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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Apresentação

Os irmãos de Mowgli
Canção de caça da Alcateia de Seeonee
A caçada de Kaa
Canção de estrada do Bandar-log
“Tigre! Tigre!”
Canção de Mowgli
Como surgiu o medo
A Lei da Selva
O avanço da Selva
Canção de Mowgli contra os homens

O aguilhão do rei
Canção do Pequeno Caçador

Cão Vermelho
Canção de Chil

A corrida da primavera
Canção da despedida
Apêndice: Dentro da rukh

Créditos
Apresentação

Joseph Rudyard Kipling nasceu em Bombaim (hoje chamada


oficialmente Mumbai), em 1865. Seu pai era o escultor, ceramista e
ilustrador inglês John Lockwood Kipling, diretor de uma importante
faculdade de artes local. Rudyard passou os primeiros seis anos de vida
na Índia e em seguida foi estudar na Inglaterra, voltando ao país natal
apenas em 1882, aos dezessete anos. Trabalhou como jornalista e
iniciou sua carreira literária, publicando um livro de poemas em 1886.
Três anos depois, aos 24, deixou a Índia para nunca mais voltar. Viveu,
então, entre os Estados Unidos, onde morou com a esposa norte-
americana, Caroline Balestier, fez amizade com Theodore Roosevelt e
escreveu e publicou os dois Livros da Selva, além de muitos de seus
famosos poemas; a África do Sul, onde produziu poemas sobre a Guerra
dos Bôeres; a França; e, claro, a Inglaterra. Em 1907, aos 41 anos,
recebeu o prêmio Nobel de literatura. Foi o primeiro escritor de língua
inglesa e também a pessoa mais jovem a ganhá-lo.
Rudyard Kipling morreu em 1936, aos 71 anos, na Inglaterra, onde
está enterrado na abadia de Westminster.

As histórias de Mowgli fazem parte do conjunto de contos que


formam os dois volumes de Os livros da Selva, em que quase todos os
personagens são bichos que falam, ouvem e pensam. Ainda que a Selva
de Kipling, com S maiúsculo, transcenda os limites das fiorestas
indianas — sendo mais um conceito relacionado à “vida selvagem” —, é
justamente nelas que têm lugar as formidáveis aventuras de Mowgli, o
menino criado pelos lobos, em meio a tigres, ursos e panteras, desde
seu nascimento até a adolescência.
Antes de serem reunidos em livro, todos os contos de O livro da Selva
(1894) e O segundo livro da Selva (1895) foram originalmente
publicados em diversos jornais e revistas. Para compor seu mundo
selvagem, Kipling inspirou-se em mitos antigos e de tradição oral do
povo hindu, na filosofia oriental, nas memórias dos anos que viveu na
Índia e em relatos de naturalistas ou exploradores. A história de
Mowgli, em particular, provém de uma lenda clássica em certas regiões
indianas.
Mas talvez a pedra fundamental de Os livros da Selva tenha sido a
publicação, em 1891, de um livro que não era seu, e sim de seu pai,
Lockwood Kipling. Pode-se dizer com segurança que Beast and Man in
India [O animal e o homem na Índia] foi, no mínimo, uma das maiores
fontes de inspiração de Kipling. Veio de suas páginas o núcleo lendário
e folclórico a partir do qual o filho iria compor várias histórias.
Além da grande precisão descritiva da prosa de Kipling e da sua
extrema beleza formal, a característica mais marcante deste livro é a
opção pela antropomorfização dos animais, dando a eles não apenas
voz e psicologia, mas conferindo-lhes, no sentido mais amplo do termo,
cultura. A ideia por trás disso é a doutrina romântica do Bom Selvagem,
mas existe toda uma hierarquia e uma gradação de pureza entre os
bichos-personagens de Kipling. Na selva indiana de Mowgli, os bons
mestres são Baloo, o urso, Bagheera, a pantera-negra, Hathi, o elefante,
e Kaa, o Píton das Rochas. Eles ensinam obediência, disciplina e
responsabilidade, fazendo uso de parábolas e exemplos práticos, de
onde se pode extrair toda uma “meninologia”, baseada na Lei da Selva.
Os personagens negativos são, entre outros, o Tigre Manco, o Cão
Vermelho e o chacal. Nessa estrutura social, há o nível mais baixo de
todos. Nele estão justamente os parentes mais próximos dos humanos,
considerados incapazes de aprimorar a organização interna de sua
sociedade. Com evidente ironia, Kipling identifica no Povo Macaco a
antítese de um real esforço de construção do bem-estar coletivo.
A Lei da Selva, ensinada a Mowgli, a “rã” — como é chamado por
Raksha, a Mãe Loba , rege o comportamento dos animais e, embora
imponha a ordem, é ao mesmo tempo benéfica e implacável. Afinal,
todos eles se matam para comer e não ser comidos. Por isso cada povo
da selva nunca, ou quase nunca, permanece enclausurado em
maniqueísmos. Única exceção à regra é Shere Khan, o Tigre Manco,
encarnação da crueldade e da violência.

Mowgli encarna o típico personagem de dois mundos, o eterno


estrangeiro. Domina os códigos da selva, mas não é completo vivendo
apenas como animal. Quanto aos homens, debate-se constantemente
num duplo movimento, ora de atração, ora de repulsa. Desse dilema
insolúvel, ou quase, advém muito do seu poder de encantar leitores de
todas as idades. De certa forma, o próprio Kipling era um indivíduo
dividido entre dois mundos, que só se completava nessa alternância de
aproximação e rejeição. Nascido na Índia, educado na Inglaterra;
iniciado profissionalmente na Índia, consagrado na Inglaterra, na
América do Norte e nas colônias anglófonas; tendo deixado a Índia
para sempre aos 24 anos e voltado a ela durante outros 47, em seus
livros, sempre alimentados pelas lembranças e pelo sentimento de seu
país natal.
Enxergando a sociedade dos animais como um refiexo da sociedade
dos homens, na Índia e no mundo, e não descartando — por compulsão
ideológica — o caráter complexo de ambas, suas zonas moralmente
sombrias, seus pontos de contato mutuamente ásperos, o leitor talvez
possa enxergar outros elementos para entender a complexa relação de
Kipling com o Império Britânico, seus valores e modelo de civilização.
Há muitos indícios de não haver, por parte do escritor, uma visão de
mundo acomodada às simples oposições Bem × Mal, ou Civilização ×
Barbárie.

No século XXI, mesmo que não exista mais quase nenhum confim da
Terra intocado pelo homem, quase nenhuma “Selva” — no sentido
profundo que ele dava ao termo —, Kipling talvez tenha ainda muito a
dizer aos meninos e adolescentes das cidades. Sua percepção dos laços
de amizade e de honra é eterna; sua sensibilidade objetiva para os
detalhes do amadurecimento é sempre exata e sucinta; sua capacidade
de transpor, para o entendimento humano, os comportamentos das
espécies animais, e, no sentido contrário, de emprestar-lhes os
atributos humanos, é incrivelmente bem-sucedida; seu talento para as
descrições do meio natural é extraordinário. Suas histórias e seus
personagens recriam, a todo momento, a ternura de quem experimenta
a vertigem dos prazeres e das dores da vida, com todas as suas
contradições.*

* Esta é uma versão editada da apresentação de Alexandre Barbosa de Souza e Rodrigo Lacerda
para a edição comentada e ilustrada de Os livros da Selva, publicada pela Zahar em 2016.
Os irmãos de Mowgli

Agora, Chil, o milhafre, traz a noite


Que Mang, o morcego, liberta…
O gado está preso em estábulos e currais
Porque nós estamos soltos até a madrugada.
Essa é a hora do orgulho e do poder,
Garras, caninos, presas.
Ah, ouça o chamado! — Boa caçada a todos
Que respeitam a Lei da Selva!
Canção noturna da Selva

Eram sete horas de uma noite muito quente nas colinas de Seeonee,
quando Pai Lobo acordou de seu descanso diário, coçou-se, bocejou e
esticou as patas, uma de cada vez, para espantar o sono até da ponta
dos dedos. Mãe Loba estava deitada, cobrindo com o grande focinho
cinzento os quatro filhotes, que, trêmulos, ganiam, e a lua brilhava na
boca da caverna onde todos moravam.
— Ahhhhhh! — bocejou Pai Lobo. — Está na hora de caçar outra
vez.
Quando ele estava prestes a descer correndo a colina, uma pequena
sombra de cauda fofa atravessou a entrada da caverna e guinchou:
— Que a boa sorte o acompanhe, ó Chefe dos Lobos. Que a boa sorte
e dentes brancos e fortes acompanhem as nobres crias, que elas nunca
se esqueçam dos que passam fome neste mundo.
Era o chacal — Tabaqui, o Lambedor de Pratos —, e os lobos da
Índia desprezam Tabaqui, porque ele vive por aí fazendo maldades,
contando fofoca e comendo trapos e restos de couro das pilhas de lixo
da aldeia. Mas eles também o temem, pois Tabaqui, mais do que
qualquer um na selva, é capaz de enlouquecer, então se esquece do
medo e corre pela fioresta mordendo tudo o que encontra pelo
caminho. Até o tigre se esconde quando Tabaqui fica maluco, pois a
loucura é a maior desgraça que pode acontecer a uma criatura
selvagem. Chamamos isso de hidrofobia, mas eles chamam de dewanee
— a loucura — e saem correndo.
— Pois então entre e veja você mesmo — respondeu secamente Pai
Lobo. — Não temos comida nenhuma aqui.
— Talvez não para um lobo — retrucou Tabaqui —, mas, para uma
pessoa má como eu, osso seco é banquete. Quem somos nós, do Gidur-
log [o povo chacal], para escolher o que comer?
Ele foi até o fundo da caverna, onde encontrou um osso de cervo com
um resto de carne, e sentou alegremente para roer a ponta.
— Muito obrigado pela boa refeição — agradeceu, lambendo os
beiços. — Como são belas as crias da nobreza! Que olhos grandes elas
têm! E ainda tão jovens! Sim, sim, é verdade, eu devia lembrar que as
crias dos reis já nascem adultas.
Ora, Tabaqui sabia muito bem, como todo mundo, que não existe
nada tão inadequado quanto elogiar uma criança na sua presença. Mas
ele queria ver Mãe e Pai Lobo incomodados.
Tabaqui sentou e ficou ali parado, desfrutando da própria maldade,
então, perverso, anunciou:
— Shere Khan, o Grande, não caça mais no mesmo lugar. Vai caçar
aqui nestas colinas até a próxima lua, segundo ele próprio me contou.
Shere Khan era o tigre que vivia perto do rio Waingunga, a trinta
quilômetros dali.
— Ele não tem esse direito! — começou Pai Lobo, já irritado. — Pela
Lei da Selva, ele não pode mudar de território sem aviso prévio. Assim
vai assustar toda a caça num raio de quinze quilômetros, e eu… eu
tenho que matar por dois atualmente.
— Não é à toa que a mãe o chamou de Lungri [o Manco] —
comentou baixinho Mãe Loba. — Manca de uma pata desde que
nasceu. É por isso que só mata gado. E agora que os habitantes das vilas
do Waingunga estão bravos com ele, vem irritar os habitantes das
nossas vilas. Vão percorrer toda a selva atrás dele, mas ele vai estar
longe, e nós e nossas crias vamos ter de fugir quando vierem pôr fogo
no mato. Temos mesmo muito que agradecer a Shere Khan!
— Posso contar a ele da sua gratidão? — ironizou Tabaqui.
— Fora daqui! — disparou Pai Lobo. — Fora, vá caçar com o seu
senhor. Já causou problemas demais para uma noite só.
— Eu vou — anunciou calmamente Tabaqui. — Ouça Shere Khan lá
embaixo, na mata. Eu podia nem ter transmitido o recado.
Pai Lobo espichou as orelhas e, lá no vale que terminava num riacho,
ouviu o grunhido cantarolado, seco, tenso e raivoso de um tigre que
ainda não pegou nada e não se importa que toda a selva saiba disso.
— Que tolo! — exclamou Pai Lobo. — Começar a noite de trabalho
fazendo todo esse estardalhaço! Ele pensa que os nossos cervos são
como os bois gordos do Waingunga?
— Shhh… Esta noite não é nem de boi nem de cervo que ele está
atrás — sussurrou Mãe Loba. — é de homem.
O grunhido havia se transformado numa espécie de ronronar
contínuo que parecia vir de todas as direções da bússola. Era o som que
apavorava os lenhadores e os ciganos dormindo ao relento, que às vezes
os fazia sair correndo bem para dentro da boca do tigre.
— Homem! — espantou-se Pai Lobo, mostrando todos os seus dentes
brancos. — Que nojo! Já não bastam os besouros e as rãs das lagoas, ele
precisa comer homem, e em nosso território!
A Lei da Selva, que nunca ordena nada sem motivo, proíbe os bichos
de comerem o homem, a não ser que ele esteja matando só para
mostrar a seus filhos como se mata, tendo por isso de caçar longe do
território de seu bando ou tribo. O verdadeiro motivo de ser assim é
que matar humanos significa, cedo ou tarde, a chegada de homens
brancos armados e montados em elefantes, e centenas de homens
marrons com gongos, rojões e tochas. E aí todos na selva padecem. A
explicação que os bichos dão para si mesmos é que o homem é o mais
fraco e indefeso de todos os seres vivos, portanto molestá-lo é falta de
espírito esportivo. Dizem também — e é verdade — que os comedores
de humanos ficam sarnentos e perdem os dentes.
O ronronar ficou mais alto e acabou no gutural “Rooaar!” do tigre
atacando.
Seguiu-se um uivo — um uivo nada digno de um tigre —, dado por
Shere Khan.
— A presa escapou — comentou Mãe Loba. — O que era?
Pai Lobo correu alguns passos e ouviu Shere Khan reclamar e
resmungar selvagemente ao tropeçar num arbusto.
— O tolo achou uma boa ideia pular em cima da fogueira de um
acampamento de lenhadores e queimou a pata — respondeu, com um
grunhido. — Tabaqui está com ele.
— Tem alguém subindo a nossa colina — disse Mãe Loba, retesando
uma orelha. — Prepare-se.
Ouviu-se um breve farfalhar de arbustos na mata, e Pai Lobo
encolheu-se sobre as patas traseiras, pronto para saltar. E se você
estivesse vendo a cena teria presenciado a coisa mais maravilhosa do
mundo: o lobo parou bem no meio do salto. Dera o impulso antes de
identificar o alvo e depois tentou conter a si mesmo. O resultado foi que
estacou em pleno ar, a mais de um metro do chão, e aterrissou quase no
mesmo lugar de onde saíra.
— Homem! — gritou. — Um filhote de homem. Veja!
Bem na sua frente, apoiando-se num galho baixo para ficar em pé,
havia um bebê marrom e sem roupas que mal conseguia andar, um
pingo de gente roliço e com covinhas, como a noite jamais trouxera à
caverna de um lobo. Ele levantou os olhos até a cara de Pai Lobo e
sorriu.
— Isso é um filhote de homem? — perguntou Mãe Loba. — Nunca
tinha visto. Traga aqui.
Um lobo acostumado a transportar os próprios filhotes é capaz, se
necessário, de morder um ovo sem quebrá-lo, e, embora a mandíbula de
Pai Lobo tenha se fechado bem na nuca da criança, dente nenhum
arranhou sua pele quando ele a depositou entre os lobinhos.
— Tão pequeno! Tão pelado e tão… corajoso! — comentou Mãe
Loba suavemente. O bebê se espremia por entre os filhotes para se
aproximar do calor de seu pelo. — Ora essa! Está se alimentando com
os outros. Então isso é uma cria humana. Nunca ouvi lobo nenhum se
gabar de ter um filhote de homem entre os seus!
— Já ouvi falar de um ou outro caso assim, mas nunca na nossa
alcateia ou na minha época — acrescentou Pai Lobo. — Ele não tem
cabelo nenhum, e eu poderia matá-lo com um toque da minha pata.
Mas veja, ele me olha sem medo.
O luar sumiu da boca da caverna, pois a cabeçorra quadrada e os
grandes ombros de Shere Khan taparam a entrada. Tabaqui, atrás dele,
gania:
— Meu senhor, meu senhor, ele entrou por aqui!
— Shere Khan nos honra com sua presença — disse Pai Lobo, mas
seus olhos demonstravam muita raiva. — Do que Shere Khan precisa?
— Do meu pedaço de carne. Um filhote de homem veio nessa
direção — respondeu Shere Khan. — Os pais fugiram. Me dê o menino.
Shere Khan havia pisado numa fogueira de lenhadores, como Pai
Lobo dissera, e estava furioso com a dor das patas queimadas. Mas Pai
Lobo sabia que a entrada da caverna era muito estreita para um tigre
passar. Mesmo ali onde estava, os ombros e as patas dianteiras de Shere
Khan ficavam apertados por falta de espaço, como os de um homem
que tentasse lutar dentro de um barril.
— Os lobos são um povo livre — retrucou Pai Lobo. — Recebem
ordens do Chefe da Alcateia, e não de um matador de gado cheio de
listras. O filhote de homem é nosso… até para matá-lo, se for essa a
nossa escolha.
— Você escolhe e não escolhe! Que conversa é essa de escolher? Pelo
touro que matei, eu ter que me enfiar no seu covil de cão pelo que me é
devido? Sou eu, Shere Khan, quem está falando!
O rugido do tigre encheu a caverna com um estrondo. Mãe Loba se
desvencilhou dos filhotes e saltou para a frente, os olhos, como duas
luas verdes no escuro, encarando as pupilas faiscantes de Shere Khan.
— E sou eu, Raksha [o Demônio], quem está respondendo. O filhote
de homem é meu, Lungri… meu e só meu! Ninguém vai matá-lo. Ele
viverá para correr com a alcateia e caçar com a alcateia; no fim, seu
caçador de filhotinhos pelados, comedor de rã, assassino de peixe, ele
vai é caçar você! Agora tome o seu rumo, ou, pelo sambar que matei
(pois não como gado magro), volte para a sua mãe, bicho queimado da
selva, mais manco do que era quando veio ao mundo! Fora daqui!
Pai Lobo observou a cena embasbacado. Quase havia esquecido o
tempo em que conquistara Mãe Loba numa luta justa contra cinco
outros pretendentes, na época em que ela corria com a alcateia e ainda
não era chamada de Demônio apenas por deferência. Shere Khan
talvez tivesse enfrentado Pai Lobo, mas não desafiaria Mãe Loba, pois
sabia que, ali onde estava, ela tinha a vantagem do terreno e lutaria até
a morte. Por isso voltou atrás, rosnando ao deixar a boca da caverna, e,
ao se ver do lado de fora, gritou:
— Cada cão late no seu quintal! Vamos ver o que a alcateia diz sobre
adotar um filhote de homem. O filhote é meu e vai acabar vindo para os
meus dentes no final, seus ladrões de rabo peludo!
Mãe Loba voltou ofegante para sua ninhada, e Pai Lobo disse a ela,
solenemente:
— Nisso Shere Khan fala a verdade. Temos de mostrar o filhote à
alcateia. Ainda quer ficar com ele, mãe?
— Ficar com ele?! — arfou ela. — Ele chegou sem roupa, à noite,
sozinho e faminto; e nem assim teve medo! Veja, já empurrou de lado
um dos meus bebês. E aquele açougueiro manco o teria matado e
fugido para o Waingunga, enquanto os homens da aldeia caçariam aqui
em nossa casa como vingança! Se vamos ficar com ele? Com certeza
que vamos! Pare quieta, rãzinha. Sua Mowgli, pois vou chamá-lo de
Mowgli, a rã… Um dia Mowgli há de caçar Shere Khan, como ele o
caçou.
— Mas o que o bando vai dizer? — exasperou-se Pai Lobo.
A Lei da Selva dispõe muito claramente que, quando casa, todo lobo
pode deixar a alcateia a que pertence. Mas assim que seus filhotes estão
grandes o bastante para se sustentar nas quatro patas, ele deve levá-los
ao Conselho da Alcateia, que costuma acontecer uma vez por mês na
lua cheia, para que os outros lobos possam identificá-los. Depois dessa
inspeção, os filhotes estão livres para correr aonde bem entenderem, e
até que tenham abatido o primeiro cervo não há perdão se um lobo
adulto da alcateia mata um deles. A pena é a morte onde quer que o
assassino seja encontrado; e, se você parar para pensar um minuto, verá
que deve mesmo ser assim.
Pai Lobo esperou até que seus filhotes conseguissem correr um
pouco e, na noite do Conselho da Alcateia, levou-os todos com Mowgli
e Mãe Loba para a Pedra do Conselho — o topo de uma colina coberta
de rochas e lajes, capaz de abrigar uma centena de lobos. Akela, o
grande e cinzento Lobo Solitário que liderava a alcateia com força e
astúcia, estava esparramado em sua pedra, e embaixo dele estavam
sentados quarenta lobos ou mais, de todos os tamanhos e cores, desde
veteranos cor de texugo que conseguiam matar um cervo sozinhos a
jovens pretos de três anos que se achavam capazes de tal proeza. O
Lobo Solitário já era o líder havia um ano. Caíra duas vezes em
armadilhas quando jovem e, numa delas, fora espancado e dado como
morto; de modo que conhecia as maneiras e os costumes dos homens.
Quase não se conversava na pedra. Os filhotes se amontoavam no
centro do círculo formado pelas mães e os pais sentados, e, de quando
em quando, um lobo velho ia até um filhote, olhava bem para ele e
voltava para seu lugar a passos silenciosos. Às vezes, uma mãe loba
empurrava o filhote para o facho do luar para garantir que fosse bem
visto por todos. Do alto de sua pedra, Akela gritava:
— Vocês conhecem a lei, vocês conhecem a lei. Olhem bem, ó lobos!
E, afiitas, as mães faziam coro:
— Olhem, olhem bem, ó lobos!
Por fim — os pelos do pescoço de Mãe Loba se eriçaram quando
chegou a hora —, Pai Lobo empurrou “Mowgli, a rã”, como o
chamavam, até o centro, onde ele sentou, sorrindo e brincando com
seixos que reluziam à luz da lua.
Akela não chegou a erguer a cabeça de entre as patas, mas interveio
com o grito monótono:
— Olhem bem!
Um rugido abafado se ouviu detrás das pedras; a voz de Shere Khan,
exclamando:
— O filhote é meu. Entreguem-me o filhote. O que o Povo Livre quer
com um filhote de homem?
Akela nem moveu as orelhas. Tudo o que disse foi:
— Olhem bem, ó lobos! O que o Povo Livre tem com as ordens de
quem não é do Povo Livre? Olhem bem!
Ouviu-se um coro de rugidos guturais, e um jovem lobo de quatro
anos devolveu a pergunta de Shere Khan a Akela:
— O que o Povo Livre quer com um filhote de homem?
Pois bem, a Lei da Selva dispõe que, em caso de disputa do direito
sobre um filhote a ser aceito pela alcateia, pelo menos dois membros,
além do pai e da mãe, devem interceder em seu favor.
— Quem vai falar em nome desse filhote? — perguntou Akela. —
Entre o Povo Livre, quem se pronuncia?
Ninguém respondeu, e Mãe Loba se preparou para o que sabia ser
sua última luta, caso se chegasse a ponto de lutar.
Então a única outra criatura com permissão de tomar parte no
Conselho da Alcateia — Baloo, o dorminhoco urso-pardo que ensina a
Lei da Selva aos filhotes, o velho Baloo, que pode ir e vir aonde bem
entender, pois come apenas nozes, raízes e mel — levantou-se nas
patas traseiras e grunhiu.
— O filhote de homem, o filhote de homem? — perguntou. — Eu me
pronuncio em nome dele. Um filhote de homem não faz mal nenhum.
Não tenho o dom das palavras, mas falo a verdade. Deixem que corra
com a alcateia e que se misture aos outros. Eu mesmo vou lhe dar aulas.
— Precisamos de mais um — anunciou Akela. — Baloo já falou, e ele
é o nosso professor de filhotes. Alguém mais além de Baloo?
Uma sombra escura surgiu na roda. Era Bagheera, a pantera-negra,
cujo pelo era todo da cor do nanquim, mas com as manchas típicas das
panteras visíveis conforme a luz, feito um padrão de seda molhada.
Todo mundo conhecia Bagheera, e ninguém queria ficar no seu
caminho, pois era astuto como Tabaqui, corajoso como um búfalo
selvagem e desmedido como um elefante ferido. Mas ele tinha uma voz
tão suave quanto o mel silvestre que pinga da árvore, a pele macia como
o anoitecer.
— Ó Akela, ó Povo Livre — ronronou —, não tenho voto na
assembleia de vocês, mas a Lei da Selva diz que, não se tratando de um
caso de morte, se existe uma dúvida quanto a um novo filhote, a vida
dele pode ser comprada por um certo preço. E a lei não diz nada sobre
quem pode ou não pagar esse preço. Estou certo?
— Bem! Muito bem! — concordaram os lobos mais jovens, que estão
sempre famintos. — Escutem o que diz Bagheera. O filhote pode ser
comprado por um certo preço. Está na lei.
— Uma vez que não tenho direito à palavra aqui, peço sua licença.
— Pois fale — vinte vozes exclamaram.
— Matar um filhote nu é uma vergonha. Além disso, ele pode lhes
servir melhor depois de crescido. Baloo falou em seu favor. Agora, além
do voto de Baloo, acrescento um touro, e um bem gordo, que acabei de
matar a menos de um quilômetro daqui, para que o filhote de homem
seja aceito de acordo com a lei. Seria possível?
Ouviu-se um clamor de dezenas de vozes:
— Que importa? Ele não resistirá às chuvas de inverno. Vai
esturricar ao sol. Que mal pode uma rã sem roupas contra nós?
Deixemos que corra com a alcateia. Onde está esse touro, Bagheera?
Que ele seja aceito.
E enfim veio o grito profundo de Akela:
— Olhem bem, olhem bem, ó lobos!
Mowgli ainda estava muito absorvido pelos seixos e nem reparou
quando, um por um, os lobos vieram e o examinaram. Por fim, todos
desceram a colina atrás do touro morto, restando apenas Akela,
Bagheera, Baloo, Mowgli e sua família de lobos. Shere Khan ainda rugia
na noite, pois estava muito irritado por Mowgli não ter sido entregue a
ele.
— Eia, ruja bastante — disse Bagheera, por entre os bigodes —, pois
um dia essa coisa sem pelos há de fazê-lo urrar uma canção bem
diferente, ou nada entendo de homens.
— Foi melhor assim — comentou Akela. — Os homens e seus
filhotes são sábios. Com o tempo, ele pode vir a ser muito útil.
— É verdade, uma ajuda em hora de necessidade; pois ninguém pode
liderar a alcateia para sempre — concordou Bagheera.
Akela não respondeu. Estava pensando no momento, que chega para
todo líder de qualquer bando, em que suas forças se esvaem e ele vai
ficando cada vez mais fraco, até que por fim acaba sendo morto pelos
próprios lobos e surge um novo líder… para ser morto quando chegar
sua vez.

