver na treva, quase tão branca quanto marfim. Até mesmo a marca em
formato de óculos em seu capuz aberto desbotara num amarelo pálido.
Com olhos vermelhos como rubis, era um ser absolutamente magnífico.
— Boa caçada! — cumprimentou Mowgli, sempre educado e sempre
com sua faca.
— E a cidade? — quis saber a Naja Branca, sem responder à
saudação. — Como vai a grande cidade, a cidade das muralhas, a cidade
dos cem elefantes e dos vinte mil cavalos, das incontáveis cabeças de
gado, a cidade do Rei dos Vinte Reis? Fiquei surdo aqui embaixo, e faz
tempo que não escuto os gongos de guerra.
— Acima de nós só tem selva — respondeu Mowgli. — Elefante
mesmo só conheço Hathi e seus filhos. Bagheera matou todos os
cavalos de uma aldeia, e… o que é um rei?
— Não falei? — Kaa dirigiu-se suavemente à Naja Branca. — Faz
quatro luas que lhe expliquei isso, que essa sua cidade não existe mais.
— A cidade… a grande cidade da fioresta, cujos portões são
guardados pelas torres do rei, não pode acabar. Eles a construíram
antes do pai do meu pai sair do ovo, e ela deve durar até que os filhos
dos meus filhos sejam brancos como eu! Salomdhi, filho de
Chandrabija, filho de Viyeja, filho de Yegasuri, construiu a cidade no
tempo de Bappa Rawal. A que rebanho vocês pertencem?
— É um caso perdido — suspirou Mowgli, virando-se para Kaa. —
Não entendo o que ele diz.
— Nem eu. É velho demais. Pai das Najas, aqui só existe selva, e tem
sido assim desde o início.
— Então quem é ele — prosseguiu a Naja Branca —, que senta diante
de mim, destemido, ignorando o nome do rei, falando a nossa língua
com lábios de homem? Quem é ele com a faca e a língua da serpente?
— Mowgli é como me chamam — foi a resposta. — Sou da selva. Os
lobos são meu povo e Kaa aqui é meu irmão. Pai das Najas, quem é
você, afinal?
— Sou o Guardião do Tesouro do Rei. Kurrun Raja construiu esta
cúpula de pedra, no tempo em que minha pele era escura, para que eu
mostrasse a morte àqueles que viessem roubar. Então baixaram o
tesouro através da cúpula, e ouvi a canção dos brâmanes, meus
senhores.
— Hum! — murmurou Mowgli consigo mesmo. — Conheci um
sacerdote brâmane com o Povo Homem e… sei bem o que vi. Em pouco
tempo, chega o mal.
— Cinco vezes desde que vim para cá, a pedra foi deslocada, mas
sempre para descer mais, nunca para tirar. Não há tesouro como este.
As riquezas aqui são a fortuna de cem reis. Mas faz muito, muito tempo
que a pedra foi removida pela última vez, e creio que minha cidade já
se esqueceu do tesouro.
— Não há mais cidade. Olhe para cima. Ali estão as raízes das
grandes árvores afastando as pedras. Árvores e homens não crescem
juntos — insistiu Kaa.
— Duas e três vezes os homens vieram até aqui — respondeu a Naja
Branca, asperamente —, mas ficaram quietos até que apareci, me
esgueirando no escuro, então gritaram um pouquinho. Agora, no
entanto, me trazem mentiras, homem e serpente, e querem me fazer
acreditar que não há mais cidade, que minha vigília de guardião
terminou. Os homens mudam pouco com os anos. Mas eu nunca mudo!
Até que a pedra seja retirada, e os brâmanes desçam cantando as
canções que conheço, me alimentem com leite morno e me levem de
volta para a luz, eu… eu… somente eu, e ninguém mais, sou o Guardião
do Tesouro do Rei! A cidade está morta, vocês dizem, e aqui só há
raízes de árvores? Então desçam e tomem do tesouro à vontade. Não
existe outro igual na terra. Homem com língua de cobra, se for capaz
de sair com vida pelo mesmo caminho que usou para entrar, os reis
menores serão seus servos!
— Mais uma vez, não entendi nada — comentou Mowgli,
indiferente. — Será que um chacal se enfiou aqui embaixo e mordeu
essa grande Naja Branca? Só pode estar louco. Pai das Najas, não vejo
nada aqui para ser tomado.
— Pelos deuses do Sol e da Lua, esse menino está possuído pela
loucura da morte! — sibilou a Naja Branca. — Antes que seus olhos se
fechem, farei este favor. Olhe e veja o que homem nenhum jamais viu!
— Na selva, quem fala de favor com Mowgli não se dá bem —
retrucou o menino, entre os dentes —, mas a escuridão muda tudo, eu
sei. Vou olhar, se isso o agrada.
Ele abriu bem os olhos e observou o fosso à sua volta, então tirou do
chão um punhado de uma coisa reluzente.
— Uau! — exclamou. — Parece o que eles usam no Bando dos
Homens para brincar, só que este é amarelo, e não marrom.
Mowgli deixou as moedas de ouro caírem no chão e deu um passo à
frente. O fundo do fosso estava coberto por um metro e meio ou dois de
moedas de ouro e prata que haviam caído dos sacos em que
originalmente estiveram estocadas, e, ao longo dos anos, o metal
assentara e se acomodara feito montes de areia na maré baixa. Sobre os
montes e dentro deles, elevando-se por entre as moedas como
naufrágios na areia, havia howdahs, ou arreios de elefantes, de prata em
alto-relevo, decorados com placas de ouro forjado e cravejados de
carbúnculos e turquesas. Palanquins e liteiras para levar rainhas,
revestidos e reforçados com prata e esmalte, as varas para as cortinas
enfeitadas de jade e com ganchos de âmbar; candelabros dourados de
onde pendiam esmeraldas perfuradas que tremeluziam nas hastes;
esculturas de deuses esquecidos de um metro e meio de altura,
prateadas, cravejadas e com olhos de pedras preciosas; cotas de malha
de aço tramadas com os de ouro e franjas enfeitadas com velhas pérolas
enegrecidas; elmos incrustados de rubis-sangue-de-pombo; escudos de
laca, de casco de tartaruga e de pele de rinoceronte com detalhes e
incrustações em ouro vermelho e esmeraldas nas bordas; punhos de
espadas, adagas e facas com diamantes engastados; vasilhas e conchas
sacrificiais douradas, pequenos altares de um formato que nunca vê a
luz do dia; taças e braceletes de jade; incensórios, pentes e potes para
perfume, hena e pó para os olhos, todos de ouro lavrado; incontáveis
argolas de nariz, pulseiras, tiaras, anéis e coletes; cintos de sete dedos
de largura, feitos inteiramente de diamantes e rubis quadrados; e caixas
aferrolhadas, cuja madeira se desfizera em pó, revelando os montes de
saras-estrelas, opalas, olhos-de-gato, saras comuns, rubis, diamantes,
esmeraldas e granadas que um dia guardaram.
A Naja Branca tinha razão. Não havia dinheiro que pagasse o valor
daquele tesouro, a pilhagem seleta de séculos de guerra, saque,
comércio e imposto. Só as moedas já teriam um valor incalculável, sem
falar em todas aquelas pedras preciosas; e o peso bruto de ouro e prata
devia passar de duzentas ou trezentas toneladas. Todo regente nativo
na Índia de hoje, mesmo pobre, acumula um montante que está sempre
aumentando; e embora, muito de vez em quando, um príncipe
esclarecido envie carros de quarenta ou cinquenta bois carregados de
prata para trocar por títulos do governo, a maioria tem um tesouro e o
segredo de sua localização bem guardados consigo.
Mas Mowgli, naturalmente, não entendeu o significado daquelas
coisas. As facas o interessaram, mas não eram tão boas quanto a sua, e
acabou deixando-as de lado. Por fim, encontrou algo que realmente o
fascinou diante de um howdah soterrado por moedas. Era um ankus de
quase um metro de comprimento, um aguilhão de elefante —
instrumento parecido com um croque pequeno, que se usa nos barcos.
No topo, tinha incrustado um rubi redondo e reluzente, e vinte
centímetros do cabo eram cravejados de turquesas brutas, muito
apinhadas, o que oferecia uma aderência perfeita para a mão. Abaixo
das turquesas, o cabo era debruado de jade com um padrão oral — as
folhas eram de esmeraldas e as fiores eram rubis incrustados no fundo
de pedras verdes. O restante do cabo era uma peça única de marfim
puro, enquanto a ponta — a seta e o gancho — era de aço banhado a
ouro com gravuras de caça a elefantes; e essas imagens atraíram
Mowgli, que notou que tinham algo a ver com seu amigo Hathi, o
Silencioso.
A Naja Branca viera acompanhando o menino de perto.
— Não vale a pena dar a vida para contemplar tudo isso? — indagou.
— Não lhe fiz um grande favor?
— Não entendi — respondeu Mowgli. — Essas coisas são duras, frias
e nada boas para comer. Mas isto aqui… — ele ergueu o ankus — …
quero levar comigo para poder ver à luz do sol. Você disse que era tudo
seu. Pode me dar este aqui, e lhe trarei rãs para comer?
A Naja Branca estremeceu com delícia maligna.
— Decerto lhe darei isto — afirmou. — Tudo o que está aqui, lhe
darei… antes de ir embora.
— Mas vou embora agora. Este lugar é escuro, frio, e quero levar esta
coisa pontuda como espinho para a selva.
— O que é isso a seus pés? O que tem aí?
Mowgli pegou algo branco e liso.
— É o osso da cabeça de um homem — respondeu, serenamente. —
E aqui há mais outros dois.
— Há muitos anos, vieram roubar o tesouro. Falei com eles no
escuro, e não se mexeram mais.
— Mas para que preciso desse negócio chamado tesouro? Se me der
o ankus para eu levar, terá sido uma boa caçada. Se não, terá sido uma
boa caçada do mesmo jeito. Não discuto com o Povo do Veneno e
também aprendi a senha da sua tribo.
— Aqui só existe uma senha. E é a minha!
Kaa avançou com olhos faiscantes.
— Quem me pediu para trazer o homem? — sibilou.
— Eu, claro — ciciou a velha naja. — Fazia muito tempo que não via
homem, e este fala nossa língua.
— Mas não havia essa conversa de matar. Como posso voltar para a
selva e dizer que levei o menino para a morte? — perguntou Kaa.
— Só falo em matar quando chega a hora. Quanto a voltar ou não, é
só passar pelo buraco na parede. Paz agora, seu gordo, matador de
macacos! Tudo o que tenho a fazer é tocar seu pescoço, e a selva não o
verá nunca mais. Nunca um homem veio aqui e foi embora com o ar
dentro das costelas. Sou o Guardião do Tesouro da Cidade do Rei!