— Podem levá-lo — disse a Pai Lobo —, e eduquem o filhote de


homem como se pertencesse ao Povo Livre.
E foi assim que Mowgli entrou para a Alcateia dos Lobos de Seeonee,
ao preço de um touro e graças às palavras favoráveis de Baloo.
Agora você deverá se contentar em pular uns dez ou onze anos
inteiros, e simplesmente imaginar a vida magnífica que Mowgli teve
entre os lobos, pois se isso fosse escrito preencheria uma infinidade de
livros. Ele cresceu com os outros filhotes, embora, é claro, eles tenham
virado adultos antes que ele se tornasse uma criança. E Pai Lobo lhe
ensinou seu ofício e o significado das coisas na selva, até que cada
farfalhar do mato, cada sopro quente da noite, cada nota das corujas
sobre sua cabeça, cada arranhão das garras do morcego ao empoleirar-
se numa árvore e cada som de cada peixinho mergulhando num poço
tivesse para ele o mesmo significado que o serviço no escritório para
um homem de negócios. Quando não estava aprendendo alguma coisa,
deitava-se ao sol e dormia, comia e voltava a dormir. Quando se sentia
sujo ou com calor, nadava nos poços da fioresta; e quando queria mel
(Baloo lhe dissera que mel e nozes eram tão bons para comer quanto
carne crua), subia na árvore e buscava, e isso quem lhe ensinou foi
Bagheera. Bagheera ficava deitado num galho e dizia:
— Venha cá, irmãozinho.
No começo, Mowgli se pendurava como a preguiça, mas depois
passou a se balançar de galho em galho quase tão bem como o Macaco
Cinzento. Recebeu também seu lugar na Pedra do Conselho, quando a
alcateia se reunia, e ali descobriu que se encarasse firme outro lobo, o
lobo acabava obrigado a baixar os olhos, e assim começou a encará-los
só por diversão. Outras vezes, retirava longos espinhos das patas dos
amigos, pois os lobos sofrem terrivelmente com espinhos e carrapichos
entre os pelos. À noite, descia a colina até as terras cultivadas e olhava
muito curioso os habitantes das vilas em suas cabanas, mas desconfiava
deles, porque Bagheera lhe mostrara uma caixa quadrada com uma
tampa de guilhotina tão ardilosamente escondida na selva que ele
quase entrou nela, e Bagheera lhe disse que aquilo era uma armadilha.
Ele amava mais do que qualquer outra coisa acompanhar Bagheera no
coração quente e escuro da fioresta, dormir durante o dia moroso e, à
noite, ver a pantera-negra caçar. Quando estava faminto, Bagheera
matava a torto e a direito, e Mowgli também, com uma única exceção.
Assim que ficou grande o bastante para entender, Bagheera explicou
que ele jamais poderia comer gado, porque seu ingresso na alcateia
custara a vida de um touro.
— A selva inteira é sua — declarou Bagheera —, e você poderá matar
tudo o que tiver força o bastante para matar; mas em respeito ao touro
que pagou seu ingresso, jamais vai poder matar gado, seja novo ou
velho. Essa é a Lei da Selva.
Mowgli obedeceu fielmente.
E cresceu e tornou-se tão forte quanto pode crescer um menino que
não sabe que está aprendendo e que nada tem no mundo com que se
preocupar além do que vai comer em seguida.
Mãe Loba lhe disse uma ou duas vezes que Shere Khan não era uma
criatura confiável e que um dia ele teria de matá-lo. Um lobo jovem se
lembraria a toda hora do aviso, mas Mowgli se esqueceu, pois era só um
menino, ainda que, se falasse a língua dos homens, ele mesmo se diria
lobo.
Shere Khan sempre cruzava seu caminho na selva, pois conforme
Akela foi envelhecendo e ficando mais fraco, o Tigre Manco foi se
tornando grande amigo dos lobos mais jovens da alcateia, que o
seguiam para ficar com suas sobras, coisa que Akela jamais teria
permitido se ainda ousasse impor sua autoridade dentro dos limites
normais. Então Shere Khan os bajulava e perguntava se aqueles belos e
jovens caçadores não se importavam de ser liderados por um lobo
moribundo e um filhote de homem.
— Dizem — instigava Shere Khan — que, no conselho, ninguém
ousa olhar nos olhos do menino.
E os jovens lobos rosnavam e ficavam eriçados.
Bagheera, que tinha olhos e ouvidos em toda parte, ouviu falar disso
e uma ou duas vezes alertou Mowgli, com todas as letras, de que um dia
Shere Khan acabaria por matá-lo. Mowgli ria e respondia:
— Tenho a alcateia e tenho você ao meu lado; e Baloo, mesmo tão
preguiçoso, pode muito bem dar um ou dois golpes em minha defesa.
Por que eu deveria ter medo?
Em certo dia muito quente, uma ideia ocorreu a Bagheera — por
conta de uma coisa que havia escutado. Talvez tenha sido Sahi, o
porco-espinho, quem lhe contara. Mas Bagheera perguntou a Mowgli,
quando estavam no meio da selva, o menino com a cabeça deitada
sobre sua bela pele negra:
— Irmãozinho, quantas vezes eu disse que Shere Khan é seu
inimigo?
— Tantas quanto as nozes daquela palmeira — respondeu Mowgli,
que, naturalmente, não sabia contar. — E daí? Estou com sono,
Bagheera, e Shere Khan não passa de uma cauda comprida que fala
demais, como Mor, o pavão.
— Mas agora não é hora de dormir. Baloo sabe disso, eu sei disso, a
alcateia inteira sabe, e até o alce mais tolo sabe. Tabaqui também já lhe
falou.
— Ha! Ha! Ha! — riu Mowgli. — Tabaqui veio não faz muito tempo
com essa conversa grosseira de que eu era um filhote de homem sem
pelos e que não devia ficar atrás das nozes da nogueira. Mas peguei
Tabaqui pelo rabo e o joguei duas vezes contra uma palmeira, para
ensiná-lo a ter bons modos.
— Isso foi uma tolice, pois, embora Tabaqui seja perverso, ele teria
contado a você algo que lhe dizia respeito diretamente. Abra o olho,
irmãozinho. Shere Khan não ousaria matar você na selva, por medo
daqueles que o amam. Mas não se esqueça, Akela está muito velho e
logo não vai conseguir mais caçar seus cervos, então deixará de ser
líder. Muitos lobos que aceitaram você quando foi levado pela primeira
vez ao conselho também estão velhos, e os jovens acreditam, como
Shere Khan lhes ensinou, que um filhote de homem não tem lugar na
alcateia. Em pouco tempo, você vai ser homem.
— E de que vale um homem se não corre com seus irmãos? —
perguntou Mowgli. — Nasci na selva. Sempre obedeci à Lei da Selva, e
não existe lobo neste nosso bando de quem já não tenha tirado um
espinho da pata. Certamente são meus irmãos!
Bagheera espreguiçou o corpo todo e entrecerrou os olhos.
— Irmãozinho — disse —, passe a mão aqui embaixo da minha
mandíbula.
Mowgli pousou a mão forte e morena bem ali sob o sedoso queixo de
Bagheera, onde os músculos ondulavam ocultos sob o pelame
reluzente, e sentiu uma estreita área sem pelos.
— Ninguém na selva sabe que eu, Bagheera, trago esta marca, a
marca da coleira. No entanto, irmãozinho, nasci entre os homens, e foi
entre os homens que minha mãe morreu, nas jaulas do palácio do rei
em Oodeypore. Foi por isso que paguei seu preço ao conselho quando
era um filhotinho sem pelos. Sim, também eu nasci entre os homens.
Nunca tinha visto a selva. Eles me davam comida por entre grades,
numa tigela de ferro, até que uma noite senti que era Bagheera, a
pantera, e não o brinquedo de homem nenhum, então quebrei a
estúpida corrente com um golpe da minha pata e fugi. E porque
aprendi como agem os homens, tornei-me ainda mais terrível na selva
que Shere Khan. Não é mesmo?
— É — concordou Mowgli —, toda a selva teme Bagheera… todos
menos Mowgli.
— Ah, você é mesmo um filhote de homem — observou a pantera-
negra, com toda a ternura. — E assim como voltei para minha selva,
você também deverá voltar por fim aos homens, aos homens que são
seus irmãos, se não for morto no conselho.
— Mas por quê? Por que alguém haveria de querer me matar? —
perguntou Mowgli.
— Olhe para mim — ordenou Bagheera. E Mowgli encarou-o
fixamente. O grande felino desviou a cabeça depois de meio minuto. —
Está aí o motivo — concluiu, movendo a pata sobre as folhas. — Nem
mesmo eu consigo sustentar seu olhar, e nasci entre os homens e amo
você, irmãozinho. Os outros o odeiam porque os olhos deles não
conseguem fitar os seus; porque você é sábio; porque tirou espinhos
dos pés deles… Porque é homem.
— Não sabia dessas coisas — respondeu Mowgli com desânimo,
franzindo as grossas sobrancelhas pretas.
— Qual é a Lei da Selva? Ataque primeiro, fale depois. Por seu
próprio desleixo, eles sabem que você é um homem. Pense bem. Meu
coração me diz que, quando Akela não conseguir mais caçar, e a cada
caçada custa-lhe mais agarrar o cervo, a alcateia vai se voltar contra ele
e contra você. Vão reunir o conselho na pedra, e então… e então… já
sei! — exclamou Bagheera, num salto. — Vá depressa até as cabanas
dos homens no vale e traga um pouco da Flor Vermelha que eles
plantam lá. Assim, quando chegar a hora, você terá um aliado ainda
mais forte do que eu, Baloo ou aqueles na alcateia que o amam. Pegue a
Flor Vermelha.
O que Bagheera chamava de Flor Vermelha era o fogo, só que
nenhuma criatura da selva jamais chamaria o fogo pelo nome. Todo
bicho tem um medo mortal das chamas e inventa milhares de nomes
para ele.
— A Flor Vermelha? — perguntou Mowgli. — Aquela que cresce do
lado de fora das cabanas ao anoitecer? Vou trazer um pouco.
— Assim é que fala um filhote de homem — disse Bagheera,
orgulhoso. — Lembre que a Flor Vermelha cresce em vasos pequenos.
Pegue um deles depressa e guarde consigo para quando precisar.
— Certo! — respondeu Mowgli. — Eu vou. Mas tem certeza, ó meu
Bagheera — e passou o braço em volta do esplêndido pescoço e mirou
fundo nos grandes olhos do amigo —, tem certeza de que tudo isso é
obra de Shere Khan?
— Pelo cadeado partido que me libertou, tenho certeza, irmãozinho.
— Sendo assim, pelo touro que me comprou, farei Shere Khan pagar
até o fim, talvez até um pouco mais caro — concluiu Mowgli, e foi
embora.
— Isso, sim, é um homem. Eis aí o que é um homem — refietiu
Bagheera consigo mesmo, deitando novamente. — Ah, Shere Khan,
jamais outra caçada foi tão negra quanto a sua caça à rã de dez anos
atrás!
Mowgli penetrara bem longe fioresta adentro, correndo muito, e seu
coração batia quente no peito. Chegou à caverna quando a neblina da
noite se erguia, tomou fôlego e olhou o vale lá embaixo. Os filhotes
haviam saído, mas, no fundo da caverna, Mãe Loba soube pela
respiração dele que algo incomodava sua rãzinha.
— O que foi, filho? — perguntou.
— Um boato de morcegos sobre Shere Khan — respondeu ele. —
Esta noite, caçarei perto dos campos lavrados.
E correu colina abaixo por entre os arbustos até o rio, no fundo do
vale. Ali se deteve, pois ouviu a gritaria da alcateia caçando, e ouviu o
berro de um sambar sendo perseguido e os bufos da presa quando se
viu encurralada. Em seguida, os lobos jovens emitiram uivos cruéis e
amargos:
— Akela! Akela! Deixem o Lobo Solitário mostrar sua força. Abram
espaço para o líder da alcateia! Pule, Akela!
O Lobo Solitário deve ter pulado e deixado escapar, pois Mowgli
escutou o som de dentes abocanhando o vazio e um ganido, após o
sambar o derrubar com a pata da frente.
Ele não esperou por mais, apenas saiu em disparada; e foi deixando
os berros para trás, conforme corria pelas lavouras onde viviam os
homens.
— Bagheera disse a verdade — Mowgli gaguejou, ofegante, ao se
aninhar sobre a forragem do gado junto à janela de uma cabana. —
Amanhã será o grande dia para Akela e para mim.
Então postou-se rente à janela e ficou observando o fogo aceso lá
dentro. Viu a esposa do homem se levantar e alimentar o fogo durante a
noite com toras negras. E quando amanheceu e as brumas ficaram
brancas e frias, viu a criança pegar um cesto de palha vedado por
dentro com barro, encher de brasas vermelhas, embrulhar com seu
cobertor e sair para cuidar do gado no estábulo.
— É só isso? — perguntou-se Mowgli. — Se um filhote consegue,
não há nada a temer.
Então deu a volta e encontrou o menino, tirou o cesto da mão dele e
sumiu na neblina enquanto a criança uivava de medo.
— Eles são iguaizinhos a mim — disse Mowgli, soprando o cesto
como havia visto a mulher fazer. — Isso vai acabar morrendo se eu não
der a ele o que comer. — E serviu gravetos e cascas secas de árvores
para a coisa vermelha.
Na metade do caminho colina acima, encontrou Bagheera com o
sereno cintilando como opalas em seu manto.
— Akela errou o alvo — anunciou a pantera. — Eles queriam matá-lo
ontem à noite, mas também precisavam de você. Foram procurá-lo na
colina.
— Eu estava perto das plantações. Pronto. Veja! — Mowgli ergueu o
cesto com o fogo.
— Muito bem! Pois então, eu já vi os homens espetando um galho
seco dentro disso, e logo a Flor Vermelha se abria na ponta do galho.
Não está com medo?
— Não. Por que deveria ter medo? Lembro agora, se é que não foi um
sonho, que, antes de ser lobo, eu me deitava ao lado da Flor Vermelha e
era quente e gostoso.
Durante todo aquele dia, Mowgli ficou sentado na caverna, cuidando
de seu cesto de fogo e enfiando ramos secos nele para ver o que
acontecia. Encontrou um galho que lhe agradou e, ao anoitecer, quando
Tabaqui veio avisar asperamente que ele era aguardado na Pedra do
Conselho, caiu na gargalhada até Tabaqui fugir correndo. Só então
Mowgli foi até o conselho, ainda rindo.
Akela, o Lobo Solitário, estava deitado ao lado de sua pedra, num
sinal de que a liderança da alcateia estava vaga, e Shere Khan
perambulava com seu séquito de lobos comedores de restos, sendo
abertamente elogiado. Bagheera permaneceu junto de Mowgli, que
tinha o cesto com o fogo entre os joelhos. Quando estavam todos
reunidos, Shere Khan tomou a palavra, algo que jamais teria ousado na
época em que Akela estava no auge.
— Ele não tem esse direito — sussurrou Bagheera. — Diga isso. É
um filho de cão. Vai ficar apavorado.
Mowgli se levantou num pulo.
— Povo Livre — conclamou —, por acaso Shere Khan é o líder da
alcateia? O que um tigre tem a ver com a nossa liderança?
— Uma vez que a liderança ainda está vaga, e sendo convidado a
falar… — começou Shere Khan.
— Por quem? — retrucou Mowgli. — Somos todos chacais, para
obedecer a esse açougueiro de carne de gado? A liderança da alcateia
pertence à alcateia apenas.
Ouviram-se berros de “Silêncio, seu filhote de homem!”, “Deixem que
ele fale. Ele respeitou nossa lei”; e, por fim, os anciãos da alcateia
gritaram:
— Deixem que o Lobo Morto fale.
Quando um líder da alcateia deixa sua caça escapar, é chamado de
Lobo Morto até o final da vida, o que não demora muito, via de regra.
Cabisbaixo, Akela ergueu a velha cabeça:
— Povo Livre, e vocês também, chacais de Shere Khan, por doze
estações liderei vocês para dentro e para fora das caçadas, e durante
todo esse tempo ninguém acabou preso em armadilhas ou ferido. Agora
deixei minha presa escapar. Vocês sabem que fui enganado. Sabem que
me fizeram ir atrás de um cervo novo para que todos vissem minha
fraqueza. Foram bem astutos. É direito de vocês me matar aqui na
Pedra do Conselho, e agora mesmo. Por isso eu pergunto: quem vai dar
cabo do Lobo Solitário? é meu direito, segundo a Lei da Selva, que
venha um de cada vez.
Fez-se um longo silêncio, pois nenhum lobo queria lutar até a morte
contra Akela. Então Shere Khan rugiu:
— Bah! O que iríamos querer com esse tolo desdentado? Está
condenado a morrer! O filhote de homem é que viveu demais. Povo
Livre, ele era minha comida antes de mais nada. Entreguem-no a mim.
Já estou cansado dessa bobagem de homem-lobo. Há dez estações ele
perturba a selva. Entreguem-me o filhote de homem ou irei caçar aqui
para sempre e não deixarei um único osso para vocês. Ele é um homem,
uma cria de homem, e eu o odeio até a medula dos meus ossos!
Então mais da metade da alcateia clamou:
— Um homem! Um homem! O que um homem faz entre nós? Que
volte para o seu lugar.
— E colocar todo o povo das vilas contra nós? — bradou Shere Khan.
— Não, entreguem-me o filhote de homem. Ele é um homem, e
nenhum de nós aguenta encará-lo nos olhos.
Akela voltou a erguer a cabeça e argumentou:
— Ele comeu nossa comida. Dormiu conosco. Atraiu presas para nós.
Jamais deixou de cumprir uma palavra sequer da Lei da Selva.
— Além disso, paguei por ele com um touro quando foi aceito. O
valor de um touro pode ser pouco, mas a honra de Bagheera talvez seja
algo pelo qual esteja disposto a lutar — acrescentou Bagheera, com sua
voz mais doce.
— Esse touro foi pago há dez anos! — rosnou a alcateia. — De que
valem ossos de dez anos atrás?
— Ou uma promessa? — revidou Bagheera, mostrando os dentes
brancos sob os lábios. — Bem, vocês são chamados o Povo Livre!
— Nenhum filhote de homem pode correr com o povo da selva —
uivou Shere Khan. — Entreguem-no a mim!
— Ele é nosso irmão de tudo, menos de sangue — continuou Akela
—, e vocês querem matá-lo aqui! É verdade, já vivi demais. Alguns de
vocês viraram comedores de gado, e ouvi dizer que outros, ensinados
por Shere Khan, rondam a aldeia à noite e raptam crianças das cabanas.
Portanto, sei que são covardes e que falo agora com covardes. É certo
que devo morrer, e que minha vida não vale mais nada, do contrário a
ofereceria no lugar do filhote de homem. Mas em nome da Honra da
Alcateia — mero detalhe que, pela falta de um líder, vocês esqueceram
— prometo que, se o filhote de homem puder voltar ileso para onde
veio, quando chegar a minha hora de morrer, não mostrarei os dentes a
nenhum de vocês. Partirei sem lutar. O que poupará no mínimo três
vidas à alcateia. Mais do que isso não posso; mas se aceitarem, eu os
salvarei da vergonha de matar um irmão que não cometeu qualquer
falta, um irmão recomendado e trazido para a alcateia segundo a Lei da
Selva.
— Ele é um homem, um homem, um homem! — rosnou a alcateia. E
a maior parte dos lobos se reuniu à volta de Shere Khan, cuja cauda
começava a se agitar.
— Agora o caso está nas suas mãos — Bagheera disse a Mowgli. —
Nós não podemos fazer mais nada além de lutar.
Mowgli se levantou, erguendo o cesto com o fogo nas mãos. Então
estendeu os braços e bocejou diante do conselho; embora estivesse
furioso de raiva e tristeza, pois, como fazem os lobos, os outros nunca
tinham dito que o odiavam.
— Escutem aqui! — gritou. — Não há motivo para todo esse falatório
de cães. Esta noite me foi dito tantas vezes que sou homem (eu que
teria sido lobo até o fim da vida ao lado de vocês) que sinto a verdade
dessas palavras. Por isso, não vou mais chamá-los de irmãos, mas de sag
[cães], como diria um homem. Não cabe a vocês dizerem o que vão ou
não vão fazer. Essa questão agora é minha; e para que vocês a entendam
direitinho, eu, homem, trouxe aqui um pouco da Flor Vermelha que
vocês, cães, tanto temem.
Ele atirou o cesto com o fogo no chão, e algumas brasas
incandescentes acenderam um tufo de musgo seco, que se incendiou, e
todos do conselho recuaram aterrorizados diante das labaredas
bruxuleantes.
Mowgli enfiou o galho morto no fogo até que os gravetos virassem
brasa e começassem a estalar, então girou-o sobre a cabeça entre os
lobos assustados.
— Você é o senhor — sussurrou Bagheera. — Salve Akela da morte.
Ele sempre foi seu amigo.
Akela, o velho lobo sisudo que nunca na vida clamara por piedade,
lançou um olhar comovido para Mowgli ao ver o menino ali,
completamente nu, os longos cabelos negros sobre os ombros, à luz do
galho em brasa que fazia as sombras saltarem e estremecerem.
— Muito bem! — exclamou Mowgli, encarando lentamente todos à
sua volta e projetando o lábio inferior. — Vejo que são mesmo cães. Vou
deixar o povo de vocês e voltar para o meu, se é que eles são realmente
o meu povo. A selva agora é proibida para mim, devo esquecer a sua
língua e a sua companhia. Mas terei a piedade que vocês não tiveram. E
porque sempre fui seu irmão em tudo, ainda que não de sangue, juro
que, quando for homem entre os homens, não vou traí-los em nome
deles como fui traído por vocês. — Ele chutou o fogo com a ponta do
pé, e as fagulhas saíram voando. — Não haverá guerra entre nós e a
alcateia. Mas, antes de eu ir embora, existe uma dívida a ser paga. —
Ele caminhou até onde Shere Khan estava sentado, piscando
estupidamente diante das chamas, e pegou-o pelo tufo de pelos do
queixo. Bagheera foi junto, para o caso de haver algum acidente. —
Levante-se, cão! — ordenou Mowgli. — Levante-se, ao comando do
homem, ou atearei fogo nesse seu casaco!
As orelhas de Shere Khan se dobraram para trás, e ele fechou os
olhos, pois o galho em chamas chegara muito perto.
— Este assassino de gado disse que me mataria no conselho porque
não conseguiu me pegar quando eu era filhote. Da mesma forma, então,
nós homens adultos bateremos em cães. Mova um fio de bigode,
Lungri, e eu lhe enfio a Flor Vermelha goela abaixo! — Mowgli acertou
a cabeça de Shere Khan com o galho, e o tigre grunhiu e ganiu agoniado
de medo. — Ora! Gato chamuscado da selva. Agora vá! Mas lembre-se
de que quando eu voltar à Pedra do Conselho, como um homem deve
voltar, será vestindo a pele de Shere Khan na cabeça. No mais, Akela vai
ficar livre para viver como quiser. Vocês não irão matá-lo, pois essa não
é a minha vontade. Também não quero vocês aqui por muito mais
tempo, com as línguas à mostra como se fossem grande coisa, e não um
bando de cães que eu boto para correr, por isso, fora!
O fogo ardia furiosamente na ponta do galho, e Mowgli atacou pela
direita e pela esquerda em volta do círculo de lobos, que fugiram
uivando com as centelhas que lhes queimavam o pelo. Por fim,
restaram apenas Akela, Bagheera e talvez dez lobos que haviam tomado
o partido de Mowgli. Nesse momento, ele percebeu que alguma coisa
lhe doía por dentro, uma dor como nunca sentira antes na vida, e então
tomou fôlego e desatou a chorar, as lágrimas escorrendo por seu rosto.
— O que é isso? O que é isso? — perguntou. — Não quero ir embora
da selva e não sei o que está acontecendo comigo. Será que estou
morrendo, Bagheera?
— Não, irmãozinho. Isso são apenas as lágrimas que os homens
choram — respondeu Bagheera. — Agora sei que é homem, e não mais
filhote. De fato, daqui para a frente a selva lhe será proibida. Deixe que
escorram, Mowgli. São apenas lágrimas. — Então Mowgli sentou e
chorou, sentindo o coração se despedaçar; ele, que nunca na vida tinha
chorado antes.
— Agora — anunciou —, vou até os homens. Mas primeiro devo me
despedir de minha mãe.
E foi até a caverna onde a mãe morava com Pai Lobo, onde chorou no
colo dela, enquanto os quatro filhotes uivavam desconsolados.
— Vocês não vão se esquecer de mim? — perguntou Mowgli.
— Enquanto conseguirmos seguir rastros, nunca — responderam os
filhotes. — Quando for homem, venha até o pé da colina, e vamos
conversar com você. À noite, vamos descer até as plantações para
brincar com você.
— Volte logo! — disse Pai Lobo. — ó sábia rãzinha, não demore; pois
somos velhos, sua mãe e eu.
— Volte logo — pediu Mãe Loba —, meu filhinho sem pelos. Pois,
escute, cria de homem, amo você mais do que meus amados filhotes.
— Voltarei sem falta — respondeu Mowgli. — E quando chegar, será
para estender a pele de Shere Khan sobre a Pedra do Conselho. Não se
esqueçam de mim! Digam a todos na selva para nunca se esquecerem
de mim!
O dia já estava nascendo quando Mowgli desceu a colina sozinho até
as plantações, para encontrar aquelas misteriosas criaturas que se
chamavam homens.
Canção de caça da Alcateia de Seeonee

Ao raiar do dia, baliu o sambar,


Uma, duas, três vezes!
O gamo saltou, o gamo saltou
Do lago no bosque onde o cervo bebe água.
Isso eu, sozinho na mata, já vislumbrei
Uma, duas, três vezes!

Ao raiar do dia, baliu o sambar,


Uma, duas, três vezes!
O lobo voltou, o lobo voltou,
Trazendo ao bando a novidade,
E lá fomos nós atrás de seu rastro
Uma, duas, três vezes!

Ao raiar do dia, a alcateia gritou


Uma, duas, três vezes!
Patas que não deixam rastros na mata!
Olhos que enxergam na treva, na treva!
Conta, conta aos outros! Fareja! Pega!
Uma, duas, três vezes!
A caçada de Kaa

As pintas são o orgulho do leopardo: os chifres são


o orgulho do búfalo.
Esteja sempre limpo, pois a força do caçador se vê no
brilho de seu couro.
Se descobrir que o touro jovem pode derrubá-lo, ou
que o sambar de pesado semblante pode chifrá-lo;
Não carece interromper o trabalho para nos avisar:
há dez estações já sabíamos.
Não maltrate os filhotes de um estranho, receba-os
como irmã e irmão,
Mesmo pequenos e atarracados, a mãe pode ser a ursa.
“Ninguém se compara a mim!”, diz o filhote orgulhoso
de sua primeira caçada;
Mas a selva é grande e o filhote, pequeno. Deixe-o
pensar o que quiser e não faça nada.
Máximas de Baloo