— Mas estou dizendo, verme branco das trevas, que não existe mais
nem rei nem cidade! Aqui é tudo selva à nossa volta! — exclamou Kaa.
— Ainda existe o tesouro. Mas pode ser assim. Espere um pouco, Kaa
das Pedras, e veja o menino fugindo. Aqui tem bastante espaço para
brincar. A vida aqui é boa. Corra para lá e para cá, brinque, menino!
Mowgli pôs discretamente a mão sobre a cabeça de Kaa.
— Esse bicho branco só lidou com homens do Bando dos Homens.
Ele não me conhece — sussurrou. — Foi ele quem pediu esta caçada.
Vamos dar isto a ele.
Mowgli estava de pé, segurando o ankus apontado para baixo. Ele o
atirou depressa e o ankus fincou no capuz da grande naja, prendendo-a
no chão. Num segundo, todo o peso de Kaa estava sobre o corpo branco
que se retorcia, paralisando-o do capuz ao rabo. Os olhos vermelhos
faiscavam e o restante da cabeça dava botes furiosos a torto e a direito.
— Mate! — exclamou Kaa, enquanto Mowgli pegava a faca.
— Não — disse ele, sacando a faca —, nunca mais vou matar, exceto
para comer. Mas veja, Kaa!
Ele pegou a naja por trás do capuz, abriu-lhe a boca com a lâmina da
faca e mostrou as terríveis presas de veneno da arcada superior, todas
pretas e secas na gengiva. A Naja Branca havia vivido mais tempo que o
próprio veneno, como costuma acontecer com as serpentes.
— Thuu [Está seco] — disse Mowgli, e, afastando Kaa, pegou de volta
o ankus e soltou a Naja Branca. — O tesouro do rei precisa de um novo
guardião — anunciou, gravemente. — Thuu, você não se saiu nada
bem. Corra para lá e para cá, brinque, Thuu!
— Que vergonha. Mate-me! — sibilou a Naja Branca.
— Chega dessa conversa de matar. Vamos embora. Levo comigo a
coisa pontuda, Thuu, pois lutei e venci.
— Cuidado, então, para essa coisa não acabar matando você. Porque
isso é a morte! Lembre-se, é a morte! Essa coisa tem o bastante para
matar todos os homens da minha cidade. Não a terá por muito tempo,
homem da selva, nem aquele que a tomar de você. Eles matarão,
matarão e matarão em nome disso! Minha força secou, mas o ankus vai
fazer meu trabalho. É a morte! É a morte! É a morte!
Mowgli rastejou de volta pelo buraco até a passagem, e a última coisa
que viu foi a Naja Branca dando um bote furioso com suas presas
inofensivas nos rostos de ouro das imagens dos deuses espalhadas pelo
chão, sibilando:
— É a morte!
Ambos ficaram felizes de retornar à luz do dia, e, quando estavam de
volta em sua selva, Mowgli fez o ankus brilhar na luz da manhã e o
menino ficou tão contente quanto se tivesse encontrado um ramalhete
de fiores novas para prender no cabelo.
— Isso é mais brilhante que os olhos de Bagheera — disse, deliciado,
girando o rubi do cabo. — Vou mostrar a ele. Mas o que Thuu quis
dizer quando falou em morte?
— Não sei. Lamento do rabo à cabeça por ele não ter sentido a ponta
da sua faca. As Tocas Frias sempre abrigaram o mal… acima do chão
ou embaixo. Mas agora estou com fome. Caça comigo esta madrugada?
— perguntou Kaa.
— Não. Bagheera precisa ver isto aqui. Boa caçada!
Mowgli saiu saltitante, exibindo o grandioso ankus e parando de
quando em quando para admirá-lo, até que chegou na parte da selva
em que Bagheera costumava ficar e o encontrou bebendo água, depois
de uma intensa matança. Mowgli contou-lhe todas as suas aventuras do
início ao fim, Bagheera farejou algumas vezes o ankus enquanto o
menino falava. Quando Mowgli chegou às últimas palavras da Naja
Branca, a pantera ronronou satisfeita.
— Afinal o que quis dizer a Naja Branca? — perguntou Mowgli,
depressa.
— Nasci nas jaulas do rei, em Oodeypore, e sinto nas entranhas que
sei um pouco a respeito do homem. Muitos homens matariam três
vezes numa noite só por essa pedra vermelha.
— Mas ela o faz ficar pesado. Minha faquinha brilhante é melhor…
E, veja, não dá para comer a pedra. Por que matariam por isso?
— Mowgli, vá dormir. Já viveu com os homens, e…
— Eu lembro. Homens matam porque não caçam… por falta do que
fazer e por prazer. Acorde, Bagheera. Para que serve esta coisa
pontuda?
Bagheera entreabriu os olhos — estava com muito sono — com uma
piscadela maliciosa.
— Foi feita pelos homens para espetar a cabeça dos filhos de Hathi,
para o sangue sair da cabeça. Vi outras como essa nas ruas de
Oodeypore, na frente das jaulas. Essa coisa já provou o sangue de
muitos iguais a Hathi.
— Mas por que eles espetam a cabeça dos elefantes?
— Para ensinar a Lei do Homem. Como o homem não tem garras
nem presas, fazem essas coisas… e outras piores.
— Sempre mais sangue quando me aproximo, mesmo que apenas das
coisas que o Bando dos Homens fez — comentou Mowgli, com
desprezo. Já estava um pouco cansado do peso do ankus. — Se
soubesse disso, não teria trazido. Primeiro o sangue de Messua nas
amarras, agora o de Hathi nisso. Não vou mais usá-lo. Veja!
O ankus voou, cintilante, e fincou sua ponta no chão a uns trinta
metros dali, entre as árvores.
— Minhas mãos agora estão limpas da morte — disse Mowgli,
esfregando as palmas na terra fresca e úmida. — Aquele Thuu disse
que a morte iria me seguir. Ele é velho, branco e louco.
— Branco ou preto, morte ou vida, eu vou dormir, irmãozinho. Não
consigo caçar a noite inteira e uivar o dia inteiro como certas pessoas.
Bagheera foi dormir numa toca que conhecia a uns três quilômetros
dali. Mowgli se acomodou numa árvore confortável, amarrou dois ou
três cipós e, antes mesmo de se dar conta, estava embalado numa rede a
quinze metros do chão. Embora não tivesse objeção à luz forte do dia,
seguia o costume de seus amigos e se expunha a ela o mínimo possível.
Quando acordou com vozes de um povo que falava muito alto, era de
tarde outra vez, depois de ter sonhado com os belos seixos que atirara
longe.
— Vou pelo menos olhar de novo aquela coisa — disse.
Desceu por um cipó até o chão, mas Bagheera o estava esperando.
Mowgli podia ouvi-lo farejando na penumbra.
— Cadê a coisa pontuda? — perguntou.
— Um homem levou. Aqui está o rastro dele.
— Agora veremos se Thuu disse a verdade. Se a coisa pontuda for a
morte, esse homem vai morrer. Vamos segui-lo.
— Matar primeiro — disse Bagheera. — Barriga vazia atrapalha a
visão. Os homens são lentos e a selva é úmida o bastante para conservar
até as pegadas mais leves.
Caçaram assim que conseguiram achar alguma coisa, mas levou
quase três horas até terminarem de comer e beber para retomar o
rastro do homem. O Povo da Selva sabe que nada justifica comer
depressa.
— Você acha que a coisa pontuda vai se virar na mão do homem e
matá-lo? — perguntou Mowgli. — Aquele Thuu disse que era a morte.
— Veremos quando o encontrarmos — respondeu Bagheera,
trotando com a cabeça baixa. — É rastro de um pé só — (queria dizer
que havia apenas um homem) —, e o peso da coisa afundou mais o
calcanhar dele.
— Hai! Isso é claro como um relâmpago no verão — concordou
Mowgli.
Mudaram para o trote ligeiro e descontínuo de quem segue um
rastro, entrando e saindo do tabuleiro de manchas formadas pelo luar,
acompanhando as pegadas daqueles dois pés descalços.
— Aqui estava correndo solto — observou Mowgli. — Porque os
dedos estão afastados. — Passavam por um terreno úmido. — Mas por
que virou para o lado aqui?
— Espere! — avisou Bagheera, pulando para a frente com impulso
extremo, o mais distante que conseguiu. A primeira coisa a fazer
quando um rastro deixa de se explicar é saltá-lo sem deixar as próprias
pegadas confusas no chão. Bagheera se virou ao aterrissar e olhou para
Mowgli, exclamando: — Aqui vem um outro rastro ao encontro dele. É
um pé pequeno, esse segundo rastro, e os dedos apontam para dentro.
Mowgli correu até o amigo e viu.
— É pé de caçador gonde — disse. — Repare! Aqui arrastou o arco
no chão. Foi por isso que o primeiro rastro virou para o lado tão
depressa. Pé Grande se escondeu de Pé Pequeno.
— Verdade — concordou Bagheera. — Agora, para não estragarmos
as pegadas cruzando os dois rastros, cada um segue o seu. Sou Pé
Grande, irmãozinho, e você vai ser o Pé Pequeno, o gonde.
Bagheera saltou de volta para o rastro original, deixando Mowgli
com a pista estreita e curiosa do selvagem homenzinho da fioresta.
— Aqui — disse Bagheera, acompanhando passo a passo a sequência
de pegadas —, eu, Pé Grande, viro para o lado. Aqui, me escondo atrás
dessa pedra e fico parado, sem ousar mover os pés. Cante a sua pista,
irmãozinho.
— Aqui, eu, Pé Pequeno, chego a essa pedra — disse Mowgli,
correndo com seu rastro. — Então, sento embaixo da pedra, apoiado na
mão direita, e descanso o arco entre os dedos. Espero bastante, pois
minha pegada está bem funda aqui.
— Eu também — comentou Bagheera, escondido atrás da pedra. —
Espero, apoiando a coisa pontuda nessa outra pedra. A coisa escorrega,
pois aqui está o arranhão. Cante a sua pista, irmãozinho.
— Um, dois gravetos e um galho grande quebrados aqui — observou
Mowgli, em voz baixa. — Humm, como cantar isso? Ah! Entendi. Eu,
Pé Pequeno, saio fazendo barulho para que Pé Grande possa me ouvir.
— Ele saiu de detrás da pedra, passo a passo, andando por entre as
árvores e aumentando a voz com a distância, conforme se aproximava
de uma pequena cachoeira. — Agora… vou… bem… longe… onde…
o… som… da… queda-d’água… encobre… o… meu… e… espero…
aqui. Cante a sua pista, Bagheera, Pé Grande!