Tudo o que segue contado aqui aconteceu algum tempo antes de


Mowgli ser expulso da Alcateia de Seeonee, ou de sua vingança contra
Shere Khan, o tigre. Foi na época em que Baloo estava lhe ensinando a
Lei da Selva. O grande, sério e velho urso-pardo adorava ter um aluno
tão esperto, pois os jovens lobos só aprendem a parte da Lei da Selva
que se aplica ao seu próprio bando e à sua própria tribo, e saem
correndo assim que conseguem decorar o Estribilho da Caça: “Patas
que não fazem barulho, olhos que enxergam na treva, orelhas que
escutam os ventos em suas tocas e presas brancas e afiadas; todas essas
coisas são as marcas dos nossos irmãos, excluídos Tabaqui, o chacal, e a
hiena que odiamos”. Mas Mowgli, que era filhote de homem, precisava
aprender muito mais que isso. Às vezes, Bagheera, a pantera-negra,
vinha sossegadamente pela selva observar os progressos do seu
mascote, e ronronava com a cabeça apoiada numa árvore, enquanto
Mowgli recitava a lição do dia para Baloo. O menino já subia em
árvores quase tão bem quanto nadava, e nadava quase tão bem quanto
corria. Assim, Baloo, o Professor da Lei, ensinou-lhe as Leis da Madeira
e da Água: qual a diferença entre um galho podre e um galho firme;
como falar educadamente com abelhas selvagens quando encontrasse
uma colmeia a quinze metros do chão; o que dizer a Mang, o morcego,
quando o incomodasse em seu sono nos galhos ao meio-dia; e como
avisar às cobras-d’água no lago antes de mergulhar junto a elas.
Ninguém do Povo da Selva gosta de ser perturbado, e todo mundo está
pronto para atacar um intruso. Assim, Mowgli aprendeu também o
Chamado de Caça dos Forasteiros, que deve ser repetido em voz alta
até ser respondido, sempre que alguém do Povo da Selva caça fora de
seu território. Significa, traduzindo: “Peço licença para caçar aqui, pois
estou faminto”. E a resposta é: “Pois então cace para comer, mas não
por prazer”.
Isso tudo demonstra o quanto Mowgli precisava decorar, e ele foi
ficando cansado de repetir a mesma coisa mais de cem vezes. Mas,
como Baloo disse a Bagheera certa vez, quando Mowgli levou bronca e
fugiu muito bravo:
— Um filhote de homem é um filhote de homem e deve aprender
toda a Lei da Selva.
— Mas veja como ele é pequeno — respondeu a pantera-negra, que,
se tivesse a palavra final, teria mimado Mowgli. — Como pode aquela
cabecinha guardar toda essa ladainha?
— Existe alguma coisa na selva pequena demais para ser morta? Não.
É por isso que eu lhe ensino essas coisas, e é por isso que bato nele,
bem de leve, quando se esquece.
— Bem de leve! O que você entende de leveza, velho Patas de Ferro?
— grunhiu Bagheera. — Hoje ele ficou com o rosto todo arranhado por
causa da sua… leveza. Ugh.
— É melhor ser arranhado dos pés à cabeça por mim, que o amo, do
que encontrar o sofrimento por ignorância — respondeu Baloo, muito
compenetrado. — Agora estou ensinando as Palavras Mestras da Selva,
que o protegerão dos pássaros, do Povo Serpente e de tudo que caça em
quatro patas que não seu próprio bando. Caso se lembre das palavras,
ele já pode pedir proteção a todos na selva. Será que isso não justifica
um tapinha?
— Bem, cuidado para não matar o filhote de homem. Ele não é
tronco de árvore para você afiar suas garras cegas. Mas que Palavras
Mestras são essas? É mais provável eu ajudar alguém do que pedir
ajuda — Bagheera esticou uma das patas e admirou os cinzéis
cortantes de aço azulado das garras em ponta —, ainda assim, gostaria
de saber.
— Vou chamar Mowgli para recitá-las… se souber. Venha,
irmãozinho!
— Minha cabeça está zumbindo feito uma colmeia na árvore —
respondeu uma vozinha amuada acima das cabeças deles, e Mowgli
veio deslizando pelo tronco muito irritado e indignado, acrescentando
ao chegar no chão: — Vim por Bagheera e não por você, Baloo, seu
velho gordo!
— Por mim, dá no mesmo — respondeu Baloo, triste e magoado. —
Diga então a Bagheera as Palavras Mestras da Selva que lhe ensinei
hoje.
— Palavras Mestras de qual povo? — perguntou Mowgli, adorando
se exibir. — A selva tem muitas línguas. Eu sei todas.
— Sabe um pouco, mas não muito. Está vendo, ó Bagheera, eles
nunca agradecem ao professor. Lobinho nenhum jamais voltou para
agradecer ao velho Baloo pelos ensinamentos. Diga então a senha para
o Povo Caçador, grande erudito.
— Somos do mesmo sangue, você e eu — respondeu Mowgli, dando
às palavras o sotaque de urso que todo o Povo Caçador costuma usar.
— Muito bem. E agora a dos pássaros.
Mowgli repetiu, com o assobio do milhafre ao terminar a frase.
— Agora a do Povo Serpente — pediu Bagheera.
A resposta foi um sibilar perfeito e indescritível, e Mowgli deu um
salto e bateu os calcanhares no ar, bateu palmas aplaudindo a si mesmo
e pulou no dorso de Bagheera, onde sentou de lado, batucando com os
pés no pelo cintilante e fazendo as piores caretas que conseguiu
imaginar para Baloo.
— Está vendo, está vendo! Isso vale um arranhão — comentou com
ternura o urso-pardo. — Um dia você há de se lembrar de mim.
Em seguida o urso dirigiu-se a Bagheera para contar como havia
implorado a Hathi, o elefante selvagem, que sabe tudo sobre essas
coisas, que lhe ensinasse as Palavras Mestras, e como Hathi levara
Mowgli até um poço para aprender de uma cobra-d’água a Palavra da
Serpente, porque Baloo não era capaz de pronunciá-la, e como agora
Mowgli estava protegido contra praticamente qualquer acidente na
selva, pois nem cobra, nem pássaro, nem bicho nenhum lhe faria mal.
— Assim, não há por que ter medo de ninguém. — E Baloo se
empertigou, batendo em sua grande barriga peluda com orgulho.
— Ninguém afora sua própria tribo — pontuou Bagheera, em voz
baixa; e, a seguir, em voz alta para Mowgli: — Tem pena das minhas
costelas, irmãozinho! Por que todo esse sapateado de lá para cá?
Mowgli tentava se fazer ouvir, puxando o pelo de Bagheera e
chutando-o com força. Quando os dois amigos o escutaram, já gritava a
plenos pulmões:
— E eu terei então uma tribo só minha e irei guiá-los pelos galhos o
dia todo.
— Que besteira é essa agora, pequeno sonhador de sonhos? —
perguntou Bagheera.
— É isso mesmo, e vou jogar terra e galhos no velho Baloo —
continuou Mowgli. — Eles me prometeram isso. Ah!
— Hunf! — A mão grande de Baloo catou Mowgli do dorso de
Bagheera. Preso entre as duas enormes patas dianteiras, o menino
percebeu que o urso estava bravo. — Mowgli — repreendeu Baloo —,
você andou conversando com o Bandar-log, o Povo Macaco.
Mowgli examinou Bagheera para ver se a pantera também havia se
irritado, e os olhos de Bagheera estavam duros como pedras de jade.
— Você esteve com o Povo Macaco, os monos cinzentos, o povo sem
lei, comedores de tudo. Mas que vergonha…
— Quando Baloo bateu na minha cabeça — explicou Mowgli (ainda
montado em Bagheera) —, fugi, e os monos cinzentos vieram,
desceram das árvores e tiveram pena de mim. Ninguém mais se
importava. — Ele fungou um pouquinho.
— A piedade do Povo Macaco! — grunhiu Baloo. — A mansidão da
corredeira da montanha! O frescor do sol de verão! E o que mais,
filhote de homem?
— E o que mais, e o que mais que eles me deram nozes e coisas
gostosas para comer, e… e me levaram nos braços até o topo das
árvores e disseram que eu era irmão de sangue deles, só que sem cauda,
e que deveria ser o líder dos macacos um dia.
— Eles não têm líder — retrucou Bagheera. — Eles mentem. Sempre
foram mentirosos.
— Eles foram muito gentis e me pediram para voltar. Por que nunca
me levaram para conhecer o Povo Macaco? Eles também andam com
dois pés, como eu. E não me batem com suas patas duras. Brincam o dia
inteiro. Solte, Baloo, seu malvado, me deixe sair! Eu vou brincar com
eles outra vez.
— Escute, filhote de homem — rugiu o urso, e sua voz ressoou como
o trovão numa noite quente. — Ensinei a você a Lei da Selva inteira,
que vale para todos os Povos da Selva, menos para o Povo Macaco que
vive nas árvores. Eles não têm lei. São marginais. Não têm fala própria,
mas usam palavras roubadas que ouvem por aí enquanto espiam e
esperam no alto dos galhos. Os costumes deles são diferentes dos
nossos. Eles não têm líder. Não têm lembranças. São bravateiros,
fofoqueiros e fingem ser os maiorais e estar sempre prestes a
desempenhar grandes feitos na selva, mas é só uma noz cair no chão
que desatam a rir e se esquecem de tudo. Nós da selva não queremos
nada com eles. Não bebemos onde os macacos bebem, não vamos
aonde os macacos vão, não caçamos onde eles caçam, não morremos
onde eles morrem. Alguma vez você me ouviu falar do Bandar-log até
hoje?
— Não — respondeu Mowgli num sussurro, pois a fioresta ficou
muito quieta quando Baloo terminou.
— O Povo da Selva os mantém longe das bocas e das cabeças. Eles
são muitos, maus, sujos, despudorados e desejam, se é que se
concentram em algum desejo, ter a atenção do Povo da Selva. Mas nós
não prestamos atenção neles nem quando atiram nozes e porcarias em
nossas cabeças.
Mal ele terminou de falar, uma chuva de nozes e gravetos desabou do
alto dos galhos e, entre os ramos mais frágeis, ouviram-se guinchos,
uivos e pulos nervosos no ar.
— O Povo Macaco é proibido — decretou Baloo —, proibido para o
Povo Selvagem. Lembre-se disso.
— Proibido — repetiu Bagheera —, mas ainda acho que Baloo
deveria tê-lo prevenido contra eles.
— Eu… eu? Como poderia imaginar que ele iria se misturar com
essa escória. O Povo Macaco! Que asco!
Uma nova chuva caiu sobre suas cabeças, e os dois trotaram dali,
levando Mowgli consigo. O que Baloo dissera sobre os macacos era a
mais pura verdade. Eles viviam no topo das árvores, e, como os bichos
raramente olham para cima, os macacos e o Povo da Selva nunca se
encontravam. Mas sempre que avistavam um lobo doente, um tigre
ferido ou um urso, vinham atormentá-lo, jogando gravetos e nozes em
qualquer bicho só de brincadeira, na esperança de receberem atenção.
Em seguida, uivavam e guinchavam suas canções sem sentido, e
convidavam o Povo da Selva para subir em suas árvores para lutar, ou
começavam lutas furiosas e inúteis entre eles mesmos, deixando os
macacos mortos onde o Povo da Selva pudesse vê-los. Estavam sempre
a um passo de ter seu líder, suas próprias leis e seus costumes, mas
nunca chegavam a fazê-lo, pois sua memória não durava de um dia para
o outro, e, assim, se conformavam inventando um ditado: “O que o
Bandar-log pensa agora, a selva pensará depois”, e isso lhes parecia
consolo suficiente. Nenhum dos bichos conseguia alcançá-los, mas, em
compensação, nenhum dos bichos lhes dava atenção, e foi por isso que
ficaram tão contentes quando Mowgli foi brincar com eles e ouviram
como Baloo tinha ficado bravo.
Nunca aspiraram a realizar coisa alguma — no fundo, o Bandar-log
nunca aspira a nada —, mas um deles teve o que lhe pareceu uma ideia
brilhante e contou a todos os outros que Mowgli seria muito útil para a
tribo, porque sabia amarrar gravetos para protegê-los do vento; então,
se o capturassem, poderiam obrigá-lo a lhes ensinar como fazê-lo. Sem
dúvida, Mowgli, como filho de lenhador, havia herdado todo tipo de
instinto e costumava construir cabaninhas de galhos caídos, sem
pensar no que estava fazendo. O Povo Macaco, olhando do alto das
árvores, achou sua brincadeira a maior maravilha. Dessa vez, disseram
eles, teriam mesmo um líder e se tornariam o povo mais sábio da selva
— tão sábio que todo mundo lhes daria atenção e teria inveja deles.
Assim, seguiram Baloo, Bagheera e Mowgli pela selva bem quietos, até
a hora do cochilo do meio-dia, e Mowgli, que ficara com muita
vergonha de si mesmo, dormiu entre a pantera e o urso, decidido a não
se misturar mais com o Povo Macaco.
A próxima coisa de que se lembrava foi ter sentido mãos tocando
suas pernas e braços — mãos fortes, rudes e pequenas —, depois um
farfalhar de ramos em seu rosto e, por fim, já olhava lá do alto, por
entre os galhos ondulantes, enquanto Baloo acordava toda a selva com
seus rugidos graves e Bagheera escalava o tronco com todos os dentes à
mostra. O Bandar-log uivou de triunfo e se amontoou nos ramos mais
altos, onde Bagheera não ousava chegar, berrando:
— Ele reparou em nós! Bagheera reparou em nós! Todo o Povo da
Selva nos admira graças a nossa habilidade e astúcia.
Então começaram a fuga; e a fuga do Povo Macaco pelo assoalho
verde é uma dessas coisas que ninguém é capaz de descrever. Eles
possuem verdadeiras estradas e cruzamentos, subidas e descidas, todas
elas a mais de quinze, vinte, trinta metros do chão, e por elas podem
viajar até mesmo à noite, se necessário. Dois dos macacos mais fortes
agarraram Mowgli por debaixo dos braços e balançaram com ele de
galho em galho pelas copas das árvores, dando saltos de até seis metros
cada. Se estivessem sozinhos, poderiam ser duas vezes mais rápidos,
porém o peso do menino os atrasava. Mesmo enjoado e tonto, Mowgli
não pôde deixar de desfrutar a selvagem correria, embora os relances
do chão duro lá embaixo o apavorassem e a pausa e o pulo ao fim de
cada balanço, no ar vazio sobre o nada, fizessem seu coração sair pela
boca. Sua escolta disparava com ele rumo ao topo de uma árvore, até
Mowgli sentir os ramos mais finos e mais altos estalarem e se curvarem
sob eles, e então, com um espasmo da garganta e um grito alegre, ela se
lançava para a frente e para baixo no ar, segurando com as mãos ou os
pés os galhos mais baixos da árvore seguinte. Às vezes, Mowgli
conseguia enxergar milhas e milhas da selva verde e quieta, como um
homem no topo de um mastro é capaz de divisar milhas oceano afora, e
então os ramos e as folhas açoitavam seu rosto, e ele e os dois guardas
quase tocavam o chão de novo. Assim, saltando e caindo, aos gritos e
aos berros, toda a tribo do Bandar-log fugiu pelas estradas de árvores,
levando Mowgli prisioneiro.
Por um tempo, ele teve medo de que o deixassem cair. Depois teve
raiva, mas sabia que não adiantava lutar, então começou a pensar. A
prioridade era mandar um recado para Baloo e Bagheera, pois, no
ritmo que iam os macacos, sabia que seus amigos seriam deixados
muito para trás. Era inútil olhar para baixo, pois só conseguia enxergar
o alto dos galhos pelo caminho, então olhou para cima e distinguiu, lá
longe no azul, Chil, o milhafre, planando em círculos enquanto vigiava
a selva, esperando que algum bicho morresse. Chil notou que os
macacos estavam carregando algo e desceu algumas centenas de
metros para conferir se a carga era boa de comer. Assobiou surpreso
quando viu Mowgli sendo arrastado até a copa de uma árvore e ouviu-o
emitir o sinal de chamado dos milhafres:
— Somos do mesmo sangue, você e eu.
Ondas de ramos se fecharam sobre o menino, mas Chil fiutuou até a
árvore seguinte, a tempo de ver o rostinho moreno ressurgir.
— Guarde a minha trilha! — berrou Mowgli. — Avise a Baloo, da
Alcateia Seeonee, e a Bagheera, da Pedra do Conselho.
— Em nome de quem, irmão? — Chil nunca tinha visto Mowgli
antes, embora sem dúvida tivesse ouvido falar nele.
— Mowgli, a rã. Sou conhecido como filhote de homem! Guarde a
minha trilha!
Essas últimas palavras saíram num ganido, num momento em que ele
era arremessado no ar, mas Chil as entendeu e subiu até ficar do
tamanho de um grão de poeira no céu, e lá ficou, observando, com
olhos de telescópio, o balançar do arvoredo por onde a escolta de
Mowgli passava em disparada.
— Eles nunca vão muito longe — disse, prendendo o riso. — Nunca
terminam o que começam a fazer. Sempre beliscando coisas novas,
assim é o Bandar-log. Desta vez, se meus olhos não me enganam,
beliscaram um problema para si mesmos, pois Baloo não saiu da casca
do ovo, e sei bem que Bagheera é capaz de matar mais do que bodes.
Ele bateu as asas, com as garras junto ao corpo, e aguardou.
Enquanto isso, Baloo e Bagheera estavam furiosos de raiva e tristeza.
Bagheera escalou como nunca antes, mas os ramos mais finos da árvore
quebraram com seu peso, e ele escorregou até o chão, com as garras
cheias de casca de árvore.
— Por que você não alertou o filhote de homem? — rugiu para o
pobre Baloo, que corria num trote desengonçado, na esperança de
alcançar os macacos. — De que adiantou quase despedaçá-lo com as
patas se não o alertou?
— Depressa! Mais depressa! Talvez… talvez ainda possamos
alcançá-los! — arfou Baloo.
— Nessa velocidade! Isso não cansaria nem uma vaca ferida.
Professor da Lei, espancador de filhote, um quilômetro e meio nessa
corrida arrebentaria com você. Sente aí e pense! Faça um plano. Chega
de perseguição. Eles podem deixá-lo cair se os seguirmos muito de
perto.
— Arrula! Whoo! Talvez já o tenham deixado cair, cansados de
carregá-lo. Quem pode confiar no Bandar-log? Enfie morcegos mortos
na minha cabeça! Dê-me ossos podres para comer! Enrole-me nos favos
das abelhas selvagens, que eu seja picado até morrer, e me enterre com
as hienas, pois sou o mais desgraçado dos ursos! Arulala! Wahooa! Ó
Mowgli, Mowgli! Por que não o alertei sobre o Povo Macaco em vez de
bater na sua cabeça? Agora, talvez minha pancada tenha expulsado a
lição de hoje de sua cachola, e ele estará sozinho na selva, sem as
Palavras Mestras.
Baloo segurou a cabeça com as patas, tapando os ouvidos, e rolou
pelo chão enquanto gemia.
— Pelo menos ele recitou direitinho as palavras, agora há pouco —
disse Bagheera, impaciente. — Baloo, você não tem memória nem
respeito. O que a selva iria pensar se eu, a pantera-negra, me
encolhesse como Sahi, o porco-espinho, e uivasse?
— O que me importa o que pensa a selva? A esta altura, ele pode
estar morto.
— Se não o deixaram cair por brincadeira e até que o façam, se não o
mataram por pura negligência, não temo pelo filhote de homem. Ele é
inteligente, foi bem ensinado e, acima de tudo, tem olhos que põem
medo no Povo da Selva. Mas (e esse é o grande mal) está em poder do
Bandar-log, e eles, por viverem nas árvores, não temem ninguém do
nosso povo. — Bagheera lambeu uma pata dianteira, pensativo.
— Que tolice a minha! Ah, mas que idiota gordo, pardo e cavador de
raízes eu sou — lamentou-se Baloo, esticando-se num sobressalto. —
Mas é verdade o que diz Hathi, o elefante selvagem: “Cada um com o
seu medo”. E eles, do Bandar-log, temem Kaa, o Píton das Rochas. Ele
sobe em árvore tão bem quanto eles e rapta os macaquinhos na calada
da noite. Só de ouvir sussurrar seu nome, os macacos sentem um
calafrio em suas caudas malditas. Vamos falar com Kaa.
— O que ele pode fazer por nós? Não é da nossa tribo, pois não tem
patas, e tem os olhos incrivelmente malignos — lembrou Bagheera.
— Ele é muito velho e muito astuto. E, sobretudo, está sempre
faminto — retrucou Baloo, esperançoso. — Prometa-lhe muitos
cabritos.
— Ele dorme um mês inteiro depois de comer, pode estar dormindo
agora. Mesmo que estivesse acordado, e se preferir matar seus próprios
cabritos? — Bagheera, que não sabia muita coisa sobre Kaa, estava
naturalmente desconfiado.
— Nesse caso, juntos, eu e você, velho caçador, podemos obrigá-lo a
ouvir a razão. — Baloo roçou o ombro pardacento na pantera, e saíram
os dois à procura de Kaa, o Píton das Rochas.
Encontraram-no estendido sobre uma laje quente ao sol da tarde,
admirando suas lindas escamas novas, pois estivera recolhido nos
últimos dez dias, trocando de pele, e agora estava perfeitamente
magnífico — com o grande focinho rombudo rente ao chão e
retorcendo os quase dez metros de seu corpo em fantásticos nós e
curvas, lambendo os beiços só de pensar no jantar.
— Ainda não comeu — disse Baloo, com um grunhido de alívio,
assim que viu o lindo couro rajado de marrom e amarelo. — Cuidado,
Bagheera! Ele não enxerga bem depois que troca de pele e ataca por
qualquer coisa.
Kaa não era uma serpente venenosa — na verdade, desprezava
cobras peçonhentas, por julgá-las covardes —, mas sua força residia no
abraço, e, uma vez que passava em volta de alguém suas espirais
soberbas, não havia mais nada a fazer.
— Boa caçada! — saudou Baloo, sentado nas patas traseiras. Como
todas as serpentes de sua linhagem, Kaa era quase surdo e, a princípio,
não ouviu a saudação. Então se enrolou, pronto para dar o bote, com a
cabeça baixa.
— Boa caçada para todos nós — respondeu. — Ora, Baloo, o que faz
por aqui? Boa caçada, Bagheera. Pelo menos um de nós precisa comer.
Alguma notícia de caça por perto? Quem sabe uma corça ou mesmo um
cervo jovem? Estou oco como um poço sem água.
— Estamos indo caçar — disse Baloo, despreocupadamente. Sabia
que não se deve apressar Kaa. Ele é grande demais.
— Vocês me dariam permissão para acompanhá-los? — pediu Kaa.
— Um golpe a mais ou a menos não é nada para vocês, Bagheera e
Baloo, mas eu… eu preciso esperar e esperar dias inteiros numa trilha,
e levar metade de uma noite subindo numa árvore, pela mera hipótese
de um macaquinho. Pss! E os galhos já não são mais os mesmos de
quando eu era jovem. São todos gravetos podres e ramos secos.
— Talvez o seu grande peso tenha algo a ver com isso — comentou
Baloo.
— Sou bem comprido, bem comprido — disse Kaa com certo
orgulho. — Mesmo assim, a culpa é dessas árvores novas. Quase caí no
chão em minha última caçada, quase mesmo, e o som do meu
escorregão, pois minha cauda não estava bem presa na árvore,
despertou o Bandar-log, e eles começaram a me xingar dos mais feios
nomes.
— Perneta, minhoca amarela — sussurrou Bagheera por entre os
bigodes, como se tentasse lembrar de alguma coisa.
— Sssss! Alguma vez eles já me chamaram disso? — perguntou Kaa.
— Algo assim, foi o que nos gritaram na última lua, mas nunca lhes
damos atenção. Dizem qualquer coisa, até que você perdeu todos os
dentes e que não enfrenta nada maior que um filhote porque (que povo
mais sem-vergonha, esse Bandar-log)… porque tem medo dos chifres
do bode — continuou Bagheera, candidamente.
Ora, uma serpente, ainda mais um velho e prudente píton como Kaa,
muito raramente demonstra irritação, mas Baloo e Bagheera puderam
ver os fortes músculos laterais da garganta de Kaa ficando duros e
inchados.
— O Bandar-log mudou de território — disse ele, calmo. — Hoje,
quando vim tomar sol, ouvi os macacos gritando nas copas das árvores.
— É… é justamente o Bandar-log que estamos seguindo agora —
comentou Baloo, mas as palavras entalaram em sua garganta, pois era a
primeira vez, até onde sua memória alcançava, que alguém do Povo da
Selva admitia estar interessado nos afazeres dos macacos.
— Só pode ser algo especial para dois caçadores, líderes em sua parte
da fioresta, tenho certeza, estarem no rastro do Bandar-log —
respondeu Kaa com reverência, inchando de curiosidade.
— Na verdade — começou Baloo —, sou apenas um velho e às vezes
tolo Professor da Lei para os filhotes da Alcateia de Seeonee, e
Bagheera aqui…
— É Bagheera — interrompeu a pantera-negra, e sua mandíbula se
fechou subitamente, pois não acreditava em ser humilde. — Esse é o
problema, Kaa. Aqueles ladrões de nozes e catadores de folha de
palmeira roubaram nosso filhote de homem, de quem talvez tenha
ouvido falar.
— Sahi me falou algo (seus espinhos o deixam presunçoso) sobre
uma coisa humana que havia entrado na alcateia, mas não acreditei.
Sahi é cheio de histórias entreouvidas e mal contadas.
— Mas essa é verdadeira. Ele é mesmo um filhote de homem como
nunca houve — afirmou Baloo. — O melhor, o mais sábio e o mais
corajoso de todos os filhotes de homem. Meu aluno, que vai fazer o
nome de Baloo famoso em todas as selvas; e além do mais… eu… nós o
amamos, Kaa.
— Tss! Tss! — disse Kaa, movendo a cabeça de um lado para o outro.
— Também já soube o que é o amor. Poderia contar histórias que…
— Que vão ficar para uma noite clara, depois que estivermos todos
alimentados, para melhor louvá-las — interrompeu logo Bagheera. —
Agora nosso filhote de homem está nas mãos do Bandar-log, e sabemos
que, de todos os Povos da Selva, eles só temem Kaa.
— Eles só têm medo de mim. E têm bons motivos — vangloriou-se
Kaa. — Faladores, tolos, fúteis… fúteis, tolos e faladores, assim são os
macacos. Mas uma coisa humana, nas mãos deles, não está com sorte.
Eles se cansam até das nozes que catam e as jogam no chão. Carregam
um galho a manhã inteira, prontos para realizar feitos importantes com
ele, e de repente quebram-no ao meio. Não há como invejar essa coisa
humana. E eles me chamaram do que mesmo? Peixe amarelo, não foi?
— Minhoca… larva… larva da terra — corrigiu Bagheera —, entre
outras coisas que tenho vergonha de falar.
— Precisamos lembrá-los de falar bem de seu senhor. Sssss!
Refrescar-lhes a memória tão inconstante. Pois bem, e para onde foram
com o filhote?
— Só a selva sabe. Na direção do poente, creio — disse Baloo. —
Achamos que talvez você soubesse, Kaa.
— Eu? Como? Pego macacos quando cruzam meu caminho, mas não
caço o Bandar-log, nem rãs… nem algas numa poça, por falar nisso.
Sssss!
— Aqui, aqui! Alô! Alô! Olhe para cima, Baloo da Alcateia de
Seeonee!
Baloo ergueu a cabeça e tentou ver de onde vinha aquela voz, e lá
estava Chil, o milhafre, descendo com o sol reluzindo nas pontas
arrebitadas de suas asas. Estava quase na hora de Chil dormir, mas ele
havia patrulhado toda a selva à procura do urso e não conseguira
encontrá-lo na mata cerrada.
— O que foi? — perguntou Baloo.
— Vi Mowgli com o Bandar-log. Ele me pediu para avisar. Fiquei
observando. O Bandar-log levou-o para a outra margem do rio, para a
cidade dos macacos, nas Tocas Frias. Eles devem passar a noite por lá,
ou dez noites, ou uma hora. Pedi aos morcegos que vigiassem durante
as horas de escuridão. Esse foi o meu recado. Boa caçada para vocês
todos aí embaixo!
— Barriga cheia e sono tranquilo, é o que lhe desejo, Chil — gritou
Bagheera. — Não vou esquecê-lo em minha próxima caçada, vou
guardar a cabeça só para você, ó melhor dos milhafres!
— Não foi nada. Não foi nada. O menino conhecia a Palavra Mestra.
Era o mínimo que eu poderia fazer. — E Chil foi subindo em círculos,
de volta para o seu pouso.
— Ele não esqueceu de usar a língua! — exclamou Baloo, com uma
risada orgulhosa. — Imagine alguém tão novo conseguir se lembrar da
Palavra Mestra das aves enquanto era arrastado de galho em galho!
— É que isso lhe foi ensinado com firmeza — disse Bagheera. — Mas
também me orgulho dele, e agora precisamos ir às Tocas Frias.
Todos sabiam onde ficava esse lugar, mas poucos do Povo da Selva
tinham de fato ido até lá, pois o que chamavam de Tocas Frias era uma
antiga cidade abandonada, perdida e enterrada na selva, e os bichos
raramente frequentam um local que já tenha sido usado pelo homem. O
javali, sim, mas as tribos caçadoras, não. Além disso, os macacos
moravam lá, se é que se pode dizer que moram em algum lugar, e
nenhum animal que se dê ao respeito bota os pés ali, a não ser nos
tempos de seca, quando os tanques trincados e as cisternas ainda
conservam um pouco de água.
— É viagem para levar metade de uma noite, acelerando ao máximo
— afirmou Bagheera, e Baloo pareceu muito preocupado.
— Irei o mais depressa que conseguir — disse, afiito.
— Não podemos esperar por você. Venha atrás de nós, Baloo. Kaa e
eu temos pés mais ligeiros.
— Com ou sem pés, sou mais rápido que todos os quadrúpedes como
vocês — disse Kaa, secamente.
Baloo fez menção de se apressar, mas precisou sentar, ofegante, e os
outros o deixaram para trás, com Bagheera disparando em linha reta,
com seu rápido trote de pantera. Kaa não disse nada, contudo, por mais
que Bagheera se esforçasse, o imenso Píton das Rochas emparelhou
com ele. Quando chegaram a um córrego da colina, Bagheera abriu
vantagem, pois saltou para a outra margem, enquanto Kaa atravessou a
nado, com a cabeça e meio metro do corpo para fora da água, mas, em
terreno plano, Kaa conseguiu recuperar a distância.
— Pelo cadeado quebrado que me libertou — exclamou Bagheera,
quando a noite caiu —, você não é nada lento!
— Estou é faminto — respondeu Kaa. — Além disso, eles me
chamaram de rã pintada.
— Minhoca… e amarela, ainda por cima.
— Dá no mesmo. Precisamos continuar. — E Kaa pareceu se esticar
no chão, procurando o caminho mais curto com os olhos fixos e
atendo-se a ele.
Nas Tocas Frias, o Povo Macaco nem de longe esperava os amigos de
Mowgli. Tinham trazido o menino à Cidade Perdida e estavam bem
satisfeitos até então. Mowgli nunca vira uma cidade indiana, e, embora
aquela fosse praticamente uma pilha de ruínas, pareceu-lhe magnífica
e esplendorosa. Algum rei a construíra numa pequena colina. Ainda
dava para ver os vestígios das ruas de pedra que levavam aos portões
arruinados, onde os últimos resquícios de madeira se prendiam às
velhas e enferrujadas dobradiças. Árvores haviam crescido por entre os
muros, as ameias das torres estavam desmoronadas, decadentes, e
trepadeiras parasitas saíam pelas janelas das torres em tufos espessos
suspensos no ar.
Um grande palácio sem telhado coroava a colina, e o mármore dos
pátios e das fontes estava trincado e manchado de vermelho e verde.
Até as pedras do calçamento do pátio onde os elefantes do rei
costumavam ficar haviam sido levantadas e afastadas pela relva e por
árvores novas. Do palácio, viam-se fileiras e mais fileiras de casas sem
telhado, que faziam a cidade parecer uma colmeia vazia e cheia de
trevas. Na praça, onde quatro ruas convergiam, havia um bloco
disforme de pedra que um dia fora um ídolo; os bebedouros e as fontes
das esquinas jaziam onde outrora ficavam os poços públicos; e figueiras
selvagens brotavam pelas laterais dos domos destruídos dos templos.
Os macacos diziam que ali era a cidade deles e fingiam desprezar o
Povo da Selva por viver na fioresta. No entanto, jamais souberam para
que serviam aqueles edifícios, nem como usá-los. Sentavam em roda no
saguão da câmara do conselho do rei e ficavam se coçando, catando
pulgas e fingindo que eram homens; ou entravam e saíam correndo das
casas destelhadas, arrancando pedaços de gesso e tijolos velhos das
quinas, e depois esqueciam onde os tinham escondido, e brigavam e
gritavam, amontoados, para então fugir e brincar nos terraços do
jardim do rei, onde sacudiam as roseiras e as laranjeiras, à toa, só para
ver caírem frutos e fiores. Exploravam todas as passagens e os túneis
escuros do palácio, mas jamais se lembravam do que viram ou não
viram; e, assim, ficavam à deriva, sozinhos, em duplas ou em grupos,
dizendo uns para os outros que estavam fazendo tudo como faziam os
homens. Bebiam dos tanques e deixavam a água barrenta, em seguida
brigavam por causa disso e, numa multidão compacta, berravam juntos:
“Ninguém na Selva é tão sábio, bom, esperto, forte e gentil como o
Bandar-log”. Então começavam tudo de novo até se cansarem da cidade
e voltarem para as copas das árvores, na esperança de que o Povo da
Selva lhes desse um pouco de atenção.
Mowgli, que havia sido treinado para viver sob a Lei da Selva, não
gostou ou não entendeu esse modo de vida. Os macacos o haviam
arrastado até as Tocas Frias no final da tarde e, em vez de irem dormir,
como Mowgli teria feito após a longa viagem, deram-se as mãos e
dançaram e cantaram suas tolas canções. Um dos macacos fez um
discurso, dizendo aos companheiros que a captura de Mowgli era um
marco na história do Bandar-log, pois o filhote de homem iria lhes
mostrar como amarrar gravetos e caniços para protegê-los da chuva e
do frio. Mowgli recolheu algumas trepadeiras e passou a trançá-las, e
os macacos tentaram imitar, mas em poucos minutos perderam o
interesse e começaram a puxar o rabo um do outro ou a pular em
quatro patas, dando seus guinchos.
— Quero comer — anunciou Mowgli. — Sou estrangeiro nesta parte
da selva. Tragam-me comida ou me deem permissão para caçar aqui.
Vinte ou trinta macacos saíram pulando para lhe trazer nozes e
papaias selvagens. Mas arranjaram briga no caminho e daria muito
trabalho voltar com o que restava das frutas. Além de faminto, Mowgli
ficou chateado e irritado, e perambulou pela cidade vazia emitindo de
quando em quando o Chamado de Caça dos Forasteiros, mas ninguém
respondeu, e Mowgli percebeu que estava de fato numa enrascada.
— Tudo o que Baloo falou sobre o Bandar-log é verdade — disse
consigo mesmo. — Eles não têm lei, nem Chamado de Caça e nem
líder… só palavras inúteis e larápias mãozinhas catadoras. Se eu
morrer de fome ou se me matarem aqui, vai ser tudo por minha culpa.
Mas preciso tentar voltar para a minha selva de origem. Tenho certeza
de que Baloo vai me bater, mas seria melhor do que correr com o
Bandar-log atrás de estúpidas folhas de roseira.
Mowgli mal chegara à muralha da cidade, e os macacos o puxaram
de volta, dizendo que ele não fazia ideia de como era feliz e beliscando-
o para que se sentisse grato. Ele rangeu os dentes e não falou nada, mas
seguiu os macacos barulhentos até um terraço acima das cisternas de
arenito vermelho, que estavam cheias pela metade de água da chuva.
No centro do terraço, havia uma casa de verão em ruínas, construída
com mármore branco para rainhas mortas cem anos antes. Metade da
cúpula do teto caíra e bloqueara a passagem subterrânea do palácio por
onde as rainhas costumavam entrar. Mas as paredes eram formadas por
painéis de mármore entalhado — um belíssimo entalhamento
geométrico branco como leite, cravejado de ágata, cornalina, jaspe e
lápis-lazúli —, e a lua quando surgiu detrás da colina brilhou por entre
os elementos vazados, lançando sobre o chão sombras que pareciam
um bordado de veludo preto. Chateado, sonolento e faminto como
estava, Mowgli não conseguiu conter o riso quando o Bandar-log
começou, vinte de uma vez, a lhe contar como eram grandiosos, sábios,
fortes e gentis, e como ele era bobo de querer ir embora.
— Somos grandiosos. Somos livres. Somos fenomenais. Somos o
povo mais maravilhoso de toda a selva! Todos nós achamos isso, então
deve ser verdade — berraram. — Como você é um bom ouvinte e pode
levar nosso recado ao Povo da Selva, para que no futuro eles prestem
atenção em nós, vamos lhe contar tudo sobre nossas excelentes
qualidades.
Mowgli não fez objeção, e os macacos se reuniram às centenas e mais
centenas no terraço para ouvir seus próprios oradores cantando elogios
ao Bandar-log, e sempre que um deles parava de falar para tomar
fôlego, todos gritavam juntos:
— É verdade; todos nós achamos isso.
Mowgli assentia, piscava e dizia “sim” quando lhe faziam uma
pergunta, e sua cabeça girava em meio à barulheira.
— Tabaqui, o chacal, deve ter mordido todos eles — murmurou
consigo —, e agora pegaram todos a doença da loucura. Isso só pode
ser dewanee, a loucura. Será que nunca dormem? Agora se aproxima
uma sombra que vai cobrir a lua. Se ao menos fosse uma nuvem grande
o bastante, eu poderia tentar fugir no escuro. Mas estou cansado.
A mesma nuvem era observada por dois bons amigos no fosso em
escombros junto aos muros da cidade, pois Bagheera e Kaa, sabendo
muito bem como o Povo Macaco era perigoso quando em grandes
números, não queriam correr nenhum risco. Os macacos nunca lutam,
a não ser que sejam cem contra um, e poucos na selva estão dispostos a
enfrentar tal desvantagem.
— Vou até o muro ocidental — sussurrou Kaa —, com o declive no
terreno a meu favor descerei ligeiro. Eles não pularão nas minhas
costas às centenas, mas…
— Eu sei — concordou Bagheera. — Seria melhor se Baloo estivesse
aqui, mas precisamos fazer o melhor possível. Quando aquela nuvem
cobrir a lua, saltarei para o terraço. Eles reuniram algum tipo de
conselho em volta do menino.
— Boa caçada — desejou Kaa sem convicção, e deslizou até o muro
ocidental.
Era o muro mais bem conservado de todos, e a grande serpente
demorou um pouco até encontrar um caminho de subida pelas pedras.
A nuvem ocultou o luar, e Mowgli, enquanto imaginava o que
aconteceria a seguir, ouviu os passos discretos de Bagheera no terraço.
A pantera-negra havia escalado o muro quase sem fazer ruído e estava
distribuindo golpes — pois sabia que nem adiantava perder tempo
mordendo — a torto e a direito nos macacos sentados ao redor de
Mowgli, em círculos de cinquenta a sessenta deles. Ouviu-se um uivo
de pavor e raiva, à medida que Bagheera tropeçava nos corpos que
rolavam e chutavam sob suas patas, até que um deles gritou:
— Ele veio sozinho! Vamos matá-lo! Matem.
Uma multidão cerrada de macacos, mordendo, arranhando, rasgando
e puxando, fechou-se sobre Bagheera, enquanto cinco ou seis deles
agarraram Mowgli, o arrastaram até o alto da casa de verão e o
empurraram pelo buraco da cúpula quebrada. Um menino educado por
homens teria se machucado seriamente, pois a queda era de quase
cinco metros, mas Mowgli caiu como Baloo lhe havia ensinado,
aterrissando de pé.
— Fique aí até matarmos seus amigos — berraram os macacos. —
Depois voltamos para brincar com você… se o Povo Venenoso o deixar
viver.
— Somos do mesmo sangue, você e eu — disse Mowgli, emitindo
depressa o Chamado da Serpente. Ele podia ouvir um rastejar e um
sibilar nos escombros que o cercavam e emitiu o chamado mais uma
vez, por garantia.
— Sssssim! Todas vocês, cessar ataque! — responderam meia dúzia
de vozes baixas (qualquer ruína na Índia, cedo ou tarde, acaba virando
morada de serpentes, e a antiga casa de verão estava cheia de cobras).
— Parado aí, irmãozinho, pois seus pés podem nos machucar.
Mowgli ficou o mais imóvel que conseguiu, espiando pelos entalhes
de mármore e ouvindo o alvoroço furioso da luta em torno da pantera-
negra — os berros, as frases soltas, os sons de golpes abafados e o
rugido grave e rouco de Bagheera à medida que recuava, distribuindo
coices, driblando e saltando sob a turba inimiga. Pela primeira vez
desde que nascera, Bagheera lutava por sua vida.
— Baloo deve estar chegando; Bagheera não teria vindo sozinho —
pensou Mowgli. E então gritou: — Para o tanque, Bagheera. Tente
chegar ao tanque de água. Vá para lá e mergulhe! Entre na água!
Bagheera ouviu, e aquelas palavras, uma prova de que Mowgli estava
a salvo, encheram-no de coragem. Num esforço desesperado, avançou
centímetro por centímetro até as cisternas, penando em silêncio. Então,
por sobre o muro em ruínas mais próximo da selva, ergueu-se o
estrondoso grito de guerra de Baloo. O velho urso fizera o seu melhor,
mas não conseguira chegar antes.
— Bagheera — berrou ele —, cheguei. Escalando! O mais rápido que
posso! Grrrr! Meus pés estão escorregando nestas pedras! Espere por
mim, ó infame supremo Bandar-log!
Chegou ofegante ao terraço e desapareceu até a cabeça sob uma
onda de macacos, mas subiu nas patas traseiras e, esticando os braços,
envolveu o máximo deles que conseguiu e começou a golpeá-los num
ritmo regular — bate-bate-bate —, como os movimentos giratórios de
uma roda hidráulica. Pelo barulho de algo se chocando na água,
Mowgli soube que Bagheera abrira caminho até o tanque, no qual os
macacos não poderiam entrar. A pantera ficou tentando respirar, a
cabeça para fora da água, enquanto três fileiras de macacos pararam
nos degraus vermelhos, pulando furiosos, prontos para atacar o inimigo
caso ele tentasse sair para ajudar Baloo. Foi então que Bagheera
levantou o queixo, pingando, e, desesperado, emitiu o Chamado da
Serpente para proteção — “Somos do mesmo sangue, você e eu” —,
pois achou que Kaa levara seu rabo para longe no último instante. Nem
Baloo, meio sufocado pelos adversários na borda do terraço, foi capaz
de conter a gargalhada quando ouviu a pantera-negra pedindo ajuda.
Kaa tinha acabado de escalar o muro ocidental, aterrissando com um
movimento brusco que derrubou uma pedra para dentro do fosso. Ele
não tinha a menor intenção de ceder terreno, e se enrolou e se
desenrolou uma ou duas vezes para ter certeza de que cada centímetro
de seu corpo comprido estava funcionando direito. Enquanto isso, a
luta com Baloo foi retomada, e os macacos berravam no tanque, ao
redor de Bagheera. Mang, o morcego, que sobrevoava o local, espalhou
a notícia da grande batalha pela selva, até o próprio Hathi, o elefante
selvagem, trombetear a novidade. E bem longe dali, bandos dispersos
do Povo Macaco acordaram e vieram pelas estradas das árvores ajudar
os camaradas nas Tocas Frias, e o barulho da luta despertou todos os
pássaros diurnos num raio de quilômetros. Sem titubear, Kaa atacou
depressa, ansioso para matar. O trunfo guerreiro de um píton está no
poderoso golpe que dá com a cabeça, no qual joga toda a força e o peso
de seu corpo. Se você imaginar uma lança, ou um aríete, ou um martelo
de quase meia tonelada, controlado por uma mente serena e silenciosa
que vive no cabo desse martelo, poderá visualizar, mais ou menos,
como era Kaa quando lutava. Um píton de um metro, um metro e meio,
consegue derrubar um homem se o atingir em cheio no peito, e Kaa,
como você sabe, tinha quase dez metros de comprimento. O primeiro
bote foi contra o coração da multidão que cercava Baloo, no mais
completo silêncio, e não foi preciso um segundo. Os macacos
dispersaram-se, gritando:
— Kaa! É Kaa! Fujam! Fujam!
Gerações inteiras de macacos haviam aprendido a se comportar
graças ao medo das histórias que os mais velhos contavam de Kaa, o
ladrão noturno, que era capaz de deslizar por entre os ramos, tão
silencioso quanto o musgo crescendo, e raptar o macaco mais forte de
todos os tempos. O velho Kaa, que se disfarçava tão bem de galho
morto, ou cepo apodrecido, que mesmo os mais prudentes acabavam
enganados e pegos pelo galho. Kaa era tudo que os macacos mais
temiam na selva, pois nenhum deles conhecia o limite de seu poder,
nenhum deles conseguia encará-lo de frente e nenhum jamais saiu vivo
de seu abraço mortal. Por isso, fugiram todos, trêmulos de pavor, para o
alto dos muros e dos telhados das casas, e Baloo inspirou fundo,
aliviado. Seu pelo era bem mais grosso que o de Bagheera, mas ele
havia sofrido muito na luta. Então Kaa abriu a boca pela primeira vez e
proferiu uma palavra longa e sibilante, e os macacos que tinham vindo
de longe, apressando-se a defender as Tocas Frias, pararam onde
estavam, acovardados, até os galhos ficarem tão carregados que
penderam e racharam sob suas patas. Os macacos nos muros e nas
casas vazias pararam de gritar, e, no silêncio que se fez na cidade,
Mowgli ouviu Bagheera sacudindo o corpo molhado ao sair do tanque.
O clamor voltou a se ouvir. Os macacos subiram mais alto nos muros.
Agarravam-se aos pescoços dos grandes ídolos de pedra e guinchavam
ao saltar pelas muralhas, enquanto Mowgli, dançando na casa de verão,
aproximou-se dos painéis entalhados e emitiu um pio de mocho por
entre os dentes da frente, para mostrar seu desprezo e desdém.
— Tire o filhote de homem daquela armadilha; não aguento fazer
mais nada — arfou Bagheera. — Vamos pegar o filhote de homem e ir
embora. Eles podem atacar de novo.
— Eles não vão mover um dedo até que eu ordene. Parado aí
vocccccê também! — sibilou Kaa, e a cidade voltou a ficar em silêncio.
— Não consegui chegar antes, irmão, mas creio tê-lo ouvido proferir o
chamado — disse a Bagheera.
— Eu… talvez tenha chamado durante a batalha — respondeu
Bagheera. — Baloo, está ferido?
— Acho que me despedaçaram em cem pequenos ursinhos —
admitiu Baloo, esticando solenemente uma perna após a outra. — Ai!
Estou todo dolorido. Kaa, acho que lhe devemos nossas vidas, Bagheera
e eu.
— Não foi nada. Onde está o homenzinho?
— Aqui, numa armadilha. Não consigo sair — exclamou Mowgli. A
curva da cúpula quebrada começava acima da cabeça.
— Levem-no daqui. Ele dança como Mor, o pavão. Vai acabar
pisando nos nossos filhotes — disseram as cobras do lado de dentro.
— Ha! Ha! Ha! — riu-se Kaa. — Ele tem amigos em toda parte, esse
homenzinho. Para trás, filhote de homem. Esconda-se, ó Povo
Venenoso. Vou quebrar a parede.
Kaa inspecionou a casa de verão cuidadosamente até encontrar uma
rachadura descolorida no entalhe do mármore, revelando um ponto
fraco. Fez dois ou três ensaios, tocando de leve com a cabeça, para
medir a distância, e então, erguendo quase dois metros do corpo,
investiu toda a sua força demolidora meia dúzia de vezes, com a ponta
do nariz. O painel esculpido se partiu e caiu, levantando uma nuvem de
poeira e escombros, e Mowgli saiu pela abertura e correu para Baloo e
Bagheera, um braço ao redor de cada um daqueles grandes pescoços.
— Está ferido? — perguntou Baloo, abraçando-o com carinho.
— Estou dolorido, faminto e bastante arranhado. Vocês, no entanto,
eles trataram muito mal, meus irmãos! Está sangrando.
— Não é só ele — comentou Bagheera, lambendo os beiços e
olhando para os macacos mortos no terraço e ao redor do tanque.
— Não foi nada! Para salvar você, minha rãzinha, meu orgulho, não
foi nada! — choramingou Baloo.
— Sobre isso, podemos decidir depois — acrescentou Bagheera
numa voz seca de que Mowgli não gostou nem um pouco. — Mas aqui
está Kaa a quem devemos a vitória e a quem você deve sua vida.
Agradeça a ele conforme os nossos costumes, Mowgli.
Mowgli se virou e viu a cabeça do grande píton erguida trinta
centímetros acima da sua.
— Então este é o homenzinho — comentou Kaa. — Sua pele é muito
suave, e não parece muito diferente do Bandar-log. Tomara,
homenzinho, que eu não o confunda com um macaco uma tarde dessas,
quando trocar novamente de pele.
— Somos do mesmo sangue, você e eu — respondeu Mowgli. —
Devo-lhe minha vida esta noite. Minha caça será sua caça quando
estiver com fome, ó Kaa.
— Muito obrigado, irmãozinho — devolveu Kaa, embora seus olhos
tivessem um brilho estranho. — E o que um caçador tão ousado
consegue matar? Pergunto para poder acompanhá-lo da próxima vez.
— Não sei matar, sou muito pequeno, mas conduzo as cabras para
quem sabe. Quando estiver com fome, venha ver se não falo a verdade.
Tenho alguma habilidade com essas duas aqui — ele ergueu as mãos
—, e se um dia cair numa armadilha, posso pagar a dívida que tenho
com você, Bagheera e Baloo aqui. Boa caçada a todos, senhores, meus
mestres.
— Muito bem! — rugiu Baloo, pois Mowgli dissera bonitas palavras
de agradecimento.
O píton apoiou a cabeça suavemente por um minuto no ombro de
Mowgli.
— Um coração valente e uma língua cortês — disse. — As duas
coisas o levarão longe na selva, homenzinho. Mas, agora, vá depressa
com seus amigos. Vá dormir, pois a lua se esconde, e o que vem a seguir
não é coisa para você assistir.
A lua mergulhava atrás das colinas, e as fileiras de trêmulos macacos
amontoados nas muralhas pareciam franjas de trapos ao vento. Baloo
desceu até o tanque para beber água e Bagheera começou a ajeitar seu
pelo, enquanto Kaa deslizou para o centro do terraço e fechou a boca
numa mordida sonora que atraiu os olhares de todos os macacos.
— A lua se escondeu — anunciou. — Ainda conseguem enxergar
alguma coisa?
Dos muros, veio um gemido, como o vento faz nas copas das árvores:
— Estamos enxergando, ó Kaa.
— Ótimo. Começa agora a dança, a Dança da Fome de Kaa. Fiquem aí
e observem.
Ele se enrolou duas ou três vezes, formando um grande círculo e
balançando a cabeça da direita para a esquerda. Então começou a dar
voltas e a formar figuras de oitos com o corpo e de triângulos suaves e
sinuosos que se convertiam em quadrados, pentágonos e espirais, sem
descanso, sem pressa e o tempo todo sibilando sua canção sussurrada.
A noite foi ficando cada vez mais escura, até que por fim as espirais
arrastadas e em constante mutação sumiram de vista, e só se escutava o
rastejar das escamas.
Baloo e Bagheera ficaram petrificados, rosnando por dentro, os pelos
da nuca eriçados, e Mowgli assistiu a tudo maravilhado.
— Bandar-log — disse, por fim, a voz de Kaa —, conseguem mover o
pé ou a mão sem a minha ordem? Digam!
— Sem sua ordem não conseguimos mexer nem o pé nem a mão, ó
Kaa!
— Ótimo! Deem todos um passo na minha direção.
As fileiras de macacos avançaram involuntariamente, e Baloo e
Bagheera também deram um passo tenso para a frente.
— Maissss perto! — sibilou Kaa, e todos se aproximaram uma outra
vez.
Mowgli pousou as mãos em Baloo e Bagheera, para afastá-los dali, e
os dois grandes bichos acordaram, como se despertassem de um sonho.
— Fique com a mão no meu ombro — sussurrou Bagheera. — Não
tire a mão daí, ou acabarei voltando… voltando para Kaa. Aah!
— É só o velho Kaa fazendo círculos na poeira — retrucou Mowgli.
— Vamos. — E os três escaparam por uma abertura nos muros e
voltaram para a selva.
— Puxa! — exclamou Baloo, outra vez debaixo das árvores imóveis.
— Nunca mais quero contar com Kaa como aliado. — E se arrepiou
todo.
— Ele sabe mais do que nós — comentou Bagheera, tremendo. —
Mais um pouco, eu teria ficado, teria caminhado para dentro da boca
dele.
— Muitos vão seguir por esse caminho até que a lua volte a brilhar
— retrucou Baloo. — Ele vai fazer uma boa caçada, à sua própria
maneira.
— Mas o que foi tudo isso? — perguntou Mowgli, que não sabia nada
dos poderes hipnóticos do píton. — Tudo o que vi foi uma grande
serpente fazendo círculos bobos até escurecer. E o nariz dele estava
todo esfolado. Ha! Ha! Ha!
— Mowgli — repreendeu Bagheera, irritado —, o nariz dele estava
esfolado por sua causa, assim como as minhas orelhas, fiancos e patas,
e o pescoço e os ombros de Baloo estão mordidos, também por sua
causa. Nem Baloo nem Bagheera vão conseguir caçar à vontade por
muitos dias.
— Não foi nada — minimizou Baloo. — Nosso filhote de homem
voltou.
— É verdade, mas ele nos custou muito em tempo que poderíamos
ter usado numa boa caçada, em feridas, em pelo (estou todo arranhado
nas costas) e, acima de tudo, em honra. Pois, lembre-se, Mowgli, eu, que
sou uma pantera-negra, fui obrigado a chamar Kaa para nos proteger, e
Baloo e eu fomos feitos de bobos como passarinhos estúpidos com
aquela Dança da Fome. Tudo isso, filhote de homem, porque você foi
brincar com o Bandar-log.
— Está certo, está certo — arrependeu-se Mowgli. — Sou um filhote
de homem maldoso, e a tristeza faz meu estômago doer.
— Humpf! O que diz a Lei da Selva, Baloo?
Baloo não queria arranjar mais problemas para Mowgli, mas também
não podia passar por cima da lei, de modo que resmungou:
— A tristeza não substitui o castigo. Mas lembre-se, Bagheera, ele é
muito pequeno.
— Eu me lembrarei. Mas ele se comportou mal, e a pena deve ser
aplicada agora mesmo. Mowgli, tem algo a dizer?
— Nada. Eu errei. Baloo e Bagheera foram feridos. É justo.
Bagheera lhe deu meia dúzia de tapinhas amorosos para uma
pantera (algo que mal teria acordado seus próprios filhotes), mas, para
um menino de sete anos, foi o mesmo que uma surra tão séria que
qualquer um preferiria evitá-la. Quando acabou, Mowgli fungou e se
pôs de pé, em silêncio.
— Agora — disse Bagheera —, pule nas minhas costas, irmãozinho, e
vamos voltar para casa.
Uma das coisas mais bonitas da Lei da Selva é que o castigo salda
todas as dívidas. Ninguém fica remoendo nada depois.
Mowgli deitou a cabeça nas costas de Bagheera e dormiu tão
profundamente que nem acordou quando foi devolvido à caverna em
que morava.
Canção de estrada do Bandar-log

Aí vamos nós, no balanço do cipó,


A meio caminho da lua ciumenta!
Quem não inveja nosso bando travesso?
Quem não gostaria de ter várias mãos?
Quem não queria um rabo assim
Curvo como o arco do Cupido?
Você se irritou, mas… não faz mal,
Irmão, seu rabo vem logo atrás!

Aqui estamos nós, em fila sobre o galho,


Pensando nas maravilhas que sabemos,
Sonhando com tudo que faremos,
De cabo a rabo, em dois minutos…
Coisas nobres, sábias, boas,
Realizadas pelo simples desejo,
Agora esquecemos… não faz mal,
Irmão, seu rabo vem logo atrás!

Todas as línguas que jamais ouvimos


De morcego, cervo ou ave…
Couro, pelos, escamas ou penas…
Misturamos depressa!
Maravilha! Que beleza! Outra vez!
Agora falamos como o homem!
Vamos fingir que é isso que somos… não faz mal,
Irmão, seu rabo vem logo atrás!
Nós os macacos somos assim.

Então venha se juntar à nossa tropa saltitante nos pinheirais,


Que dispara leve e alta, onde a videira selvagem balança,
Pela sujeira do rastro e a barulheira principesca,
Com certeza, com certeza, faremos coisas magníficas!
“Tigre! Tigre!”

Como foi a caçada, ousado caçador?


Irmão, a tocaia foi longa e fria.
E aquela presa que foi matar?
Irmão, ainda está na mata, viva.
E aquela força que era seu orgulho?
Irmão, esvai-se pelos meus fiancos.
E aquela pressa em que sempre ia?
Irmão, volto para minha toca, para morrer.

Agora devemos voltar à primeira história. Quando Mowgli deixou a


caverna dos lobos depois da luta com a alcateia na Pedra do Conselho,
ele desceu até as plantações onde viviam os homens, mas não se deteve
ali, porque eram muito próximas da selva, e ele sabia que fizera pelo
menos um grande inimigo no conselho. Assim, seguiu em frente
acelerando, pela difícil trilha que percorria o vale, e por ela continuou
num trote constante por mais de trinta quilômetros, até chegar a um
território que não conhecia. O vale se abria numa grande planície
salpicada de rochas e atravessada por ravinas. De um lado, havia uma
pequena aldeia, e, do outro, a selva espessa descia até o pasto, onde
terminava subitamente como se tivesse sido cortada com uma enxada.
Por toda a planície, o gado e os búfalos pastavam, e quando os meninos
encarregados do rebanho viram Mowgli, gritaram e fugiram correndo,
e os vira-latas amarelados, presentes em toda aldeia indiana, latiram.
Mowgli continuou andando, pois estava com fome, e quando chegou ao
portão da aldeia notou que os ramos do grande espinheiro, erguidos ao
entardecer, haviam sido baixados.
— Humpf! — bufou, pois já havia visto aquele tipo de barricada mais
de uma vez em seus passeios noturnos, em busca do que comer. —
Então os homens daqui também têm medo do Povo da Selva.
Sentou-se junto ao portão e, quando um homem saiu, levantou-se,
abriu a boca e apontou para dentro, mostrando que queria comer. O
aldeão o encarou e subiu correndo a única rua da vila, chamando o
sacerdote, que era um sujeito grande, gordo, vestido de branco e com
uma marca vermelha e amarela na testa. O sacerdote veio até o portão,
trazendo atrás de si pelo menos cem pessoas, que ficaram olhando,
falando, gritando e apontando para Mowgli.
— Eles não têm educação, essa Gente Homem — disse Mowgli
consigo mesmo. — Só o mono cinzento se comporta desse jeito. —
Então jogou o longo cabelo preto para trás e fez cara feia para a
multidão.
— Afinal o que temos aqui para causar tanto receio? — perguntou o
sacerdote. — Vejam as marcas nos braços e nas pernas dele. São
mordidas de lobos. Ele é só um menino-lobo que fugiu da selva.
Claro, brincando juntos, os filhotes haviam mordiscado Mowgli com
mais força do que pretendiam, e seus braços e pernas estavam cobertos
de cicatrizes brancas. Mas ele seria a última pessoa do mundo a
considerar aquilo mordidas, pois sabia bem o que era uma mordida de
verdade.
— Arré! Arré! — exclamaram duas ou três mulheres juntas. —
Pobrezinho, mordido por lobos! É um menino bonito. Tem olhos cor de
fogo. Por minha honra, Messua, parece o seu filho, que o tigre levou.
— Deixe-me ver — respondeu uma mulher com grossas argolas de
cobre nos pulsos e tornozelos. Ela examinou Mowgli, pondo a mão em
sua cabeça. — Parece, sim. É mais magro, mas tem o mesmo olhar do
meu menino.
O sacerdote era esperto e sabia que Messua era esposa do homem
mais rico da aldeia. Então olhou para o céu por um minuto e anunciou
solenemente:
— A selva devolveu o que tomou. Leve o menino para a sua casa,
irmã, e não se esqueça de honrar o sacerdote que enxerga
profundamente a vida dos homens.
— Pelo touro que me comprou — disse Mowgli consigo mesmo —,
essa conversa parece outra inspeção da alcateia! Bem, já que sou
mesmo homem, então homem devo me tornar.
A multidão abriu passagem para a mulher, que guiou Mowgli até sua
cabana, onde havia uma cama de laca vermelha, um grande cesto de
grãos com desenhos engraçados, meia dúzia de panelas de cobre, uma
imagem de um deus hindu numa pequena alcova e, na parede, um
espelho de verdade, como os vendidos nas feiras do interior.
Ela deu ao menino um copo cheio de leite e um pouco de pão, em
seguida pousou a mão na cabeça dele e encarou-o nos olhos, pois
pensou que talvez fosse mesmo seu filho que voltara da selva, para
onde o tigre o levara. Então exclamou:
— Nathoo, ó Nathoo!
Mowgli não demonstrou reconhecer o nome.
— Não se lembra do dia em que lhe dei sapatos novos? — Ela tocou a
sola do pé dele, e era dura como chifre. — Não — concluiu, entristecida
—, esses pés nunca calçaram sapatos, mas você se parece muito com
meu Nathoo e vai ser meu filho.
Mowgli estava inquieto, pois nunca estivera sob um teto antes. Mas,
ao reparar na cabana, viu que era capaz de rasgá-la caso resolvesse
fugir, e que a janela não tinha trinco.
— De que vale um homem — disse consigo, por fim —, se não
entende a fala dos homens? Agora sou tão tolo e bobo quanto um
homem na selva. Preciso falar a língua deles.
Não havia sido à toa que aprendera com os lobos a imitar o ataque
dos cervos na selva e o grunhido do filhote selvagem de javali. Assim,
toda palavra que Messua pronunciava, Mowgli imitava quase
perfeitamente, e, antes de anoitecer, já aprendera os nomes de muitas
coisas na cabana.
Surgiu uma dificuldade na hora de ir para a cama, pois Mowgli
nunca dormira embaixo de nada que parecesse tanto uma armadilha de
pantera como aquela cabana, e, quando fecharam a porta, ele fugiu pela
janela.
— Deixe-o fazer como quiser — disse o marido de Messua. —
Lembre-se de que, até hoje, ele nunca dormiu numa cama. Se foi
mesmo enviado para o lugar do nosso filho, não vai fugir.
Então Mowgli se deitou sobre a grama alta e limpa na beira do
campo, mas, antes de fechar os olhos, um focinho macio e cinzento se
enfiou debaixo de seu queixo.
— Urgh! — exclamou o Irmão Cinzento (era o filhote mais velho de
Mãe Loba). — É assim que me recompensa depois de segui-lo por mais
de trinta quilômetros? Está cheirando a fumaça e gado… até parece
que já virou homem. Acorde, irmãozinho; trago novidades.
— Estão todos bem lá na selva? — perguntou Mowgli, abraçando-o.
— Todos bem, menos os lobos que se queimaram com a Flor
Vermelha. Agora, escute. Shere Khan foi embora, foi caçar bem longe,
até o pelo crescer de novo, pois ficou bem chamuscado. Quando voltar,
jurou que vai jogar seus ossos no Waingunga.