A pantera estava olhando para todas as direções, em busca do rastro
do Pé Grande a partir da pedra. Por fim, anunciou:
— Saio de detrás da pedra ajoelhado, arrastando a coisa pontuda.
Não vejo ninguém e corro. Eu, Pé Grande, corro solto. O rastro é claro
agora. Cada um segue o seu. Saio correndo!
Bagheera seguiu o rastro das pegadas nítidas e Mowgli seguiu os
passos do gonde. Por algum tempo, fez-se silêncio na selva.
— Onde está, Pé Pequeno? — chamou Bagheera.
A voz de Mowgli respondeu a menos de cinquenta metros à direita.
— Humm! — exclamou a pantera, com um pigarro grave. — Os dois
estão correndo lado a lado, estão se aproximando!
Disputaram corrida por quase um quilômetro, sempre mantendo
mais ou menos a mesma distância, até que Mowgli, cuja cabeça não
estava tão perto do chão quanto a de Bagheera, gritou:
— Eles se encontraram. Boa caçada, veja! Aqui, Pé Pequeno parou,
com o joelho numa pedra. E ali está o Pé Grande!
A menos de dez metros à frente deles, estirado sobre uma pilha de
pedras lascadas, estava o corpo de um homem do vilarejo, com uma
fiecha atravessada nas costas e no peito, comprida e de penas
diminutas, típica dos gondes.
— Será que Thuu não estava afinal tão velho e tão louco,
irmãozinho? — insinuou Bagheera, suavemente. — Até agora já temos
um morto.
— Vamos continuar seguindo. Mas onde está o bebedor de sangue de
elefante, o espinho de olho vermelho?
— Pé Pequeno está com ele… talvez. O rastro voltou a ser de um
homem só.
O rastro solitário de um homem leve, que ia depressa com um peso
no ombro esquerdo, seguia por um trecho longo de mato seco e
rasteiro, onde cada pegada parecia, aos olhos sagazes de seus
rastreadores, marcada a ferro em brasa.
Ninguém falou nada até que o rastro chegou às cinzas de uma
fogueira de acampamento, escondida numa ravina.
— Outra vez! — anunciou Bagheera, parando de repente como se
tivesse topado com uma pedra.
O corpo de um pequeno gonde envelhecido estava ali, deitado com
os pés nas cinzas, e Bagheera olhou perplexo para Mowgli.
— Foi um bambu — disse o menino, assim que viu a cena. — Usei
isso com os búfalos, quando estava com o Bando dos Homens. O Pai das
Najas… sinto muito se zombei dele… conhecia bem essa raça, como eu
deveria ter imaginado. Não fui eu que disse que o homem mata por
falta do que fazer?
— Na verdade, eles matam pelas pedras vermelhas e azuis —
respondeu Bagheera. — Lembra que estive nas jaulas do rei, em
Oodeypore.
— Um, dois, três, quatro rastros — contou Mowgli, de pé junto às
cinzas. — Quatro pegadas de homens calçados. Não são rápidos como
os gondes. Agora, o que o homenzinho da fioresta fez para eles? Veja,
conversaram aqui, todos os cinco, antes de matá-lo. Bagheera, vamos
voltar. Estou de barriga cheia, ainda assim meu estômago sobe e desce
como o ninho de um oriolídeo na ponta de um galho.
— Não se deixa a caça no meio. Vamos! — chamou a pantera. —
Esses oito pés calçados não foram longe.
Nada mais foi dito durante uma hora, enquanto seguiam o rastro
largo dos quatro homens calçados.
Fazia um dia claro e quente agora, então Bagheera disse:
— Sinto cheiro de fumaça.
— Homens sempre preferem comer a correr — respondeu Mowgli,
trotando em zigue-zague entre os arbustos rasteiros da nova selva que
estavam explorando.
Bagheera, um pouco à sua esquerda, fez um som indescritível com a
garganta.
— Eis aí alguém que não vai comer mais nada — anunciou.
Havia uma trouxa de panos coloridos derrubada embaixo de um
arbusto, com um pouco de farinha derramada em volta.
— Outra vez o bambu — comentou Mowgli. — Veja! Os homens
comem esse pó branco. Levaram a caça deste aqui… era quem levava a
comida deles… e o deixaram para servir de caça a Chil, o milhafre.
— Já é o terceiro — disse Bagheera.
— Vou levar rãs frescas e grandes para o Pai das Najas e deixá-lo bem
gordo — prometeu Mowgli a si mesmo. — O bebedor de sangue de
elefante é mesmo a morte, mas ainda não consigo entender!
— Vamos! — chamou Bagheera.
Não tinham avançado um quilômetro quando ouviram Ko, o corvo,
cantando a canção da morte no alto de um tamarisco, sob cuja sombra
três homens estavam deitados. Um fogo quase morto enfumaçava no
centro do círculo, sob uma placa de ferro que continha um bolo preto e
queimado de pão sem fermento. Perto do fogo, reluzindo ao sol, estava
o ankus de rubi e turquesa.
— A coisa age depressa, o rastro acabou aqui — disse Bagheera. —
Como foi que esses morreram, Mowgli? Não há marcas em nenhum
deles.
Um morador da selva acaba aprendendo, por experiência, a respeito
de plantas e frutos venenosos, tanto quanto muitos médicos. Mowgli
farejou a fumaça da fogueira, partiu um pedaço do pão preto, provou e
cuspiu.
— Figo da morte — respondeu, tossindo. — O primeiro deve ter
posto na comida para esses aí, que o mataram, depois de matar o gonde.
— Boa caçada, de fato! As mortes foram próximas umas das outras
— disse Bagheera.
“Figo da morte” é como a selva chama a figueira-brava ou dhatura, o
veneno mais comum em toda a Índia.
— E agora? — quis saber a pantera. — Devemos nos matar um ao
outro por causa desse matador de olho vermelho?
— Essa coisa fala? — perguntou Mowgli num sussurro. — Será que
fiz mal em jogá-la fora? Entre nós, não fará mal nenhum, pois não
desejamos o que os homens desejam. Se a deixarmos aqui, sem dúvida
continuará matando homem após homem, tão rápida como as nozes
caem na ventania. Não amo os homens, mas também não quero que
morram seis por noite.
— Que importa? Não passam de homens. Eles mesmos se matam e se
satisfazem com isso — argumentou Bagheera. — Aquele primeiro
homenzinho da fioresta caçou bem.
— Mesmo assim, não passam de filhotes, e um filhote se afoga
tentando morder a luz da lua na água. O erro foi meu — concluiu
Mowgli, que falava como se soubesse tudo sobre todas as coisas. —
Nunca mais trarei objetos estranhos para a selva, nem que sejam belos
como fiores. Isto… — ele segurou o ankus com cuidado — voltará para
o Pai das Najas. Só que primeiro precisamos dormir, não podemos
dormir perto desses aí. E precisamos enterrar isto, para que não fuja e
mate mais seis. Cave um buraco embaixo daquela árvore.
— Mas, irmãozinho — argumentou Bagheera, aproximando-se do
local —, já disse que a culpa não é do bebedor de sangue. O problema
são os homens.
— Dá no mesmo — concluiu Mowgli. — Cave um buraco fundo.
Quando acordarmos vou desenterrá-lo e devolvê-lo.
Foi depois que a selva avançou sobre a aldeia que a parte mais
agradável da vida de Mowgli começou. Ele possuía a consciência
tranquila de quem acertara suas contas; e todos na selva eram seus
amigos e tinham apenas um pouco de medo do menino. As coisas que
havia feito, visto e ouvido em suas andanças de um povo para outro,
com ou sem seus quatro companheiros, renderiam muitas e muitas
histórias, cada uma delas longa como esta. De modo que você nunca vai
saber como ele conheceu o Elefante Louco de Mandla, que matou as
vinte e duas reses que levavam onze carroças de moedas de prata para
o Tesouro Nacional, deixando rupias brilhantes espalhadas na terra;
como lutou contra Jacala, o crocodilo, numa longa noite nos Charcos
do Norte, e quebrou sua faca nas placas dorsais do bicho; como
encontrou uma faca nova e mais comprida pendurada no pescoço de
um homem que havia sido morto por um javali, e como seguiu o rastro
desse javali e o matou como preço justo pela faca; como se viu cercado
pelos cervos durante a Grande Fome e quase morreu pisoteado pelo
bando; como salvou Hathi, o Silencioso, de cair mais uma vez numa
armadilha com lanças afiadas no fundo do fosso, e como, no dia
seguinte, ele mesmo caiu numa bem armada arapuca de leopardo, e
como Hathi quebrou as barras de madeira grossa que estavam em cima
dele; ou como ordenhou búfalas selvagens no charco, e como…
Mas contemos uma história de cada vez. Pai Lobo e Mãe Loba
morreram, e Mowgli rolou uma pedra enorme até a entrada da caverna
e cantou a Canção da Morte para eles. Baloo ficou muito velho e perdeu
a agilidade, e até Bagheera, que tinha nervos de aço e músculos de
ferro, estava um pouco mais lento do que costumava ser na caçada.
Akela, que era cinzento, ficou branco como leite com a idade, suas
costelas agora protuberavam e ele andava como se fosse feito de
madeira. Mowgli caçava para ele. Mas os lobos jovens, filhotes da
alcateia dispersa de Seeonee, prosperaram e se multiplicaram. Quando
eram já cerca de quarenta deles, animais de voz ativa, patas limpas,
com cinco anos de idade e sem líder, Akela anunciou que deviam se
unir e seguir a lei, correndo sob uma liderança única, como cabia ao
Povo Livre fazer.
Essa questão não envolvia Mowgli, pois, como ele dizia, já provara a
fruta amarga e conhecia a árvore que a produzia. Mas quando Phao,
filho de Phaona (seu pai era o Rastreador Cinzento na época em que
Akela era o líder), lutou e conquistou a liderança da alcateia de acordo
com a Lei da Selva, e os velhos chamados e as antigas canções
começaram a soar sob as estrelas outra vez, Mowgli chegou à Pedra do
Conselho cheio de saudades. Quando resolveu falar, a alcateia esperou
até que tivesse terminado, e ele sentou ao lado de Akela, na pedra
acima de Phao. Eram tempos de boa caçada e bom sono. Nenhum
estranho ousava invadir a selva do povo de Mowgli, como chamavam a
alcateia. Os jovens lobos ficaram gordos e fortes, havendo muitos
filhotes para ser apresentados à inspeção. Mowgli ia sempre à inspeção,
lembrando-se da noite em que uma pantera-negra trouxera um bebê
marrom sem pelos para o bando, e o chamado comprido, “Olhem,
olhem bem, ó lobos”, fazia seu coração pular. Quando não comparecia,
era porque estava longe na selva com os irmãos, provando, tocando,
vendo e sentindo coisas novas.