— Pois somos dois. Também fiz uma promessinha. Mas é sempre


bom saber dos últimos acontecimentos. Agora estou cansado, muito
cansado de tanta novidade, Irmão Cinzento. Mas sempre me traga
notícias.
— Você não vai se esquecer de que é lobo, vai? Os homens não o
farão esquecer? — perguntou o Irmão Cinzento, afiito.
— Jamais. Sempre vou me lembrar de que amo você e todos da nossa
caverna. Mas também vou ter sempre em mente que fui banido da
alcateia.
— E que pode ser banido de outro bando agora. Os homens são
apenas homens, irmãozinho, e o que eles falam é como a fala da rã no
lago. Sempre que vier aqui embaixo, vou esperá-lo nos bambus à beira
do pasto.
Durante os três meses seguintes, Mowgli quase não passou pelo
portão da aldeia, de tão ocupado que esteve aprendendo as maneiras e
os costumes dos homens. Primeiro, precisou usar um pano sobre o
corpo, o que o incomodou terrivelmente; depois teve de aprender o que
era dinheiro, coisa sobre a qual nada entendeu, e sobre lavrar a terra,
algo que não lhe pareceu ter qualquer utilidade. Então as criancinhas
da aldeia o deixaram muito irritado. Por sorte, a Lei da Selva lhe
ensinara a manter a calma, pois, na fioresta, a vida e a comida
dependem disso; mas quando começaram a caçoar dele porque não
conhecia jogo nenhum, nem empinar pipa, ou porque pronunciava
errado uma palavra, só mesmo o fato de ter aprendido que não era
certo matar filhotes sem pelos o impediu de pegá-los e quebrá-los em
dois. Ele não fazia ideia da força que tinha. Na selva, sabia que era fraco
em comparação aos outros bichos, mas na aldeia as pessoas diziam que
era forte como um touro.
E não tinha a menor noção da diferença que as castas impunham
entre um homem e outro. Quando o jumento do oleiro escorregou no
barreiro, Mowgli puxou-o pelo rabo, e ajudou a empilhar os potes de
barro que seriam vendidos no mercado em Khanhiwara. Isso foi muito
chocante, porque o oleiro é de uma casta inferior, e seu jumento é pior
ainda. Quando o sacerdote ralhou com ele, Mowgli ameaçou amarrá-lo
no jumento com os potes, e o brâmane disse ao marido de Messua que
era melhor o menino começar a trabalhar o quanto antes. No dia
seguinte, o chefe da aldeia avisou a Mowgli que ele teria de cuidar dos
búfalos enquanto pastavam. Ninguém ficou mais contente com isso do
que o próprio Mowgli. Naquela noite, com sua nomeação para
empregado da aldeia, foi convidado a tomar parte de uma reunião que
acontecia todo fim de tarde numa plataforma de alvenaria embaixo de
uma grandiosa figueira. Era o clube da vila, onde o chefe, o vigia, o
barbeiro, que sabia de todas as fofocas, e o velho Buldeo, o caçador, que
tinha um mosquete da Torre, se encontravam e fumavam. Os macacos
se acomodavam nos galhos mais altos para tagarelar, e, num buraco sob
a plataforma, vivia uma cobra sagrada que toda noite recebia um prato
de leite. Os velhos sentavam ao redor da árvore e conversavam,
tragando seus grandes huqas [narguilés] até bem tarde da noite.
Contavam histórias maravilhosas dos deuses, dos homens e dos
fantasmas; e Buldeo narrava outras ainda mais maravilhosas sobre os
bichos da selva, que faziam as crianças, ouvindo de fora do círculo,
arregalarem os olhos de medo. A maioria dessas histórias era sobre
animais, pois a selva sempre fora vizinha da aldeia. O cervo e o javali
vinham fuçar as plantações, e de quando em quando o tigre raptava um
homem ao anoitecer, a uma distância visível dos portões da aldeia.
Mowgli, que naturalmente sabia do que estavam falando, precisava
cobrir o rosto para ninguém ver que estava rindo. Enquanto Buldeo,
com o mosquete apoiado nos joelhos, pulava de uma história mais
fantástica para outra, o menino ria de tremer os ombros.
Buldeo estava explicando que o tigre que havia levado o filho de
Messua era um tigre fantasma, cujo corpo estava possuído pelo espírito
de um velho e cruel agiota, que morrera alguns anos antes.
— E sei que isso é verdade — garantiu ele —, porque Purun Dass
sempre foi manco desde que foi atingido numa rebelião em que seus
livros contábeis foram todos queimados, e esse tigre de que estou
falando também manca, pois o rastro de suas pegadas é desigual.
— É verdade, é tudo verdade — concordaram os senhores de barba
grisalha, assentindo com a cabeça.
— As conversas de vocês são sempre essas teias de aranha do mundo
da lua? — desafiou Mowgli. — Todo mundo sabe que o tigre manca
porque nasceu manco. Essa história de alma de agiota num bicho que
nunca teve nem a coragem de um chacal é conversa de criança.
A surpresa fez Buldeo perder as palavras por um momento, e o chefe
da aldeia ficou pasmo.
— Ah! É o moleque selvagem, não é? — reagiu Buldeo. — Já que é
tão sabido, acho bom trazer a pele desse tigre para Khanhiwara, pois o
governo está oferecendo cem rupias pela vida dele. Melhor ainda, não
interrompa quando os mais velhos estiverem falando.
Mowgli se levantou para ir embora.
— Fiquei a noite inteira aqui sentado, ouvindo — disse, por cima do
ombro —, e, exceto uma ou duas vezes, Buldeo não falou uma palavra
de verdade sobre a selva, que está bem aqui ao lado. Como posso
acreditar nessas histórias de fantasmas, deuses e duendes que ele diz
ter visto?
— Está mais do que na hora de esse menino sair com o rebanho —
anunciou o chefe, enquanto Buldeo bufava e baforava com a
impertinência de Mowgli.
Na maioria das aldeias indianas, é comum alguns poucos meninos
levarem o gado e os búfalos para pastar de manhã cedo e os trazerem
de volta à noite. O mesmo animal que pisotearia um homem branco até
a morte permitia que crianças que mal lhes chegavam no focinho lhes
batessem, ameaçassem e berrassem. Contanto que os meninos fiquem
junto do rebanho, estão a salvo, pois nem mesmo o tigre ousaria atacar
uma manada. Mas quando se desgarram para colher fiores ou caçar
lagartos, alguns são levados embora. Mowgli percorreu a rua da aldeia
ainda de madrugada, sentado no dorso de Rama, o grande macho do
rebanho, e os búfalos azul-cinzentos, com seus chifres longos e
recurvos e olhos selvagens, saíram dos estábulos, um por um, e foram
atrás dele, e Mowgli deixou bem claro para as crianças que o
acompanhavam quem estava no comando. Ele bateu nos búfalos com
um bambu longo e desbastado, ordenando a Kamya, um dos pastores,
que ele e os meninos tomassem conta do gado sozinhos, enquanto iria
adiante com os búfalos, e que tivessem muito cuidado para não se
afastar do rebanho.
Os pastos na Índia são cheios de pedras, arbustos, touceiras de capim
e pequenas ravinas por onde o rebanho se espalha e some. Os búfalos
em geral ficam junto de lagos ou lamaçais, onde chafurdam ou se
deliciam na lama quente por horas a fio. Mowgli levou-os até a borda
da planície onde o Waingunga sai da selva; em seguida, desceu do
lombo de Rama, correu até um bambuzal e encontrou o Irmão
Cinzento.
— Ah — saudou o Irmão Cinzento. — Há muitos dias que espero
aqui. Que história é essa de pastorear o gado?
— Foi uma ordem que me deram — respondeu Mowgli. — Sou o
pastor da aldeia por um tempo. Notícias de Shere Khan?
— Voltou para esta região e faz tempo que está esperando por você.
Agora partiu de novo, pois a caça anda escassa. Mas continua disposto a
matá-lo.
— Muito bem — disparou Mowgli. — Enquanto ele estiver fora, você
ou um dos outros quatro irmãos devem ficar naquela pedra, para que
eu possa vê-los quando sair da aldeia. Quando o tigre voltar, espere por
mim na ravina junto à árvore dhâk, no meio da planície. Não
precisamos caminhar direto para a boca de Shere Khan.
Então Mowgli escolheu uma sombra, se deitou e dormiu enquanto os
búfalos pastavam à sua volta. O pastoreio na Índia é uma das atividades
mais fáceis do mundo. O gado vai andando e mascando, depois se deita,
se levanta de novo e nem sequer chega a mugir. Ele grunhe
simplesmente, e os búfalos quase não falam, só entram nas poças de
lama um depois do outro, vão afundando até ficarem apenas os
focinhos e os olhos azuis de porcelana para fora, então permanecem ali
feito toras de madeira. O sol faz as pedras dançarem no calor, e os
meninos do pastoreio ouvem um milhafre (nunca mais do que um)
crocitar quase fora do alcance da vista lá no alto, e sabem que se eles ou
uma vaca morrerem, aquele milhafre descerá, e outro milhafre a
quilômetros de distância irá vê-lo mergulhar e virá atrás, e então mais
um, e mais um, até que pouco antes de morrerem haverá todo um
bando de milhafres famintos como que surgidos do nada. E assim eles
pegam no sono, acordam e voltam a dormir, e trançam cestinhos de
capim seco e guardam gafanhotos neles; ou pegam dois louva-a-deus e
os colocam para lutar; ou fazem um colar de nozes da selva vermelhas e
pretas; ou ficam vendo um lagarto tomar sol na pedra, ou a serpente
caçar uma rã perto do lamaçal. Então entoam canções muito
compridas, longuíssimas, com estranhos tremores nativos na voz ao
final, e o dia parece mais longo que a vida da maioria das pessoas.
Talvez construam castelos de barro com homens, cavalos e búfalos
também de barro, e espetem caniços no lugar das mãos dos homens,
fingindo que são reis e os outros são seus soldados, ou que são deuses a
ser adorados. Por fim anoitece, as crianças chamam e os búfalos se
arrastam para fora da lama grudenta, um depois do outro, fazendo
barulhos que parecem tiros de espingarda, e voltam todos em fila pela
planície cinzenta, guiados pelas luzes oscilantes da aldeia.
Dia após dia, Mowgli levou os búfalos ao lamaçal, dia após dia viu o
Irmão Cinzento a mais de dois quilômetros de distância na planície
(portanto sabia que Shere Khan não retornara) e, dia após dia, deitou-
se na grama, atento aos sons ao redor e sonhando com os velhos
tempos na selva. Um passo em falso que Shere Khan desse com sua
pata manca na região do Waingunga, Mowgli teria ouvido naquelas
manhãs tão longas e silenciosas.
Finalmente chegou o dia em que ele não viu o Irmão Cinzento no
lugar combinado. Mowgli riu e levou os búfalos para a ravina junto à
árvore dhâk, toda coberta de fiores vermelhas e douradas. Ali
encontrou o Irmão Cinzento sentado, com todos os pelos das costas
eriçados.
— Ele se escondeu um mês inteiro para pegar você com a guarda
baixa. Ontem à noite, atravessou a serra com Tabaqui, seguindo seu
rastro ainda quente — informou o lobo, ofegante.
Mowgli franziu o cenho.
— Não tenho medo de Shere Khan, mas Tabaqui é muito astuto.
— Não tema — disse o Irmão Cinzento, lambendo os lábios um
pouco. — Encontrei Tabaqui no alvorecer. Agora está contando toda a
sua sabedoria aos milhafres, mas revelou tudo a mim, antes que eu lhe
quebrasse o pescoço. O plano de Shere Khan é esperar por você esta
noite, no portão da aldeia… Por você e mais ninguém. Agora ele foi
dormir na grande ravina seca do Waingunga.
— Ele já comeu hoje ou vai caçar de barriga vazia? — perguntou
Mowgli, pois a resposta significaria vida ou morte para ele.
— Já caçou de madrugada… um javali. E já bebeu também. Lembre-
se, Shere Khan é incapaz de jejuar, mesmo querendo vingança.
— Ah! Como é tolo, tolo! Que filhote de filhote ele é! E depois de
comer e beber, ainda acha que vou esperar ele dormir! Agora, onde está
deitado? Se fôssemos pelo menos dez, conseguiríamos pegá-lo
enquanto dorme. Esses búfalos só atacam se obrigados, e não sei a
língua deles. Será que conseguimos encontrar o rastro dele para que os
búfalos sintam o cheiro?
— Ele desceu nadando pelo Waingunga, para não deixar rastro —
respondeu o Irmão Cinzento.
— Só pode ter sido ideia de Tabaqui. Shere Khan nunca teria
pensado nisso sozinho. — Mowgli ficou parado com o dedo na boca,
refietindo. — A grande ravina do Waingunga. Ela se abre na planície, a
um quilômetro daqui. Posso contorná-la com a manada pela selva até a
parte mais alta e descer atacando, mas ele fugiria pelo sopé. Precisamos
bloquear essa saída. Irmão Cinzento, pode dividir o rebanho em dois
para mim?
— Sozinho, talvez não consiga, mas trouxe uma grande ajuda.
O Irmão Cinzento correu até um buraco. Então dali surgiu uma
grande cabeça cinzenta que Mowgli conhecia muito bem, e o ar quente
foi preenchido pelo grito mais desolado de toda a selva, o uivo de caça
de um lobo ao meio-dia.
— Akela! Akela! — exclamou Mowgli, batendo palmas. — Eu deveria
saber que não se esqueceria de mim. Temos uma grande tarefa pela
frente. Divida o rebanho em dois, Akela. Deixe as fêmeas e os filhotes
juntos de um lado e os touros e os búfalos de arado de outro.
Como se executassem um passo de quadrilha, os dois lobos correram
por dentro e por fora do rebanho, que bufou e ergueu a cabeça,
separando-se em dois. Num deles, as búfalas ficaram com as crias no
centro, com os olhos faiscando e as patas batendo no chão, prontas,
caso algum lobo parasse por um momento, para atacá-lo e pisoteá-lo
até a morte. No outro, os machos adultos e jovens resfolegaram e
pisaram o chão com força, mas apesar de parecerem mais altivos, eram
muito menos perigosos, pois não tinham filhotes para proteger. Nem
mesmo seis homens teriam conseguido separar tão bem o rebanho.
— E agora? — perguntou Akela, ofegante. — Estão tentando se
reunir de novo.
Mowgli subiu no dorso de Rama.
— Leve os búfalos para a esquerda, Akela. Irmão Cinzento, quando
sairmos, mantenha as búfalas reunidas e leve-as para o pé da ravina.
— Até onde? — perguntou o Irmão Cinzento, ofegante e rilhando os
dentes.
— Até que a encosta seja mais alta do que Shere Khan consegue
saltar — berrou Mowgli. — Não deixe que elas saiam de lá até
voltarmos.
Os búfalos foram seguindo conforme Akela uivava, e o Irmão
Cinzento parou diante das fêmeas. Elas avançaram contra ele, que
correu à frente do rebanho exatamente até o pé da ravina, enquanto
Akela afastava os machos bem para a esquerda.
— Muito bem! Mais um ataque, e eles estarão bem bravos. Cuidado
agora, cuidado, Akela. Se atiçá-los demais, os búfalos atacarão. Eia! Isso
é mais difícil que conduzir cervos negros. Você imaginava que essas
criaturas fossem capazes de se mover com tanta agilidade? —
comentou Mowgli.
— Claro… já cacei desses na minha época — arquejou Akela, no
meio da poeira. — Devo levá-los para a selva?
— Sim! Vire agora. Vire-os logo! Rama está louco de raiva. Oh, se ao
menos eu conseguisse dizer o que quero que ele faça hoje.
Os búfalos viraram, dessa vez para a direita, e se chocaram contra o
matagal. Os outros meninos do pastoreio, que cuidavam do gado a
quase um quilômetro dali, correram para a aldeia o mais rápido que
suas pernas conseguiram, gritando que os búfalos haviam
enlouquecido e fugido. O plano de Mowgli, porém, era bastante
simples. Ele só queria formar um grande círculo no alto da colina e
chegar até o topo da ravina, então faria os búfalos descerem e pegaria
Shere Khan entre os machos e as fêmeas, pois sabia que depois de
comer e beber o tigre não estaria em condições de lutar ou de escalar
aqueles barrancos altos. Ele agora estava acalmando os búfalos com sua
voz, e Akela ficara para trás, apenas sussurrando uma ou duas vezes
para apressar a retaguarda. Formaram um círculo bem grande, pois não
queriam se aproximar demais da ravina e alertar Shere Khan. Por fim,
Mowgli reuniu o rebanho assustado no começo da ravina, sobre um
trecho de relva que descia num declive íngreme até o sopé. Daquela
altura, conseguia ver por entre as copas das árvores até a planície lá
embaixo; mas o que Mowgli observava eram os barrancos laterais da
ravina, e notou muito satisfeito que eram quase verticais, e os cipós e as
trepadeiras que subiam por eles não eram fortes o bastante para
sustentar um tigre que quisesse escapar.
— Deixe que sintam o ar, Akela — ordenou, erguendo a mão. — O
vento ainda não trouxe o cheiro dele. Deixe que sintam o ar. Quero
avisar a Shere Khan quem está aqui. Vamos pegá-lo numa armadilha.
Ele pôs as mãos ao redor da boca e berrou em direção à ravina — era
quase como gritar dentro de um túnel —, e os ecos resvalaram de pedra
em pedra.
Depois de uma longa pausa, finalmente se ouviu o rosnar sonolento e
preguiçoso de um tigre bem alimentado, que acabava de acordar.
— Quem me chama? — perguntou Shere Khan, e um magnífico
pavão surgiu farfalhando de dentro da ravina.
— Eu, Mowgli. Ladrão de gado, está na hora de voltar à Pedra do
Conselho! Agora, traga-os para baixo. Depressa, Akela! Vamos descer,
Rama, vamos!
O rebanho parou por um instante na beira do declive, mas Akela deu
o grito de caça a plenos pulmões, e os animais se precipitaram um
depois do outro, como vapores na correnteza, levantando uma nuvem
de areia e pedras à sua volta. Depois que começaram a correr, não havia
mais como detê-los, e antes de entrarem todos no leito da ravina, Rama
farejou Shere Khan e mugiu.
— Ha! Ha! Ha! — divertiu-se Mowgli, em suas costas. — Agora você
entendeu!
A torrente de chifres negros, focinhos espumantes e olhos faiscantes
desceu pela ravina como as ribanceiras desabam na época das cheias;
os búfalos mais fracos iam sendo empurrados para os barrancos
laterais, atropelavam os cipós. Eles sabiam a tarefa que tinham pela
frente; o terrível ataque da manada de búfalos contra o qual nenhum
tigre pode ter esperança de resistir. Shere Khan ouviu o estrondo dos
cascos, levantou-se e desceu pela ravina, procurando de ambos os lados
uma rota de fuga, mas os barrancos eram altos e íngremes demais, e ele
teve de seguir em frente, pesado de tanta comida e bebida, preferindo
qualquer coisa em vez de lutar. O rebanho entrou com tudo na poça
junto à qual ele estava, mugindo até o estreito vale estremecer. Mowgli
ouviu um mugido de resposta vindo do pé da ravina, viu Shere Khan
dar meia-volta (o tigre sabia que, se o pior acontecesse, era melhor
enfrentar os búfalos do que as búfalas com suas crias), e então Rama
tropeçou, desequilibrou-se e retomou o caminho, pisando em algo
macio. Com os outros búfalos nos seus calcanhares, colidiu em cheio
com a outra parte do rebanho, enquanto os búfalos mais fracos eram
suspensos no ar, tamanho o impacto. O ataque levou os dois rebanhos
para a planície, todos chifrando, pisoteando e resfolegando. Com
cuidado, Mowgli desceu do dorso de Rama, golpeando-o nos dois lados
com seu bambu.
— Depressa, Akela! Separe-os! Faça com que se dispersem, ou vão
acabar lutando uns contra os outros. Leve-os daqui, Akela. Hai, Rama!
Hai, hai, hai, crianças! Devagar agora, devagar! Já passou.
Akela e o Irmão Cinzento correram por entre eles, mordiscando as
pernas dos búfalos, e, embora o rebanho tivesse dado a volta para subir
a ravina novamente, Mowgli conseguiu fazer Rama se virar, e os outros
o seguiram até o lamaçal.
Shere Khan nem precisava mais ser pisoteado. Estava morto, e os
milhafres já vinham atrás dele.
— Irmãos, ele morreu como um cão — declarou Mowgli, apalpando
a faca que sempre levava numa bainha pendurada no pescoço, agora
que vivia com os homens. — Mas ele nunca foi bom de luta. Wallah! A
pele vai ficar bonita na Pedra do Conselho. Precisamos trabalhar
depressa.
Um menino educado entre os homens jamais teria sonhado em
arrancar a pele de um tigre de três metros sozinho, mas Mowgli sabia
melhor do que ninguém como uma pele reveste um animal e como
arrancá-la. No entanto, era um trabalho duro, e Mowgli cortou, rasgou
e grunhiu durante uma hora, enquanto os lobos estavam de língua de
fora, ou se aproximavam e faziam o que ele mandava. Por fim, sentiu a
mão de alguém em seu ombro e, ao olhar para cima, viu Buldeo com
seu mosquete da Torre. As crianças haviam contado na aldeia sobre a
disparada dos búfalos, e Buldeo saíra irritado, louco para repreender
Mowgli por não cuidar melhor do rebanho. Os lobos sumiram assim
que viram o homem se aproximar.
— Que loucura é essa aqui? — perguntou Buldeo, irritado. — Não
sabe que não pode tirar essa pele de tigre! Onde os búfalos o mataram?
É o Tigre Manco, cuja cabeça está a prêmio por cem rupias. Bem, muito
bem, vamos ignorar o fato de ter deixado o rebanho fugir, e talvez eu
lhe dê uma rupia da recompensa quando levar a pele para Khanhiwara.
— Ele procurou na tanga uma pederneira e uma faca, abaixando-se
para chamuscar os bigodes de Shere Khan. A maioria dos caçadores
nativos sempre queima a raiz dos bigodes de um tigre antes de arrancá-
los para evitar que o fantasma do animal os assombre.
— Hum! — murmurou Mowgli, como se falasse sozinho, enquanto
arrancava a pele de uma pata dianteira. — Então você vai levar a pele
para Khanhiwara e ficar com a recompensa, e talvez me dê uma rupia?
Só que me ocorreu que preciso levar a pele comigo. Ei, velho, afaste
esse fogo!
— Isso são modos de falar com o chefe dos caçadores da aldeia? Sua
sorte e a estupidez dos seus búfalos o ajudaram nessa caçada. O tigre
devia ter acabado de comer, ou estaria a quilômetros daqui a essa
altura. Nem sabe arrancar a pele direito, seu mendiguinho atrevido, e
ainda sou eu, Buldeo, que não devo chamuscar-lhe os bigodes! Mowgli,
não vou lhe dar anna* nenhuma da recompensa, e sim uma bela surra!
Solte essa carcaça!
— Pelo touro que me comprou — retrucou Mowgli, que já estava
chegando no ombro —, será que sou obrigado a ficar falando bobagens
com um velho macaco a tarde inteira? Aqui, Akela, este homem está me
incomodando.
Buldeo, que ainda estava parado junto à cabeça de Shere Khan, viu-
se derrubado sobre a relva com um lobo cinzento em cima dele,
enquanto Mowgli continuava a arrancar a pele do animal como se
estivesse sozinho em toda a Índia.
— Eu sei, eu sei — disse, entre os dentes. — Está coberto de razão,
Buldeo. Não vai me dar anna nenhuma da recompensa. É uma guerra
antiga entre mim e este tigre manco… uma guerra muito antiga, que eu
venci.
Justiça seja feita a Buldeo, se fosse dez anos mais jovem teria
arriscado enfrentar Akela caso o encontrasse no bosque, mas um lobo
que obedecia às ordens de um menino que tinha guerras particulares
com tigres comedores de gente não podia ser um animal comum. Era
feitiço, magia do pior tipo, pensou Buldeo, e se perguntou se o amuleto
que o menino tinha no pescoço é que lhe dava proteção. Ficou o mais
imóvel possível, esperando a qualquer minuto que Mowgli virasse tigre
também.
— Marajá! Grande Rei — disse, por fim, num sussurro rascante.
— Pois não? — respondeu Mowgli, sem virar a cabeça, rindo consigo
mesmo.
— Sou velho. Não sabia que era muito mais que um pastorzinho.
Posso me levantar e ir embora, ou seu servo vai me rasgar em pedaços?
— Vá, e que a paz esteja com você. Apenas não se meta mais com a
minha caça. Deixe-o ir embora, Akela.
Buldeo cambaleou de volta para a aldeia tão depressa quanto
conseguiu, olhando para trás para ver se Mowgli não se transformava
em algo terrível. Quando chegou, contou uma história cheia de magia,
encantamento e feitiço que deixou o brâmane muito preocupado.
Mowgli continuou seu trabalho, mas estava quase anoitecendo
quando ele e os lobos terminaram de arrancar a grande pele do corpo
do tigre.
— Agora precisamos esconder isso e levar os búfalos para casa!
Akela, ajude-me a juntar o rebanho.
O rebanho se agrupou na neblina da noite e, quando chegou perto da
aldeia, Mowgli viu suas luzes e ouviu os sopros e dobres, os búzios e os
címbalos no templo. Metade da aldeia parecia estar esperando por ele
no portão.
— Deve ser porque matei Shere Khan — supôs.
Mas uma nuvem de pedras zuniu rente a suas orelhas, e os aldeões
gritavam:
— Feiticeiro! Filhote de lobo! Demônio da mata! Vá embora! Fora
daqui depressa, ou o sacerdote irá transformá-lo em lobo outra vez.
Atire, Buldeo, fogo!
O velho mosquete da Torre disparou e um jovem búfalo mugiu de
dor.
— Mais bruxaria! — bradavam as pessoas. — Ele consegue desviar
balas. Buldeo, você acertou o seu próprio búfalo.
— O que está acontecendo? — perguntou Mowgli, pasmo, conforme
o apedrejamento ficava mais cerrado.
— Eles não são tão diferentes da alcateia, esses seus irmãos —
comentou Akela, sentando educadamente. — Creio que, se essas balas
significam alguma coisa, querem bani-lo também.
— Lobo! Filhote de lobo! Fora daqui! — berrou o sacerdote,
acenando com um ramo sagrado de tulsi.
— De novo? Da última vez foi por ser homem. Agora é por ser lobo.
Vamos embora, Akela.
Uma mulher — era Messua — saiu correndo na direção do rebanho e
exclamou:
— Oh, filho meu, filho meu! Dizem que é feiticeiro, que, se quiser, se
transforma em bicho. Não acredito, mas vá embora, ou irão matá-lo.
Buldeo diz que você é bruxo, mas sei que vingou a morte de Nathoo.
— Volte aqui, Messua! — gritou a multidão. — Volte, ou vamos
apedrejá-la.
Mowgli soltou um riso curto e contrariado, pois uma pedra o atingira
na boca.
— Corra para casa, Messua. Esta é uma das histórias tolas que eles
contam debaixo da árvore quando anoitece. Pelo menos paguei pela
vida do seu filho. Adeus, e corra bem depressa, pois devolverei a
manada mais rápido que as pedras deles. Não sou bruxo nenhum,
Messua. Adeus!
Em seguida, ordenou:
— Agora, mais uma vez, Akela. Faça o rebanho entrar.
Os búfalos estavam afiitos para entrar na aldeia. Mal precisaram do
grito de Akela para avançar portão adentro como um furacão,
dispersando a multidão para todos os lados.
— Não percam a conta! — gritou Mowgli, zombeteiro. — Talvez eu
tenha roubado um deles. Não percam a conta, pois não serei mais seu
pastor. Adeus, filhotes de homens, e deem graças a Messua por eu não
invadir com meus lobos e caçar a todos em plena rua.
Ele girou nos calcanhares, saiu andando com o Lobo Solitário e,
quando olhou para as estrelas, sentiu-se feliz.
— Chega de dormir em armadilhas, Akela. Vamos pegar a pele de
Shere Khan e ir embora. Não, não vamos machucar ninguém na aldeia,
pois Messua foi boa comigo.
Quando a lua brilhou sobre a planície, deixando-a inteirinha da cor
do leite, os aldeões horrorizados viram Mowgli, com dois lobos atrás de
si e uma espécie de turbante na cabeça, trotando à maneira dos lobos,
que devoram quilômetros feito um incêndio. Então tocaram os
címbalos e sopraram os búzios mais alto que nunca. E Messua chorou,
e Buldeo enfeitou a história de suas aventuras na selva, até terminá-la
dizendo que Akela se apoiou nas patas de trás e falou como um homem.
A lua estava caindo quando Mowgli e os dois lobos chegaram à Pedra
do Conselho, e pararam na caverna de Mãe Loba.
— Eles me baniram do Bando dos Homens, mãe — berrou Mowgli
—, mas venho com a pele de Shere Khan para manter minha palavra.
Mãe Loba saiu hesitante da caverna com os filhotes atrás, e seus
olhos brilharam quando viu a pele.
— Eu disse, naquele dia, quando ele enfiou a cabeça até os ombros na
caverna, vindo para matá-lo, rãzinha… eu disse a ele que o caçador
viraria caça. Foi bem feito.