Certa tarde, quando trotava à vontade pelas serras para levar a Akela
metade de um cervo que caçara, seguido pelos Quatro Irmãos,
brincando de luta e tropeçando uns nos outros de pura alegria por
estarem vivos, ele ouviu um grito que não escutava desde os tempos
ruins de Shere Khan. Era o que chamavam na selva de pheeal, um uivo
hediondo que o chacal solta quando está caçando atrás de um tigre, ou
quando há boa caça por perto. Se você puder imaginar um misto de
ódio, triunfo, medo e desespero com uma dose de escárnio, terá uma
noção do pheeal que se ergueu e baixou, se espalhando e estremecendo
até bem longe do outro lado do Waingunga. Os Quatro pararam de
repente, agressivos e rosnando. A mão de Mowgli foi em busca da faca e
ele parou, com o rosto vermelho, as sobrancelhas franzidas.
— Nenhum Listrado ousaria vir caçar aqui — disse.
— Isso não foi o grito daquele seguidor de tigre — respondeu o
Irmão Cinzento. — É uma grande caçada. Escute!
O gritou voltou, meio soluçado, meio gargalhado, como se o chacal
tivesse lábios humanos. Então Mowgli tomou fôlego e correu para a
Pedra do Conselho, chamando no caminho os lobos da alcateia. Phao e
Akela estavam juntos na pedra, e, abaixo deles, com os nervos à fior da
pele, reuniram-se todos os demais. As mães e os filhotes ficaram
tomando conta das tocas, pois quando se ouve o pheeal não é hora de
criaturas frágeis ficarem do lado de fora.
Tudo o que podiam ouvir era o Waingunga correndo depressa e
rumorejando no escuro e a leve brisa nas copas das árvores, até que,
subitamente, do outro lado do rio, um lobo chamou. Não era da
alcateia, pois estavam todos reunidos no conselho. A nota mudou para
um longo e desolado uivo:
— Dhole! — dizia. — Dhole! Dhole! Dhole!
Ouviram patas cansadas sobre as pedras, até que um lobo esquálido,
de listras vermelhas nos fiancos, a pata direita da frente ferida e a
mandíbula espumando, saltou dentro da roda e se deitou ganindo aos
pés de Mowgli.
— Boa caçada! Quem é seu líder? — perguntou Phao, com a voz
séria.
— Boa caçada! Sou Won-tolla — foi a resposta.
Queria dizer que era um lobo solitário, lutando sozinho por sua
sobrevivência, a da fêmea e de seus filhotes em alguma toca isolada,
como fazem muitos lobos do sul. Won-tolla quer dizer Arredio —
aquele que não pertence a bando nenhum. Em seguida, arfou, e todos
viram que as batidas de seu coração faziam com que tremesse todo
para trás e para a frente.
— O que está acontecendo? — indagou Phao, pois essa era a
pergunta que toda a selva faz quando se ouve o pheeal.
— Os dholes, os dholes do Dekkan — Cão Vermelho, Matador! Estão
vindo do norte para o sul, dizendo que o Dekkan estava vazio e
matando tudo no caminho. Quando esta lua era nova, havia quatro
comigo: minha loba e três filhotes. Ela ia ensiná-los a caçar nas
planícies de relva, a esconder e a conduzir o cervo, como fazemos nós
habitantes do descampado. À meia-noite, ouvi os dholes, todos já no
rastro dos meus lobos. De madrugada, estavam duros na relva… os
quatro, ó Povo Livre… Eram quatro quando esta lua era nova. Então,
quis reivindicar meu Direito de Sangue e encontrei os dholes.
— Quantos são? — quis saber Mowgli rapidamente; a alcateia
rosnou, grave e gutural.
— Não sei. Três deles sei que nunca mais matarão. Mas, no final, me
encurralaram como a um cervo, me fazendo andar em três patas. Veja,
Povo Livre!
Ele exibiu a pata ferida, já escura de sangue seco. Havia mordidas
cruéis em seus fiancos, além de ter o pescoço todo lanhado e
arranhado.
— Coma um pouco — ofereceu Akela, afastando-se da carne que
Mowgli lhe havia trazido, e o Arredio logo se pôs a comer.
— Esta comida não será desperdiçada — disse, humildemente,
depois de saciar um pouco a fome. — Dê-me um pouco de força, Povo
Livre, e também irei caçar. Minha toca, que estava cheia quando esta
lua era nova, ficou vazia, e a dívida de sangue ainda não foi paga.
Phao ouviu aqueles dentes rachando um osso duro de cervo e
grunhiu que estava de acordo.
— Vamos precisar de seus dentes — declarou. — Havia filhotes com
os dholes?
— Não, nenhum. Só Caçadores Vermelhos, cães adultos, grandes e
fortes de tanto comerem lagartos no Dekkan.
O que Won-tolla queria dizer era que os dholes, os cães vermelhos
caçadores do Dekkan, tinham saído para caçar, e a alcateia sabia bem
que até mesmo o tigre deixava uma caça para o dhole. Eles correm pela
selva, e o que encontram pelo caminho, pegam e rasgam em pedaços.
Embora não sejam tão grandes, nem possuam metade da astúcia dos
lobos, são muito fortes e andam em grandes números. Os dholes, por
exemplo, só começam a referir-se a si mesmos como matilha quando
juntam cem adultos; enquanto quarenta lobos já fazem uma alcateia e
tanto. As caminhadas de Mowgli o tinham levado aos limites das
encostas relvadas do Dekkan, e o menino já vira os destemidos dholes
dormindo, brincando e se coçando nos pequenos ocos e moitas que
usam como tocas. Desprezava-os e odiava-os, porque não tinham o
mesmo cheiro do Povo Livre, porque não viviam em cavernas e,
sobretudo, porque possuíam pelos entre os dedos, enquanto ele e seus
amigos tinham pés limpos. Mas sabia, pois Hathi lhe contara, que uma
matilha de dholes caçadores era uma coisa terrível. Até Hathi dá um
passo para o lado e sai de seu caminho, pois eles, enquanto não são
mortos ou até que a caça fique escassa, não retrocedem jamais.
Akela também sabia um bocado sobre dholes, pois disse a Mowgli em
voz baixa:
— É melhor morrer com a alcateia do que sem líder e sozinho. Essa
vai ser uma boa caçada e… a minha última. Mas como os homens
vivem mais, você terá ainda muitas outras noites e muitos outros dias,
irmãozinho. Vá para o norte e espere, e se sobrar alguma criatura viva
depois que os dholes passarem, ela lhe contará como foi a luta.
— Ah — comentou Mowgli, muito sério —, devo ir para o charco,
pegar um pouco de peixe e dormir numa árvore ou devo pedir ajuda ao
Bandar-log e quebrar cocos, enquanto a alcateia luta lá embaixo?
— Vai ser uma luta até a morte — explicou Akela. — Você não
conhece o dhole, o Matador Vermelho. Até o Listrado…
— Aowa! Aowa! — exclamou Mowgli desbragadamente. — Matei um
macaco listrado, e, certo como ele está aqui na minha barriga, Shere
Khan deixaria a própria fêmea virar carne para o dhole se tivesse
perseguido uma matilha por três serras. Escute: havia um lobo, meu
pai, e havia uma loba, minha mãe, e houve um velho lobo cinzento (não
lá muito sábio, está todo branco agora) que foi meu pai e minha mãe.
Portanto eu — ele levantou a voz — digo que, quando e se o dhole vier,
Mowgli e o Povo Livre serão uma mesma pele nessa caçada. E digo que,
pelo touro que me comprou, o touro que Bagheera pagou por mim nos
velhos tempos e de que a alcateia não se lembra mais, eu digo, para que
as árvores e o rio escutem e me lembrem se eu esquecer; eu digo que
esta minha faca será mais um dente da alcateia, e um dente bem afiado.
Essa é a minha Palavra, esse é o meu Voto.
— Você não conhece o dhole, homem da língua de lobo —
acrescentou Won-tolla. — Só quero acertar a dívida de sangue com eles
antes que me rasguem em pedaços. Eles se movem lentamente,
matando tudo pelo caminho, mas em dois dias terei recuperado um
pouco minhas forças e estarei pronto para cobrá-la. Contudo, a vocês,
Povo Livre, digo que devem correr para o norte e comer pouco por um
tempo, até que os dholes tenham ido embora. Será uma caçada sem
carne.
— Escutem o Arredio! — zombou Mowgli, dando risada. — Povo
Livre, temos de ir para o norte, comer lagartos e ratos das margens para
evitar a todo custo encontrar os dholes. Deixar que eles cacem toda a
comida de nosso território enquanto ficamos escondidos no norte, até
que decidam nos devolver nosso lar. O dhole é um cão… e pequeno,
ainda por cima… vermelho, de barriga amarela, sem tocas e com pelos
entre os dedos! Tem seis, oito filhotes por cria, como se fosse Chikai, o
ratinho saltitante. Claro, devemos fugir, Povo Livre, e pedir permissão
aos povos do norte para comermos as migalhas de suas caças!
Conhecem o ditado: “Ao norte, lombriga; ao sul, piolho”. Nós somos a
selva. Escolham, ó, escolham. Vai ser boa caçada! Pois para a alcateia,
para a alcateia inteira, para a toca e o ninho, para a caça e o caçador,
para o macho que persegue o gamo e o filhote na caverna… chegou a
hora! Chegou a hora! Chegou a hora!
A alcateia respondeu com um latido grave e rascante que soou na
noite como uma grande árvore caindo.
— Chegou a hora! — berraram.
— Fiquem com eles — ordenou Mowgli aos Quatro. — Vamos
precisar de todos os dentes. Phao e Akela devem se aprontar para a
batalha. Vou contar os cães.
— É a morte! — exclamou Won-tolla, erguendo-se um pouco. — O
que alguém sem pelos poderá fazer contra o Cão Vermelho? Nem o
Listrado, lembrem-se…
— Você é mesmo um Arredio — retrucou Mowgli —, mas vamos
voltar ao assunto quando os dholes estiverem mortos. Boa caçada a
todos!
Ele fugiu depressa para o escuro, louco de entusiasmo, mal
reparando onde punha o pé, e a consequência natural disso foi que
tropeçou e caiu em cheio sobre os anéis espiralados de Kaa, onde o
píton observava o rastro de um gamo, perto do rio.
— Kssha! — reclamou Kaa, irritado. — Isso lá são modos de agir na
selva, pisar forte e fazer tropelia, estragando a caçada da noite… e logo
quando a coisa ia tão bem?
— A culpa foi minha — desculpou-se Mowgli, voltando a ficar de pé.
— Na verdade, estava procurando você, Cabeça Chata, mas cada vez
que o encontro está maior e mais largo que o comprimento do meu
braço. Não há ninguém como você em toda a selva, mais sábio, mais
velho, mais forte e mais belo, Kaa.
— Agora, aonde leva esse rastro? — quis saber Kaa, com voz mais
gentil. — Não faz uma lua, um homenzinho com uma faca jogou pedras
na minha cabeça e me xingou de tudo o que é pior, porque eu estava
dormindo na clareira.
— Isso mesmo, dormindo na clareira e dispersando os gamos para
todos os lados, enquanto Mowgli caçava. E esse mesmo Cabeça Chata é
surdo e não ouviu Mowgli assobiar, pedindo para sair do caminho dos
gamos — respondeu educadamente o menino, sentando entre os anéis
coloridos.
— Agora esse mesmo homenzinho vem todo suave, escolhendo
palavras para agradar este mesmo Cabeça Chata, dizendo que ele é
sábio, forte e belo. E não é que este mesmo Cabeça Chata acredita e o
acolhe, pois esse mesmo homenzinho atirador de pedras e… Está
confortável? Será que Bagheera seria capaz de oferecer um lugar bom
como este para descansar?
Kaa, como de costume, havia feito uma espécie de rede macia com o
corpo para sustentar o peso de Mowgli. O menino estendeu as mãos no
escuro e segurou no pescoço em forma de cabo, até a cabeça de Kaa
encostar em seu ombro, então lhe contou tudo o que acontecera na
selva aquela noite.
— Sábio, talvez eu seja — comentou Kaa, por fim —, mas surdo, isso
sou com toda a certeza. Do contrário teria escutado o pheeal. Não me
espanta os Comedores de Mato estarem tão alvoroçados. Quantos
seriam esses dholes?
— Ainda não vi nenhum. Vim depressa procurar você. É mais velho
que Hathi. Mas, ó Kaa — e Mowgli deu uma risada de pura alegria —,
vai ser uma boa caçada. Poucos de nós veremos outra lua.
— Você vai participar? Lembre-se de que é homem e que a alcateia o
expulsou uma vez. Deixe que o lobo cuide do cão. Você é homem.
— Os cocos do ano passado são a terra preta deste ano — retrucou
Mowgli. — Mas é verdade que esta noite digo que sou lobo. Chamei os
rios e as árvores para me lembrarem se eu esquecer. Sou do Povo Livre,
Kaa, até que passem os dholes.
— Povo Livre! — grunhiu Kaa. — Ladrões livres, isso sim! E você se
amarrou a este nó da morte em homenagem à memória de lobos
mortos? Isso não é boa caçada.
— Dei minha palavra. As árvores sabem, o rio sabe. Enquanto o
dhole não tiver ido embora, minha palavra continua valendo.
— Ngssh! Isso muda tudo. Eu tinha pensado em levá-lo comigo para
os Charcos do Norte, mas sua palavra… ainda que vinda de
homenzinho nu e sem pelos… é palavra dada. Agora, eu, Kaa, digo…
— Pense bem, Cabeça Chata, para não se amarrar também com a
morte. Não quero a sua palavra, pois bem sei que…
— Que seja, então — interrompeu Kaa. — Não darei minha palavra;
mas o que quer que aconteça quando vierem os dholes?
— Eles terão de cruzar o Waingunga a nado. Pensei em encontrá-los
no raso com minha faca, com a alcateia atrás de mim. E assim,
esfaqueando e atacando, talvez os desviemos rio abaixo, ou pelo menos
lhes refrescaremos as gargantas.
— Os dholes não se deixam desviar, e suas gargantas são bem
quentes — argumentou Kaa. — Não vai sobrar nem homenzinho nem
filhote de lobo ao final dessa caçada, não vai restar nada além de ossos
secos.
— Alala! Se for para morrer, morreremos. Será a melhor das caçadas.
Mas minhas entranhas são novas, ainda não vi muitas chuvas. Não sou
sábio nem forte. Tem um plano melhor, Kaa?
— Já testemunhei centenas e centenas de chuvas. Antes de Hathi
perder seus marfins de leite, meu rastro já era grande nesta poeira. Pelo
primeiro ovo, sou mais velho que muitas árvores e já vi de tudo o que
esta selva fez.
— Mas esta caçada será novidade — insistiu Mowgli. — O dhole
nunca cruzou nosso rastro.
— Tudo o que existe já existiu antes. O que vai vir não passa de um
ano esquecido que volta a acontecer. Fique aí e lhe contarei desses
meus anos.
Durante uma longa hora inteira, Mowgli ficou recostado sobre os
anéis do píton, enquanto Kaa, com a cabeça imóvel sobre o chão,
pensou em tudo o que já havia visto desde o dia em que saiu do ovo. A
luz pareceu sumir de seus olhos, deixando-os semelhantes a duas
opalas baças, e, de quando em quando, ele fazia breves meneios duros
com a cabeça, para a direita e para a esquerda, como se estivesse
caçando no sono. Mowgli cochilou em silêncio, pois sabia que não há
nada melhor do que dormir antes de caçar, e havia sido treinado para
cochilar a qualquer hora do dia e da noite.
Então sentiu o dorso de Kaa ficar maior e mais largo embaixo de si, e
o imenso píton se mexeu, sibilando como uma espada de aço saindo de
sua bainha.
— Vi todas as estações mortas — disse Kaa, por fim. — E as grandes
árvores, os velhos elefantes, as pedras quando eram nuas e
pontiagudas, antes que o musgo as cobrisse. Ainda está vivo,
homenzinho?
— A lua acabou de se pôr — comentou Mowgli. — Não entendi…
— Sssh! Sou Kaa de novo. Sei que passou pouco tempo. Agora vamos
para o rio, e vou lhe mostrar o que deve ser feito contra os dholes.
Ele se virou, reto como uma fiecha, na direção do Waingunga e
mergulhou pouco antes do pequeno lago que ocultava a Pedra da Paz,
com Mowgli ao lado.
— Não, não nade. Sou mais rápido. Venha nas minhas costas,
irmãozinho.
Mowgli passou o braço esquerdo em volta do pescoço de Kaa,
grudou o direito junto do corpo e esticou os pés. Então Kaa entrou na
correnteza como só ele sabia fazer, e a onda da água passando à sua
volta formou uma espuma no pescoço de Mowgli, e seus pés foram
balançando de um lado para o outro no redemoinho, sob os fiancos do
píton em movimento. Dois ou três quilômetros acima da Pedra da Paz,
o rio Waingunga se estreita entre uma garganta de granitos de
mármore de vinte e cinco, trinta metros de altura, e a correnteza segue
por entre todo tipo de pedras sem beleza. Mas Mowgli não estava
preocupado com a água; quase nenhuma água do mundo teria lhe
causado medo, por um momento que fosse. Ele olhava para ambos os
lados da garganta, farejando inquieto, pois havia um cheiro agridoce no
ar, muito semelhante ao de um formigueiro grande num dia quente.
Instintivamente, afundou na água, só tirando a cabeça para respirar de
quando em quando, e Kaa lhe serviu de âncora, com duas voltas da
cauda presa a uma pedra do fundo, segurando Mowgli dentro de um de
seus anéis, enquanto a água corria.
— Aqui é o Lugar da Morte — disse o menino. — Por que viemos
aqui?
— Estão dormindo — observou Kaa. — Hathi não sai do caminho do
Listrado. Mas tanto Hathi quanto o Listrado saem do caminho dos
dholes, e dizem que os dholes não desviam por ninguém. No entanto,
por quem o Povo Pequeno das Pedras desvia seu caminho? Diga,
Senhor da Selva, quem é o Senhor da Selva?
— São elas — sussurrou Mowgli. — Aqui é o Lugar da Morte. Vamos
embora.
— Não, olhe bem, pois estão dormindo. Ainda é como quando eu era
menor que o seu braço.
A fenda e as pedras gastas da garganta do Waingunga eram usadas
desde o começo da selva pelo Povo Pequeno das Pedras — as agitadas,
furiosas e negras abelhas selvagens da Índia. E, como Mowgli sabia
muito bem, todos os rastros terminavam quase um quilômetro antes de
chegarem à garganta. Durante séculos, o Povo Pequeno fez suas
colmeias e voou de greta em greta, em muitos enxames, manchando o
mármore branco de mel rançoso, e fez seus favos altos e fundos no
escuro das cavernas mais esconsas, onde nem homem, nem bicho, nem
fogo, nem água, nunca, ninguém jamais os tocou. Dos dois lados da
garganta, pendiam como que verdadeiras cortinas de veludo preto e
brilhante. Mowgli afundou ao vê-las, pois aquilo eram milhões de
abelhas dormindo. Havia outros cachos, tufos e coisas, como troncos
podres apoiados na superfície da pedra, velhas colmeias de anos
passados, novas cidades construídas na sombra da garganta sufocante e
imensas massas de detritos esponjosos e putrefatos, que iam parar
entre as árvores e os cipós que trepavam pelo muro de pedra.
Prestando atenção, o menino ouviu mais de uma vez o roçar e o
deslizar de uma colmeia cheia de mel se virando e caindo em algum
ponto nas galerias escuras; então o zumbido de asas em fúria, e o
sombrio gotejar, gota a gota, de mel desperdiçado, pingando até
preencher uma fresta, surgir à tona e se agarrar feito caramujo a algum
graveto. Numa das margens do rio, havia uma praia minúscula, de
menos de um metro e meio, e, nela, jazia uma pilha de destroços de
incontáveis anos. Abelhas mortas, zangões, favos rançosos e asas de
mariposas que se perderam em busca do mel, tudo formando montes
de um pó preto e fino. O mero cheiro daquilo era forte o bastante para
assustar qualquer coisa que não tivesse asas e que soubesse quem era o
Povo Pequeno das Pedras.
Kaa se deslocou contra a corrente até chegarem a um banco de areia
na entrada da garganta.
— Aqui está a caça desta estação — anunciou. — Olhe!
No banco de areia, estavam os esqueletos de um gamo e de um
búfalo. Mowgli notou que nem lobo nem chacal tocaram aqueles ossos,
que jaziam expostos ao tempo.
— Ultrapassaram as fronteiras, não conheciam a lei — murmurou
Mowgli —, e o Povo Pequeno os matou. Vamos embora antes que
acordem.
— Só acordam de madrugada — explicou Kaa. — Agora, vou lhe
contar. Muitas e muitas chuvas atrás, um gamo veio do sul para cá, sem
conhecer a selva, com uma matilha no seu rastro. Cego de medo, saltou,
e a matilha veio junto, pois estavam quentes e também cegos naquele
rastro. O sol estava alto, e, no Povo Pequeno, havia muitos e estavam
furiosos. Vários da matilha também saltaram no Waingunga, mas
morreram antes de tocar a água. Quem não saltou, pereceu lá em cima,
nas pedras. O gamo, no entanto, sobreviveu.