— Irmãozinho, parabéns — comemorou uma voz grave na mata. —


Ficamos solitários na selva sem você. — E Bagheera veio correndo para
perto dos pés descalços de Mowgli.
Eles subiram juntos até a Pedra do Conselho. Mowgli estendeu a pele
sobre a pedra lisa onde Akela costumava sentar, prendendo-a com
quatro lascas de bambu, e Akela se deitou sobre ela e fez o velho
chamado do conselho, exatamente como fizera quando Mowgli havia
chegado ali pela primeira vez:
— Olhem, olhem bem, ó lobos.
Desde a deposição de Akela, a alcateia ficara sem líder, caçando e
lutando ao seu bel-prazer. Mas eles responderam ao chamado por
hábito; e alguns estavam mancos das armadilhas em que haviam caído,
outros mancavam por feridas de tiros, outros, ainda, ficaram sarnentos
devido à má alimentação e muitos estavam perdidos. Mas eles vieram à
Pedra do Conselho — o que restava deles — e viram a pele listrada de
Shere Khan sobre a pedra e as imensas garras penduradas na ponta das
patas vazias. Foi então que Mowgli inventou uma música, que lhe veio
sozinha inteira na garganta, e a cantou bem alto, pulando para cima e
para baixo na pele sacolejante, marcando o tempo com os calcanhares
até ficar sem fôlego, enquanto o Irmão Cinzento e Akela uivavam entre
as estrofes.
— Olhem bem, ó lobos. Mantive ou não minha palavra? — perguntou
Mowgli, ao terminar de cantar.
E os lobos responderam:
— Manteve.
E um lobo uivou:
— Lidere-nos de novo, ó Akela. Lidere-nos outra vez, ó filhote de
homem, pois estamos fartos de viver sem lei e queremos ser mais uma
vez o Povo Livre.
— Não — ronronou Bagheera —, isso não pode ser. Quando
estiverem com as barrigas cheias, a loucura pode voltar. Não à toa são
chamados Povo Livre. Vocês lutaram por liberdade, a liberdade agora é
sua. Engulam-na, ó lobos.
— Fui banido tanto do Bando Gente quanto do Bando Lobo —
anunciou Mowgli. — Agora vou caçar sozinho na selva.
— E nós caçaremos com você — disseram os quatro filhotes.
Então Mowgli foi embora e caçou com seus quatro irmãos lobos na
selva desde aquele dia. Mas não ficou sozinho para sempre, porque,
anos mais tarde, tornou-se homem-feito e se casou.
Mas essa é uma história para gente grande.

* Antiga moeda equivalente a 16a parte da rupia. No final do século XIX, quinze rupias
equivaliam a uma libra esterlina. (N. T.)
Canção de Mowgli

Cantada por ele na Pedra do Conselho, quando dançou sobre a pele de Shere Khan.

A Canção de Mowgli — eu, Mowgli, estou cantando. Que a selva saiba


as coisas que fiz.
Shere Khan disse que me mataria, que me mataria! No portão, pela
aurora, mataria Mowgli, a rã!
Ele comeu e bebeu. Beba bastante, Shere Khan, pois quando poderá
beber de novo? Durma e sonhe que me mata.
Estou sozinho no pasto. Irmão Cinzento, venha cá! Que venha o Lobo
Solitário, pois a caça graúda está perto!
Tragam os grandes búfalos, os machos azuis de tão negros, de olhos
furiosos. Conduzam-nos ao meu comando.
Ainda dorme, Shere Khan? Acorde, acorde! Aqui vou eu, e os búfalos
vêm logo atrás.
Rama, rei dos búfalos, pisoteou. Águas do Waingunga, aonde foi Shere
Khan?
Não é Sahi, para cavar toca, nem Mor, o pavão, para voar. Não é Mang, o
morcego, para se pendurar nas copas. Gravetos de bambu que
rangem unidos, digam, aonde ele foi?
Ah! Aí está ele. Oh! Ei-lo aí. Aos pés de Rama jaz o Manco! Levante-se,
Shere Khan! Levante-se e mate! Eis a carne; quebre a espinha dos
touros!
Psiu! Ele dormiu. Não vamos acordá-lo, pois é muito forte. Os milhafres
desceram para ver. As formigas pretas vieram conhecer. É uma
grande assembleia em sua honra.
Alala! Não tenho com que me vestir. Os milhafres verão que estou nu.
Que vergonha encontrar tanta gente.
Empreste-me o casaco, Shere Khan. Empreste-me sua pele listrada
para ir com ela à Pedra do Conselho.
Pelo touro que me comprou, jurei — uma pequena jura. Só me falta seu
casaco e cumprirei minha palavra.
Com minha faca, com a faca dos homens, a faca do caçador, do homem,
sigo o rastro dessa oferenda.
Águas do Waingunga, sejam testemunhas de que Shere Khan me deu
sua pele por causa do amor que me tem. Puxe, Irmão Cinzento!
Puxe, Akela! Que pesado o couro de Shere Khan.
O Bando dos Homens está furioso. Apedrejam, contam histórias de
criança. Sangro na boca. Me deixem fugir.
Pela noite, a noite quente afora, corram comigo, irmãos. Adeus, luzes da
aldeia, seguiremos a lua baixa.
Águas do Waingunga, o Bando dos Homens me baniu. Mal não fiz, mas
sentiram medo. Por quê?
A alcateia também me baniu. A selva me foi proibida, assim também os
portões da aldeia. Por quê?
Feito Mang voa entre feras e aves, eu voo entre aldeia e selva. Por quê?
Danço sobre a pele de Shere Khan, mas meu coração está pesado.
Minha boca foi cortada e ferida na aldeia, mas meu coração está leve,
pois voltei para a selva. Por quê?
Ambas lutam em mim como serpentes na fonte.
A água mina de meus olhos; mas sorrio enquanto choro. Por quê?
Sou dois Mowglis, mas a pele de Shere Khan jaz a meus pés.
Toda a selva sabe que matei Shere Khan. Olhem, olhem bem, ó lobos!
Ah! Meu coração pesa por coisas que não entendo.
Como surgiu o medo

O rio veio à míngua; o lago secou,


Viramos camaradas, você e eu;
Boquiabertos na poeira,
Amontoados na margem;
Calados de pavor da estiagem,
Evitamos pensar em caça e morte.
Neste dique, o gamo vê a
Alcateia magra e lassa como ele,
E o cervo impávido observa
As presas que degolaram o pai.
O lago está à míngua; o rio secou,
Enquanto isso, sejamos camaradas, você e eu,
Até que a nuvem — Boas Caçadas! — despeje
A chuva e quebre a Trégua da Água.