— Como?
— Porque veio antes, correndo para não morrer. Saltou sem que o
Povo Pequeno notasse e já estava no rio quando chegaram para matá-lo.
A matilha, logo atrás, desapareceu sob o ataque do Povo Pequeno.
— E o gamo sobreviveu? — repetiu Mowgli, lentamente.
— Pelo menos não morreu na hora, embora não houvesse ninguém
esperando por ele que fosse forte o bastante para segurá-lo contra a
correnteza, como certo Cabeça Chata, velho, gordo, surdo e amarelado
faria por um tal homenzinho… sim… ainda que todos os dholes do
Dekkan estivessem em seu encalço. O que deseja, lá no fundo?
A cabeça de Kaa estava perto da orelha de Mowgli; e levou algum
tempo até que o menino respondesse.
— Puxar os bigodes da morte, mas… Kaa, você é mesmo o mais sábio
da selva.
— Muitos já disseram isso. Veja, se os dholes o seguirem…
— Como certamente farão. Ah! Ah! Tenho muitos espinhos debaixo
da língua para espetar seus pelames.
— Se o seguirem, cegos e quentes, olhando só para os seus ombros,
aqueles que não morrerem lá em cima vão afundar na água aqui ou
mais para baixo, pois o Povo Pequeno vai vir inteiro para cobri-los. Ora,
o Waingunga é água faminta, e eles não terão Kaa para segurá-los. Os
que sobreviverem descerão até o raso das Tocas de Seeonee, e, lá, a sua
alcateia poderá pegá-los pelo pescoço.
— Ahai! Eowawa! Melhor que isso só se as chuvas caíssem no estio.
Agora resta apenas o pequeno detalhe da fuga e do salto. Vou fazer com
que os dholes me vejam, para que me sigam bem de perto.
— Já viu as pedras sobre a sua cabeça? Já viu-as pelo lado de fora?
— Na verdade, não. Esqueci de olhar.
— Vá lá fora ver. É um chão todo podre, rachado e cheio de buracos.
Se o seu pé desajeitado ficar preso num deles, a caçada acaba. Olhe, vou
deixá-lo aqui e só por você é que vou avisar a alcateia, para que saibam
onde procurar os dholes. Quanto a mim, não sou da mesma pele que
lobo nenhum.
Quando Kaa não gostava de alguém, sabia ser a criatura mais
desagradável da selva, afora Bagheera, talvez. Ele nadou rio abaixo e
depois, na altura da pedra, aproximou-se de Phao e Akela, que
prestavam atenção nos ruídos da noite.
— Hssh! Cães — disse entusiasmado —, os dholes virão descendo o
rio. Não tenham medo e irão conseguir matá-los no raso.
— Quando virão? — perguntou Phao.
— E onde está meu filhote de homem? — acrescentou Akela.
— Saberá quando chegarem aqui — respondeu Kaa. — Espere e
verá. Quanto ao seu filhote de homem, de quem aceitou uma palavra,
deixando-o, portanto, exposto à morte, seu filhote está comigo e se
ainda não morreu, não foi por sua causa, cão desbotado! Espere aqui
pelos dholes e dê-se por satisfeito que o filhote de homem e eu estamos
lutando do seu lado.
Kaa disparou de volta rio acima e parou no meio da garganta,
olhando para o alto, atento à beira do penhasco. Então enxergou a
cabeça de Mowgli se mexendo contra as estrelas. Em seguida, ouviu-se
um zumbido no ar e o “chuá” claro e sonoro de um corpo caindo com os
pés na água. No minuto seguinte, o menino estava novamente
descansando nas voltas do corpo de Kaa.
— Não é um bom salto para dar à noite — disse Mowgli, baixinho. —
Pulei duas vezes de brincadeira; mas aquele lugar lá em cima é cruel…
arbustos rasteiros, fendas profundas, tudo cheio do Povo Pequeno.
Empilhei pedras grandes perto de três desses buracos. Vou derrubá-las
com os pés quando passar correndo, e o Povo Pequeno vai acordar atrás
de mim, muito irritado.
— Isso é fala de homem, é astúcia de homem — comentou Kaa. —
Você é sábio, mas o Povo Pequeno está sempre irritado.
— Não, quando anoitece, todas as asas de perto e de longe
descansam um pouco. Vou mexer com os dholes no fim da tarde, pois
os dholes caçam melhor de dia. Estão agora no rastro de sangue de
Won-tolla.
— Chil não deixa carniça de boi; nem dhole, rastro de sangue —
sentenciou Kaa.
— Então vou fazer deles um novo rastro de sangue, do sangue deles,
se puder, e lhes darei terra para comer. Você ficará aqui, Kaa, até que eu
volte com meus dholes?
— Sim, mas e se o matarem na selva, ou se o Povo Pequeno o matar
antes que consiga saltar para dentro do rio?
— Amanhã caçamos a caça de amanhã — respondeu Mowgli,
citando um ditado da selva; e ainda completando: — Quando estiver
morto, será hora de entoar a Canção da Morte. Boa caçada, Kaa!
Ele soltou o braço do pescoço do píton e desceu pela garganta feito
um toco de madeira na enchente, remando para a outra margem, onde
encontrou águas calmas e deu uma risada alta de pura felicidade. Não
havia nada que Mowgli gostasse mais, como ele mesmo dizia, do que
“puxar os bigodes da morte” e fazer com que a selva soubesse quem era
seu verdadeiro senhor. Muitas vezes, com a ajuda de Baloo, roubava
colmeias avulsas de árvores, e sabia que o Povo Pequeno odiava o
cheiro de alho selvagem. Então colheu um maço, amarrou-o com uma
corda de casca de árvore e foi atrás do rastro de sangue de Won-tolla,
que seguia para o sul vindo das tocas, por cerca de oito quilômetros,
olhando para as árvores com a cabeça deitada de lado e gargalhando.
— Já fui Mowgli, a rã — disse consigo mesmo —, já afirmei que sou
Mowgli, o lobo. Agora devo ser Mowgli, o macaco, antes que vire
Mowgli, o gamo. No final, vou ser Mowgli, o homem. Ah! — E deslizou
o polegar pelos quarenta e cinco centímetros da lâmina de sua faca.
O rastro de Won-tolla, todo marcado de respingos de sangue, corria
sob uma mata de árvores grossas, cerradas, e se estendia para nordeste,
sumindo gradualmente a cerca de três quilômetros das Pedras das
Abelhas. Da última árvore até os arbustos rasteiros das Pedras das
Abelhas, havia um descampado onde dificilmente um lobo conseguiria
se esconder. Mowgli trotou sob as árvores, avaliando as distâncias entre
os galhos, de quando em quando subindo num tronco e ensaiando
saltos de uma árvore a outra, até chegar ao descampado, que examinou
cuidadosamente durante uma hora. Então virou-se, retomou o rastro
de Won-tolla onde o havia deixado, acomodou-se numa árvore com um
galho mais comprido que os outros, a quase dois metros e meio do
chão, e ficou ali sentado, afiando a faca na sola do pé e cantarolando
sozinho.
Pouco antes do meio-dia, quando o sol estava bem quente, ouviu um
rumor de patas no chão e sentiu o cheiro abominável da matilha de
dholes trotando impiedosamente atrás do rastro de Won-tolla. Visto do
alto, o dhole vermelho parece ter menos da metade do tamanho do
lobo, mas Mowgli sabia como suas patas e mandíbulas eram fortes. Viu
a cabeça ruça do líder farejando o rastro e o saudou:
— Boa caçada!
O bicho ergueu os olhos, e seus companheiros pararam logo atrás
dele, dezenas e dezenas de cães vermelhos com caudas baixas, ombros
pesados, ancas fracas e bocas sujas de sangue. Os dholes são, via de
regra, um povo muito silencioso e sem modos mesmo quando na
própria selva. Deveria haver duzentos deles reunidos logo abaixo do
menino, que percebeu os líderes farejando famintos o rastro de Won-
tolla e tentando fazer a matilha prosseguir. Não era bem isso que o
menino desejava, pois eles chegariam às Tocas de Seeonee ainda em
plena luz do dia, e Mowgli queria atrasá-los ali até o entardecer.
— Quem permitiu a vinda de vocês até aqui? — questionou Mowgli.
— Todas as selvas são a nossa selva — foi a resposta, e o dhole que a
deu arreganhou os dentes brancos.
Mowgli olhou para baixo sorrindo e imitou perfeitamente a
tagarelice aguda de Chikai, o rato saltitante do Dekkan, no intuito de
que os dholes entendessem que para ele não eram melhores que ratos.
A matilha avançou ao redor da árvore e o líder deu um uivo selvagem,
chamando Mowgli de mico. Em resposta, Mowgli esticou uma perna e
mexeu os dedos do pé logo acima da cabeça do líder. Foi o bastante, até
demais, para acender a raiva estúpida da matilha. Aqueles que têm
pelos entre os dedos não gostam de ser lembrados disso. Quando o líder
saltou, Mowgli puxou o pé e disse, suavemente:
— Cão, Cão Vermelho! Volte para o Dekkan, vá comer lagarto. Volte
para Chikai, seu irmão! Cão, Cão Vermelho! Tem pelos entre os dedos!
— Ele mexeu os dedos do pé uma segunda vez.
— Desça aqui ou vai morrer aí de fome, macaco pelado! — berrou a
matilha, e era exatamente isso que Mowgli queria.
Deitou-se no galho, encostando a bochecha na casca da árvore, braço
direito solto, e dali contou à matilha o que pensava, o que sabia sobre
eles, seus costumes, seus hábitos, suas fêmeas, seus filhotes. Nada no
mundo é mais rancoroso e ferino que a língua do Povo da Selva para
mostrar desprezo e desdém. Se você pensar bem no caso, verá que é
assim mesmo que deve ser. Como Mowgli dissera a Kaa, ele tinha
muitos espinhos embaixo da língua e, lenta e calculadamente, levou os
dholes do silêncio aos rosnados, dos rosnados aos berros e dos berros à
fúria rouca e espumante. Eles tentaram reagir às provocações, mas era
o mesmo que um filhote responder com fúria diante de Kaa; e todo esse
tempo a mão direita de Mowgli ficou encolhida junto do corpo, pronta
para agir, os pés enganchados ao redor do galho. O grande líder ruço
saltou diversas vezes no vazio, porém Mowgli não ousou um golpe em
falso. Por fim, enfurecido além das próprias forças, ele saltou dois
metros, dois metros e meio do chão. Então a mão de Mowgli atacou
como a cabeça de uma cobra na árvore e agarrou-o pelo tufo do
pescoço. O galho balançou com o peso, quase derrubando Mowgli no
chão. Mas ele não se soltou e, centímetro a centímetro, foi puxando o
bicho, pendurado pelo cangote como um chacal afogado, para a copa da
árvore. Com a mão esquerda, procurou a faca e cortou o rabo vermelho
e fofo, descartando em seguida o dhole de volta na terra. Só precisava
do rabo. A matilha não iria mais seguir o rastro de Won-tolla enquanto
não matasse Mowgli ou Mowgli os matasse. Ele viu que começaram a
fazer círculos, estremecendo as ancas, como quem diz que não sairá
dali de jeito nenhum, então pulou para um galho mais alto, descansou
as costas confortavelmente e adormeceu.
Quatro ou cinco horas depois, acordou e contou os dholes lá
embaixo. Estavam todos ali, calados, parrudos, secos e com olhos de
aço. O sol começava a se pôr. Dentro de meia hora, o Povo Pequeno das
Pedras estaria encerrando os trabalhos, e, como você sabe, dhole não
luta bem quando escurece.
— Não precisava de guardiões tão fiéis — agradeceu educadamente,
ficando de pé no galho —, mas vou me lembrar disso. São dholes
legítimos, mas, a meus olhos, são todos iguais. Por isso não vou
devolver o rabo ao grande comedor de lagarto. Que tal, Cão Vermelho?
— Eu mesmo vou rasgar suas entranhas! — berrou o líder,
arranhando o tronco lá embaixo.
— Não, mas pense bem, sábio rato do Dekkan. A partir de agora, vai
haver muitos filhotes de Cão Vermelho de rabinho curto, sim, com
tocos de carne viva que ardem quando a areia está quente. Vá embora,
Cão Vermelho, e vá dizendo que um macaco fez isso a você. Não quer
ir? Venha, então, venha comigo que vou lhe ensinar uma lição!
Ele saltou, à maneira do Bandar-log, para a árvore seguinte, e assim
por diante, de árvore em árvore, com a matilha o acompanhando de
olho nele, as bocas famintas. De quando em quando, fingia cair, e a
matilha tropeçava apressada para tomar parte na morte. Era uma visão
peculiar — o menino com a faca reluzindo ao poente, saltando pelas
copas, e a matilha calada com seus pelames vermelhos fiamejantes,
acotovelando-se, seguindo lá embaixo. Ao chegar à última árvore,
pegou o alho e esfregou no corpo cuidadosamente, e os dholes uivaram
zombeteiros.
— Macaco com língua de lobo, quer disfarçar seu cheiro? —
perguntaram. — Nós vamos segui-lo até a morte.
— Toma seu rabo — disse Mowgli, jogando a cauda no caminho por
onde viera. A matilha instintivamente correu atrás. — E continue me
seguindo… até a morte.
Antes que os dholes pudessem prever seus movimentos, Mowgli
escorregou pelo tronco da árvore e correu feito o vento de pés
descalços até as Pedras das Abelhas.
Eles soltaram um uivo grave e adotaram o ritmo paciente e regular
que acaba desgastando qualquer criatura corredora. Mowgli sabia que
o meio-galope da matilha era muito mais lento que o dos lobos, ou
jamais teria arriscado correr mais de três quilômetros na frente deles.
Os dholes estavam certos de que o menino sucumbiria ao final, e ele,
por sua vez, certo de que estavam fazendo exatamente o que ele queria.
Seu problema era mantê-los quentes o suficiente atrás de si, para evitar
que desistissem cedo demais. Correu solto, liso, saltitante; o líder sem
rabo a menos de cinco metros atrás; e a matilha talvez uns
quatrocentos metros depois, cega e louca de raiva assassina. Mowgli
manteve os ouvidos atentos, reservando seu último esforço para a
corrida sobre as Pedras das Abelhas.
O Povo Pequeno dormira no início do entardecer, pois não era
estação das fiores; mas, quando Mowgli pisou no chão oco pela
primeira vez, ouviu um barulho como se toda a terra estivesse
murmurando. Ele correu como nunca antes na vida, derrubou uma,
duas, três de suas pilhas de pedras no escuro daquelas fendas de cheiro
adocicado; ouviu um rugido feito o barulho do mar numa caverna; viu,
com o rabo do olho, o ar escurecer atrás de si; enxergou a corrente do
Waingunga bem lá embaixo e uma cabeça chata em forma de diamante
dentro da água; saltou com toda a sua força, os dentes do dhole sem
rabo arranhando seu ombro em pleno ar, mas furou as águas com os
pés, caindo na segurança do rio, sem fôlego e triunfante. Não sofreu
uma picada sequer, pois o cheiro do alho selvagem afastara o Povo
Pequeno durante os poucos segundos em que esteve entre eles. Quando
veio à tona, Kaa estava lá para segurá-lo, enquanto caíam tufos do
penhasco — grandes tufos, aparentemente de abelhas amontoadas
despencando feito pesos de pesca. Mas antes que esses tufos batessem
na água, as abelhas voavam para cima, e o corpo de um dhole ia
rodopiando rio abaixo. Sobre suas cabeças, ouviam-se gritos curtos e
furiosos, submersos num maremoto — o som das asas do Povo Pequeno
das Pedras. Alguns dholes caíram nas fendas que davam nas cavernas
subterrâneas, e ali sufocaram, lutaram e morderam, em meio aos favos
de mel das colmeias derrubadas, até, por fim, voltarem à tona, mesmo
quando mortos, levados pelas ondas densas de abelhas sob eles,
sumindo por algum buraco na parede da garganta e rolando até as
pilhas de detritos. Outros deram um salto curto até as árvores do
penhasco, e as abelhas cobriram seus corpos; mas a maior parte deles,
enlouquecida pelas picadas, atirou-se no rio; e, como Kaa dissera, o
Waingunga era água faminta.
Kaa segurou firme até que Mowgli recuperasse o fôlego.
— Não podemos ficar aqui — disse. — O Povo Pequeno está mesmo
em fúria. Vamos!
Nadando embaixo d’água e mergulhando o mais fundo que podia,
Mowgli desceu o rio, de faca na mão.
— Devagar, devagar — disse Kaa. — Dente para matar uma centena,
só se for dente de cobra, e muitos dholes entraram logo na água quando
viram o Povo Pequeno atacar.
— Então será mais trabalho para a minha faca. Phai! Como o Povo
Pequeno é perseguidor! — Mowgli mergulhou de novo. A superfície da
água estava coberta por uma manta de abelhas selvagens, zumbindo
muito sérias e picando tudo o que encontravam.
— Silêncio nunca fez mal a ninguém — disse Kaa, cujas escamas o
protegiam de qualquer ferrão —, e tens a noite inteira ainda para caçar.
Ouça, estão uivando!
Quase metade da matilha percebera a armadilha em que seus colegas
haviam caído, e, virando abruptamente para o lado, escapou pulando na
água onde a garganta se abria em barrancos íngremes. Seus gritos de
raiva e suas ameaças contra o “mico” que os havia envergonhado
mesclaram-se aos berros e rugidos daqueles que haviam sido punidos
pelo Povo Pequeno. Permanecer fora d’água significava a morte, e o
bando, percebendo isso, deixou-se levar pela correnteza até as quedas
profundas da Lagoa da Paz, mas, mesmo lá, o irritado Povo Pequeno os
perseguiu e os obrigou a voltar para a água. Mowgli podia ouvir a voz
do líder sem rabo, mandando seu povo esperar e matar todos os lobos
de Seeonee. Mas não perdeu tempo dando ouvidos àquela conversa.
— Alguém está nos matando por trás no escuro! — latiu um dhole.
— Veja aqui o sangue na água!
Mowgli mergulhara para a frente feito uma lontra, atacara um dhole
que se revolvia embaixo d’água antes que conseguisse abrir a boca, e
anéis escuros subiram quando o corpo veio à tona, caído de lado. Os
dholes tentaram fugir, mas a correnteza os impediu, e o Povo Pequeno
ferroou suas cabeças e orelhas, e eles ouviram o desafio da Alcateia de
Seeonee rosnando cada vez mais alto e mais grave na noite que se
fechava. Mowgli mergulhou de novo, e outra vez um dhole afundou e
emergiu morto, e novamente se ouviu o clamor na traseira do bando,
uma espécie de uivo de que era melhor sair do rio, alguns chamando o
líder para que os levasse de volta ao Dekkan, e outros pedindo que
Mowgli aparecesse e se apresentasse para morrer.
— Eles vêm para a luta com dois desejos e várias vozes — sentenciou
Kaa. — O resto é com seus irmãos rio abaixo. O Povo Pequeno voltou a
dormir. Eles nos perseguiram bastante por hoje. Agora também faço
meia-volta, pois não sou da mesma pele que lobo nenhum. Boa caçada,
irmãozinho, e lembre que o dhole morde baixo.
Um lobo vinha correndo pela margem do rio em três patas, saltando
para cima e para baixo, deitando a cabeça de lado perto do chão,
curvando as costas e pulando bem alto no ar, como se brincasse com os
filhotes. Era Won-tolla, o Arredio, e não falou nada, mas continuou seu
jogo horrível ao lado dos dholes. Àquela altura, já estavam na água
havia um bom tempo, cansados de nadar, encharcados e pesados, com
os rabos fofos parecendo esponjas, tão exauridos e abalados que
também se calaram, observando o par de olhos faiscantes que se movia
logo ao lado.
— Isso não é uma boa caçada — disse um deles, ofegante.
— Boa caçada! — saudou Mowgli, ao emergir ousadamente ao lado
do bicho, e enfiou-lhe a faca comprida por trás do ombro, empurrando-
o com força para evitar a mordida mortal.
— Está aí, filhote de homem? — indagou Won-tolla da margem.
— Pergunte dos mortos, Arredio — respondeu Mowgli. — Não veio
nenhum descendo rio abaixo? Enchi as bocas desses cães de terra,
enganei-os em plena luz do dia, e o líder deles ficou sem rabo, mas aqui
ainda sobraram alguns para você. Para onde quer que os leve?
— Vou esperar — respondeu Won-tolla. — Tenho a noite inteira pela
frente.
A baía dos lobos de Seeonee estava cada vez mais perto.
— Para a alcateia, para toda a alcateia, chegou a hora!
E uma curva no rio levou os dholes para os bancos de areia bem
diante das tocas.
Foi então que viram seu erro. Deveriam ter saído do rio um
quilômetro antes e enfrentado os lobos em terra firme. Agora era tarde
demais. A margem estava repleta de olhos faiscantes, e, com exceção do
horrível pheeal, que não cessara desde o poente, não se ouvia outro
ruído na selva. Parecia que Won-tolla estava provocando os dholes para
saírem da água.
— Para fora e ao ataque! — ordenou o líder sem rabo.
Toda a matilha se lançou em direção à margem, patinhando na água
rasa do banco de areia até que a superfície do Waingunga ficou toda
branca de espuma, com grandes ondulações indo de um lado a outro do
rio, como o rastro de um barco. Mowgli acompanhou o alvoroço,
esfaqueando e talhando, enquanto os dholes, agrupados, rumavam à
praia do rio com uma onda.
Então começou a grande luta, arquejando, forçando, rachando,
espalhando, acuando e dispersando-se ao longo das areias vermelhas e
úmidas, pelas raízes de árvores emaranhadas e por entre elas próprias,
em meio e no meio de arbustos, dentro e fora das touceiras de mato,
pois mesmo então os dholes eram dois para um. Porém, eles
encontraram lobos que brigavam por tudo aquilo que a alcateia
significava, e não apenas os caçadores baixos, de peito largo e caninos
brancos, mas também as lahinis de olhos afiitos — as lobas das tocas,
como diz o ditado — lutando por suas crias, e aqui e ali também um
lobo novo, com o primeiro pelame ainda lanoso, fofo, puxando e
prendendo pelos fiancos. O lobo, você deve saber, ataca a garganta ou
morde os fiancos, enquanto o dhole, de preferência, morde a barriga, de
modo que os dholes, quando se esforçavam para sair da água e
precisavam esticar a cabeça, favoreciam os lobos. Na terra firme, os
lobos sofriam; mas dentro e fora da água, a faca de Mowgli ia e vinha
sem descansar. Os Quatro correram, preocupados, para junto dele. O
Irmão Cinzento, agachado entre os joelhos do menino, protegia sua
barriga, enquanto os outros guardavam as costas e os fiancos, ou
ficando em cima dele, na hora do impacto com um dhole, que saltou
berrando em cima da lâmina e derrubou Mowgli no chão. No mais, foi
uma confusão total — um grupo compacto que subia e descia a
margem para então subir de novo, girando lentamente em torno de si
mesmo. Aqui, um amontoado arquejante, feito uma bolha de água num
redemoinho, que emergia e se rompia exatamente como uma bolha,
revelando quatro ou cinco cães mutilados, tentando voltar ao centro;
ali, um único lobo, atacado por dois ou três dholes, esforçando-se para
arrastá-los para a frente e afundando em seu intento; acolá, um lobo
jovem emergindo pela pressão à sua volta, embora tivesse sido morto
pouco antes, enquanto a mãe, enlouquecida de raiva cega, rolava sem
parar, mordendo e passando para a próxima mordida; e no meio da
mais densa confusão, talvez, um lobo e um dhole, ignorando todo o
resto, manobrando pela vantagem do primeiro golpe, até serem
dispersados pelo alvoroço dos demais combatentes furiosos. A certa
altura, Mowgli passou por Akela, que tinha um adversário de cada lado
e a mandíbula quase desdentada fechada na virilha de um terceiro; e
depois viu Phao, com os dentes na garganta de um cão, puxando o
bicho contrariado para que os lobos mais jovens terminassem a
matança. Mas o grosso da luta foi uma comoção cega e sufocante no
escuro, à volta, atrás e acima de Mowgli; bater, correr, tropeçar, ganir,
grunhir e morder, morder, morder. Conforme a noite foi passando, a
velocidade dos giros vertiginosos foi aumentando. Os dholes ficaram
acuados, temendo atacar lobos mais fortes, mas não ousaram fugir.
Mowgli sentiu que o fim chegaria logo e se contentou em esfaquear
apenas para aleijar. Os lobos novos foram ficando mais ousados. De
quando em quando, havia tempo de respirar e comentar com um
amigo, e, às vezes, o mero reluzir da faca desencorajava um cão.
— A carne está quase no osso — berrou o Irmão Cinzento. Estava
sangrando em inúmeras feridas em carne viva.
— Mas o osso ainda não foi quebrado — respondeu Mowgli. —
Eowawa! É assim que fazemos na selva! — A lâmina vermelha ia veloz
feito uma labareda nos fiancos de um dhole cujas ancas se ocultavam
sob o peso de um lobo agarrado às suas costas.
— Esta caça é minha! — grunhiu o lobo pelas narinas franzidas. —
Deixem este para mim.
— Sua barriga ainda está vazia, Arredio? — zombou Mowgli.
Won-tolla havia sido gravemente ferido, mas conseguira imobilizar o
dhole, que não podia se virar para mordê-lo.
— Pelo touro que me comprou — exclamou Mowgli, com uma
gargalhada mordaz —, é o dhole sem rabo!
De fato, era o grande líder ruço.
— Não é muito inteligente matar filhotes e lahinis — continuou
Mowgli, filosoficamente, limpando o sangue dos olhos —, a não ser que
também tivessem matado o Arredio; e tenho cá comigo que esse Won-
tolla vai matar você.
Um dhole saltou para ajudar o líder, mas antes que seus dentes se
cravassem nos fiancos de Won-tolla, a faca de Mowgli já estava em sua
garganta, e o Irmão Cinzento cuidou do resto.
— E assim é que fazemos na selva — disse Mowgli.
Won-tolla não disse uma palavra, mas sua boca abria e se fechava na
espinha do cão cuja vida se esvaía. O dhole estremeceu, a cabeça
pendeu, o corpo ficou imóvel e Won-tolla pisou sobre o cadáver.
— Huh! A dívida de sangue está paga — exclamou Mowgli. — Cante
a canção, Won-tolla.
— Este não caçará mais — disse o Irmão Cinzento —, e Akela
também esteve calado todo esse tempo.
— Quebramos o osso! — gritou Phao, filho de Phaona. — Estão indo
embora! Matem, matem todos, ó caçadores do Povo Livre!
Dhole após dhole, eles foram tentando escapar daquelas areias
escuras e sangrentas e voltar para o rio, para a selva fechada, rio acima
ou rio abaixo, conforme viam um caminho desimpedido.
— A dívida! A dívida! — berrou Mowgli. — Cobrem a dívida! Eles
massacraram o Lobo Solitário! Não deixem cão nenhum escapar!
Ele ia correndo para o rio, de faca na mão, para impedir qualquer
dhole que ousasse entrar na água, quando, debaixo de uma pilha de
nove corpos, surgiram a cabeça e as patas dianteiras de Akela, e Mowgli
se ajoelhou ao lado do Lobo Solitário.
— Não disse que seria minha última luta? — murmurou Akela. —
Foi uma boa caçada. E quanto a você, irmãozinho?
— Sobrevivi, matei muitos deles.
— Mesmo assim, estou morrendo e… morreria por você,
irmãozinho.
Mowgli pousou a cabeça terrivelmente arranhada em seus joelhos e
pôs os braços em torno do pescoço lanhado.
— Há muito que os velhos tempos de Shere Khan ficaram para trás e
um filhote de homem rolava nu na terra.
— Não, não, sou lobo. Sou da mesma pele do Povo Livre! —
exclamou Mowgli. — Não é minha vontade ser homem.
— Você é homem, irmãozinho, lobinho de quem cuidei. Você é
homem, do contrário a alcateia teria fugido diante dos dholes. Devo-
lhe minha vida, e hoje você salvou a alcateia como um dia o salvei.
Esqueceu? Todas as dívidas agora estão pagas. Vá para o seu povo. Digo
outra vez, olho do meu olho, esta caçada terminou. Vá para o seu
próprio povo.
— Jamais. Vou caçar sozinho na selva. Já disse.
— Depois do verão, vão chegar as chuvas, e, depois das chuvas, a
primavera. Vá embora antes que o levem.
— Quem vai me levar?
— Mowgli vai levar Mowgli. Volte para o seu povo. Volte para o
homem.
— Quando Mowgli levar Mowgli, então eu vou — respondeu o
menino.
— Mais uma coisa deve ser dita — continuou Akela. — Irmãozinho,
pode me colocar de pé? Também fui líder do Povo Livre.
Com todo o cuidado e gentileza, Mowgli afastou os cadáveres e
colocou Akela de pé, segurando-o com os dois braços. O Lobo Solitário
respirou fundo e começou a Canção da Morte, que o líder da alcateia
deve cantar ao morrer. A canção foi ganhando força conforme ele
prosseguia, aumentando e aumentando, fazendo-se ouvir bem longe do
outro lado do rio, até chegar ao último “Boa caçada!”. E Akela se
desvencilhou de Mowgli por um instante, saltando no ar, e caiu morto
para trás, vítima de sua derradeira e mais terrível caçada.
Mowgli sentou com a cabeça entre os joelhos, sem pensar em mais
nada, enquanto os últimos dholes em fuga eram capturados e
derrotados pelas impiedosas lahinis. Pouco a pouco, os gritos foram
sumindo, e os lobos voltaram mancando, acostumando-se às próprias
feridas, para fazer um balanço das perdas. Quinze lobos da alcateia,
além de meia dúzia de lahinis, quedavam mortos junto ao rio. Entre os
dholes nenhum escapou ileso. Mowgli ficou ali sentado até a
madrugada fria, quando o focinho molhado e vermelho de Phao roçou
suas mãos, e o menino lhe mostrou o corpo caído de Akela.
1. Primeira história escrita por Rudyard Kipling sobre Mowgli, “Dentro da rukh” não faz parte
do conjunto consagrado de contos de Os livros da Selva. Como o texto é pouco conhecido no
Brasil, aproveitamos a ocasião para oferecer ao leitor o conjunto completo de narrativas sobre
Mowgli. (N. E.)
2. Rukh denominava a reserva de terras feita pelo governo indiano para criar fiorestas
governamentais que pudessem suprir a demanda crescente por madeira e outros recursos
naturais. (N. T.)
3. Em híndi, caçada. (N. T.)
4. Unidade de medida usada na Índia de então; dependendo da região, variava de 1,6 a 4,8
quilômetros. (N. T.)
5. Em latim, no original: “uma extravagância da natureza”. (N. T.)
6. Na Índia, nome oficial do sistema penitenciário. (N. T.)
7. Em híndi, honra, familiar ou pessoal. (N. T.)
8. Em híndi também, outra forma de hazrat. Equivalente a Sua Alteza. Mowgli, evidentemente,
usa o termo com ironia. (N. T.)
9. Em alemão, no original: céu, ou paraíso. No caso, equivale a interjeição “Céus!”. (N. T.)
10. Em híndi, termo pejorativo para designar o indivíduo sem casta, ou simplesmente um
forasteiro. (N. T.)
11. Nome dado na Índia aos ritos matrimoniais. (N. T.)
12. Em alemão, no original: “Deus do céu!” (N. T.)
Copyright © 2021 by Editora Zahar
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.