A Lei da Selva — que é de longe a lei mais antiga do mundo — dispõe


sobre todo tipo de acidente que possa ocorrer ao Povo da Selva, e, até
hoje, seu código é tão perfeito quanto o tempo e o costume foram
capazes de aperfeiçoá-lo. Se você leu o outro livro sobre Mowgli, deve
lembrar que ele passou boa parte da vida com a Alcateia de Seeonee,
aprendendo a lei com Baloo, o urso-pardo; e foi Baloo quem lhe contou,
quando o menino ficava impaciente com tanta ordem, que a lei era
como o cipó gigante, porque caía sobre todos, e ninguém conseguia
escapar.
— Quando tiver vivido o tanto que vivi, irmãozinho, verá que toda a
selva obedece ao menos a uma lei. E não será algo agradável de se ver
— sentenciou Baloo.
A conversa entrava por um ouvido e saía pelo outro, pois um menino
que passa a vida comendo e dormindo não se preocupa com nada até
que a coisa de fato esteja bem na sua frente. Mas, decorridos alguns
anos, as palavras de Baloo se revelaram verdadeiras, e Mowgli viu a
selva funcionar conforme a lei.
Tudo começou quando as chuvas de inverno quase não caíram, e
Sahi, o porco-espinho, ao encontrar Mowgli num bambuzal, comentou
que os inhames selvagens estavam ficando secos. Só que todo mundo
sabe como Sahi é ridiculamente implicante com comida e que só se
alimenta do melhor e mais maduro. Assim, Mowgli riu e desdenhou:
— E eu com isso?
— Agora, quase nada — respondeu Sahi, chocalhando os espinhos
sem jeito e pouco à vontade —, mas depois, veremos. Ainda dá para
mergulhar no lago da Pedra das Abelhas, irmãozinho?
— Não. A água é tola e está indo embora, e não quero quebrar a
cabeça — comentou Mowgli, que, nessa época, tinha certeza de que
sabia tanto quanto cinco membros do Povo da Selva juntos, quaisquer
que fossem eles.
— No seu caso, é uma pena. Talvez uma pequena rachadura deixasse
entrar alguma sabedoria.
Sahi recuou depressa, para evitar que Mowgli arrancasse alguns
espetos de seu focinho, e o menino contou a Baloo o que o porco-
espinho havia dito. Baloo ficou muito sério, e murmurou consigo
mesmo:
— Eu, se estivesse sozinho, mudaria meu território de caça agora,
antes que os outros tivessem a mesma ideia. No entanto, caçar entre
estranhos sempre acaba em luta; e eles podem ferir o filhote de
homem. Precisamos esperar para ver como fioresce a mohwa.
Naquela primavera, a árvore mohwa, de que Baloo gostava tanto, não
deu fior. Os viçosos botões cor de creme-esverdeado morreram de calor
antes de nascer. Quando o urso se apoiou nas patas traseiras e sacudiu a
árvore, só umas poucas pétalas malcheirosas caíram no chão. Então,
pouco a pouco, um ardor inclemente se instalou no coração da selva,
tornando-a amarela, marrom e, por fim, preta. A vegetação das bordas
das ravinas queimou até virar fios retorcidos, fiapos de coisas mortas;
os lagos escondidos secaram e racharam, deixando só o formato da
última pegada de alguém, como se forjada em ferro fundido; os cipós
de talos suculentos despencaram das árvores e morreram a seus pés; os
bambus murcharam, rangendo quando soprava o vento quente; e o
musgo descolou das pedras no coração da selva, até que elas ficaram
nuas e quentes como as rochas azuladas do leito do rio.
Os pássaros e o Povo Macaco migraram para o norte mais cedo
aquele ano, pois sabiam o que vinha pela frente. O cervo e o javali
invadiram os campos devastados das aldeias, muitas vezes morrendo à
vista de homens fracos demais para matá-los. Chil, o milhafre, ficou e
engordou, pois havia muita carniça, e noite após noite trazia aos bichos,
fracos demais para partir rumo a novos territórios de caça, a notícia de
que o sol estava matando a selva inteira num raio de três dias de voo.
Mowgli, que não conhecia o que era fome de verdade, recorreu ao
mel rançoso de três anos antes, que raspou de colmeias abandonadas.
Era um mel preto como abrunho, áspero devido ao açúcar cristalizado.
Também procurava larvas escondidas sob a casca das árvores,
roubando das vespas seus filhotes. Toda a caça da selva estava pele e
osso, e Bagheera, que conseguia matar três vezes mais numa só noite,
mesmo assim não ficava satisfeito. Mas a falta de água era o pior, pois
embora o Povo da Selva bebesse só de vez em quando, precisava beber
muito de cada vez.
O calor continuou crescendo e sugou toda a umidade, até que, por
fim, o canal principal do Waingunga era o único com um pouco de água
entre as margens mortas. Quando Hathi, o elefante selvagem, que vive
cem anos ou mais, viu uma longa e esguia faixa de rocha seca bem no
meio do rio, entendeu que estava olhando para a Pedra da Paz e, na
mesma hora, ergueu sua tromba e proclamou a Trégua da Água, como
seu pai antes dele havia proclamado cinquenta anos atrás. O cervo, o
javali e o búfalo responderam com vozes roucas; e Chil, o milhafre,
voou em grandes círculos altos e amplos, assobiando e guinchando o
aviso.
Segundo a Lei da Selva, não se mata nos bebedouros durante a
Trégua da Água. O motivo é que beber é mais importante que comer.
Todos na selva conseguem se arranjar de algum modo quando apenas a
caça está escassa; mas água é água, e quando só existe uma fonte de
suprimento, toda a caça é proibida enquanto o Povo da Selva vai até lá
matar a sede. Nas boas temporadas, quando há bastante água, quem
vem beber no Waingunga — ou em qualquer lugar, a bem da verdade —
bebe sob risco de vida, e esse risco constitui boa parte do fascínio da
existência noturna. Mover-se com tanta sutileza que nenhuma folha se
mexa; andar com água pelos joelhos, nas corredeiras que absorvem
qualquer outro som que vem de trás; beber, vigiando por sobre os
ombros, com todos os músculos prontos para um ataque desesperado
de puro terror; rolar na margem rasa e voltar, de focinho ensopado e
barriga cheia, impressionando a manada, era uma coisa que todo gamo
de galhada alta adorava, justamente por saber que a qualquer momento
Bagheera ou Shere Khan podiam saltar sobre ele e derrubá-lo. Mas
agora toda essa diversão de vida ou morte terminara, e o Povo da Selva
vinha, faminto e exaurido, até o rio quase seco — tigre, urso, cervo,
búfalo e javali —, onde todos juntos bebiam as águas barrentas e se
deitavam sobre elas, exaustos demais para se mover.
O cervo e o javali haviam caminhado o dia inteiro atrás de algo
melhor do que casca seca de árvore com folhas ressecadas. Os búfalos
não encontraram poça alguma em que se refrescar nem verdura para
roubar. As cobras abandonaram a selva e desceram até o rio na
esperança de encontrar alguma rã extraviada. Enroscavam-se entre as
pedras molhadas e nem ameaçavam atacar quando um javali, cavando
com o focinho, as desalojava. Fazia tempo as tartarugas de água doce
haviam sido mortas por Bagheera, o mais sagaz dos caçadores, e os
peixes haviam se enterrado fundo na lama seca. Como uma cobra
comprida, a Pedra da Paz era a única a atravessar a corredeira, e os
respingos das fracas ondulações chiavam ao contato de seu fianco
escaldante.
Era ali que Mowgli vinha ao anoitecer para se refrescar e encontrar
os companheiros. O mais faminto de seus inimigos dificilmente iria
implicar com o menino naquele momento. Sua pele morena deixava-o
ainda mais esguio e assustador do que qualquer um deles. O cabelo
estava manchado em tom de linhaça pelo sol; as costelas despontavam
como aros de um cesto; e os calos nos joelhos e nos cotovelos, ásperos
pelo hábito de andar de quatro, davam a seus membros esquálidos a
aparência de talos de capim encaroçados. Mas os olhos, sob a franja
descolorida, continuavam serenos e tranquilos, pois Bagheera era seu
conselheiro nesses tempos duros e lhe dissera para manter a calma,
caçar lentamente e jamais, em hipótese alguma, perder a cabeça.
— São tempos ruins — afirmou a pantera-negra, certa noite
especialmente escaldante —, mas vão passar, se conseguirmos viver até
o fim. Sua barriga está cheia, filhote de homem?
— Tenho coisas na barriga, mas nada muito gostoso. Bagheera, você
acha que as chuvas esqueceram de nós e não voltarão nunca mais?
— Não! Ainda veremos a mohwa fiorescer e os filhotes de cervo
gordinhos de capim novo. Vamos até a Pedra da Paz para saber as
novidades. Nas minhas costas, irmãozinho.
— Não é hora de carregar peso. Ainda consigo ficar de pé sozinho,
mas estamos mesmo longe de sermos bois engordados, eu e você.
Bagheera olhou para o próprio fianco, desgrenhado e sujo, e
sussurrou:
— Noite passada, matei um boi no jugo. Estava tão fraco que nem
teria ousado atacar se o boi estivesse solto. Ai!
Mowgli riu.
— Sim, que grandes caçadores nos tornamos — comentou. — Sou
tão corajoso que… como até larvas.
E os dois desceram juntos pela mata seca até a beira do rio, onde uma
trama de bancos de areia se abria em todas as direções.
— A água está quase morrendo — observou Baloo, juntando-se a
eles. — Olhem lá. Já se vê um caminho que parece trilha de homem.
Na planície do outro lado, a mata árida morrera de pé, mumificada.
Os caminhos batidos do cervo e do javali, todos na direção do rio,
haviam marcado aquela planície incolor com sulcos de barro seco que
atravessavam a mata de três metros de altura, e, embora fosse cedo, as
longas avenidas estavam cheias de recém-chegados, afoitos para
alcançar a água. Dava para ouvir os veados e cervos tossindo na poeira.
Rio acima, na curva do lago que contorna a Pedra da Paz, estava o
arauto da Trégua da Água, Hathi, o elefante selvagem, com seus filhos,
magros e pálidos ao luar, balançando para os lados, sempre se
embalando no mesmo lugar. Pouco abaixo dele, a vanguarda dos
veados; depois destes, o javali e o búfalo selvagem; e, na margem
oposta, onde as árvores altas descem até a beira da água, era o lugar
reservado aos Comedores de Carne: o tigre, os lobos, a pantera, o urso e
outros.
— Respeitamos a lei, de fato — comentou Bagheera, patinhando na
água e observando as fileiras de chifres e olhos acesos, onde cervos e
javalis se acotovelavam. — Boa caçada a todos vocês que são como eu
— acrescentou, deitando-se de comprido com as patas traseiras fora da
água, e, em seguida, concluiu por entre os dentes: — Mas, se não fosse a
lei, sem dúvida seria uma caçada excelente.
As aguçadas orelhas dos cervos captaram a última frase, e um
sussurro assustado percorreu suas fileiras.
— Trégua! Lembre-se da Trégua!
— Paz, vocês aí! — gargarejou Hathi, o elefante selvagem. — Ainda
estamos em trégua, Bagheera. Não é hora de falar em caçada.
— E alguém sabe disso melhor do que eu? — exclamou Bagheera,
revirando os olhos rio acima. — Sou um comedor de tartarugas, um
pescador de rã. Eca! Quem diria que iria gostar de mastigar gravetos!
— Quem dera gostasse, seria melhor para nós — baliu um gamo, que
havia nascido aquela primavera e não estava gostando nem um pouco
daquela conversa.
Exaurido como o Povo da Selva se encontrava, nem mesmo Hathi
conseguiu segurar a gargalhada; enquanto Mowgli, deitado com os
cotovelos na água morna, deu uma risada alta e chutou o barro.
— Belas palavras, chifrinho — ronronou Bagheera. — Quando a
trégua tiver passado, isso será lembrado a seu favor. — E olhou ansioso
pela escuridão, para ter certeza de que reconheceria o gamo se o
encontrasse novamente.
Aos poucos, a história se espalhou de cima a baixo pelos bebedouros.
Dava para ouvir a agitação e os roncos dos javalis querendo mais
espaço, os búfalos grunhindo sozinhos ao atravessar os bancos de areia
e o cervo contando histórias tristes sobre suas longas caminhadas,
esfolando os cascos atrás de comida. De quando em quando,
perguntavam alguma coisa sobre os Comedores de Carne do outro lado
do rio, mas todas as notícias eram ruins, e o vento quente e uivante da
selva veio e passou entre as pedras, e os galhos balançaram, espalhando
gravetos secos e poeira sobre a água.
— O Povo Homem também está morrendo sobre os arados —
comentou um jovem sambar. — Passei por três a caminho do rio, entre
o pôr do sol e o anoitecer, e os bois estão morrendo com eles. Também
vamos acabar definhando a qualquer momento.
— O rio diminuiu desde a noite passada — observou Baloo. — Ó
Hathi, já testemunhou uma seca como esta antes?
— Vai passar, vai passar — sentenciou Hathi, jogando água nas
costas e nos fiancos.
— Temos um de nós aqui que não conseguirá resistir por muito
tempo — disse Baloo, olhando para o menino que tanto amava.
— Eu? — perguntou Mowgli indignado, sentando-se ereto na água.
— Sei que não tenho uma pele dessas para cobrir meus ossos, mas…
mas se a sua pele fosse arrancada, Baloo…
Hathi tremeu todo só de pensar, e Baloo censurou severamente o
menino:
— Filhote de homem, isso não é coisa que se diga a um Mestre da
Lei. Nunca ninguém me viu sem pele.
— Ah, não falei por mal, Baloo; mas é como se você fosse o coco com
a casca e eu, o coco pelado. Agora, essa sua casca parda… — Mowgli
estava sentado com as pernas cruzadas, explicando as coisas com o
indicador no ar como costumava fazer, quando Bagheera estendeu a
pata com as garras retraídas e o empurrou de costas na água.
— Assim vai de mal a pior — advertiu a pantera-negra, quando o
menino se levantou, engasgando e tossindo. — Primeiro, fala em
arrancar a pele de Baloo, depois diz que ele é um coco. Cuidado para
que ele não faça como um coco maduro.
— E como é? — perguntou Mowgli, com a guarda baixa por um
momento, embora essa seja uma das piadas mais velhas da selva.
— Ele cai e quebra a sua cabeça — respondeu Bagheera baixinho,
empurrando-o na água de novo.
— Não é certo zombar do professor — repreendeu o urso, na terceira
vez em que Mowgli foi afundado na água.
— Não é certo!? Mas o que se podia esperar? Essa coisa sem pelo que
corre para cima e para baixo zomba de quem um dia já foi bom caçador,
como faria um macaco, e puxa nossos bigodes por pura diversão.
Isso quem disse foi Shere Khan, o Tigre Manco, que veio coxeando
até a água. Ele aguardou um momento para desfrutar da sensação que
havia causado entre os cervos da outra margem, em seguida descansou
a cabeça quadrada e listrada, começando a bebericar, e deu um rugido:
— A selva virou uma incubadora de filhotes sem pelo. Olhe para
mim, filhote de homem!
Mowgli olhou-o — na verdade, encarou-o —, insolente como sabia
ser, e, depois de um minuto assim, Shere Khan virou os olhos,
contrariado.
— Filhote de homem isso, filhote de homem aquilo. É só… —
resmungou, continuando a beber. — Esse filhote não é nem homem,
nem filhote, do contrário teria medo. Na próxima temporada, vou
precisar pedir permissão a ele para beber água. Argh!
— Pode ser que isso aconteça mesmo — interveio Bagheera, olhando
o tigre fixamente nos olhos. — Pode ser… Que nojo, Shere Khan! Que
nova vergonha trouxe para cá dessa vez?
O Tigre Manco havia enfiado o focinho e a barriga na água, e faixas
escuras e oleosas boiaram correnteza abaixo.
— Homem! — exclamou Shere Khan, indiferente. — Matei um há
coisa de uma hora. — E continuou ronronando e rugindo sozinho.
A fila de bichos estremeceu, espalhando-se, e um sussurro foi
crescendo até virar um grito.
— Homem! Homem! Ele matou um homem!
Então todos voltaram-se para Hathi, o elefante selvagem, mas ele
parecia não estar escutando. Hathi nunca faz nada antes da hora, e esse
é um dos motivos por que vive tantos anos.
— Numa época como esta, matar um homem! Não tinha outra caça
por perto? — zombou Bagheera, arrastando-se para fora da água suja e
sacudindo as patas feito um gato, como sempre fazia.
— Matei porque quis, não para comer.
O sussurro horrorizado começou de novo, e os olhinhos brancos e
atentos de Hathi se viraram na direção de Shere Khan.
— Matei porque quis — Shere Khan repetiu baixinho, lentamente.
— E agora vim beber água e me limpar. Isso é proibido?
O dorso de Bagheera começou a se curvar feito um bambu na
ventania, mas Hathi ergueu a tromba e falou serenamente.
— Matou porque quis? — perguntou; e quando Hathi pergunta é
melhor responder.
— Isso mesmo. Era meu direito e minha noite. Você sabe bem disso,
ó Hathi — Shere Khan falou quase com gentileza.
— Sim, eu sei — respondeu Hathi; e, depois de uma pausa breve: —
Já bebeu o bastante?
— Por hoje à noite, sim.
— Pois então vá embora. O rio é para beber, e não para ser estragado.
Só mesmo o Tigre Manco para se valer de seu direito numa estação
como esta em que… em que sofremos todos juntos… Homem e Povo
da Selva. Limpo ou sujo, vá para sua toca, Shere Khan!
Essas últimas palavras soaram como trombetas de prata, e os três
filhos de Hathi avançaram meio passo, embora não houvesse
necessidade. Shere Khan foi embora sem ousar rosnar, pois sabia, assim
como todo mundo, que, no final das contas, Hathi é o Senhor da Selva.
— Que direito é esse de que Shere Khan falou? — sussurrou Mowgli
junto à orelha de Bagheera. — Matar homem é sempre uma vergonha.
É o que diz a lei. Mas agora Hathi falou que…
— Pergunte para ele. Não sei do que se trata, irmãozinho. Com
direito ou sem direito, se Hathi não tivesse se pronunciado eu teria
ensinado uma lição àquele carniceiro manco. Vir à Pedra da Paz depois
de matar um homem e se gabar disso é coisa de chacal. Além do mais,
ele sujou a água boa.
Mowgli esperou um minuto para tomar coragem, porque ninguém
ousava se dirigir diretamente a Hathi, então gritou:
— Que direito é esse de Shere Khan, ó Hathi?
As duas margens ecoaram as palavras, pois todos os Povos da Selva
são extremamente curiosos, e eles haviam acabado de testemunhar
algo que ninguém além de Baloo, que estava muito pensativo, parecia
entender.
— É uma velha história — respondeu Hathi. — Uma história mais
antiga que a própria selva. Façam silêncio nas margens, e eu lhes
contarei.
Durante um minuto ou dois, os javalis e os búfalos se acotovelaram.
Por fim, um depois do outro, os líderes das manadas grunhiram:
— Estamos prontos.
Hathi deu um passo à frente, até ficar com água pelos joelhos,
próximo à Pedra da Paz. Mesmo esguio, enrugado e com os marfins
amarelados como estava, era a própria imagem daquilo que a selva
sabia ter diante de si: seu senhor.
— Vocês sabem, minhas crianças — começou ele —, que o seu maior
medo é o homem.
E todos concordaram, murmurando.
— Esta história diz respeito a você, irmãozinho — Bagheera
comentou com Mowgli.
— Por quê? Pertenço à alcateia. Sou um caçador do Povo Livre —
respondeu Mowgli. — O que tenho com o homem?
— E sabem por que têm esse medo do homem? — continuou Hathi.
— Eis o motivo. No início da selva, e ninguém pode dizer quando foi
isso, todos nós andávamos juntos, sem medo um do outro. Naquele
tempo, não havia seca. As folhas, as fiores e os frutos davam na mesma
árvore; e não comíamos nada além de folhas, fiores, mato, frutas e casca
de árvore.
— Ainda bem que não sou dessa época — murmurou Bagheera. —
Casca de árvore só serve para afiar as garras.
— O Senhor da Selva era Tha, o Primeiro Elefante. Com sua tromba,
ele tirou a selva de dentro das águas profundas; e onde sulcou o chão
com suas presas, surgiram os rios; onde pisou, brotaram fontes de água
boa; e quando soprava sua tromba… assim… derrubava as árvores. Foi
dessa forma que Tha criou a selva; e assim a história me foi contada.
— Pelo visto, isso vai longe — sussurrou Bagheera, e Mowgli
escondeu o riso com a mão.
— Naquele tempo não existia trigo, melão, pimenta nem cana-de-
açúcar. Também não havia as cabaninhas que todos vocês já viram. O
Povo da Selva nada sabia do homem, mas vivia na selva, sem distinção,
como um mesmo povo. Acontece que, embora houvesse pasto
suficiente para todo mundo, eles começaram a disputar a comida. Eram
preguiçosos. Só queriam comer perto de onde se deitavam, como às
vezes conseguimos fazer quando as chuvas de primavera são boas. Tha,
o Primeiro Elefante, estava ocupado criando mais selvas e conduzindo
os rios em seus leitos. Não podia estar em todos os lugares, portanto fez
do Primeiro Tigre o senhor e juiz da selva, aquele a quem o Povo da
Selva deveria se dirigir nas desavenças. Naquele tempo, o Primeiro
Tigre comia fruta e mato com os outros. Era grande como eu e muito
bonito, todo colorido feito a fior amarela da trepadeira. Não tinha ainda
listras ou barras no pelo, naquela época boa, quando esta selva ainda
era nova. Todo o Povo da Selva vinha até ele sem medo, e sua palavra
era a lei de toda a selva. Éramos, lembrem-se, um só povo.
“Então, certa noite, houve uma desavença entre dois veados, uma
disputa por pasto como as que hoje são resolvidas com os chifres e as
patas da frente. Dizem que, quando os dois foram falar com o Primeiro
Tigre, deitado entre as fiores, um veado o atacou com o chifre, e o
Primeiro Tigre esqueceu que era o senhor e juiz da selva, saltou sobre o
veado e quebrou-lhe o pescoço.
“Até aquela noite, nenhum de nós havia morrido, e o Primeiro Tigre,
vendo o que tinha feito e tendo ficado tonto com o cheiro de sangue,
fugiu para os Charcos do Norte. Sem juiz, nós da selva acabamos
lutando entre nós, e Tha, ouvindo o barulho, voltou. Alguns disseram
uma coisa, outros disseram outra, mas ele viu o veado morto entre as
fiores e perguntou quem o tinha matado. Ninguém conseguiu
responder, pois estávamos todos tontos com o cheiro do sangue.
Ficamos correndo em círculos, saltitando, gritando e agitando a cabeça.
Então Tha mandou que as árvores abaixassem as copas e os cipós da
selva marcassem quem tinha matado o veado, para que pudesse
reconhecê-lo, e perguntou: ‘Quem será o senhor do Povo da Selva
agora?’. Ao que o Macaco Cinzento que vive nos galhos pulou e
anunciou: ‘Eu serei o Senhor da Selva agora’. Tha riu e declarou: ‘Assim
seja’. E foi embora muito irritado.
“Crianças, vocês conhecem o Macaco Cinzento. Naquela época, já
era como o conhecemos hoje. A princípio, fez cara de sábio, mas dali a
pouco começou a se coçar e a pular, e, quando Tha voltou, viu o
Macaco Cinzento pendurado de ponta-cabeça, zombando de quem
passava embaixo e sendo zombado de volta. E assim não houve Lei da
Selva, só conversas tolas e palavras sem sentido.
“Então Tha reuniu todos nós e disse: ‘O primeiro senhor trouxe a
morte para a selva, o segundo, a vergonha. Chegou a hora da lei, uma lei
que não deveis desobedecer. Agora conhecereis o medo e, ao conhecê-
lo, sabereis que ele é o seu senhor, e todo o resto virá a partir daí’. Em
seguida, nós da selva perguntamos: ‘O que é o medo?’. E Tha
respondeu: ‘Procurem-no até encontrá-lo’. E assim percorremos toda a
selva em busca do medo, até que um dia os búfalos…”
— Ugh! — revoltou-se Mysa, o chefe dos búfalos, em seu banco de
areia.
— Isso mesmo, Mysa, foram os búfalos. Eles voltaram com a
novidade de que o medo morava numa caverna da selva, e que o medo
quase não tinha pelos e andava nas patas traseiras. Portanto, nós da
selva seguimos os búfalos até a tal caverna, e o medo estava na entrada
e era, como disseram os búfalos, sem pelos e andava nas patas traseiras.
Quando nos viu, gritou, e sua voz nos encheu desse medo que sentimos
agora. Fugimos, pisoteando e atropelando tudo à nossa frente,
assustados. Naquela noite, assim me contaram, nós da selva não nos
deitamos juntos, como era nosso costume, mas cada tribo se isolou…
javali com javali, cervo com cervo; chifre com chifre, casco com casco,
conforme a semelhança… e, tremendo, fomos dormir na selva.
“Só o Primeiro Tigre não havia nos acompanhado na busca, pois
ainda estava escondido nos Charcos do Norte, e quando soube da coisa
que tínhamos visto na caverna, proclamou: ‘Vou ver essa coisa e lhe
quebrar o pescoço’. E assim correu a noite inteira, até chegar à caverna;
mas as árvores e os cipós do caminho, lembrando a ordem que Tha lhes
dera, despencaram sobre ele e o marcaram enquanto corria, raspando
os dedos em suas costas, fiancos, testa e rosto. Nos pontos em que os
cipós encostaram o pelo amarelo, ficou um sinal e uma listra. E são
essas listras que os filhos dele usam até hoje! Quando chegou à caverna,
o medo, o Sem Pelos, apontou e o chamou de Listrado Noturno, e o
Primeiro Tigre apavorou-se com o Sem Pelos e correu de volta para o
charco, uivando.”
Mowgli gargalhou discretamente nesse momento, com o queixo
embaixo da água.
— Uivou tão alto que Tha ouviu e indagou: “Por que tanta tristeza?”.
E o Primeiro Tigre, erguendo a bocarra para o céu recém-feito, que
hoje é tão antigo, rogou: “Devolve meu poder, ó Tha. Fui envergonhado
diante de toda a selva, fugi correndo daquele Sem Pelos, e ele me deu
um nome vergonhoso”. “Mas por quê?”, quis saber Tha. “Porque estou
sujo com a lama dos charcos”, respondeu o Primeiro Tigre. “Pois então
nada e rola na relva molhada; se for lama, será lavada”, argumentou
Tha; e o Primeiro Tigre nadou e rolou para lá e para cá sobre a relva,
até a selva girar a seus olhos, mas nem uma única listra em seu pelo foi
alterada, e Tha, observando aquilo, riu. Então o Primeiro Tigre
perguntou: “O que fiz para merecer isso?”. Tha respondeu: “Mataste o
veado e deixaste a morte à solta na selva, e com a morte veio o medo, e
assim os Povos da Selva agora têm medo um do outro, como o teu medo
do Sem Pelos”. O Primeiro Tigre bradou: “Eles jamais terão medo de
mim, pois os conheço desde o princípio”. E Tha concluiu: “Então vá e
veja por ti mesmo”. O Primeiro Tigre correu por toda parte, chamando
em voz alta o cervo, o javali, o sambar, o porco-espinho e todos os
Povos da Selva. Mas eles fugiram de quem havia sido seu juiz, pois
tiveram medo dele.
“O Primeiro Tigre voltou com o orgulho ferido e, batendo a cabeça
no chão, cravou as garras no solo, então exclamou: ‘Lembra-te de que
um dia fui o Senhor da Selva. Não te esqueças de mim, ó Tha! Deixa
que meus filhos saibam que um dia não senti vergonha nem medo!’. E
Tha respondeu: ‘Isso posso conceder, porque vimos juntos a selva
nascer. Por uma única noite a cada ano, a vida será, para ti e teus filhos,
como antes de o veado ser morto. Nessa única noite, se encontrardes o
Sem Pelos, e o nome dele é homem, não tereis medo dele, e sim ele de
vós, como se fôsseis outra vez o juiz da selva e senhor de todas as
coisas. Tem piedade dele na noite em que ele tiver medo, pois tu
conheceste o que é o medo’.
“O Primeiro Tigre respondeu: ‘Isso já me contenta’; mas, quando foi
beber água, viu as listras pretas nos fiancos, lembrou-se do nome pelo
qual o Sem Pelos o chamara e ficou irritado. Por um ano viveu nos
charcos, à espera de que Tha mantivesse sua promessa. E, certa noite,
quando o Chacal da Lua [a estrela vespertina] iluminava a selva, sentiu
que a noite chegara e entrou na caverna para enfrentar o Sem Pelos.
Aconteceu conforme Tha havia prometido, pois o Sem Pelos se
ajoelhou diante dele e se deitou no chão, e o Primeiro Tigre o atacou e
lhe quebrou a espinha, pois achou que aquela coisa era a única de sua
espécie na selva e que ele havia matado o medo. Então, farejando sua
caça, ouviu Tha descendo das fiorestas do norte e a voz do Primeiro
Elefante, que é a mesma voz que ouvimos agora…”
Um trovão percorria as montanhas secas e escarpadas, mas sem
trazer chuva, apenas coriscos que relampejavam nas serras, irradiando
mais calor. E Hathi continuou:
— Essa foi a voz que ele ouviu, e ela bradava: “Essa é a tua piedade?”.
O Primeiro Tigre lambeu os beiços e respondeu: “Qual é o problema?
Matei o medo”. E Tha clamou: “Desamarraste os pés da morte, ó cego e
tolo! Ela vai seguir teu rastro até que estejas morto. Ensinaste o homem
a matar!”.
“Imóvel junto à caça, o Primeiro Tigre argumentou: ‘Ele era como o
veado. Não existe mais o medo. Agora vou ser o juiz dos Povos da Selva
outra vez’.
“E Tha rebateu: ‘Nunca mais os Povos da Selva virão te consultar.
Jamais cruzarão teu rastro, nem dormirão perto de ti, nem seguirão
atrás de ti, nem entrarão na tua toca. Somente o medo te seguirá, e, com
um golpe que nem verás, ele te obrigará a fazer as vontades dele. Fará o
chão se abrir sob tuas patas e os cipós se enroscarem no teu pescoço, e
fará os troncos das árvores crescerem mais altos do que consegues
saltar, e, por fim, arrancará tua pele para cobrir os próprios filhotes no
frio. Não foste piedoso com ele nem ele será piedoso contigo’.
“O Primeiro Tigre foi muito ousado, pois ainda era sua noite, e
alfinetou: ‘A promessa de Tha é a promessa de Tha. Vais tirar minha
noite?’. E Tha respondeu: ‘Essa única noite é tua, conforme eu disse,
mas existe um preço a pagar. Ensinaste o homem a matar, e ele aprende
depressa’.
“O Primeiro Tigre pediu: ‘Aqui está ele, sob as minhas patas, e sua
espinha está partida. Que a selva saiba que matei o medo’. Tha riu e
escarneceu: ‘Mataste um entre muitos, mas vá contar sozinho à selva,
pois tua noite já passou!’.
“O dia raiou, e outro Sem Pelos saiu da garganta da caverna, viu a
caça na trilha e o Primeiro Tigre sobre a caça e pegou um pau
pontudo…
— Hoje em dia eles jogam uma coisa que corta — comentou Sahi,
farfalhando na margem; pois Sahi era considerado uma iguaria
deliciosa pelos gondes (eles o chamavam de Ho-Igoo) e conhecia um
bocado da maldita lança deles, que passa zunindo pela clareira feito
uma libélula.
— Era um pau pontudo, como o que eles colocam no fundo do
buraco das armadilhas — esclareceu Hathi —, e, ao arremessá-lo,
acertou o Primeiro Tigre bem fundo no fianco. Portanto, aconteceu
conforme Tha dissera, pois o Primeiro Tigre correu uivando pela selva
até arrancar o pau, e toda a selva aprendeu que o Sem Pelos conseguia
atacar de muito longe e teve mais medo do que antes. Todos
descobriram que o Primeiro Tigre havia ensinado o Sem Pelos a
matar… e vocês sabem o mal que isso tem causado a todos nós desde
então… seja por meio de laço, alçapão, arapuca, pau voador, a mosca
que sai da fumaça branca [Hathi queria dizer o rifie] ou a Flor
Vermelha que nos leva para o descampado. Ainda assim, como Tha
prometeu, uma noite por ano, o Sem Pelos tem medo do tigre, e o tigre
nunca lhe deu motivo para não sentir esse medo. Onde quer que o
encontre, na mesma hora o tigre o mata, lembrando-se da vergonha que
o primeiro dos seus sentiu. No mais, o medo caminha por toda a selva
noite e dia.
— Ahi! Aoo! — exclamou o cervo, pensando no que aquilo significava
para eles.
— E somente quando existe um único grande medo pairando sobre
todos nós, como agora, nós, da selva, conseguimos deixar de lado
nossos medos menores e nos reunir no mesmo lugar como neste
momento.
— O homem só tem medo do tigre uma noite por ano? — perguntou
Mowgli.
— Só por uma noite — assentiu Hathi.
— Mas eu… nós… todo mundo na selva sabe que Shere Khan mata
homem duas, três vezes na mesma lua.
— Ainda assim, nesses casos, ele salta pelas costas e vira a cabeça ao
atacar, pois está cheio de medo. Se o homem olhasse bem para ele,
Shere Khan acabaria fugindo. Mas, nessa única noite, ele desce até a
aldeia sem se esconder. Caminha entre as casas e enfia a cabeça pelas
portas, e os homens se deitam no chão, e um deles vira caça ali mesmo.
Nessa noite, ele mata uma vez.
— Ah! — refietiu Mowgli consigo mesmo, rolando na água. — Agora
entendi por que Shere Khan pediu que eu o encarasse! Não adiantou,
pois não conseguiu sustentar meu olhar, e… e certamente não me
ajoelhei diante dele. Mas, até aí, não sou homem, sou do Povo Livre.
— Hum! — murmurou Bagheera, grave, com sua garganta peluda. —
E o tigre sabe quando chega sua noite?
— Só depois que o Chacal da Lua sai de trás da neblina da noite. Às
vezes essa única noite do tigre cai na seca de verão, às vezes nas águas
das chuvas. Mas, se não fosse pelo Primeiro Tigre, isso nunca teria
acontecido, tampouco saberíamos o que é o medo.
O cervo grunhiu tristonho, e os beiços de Bagheera se torceram num
sorriso maldoso.
— Os homens conhecem essa… história? — ele quis saber.
— Ninguém além dos tigres e de nós elefantes, os filhos de Tha.
Agora vocês aí no córrego sabem, pois acabo de contá-la.
Hathi mergulhou a tromba na água em sinal de que não queria mais
falar.
— Mas… mas… mas… — gaguejou Mowgli, virando-se para Baloo
—, por que o Primeiro Tigre não voltou a comer mato, folhas e árvore?
Ele só quebrou o pescoço do veado. Nem comeu. O que fez com que
passasse a preferir carne fresca?
— As árvores e os cipós marcaram o tigre, irmãozinho, e o tornaram
essa coisa listrada que vemos hoje. Ele nunca mais vai comer do fruto
das árvores; no entanto, desde aquele dia, ele se vinga das plantas nos
cervos e nos outros Comedores de Mato — frisou Baloo.
— Então você sabia dessa história, é? Por que nunca me contou?
— Porque a selva é cheia de histórias assim. Se eu começasse a
contar, não acabaria nunca. Solte minha orelha, irmãozinho.
A Lei da Selva

Para dar uma ideia da imensa variedade da Lei da Selva,traduzi em verso algumas poucas leis
que se aplicam aoslobos (Baloo sempre as recita como uma espécie de cantoria).Existem, é
claro, centenas e centenas de outras. Estas, no entanto, servirão de exemplo das regras mais
simples:

Esta é a Lei da Selva, antiga e certa como o céu;


Que prospere o lobo que a cumprir, mas que o lobo que a quebrar pereça.
Como o cipó emaranhado no tronco, a lei vale para os dois lados…
Pois a força do bando é o lobo e a força do lobo é o bando.

Banhe todo dia do nariz à ponta do rabo; beba bastante, mas não em
demasia;
Sempre se lembre de caçar à noite; jamais se esqueça de dormir de dia.

O chacal pode ir com o tigre, mas, filhote, quando crescerem seus


bigodes,
Lembre-se de que o lobo é caçador, siga em frente e arranje sua comida
sozinho.
Mantenha a paz com os senhores da selva: o tigre, a pantera, o urso.
Não irrite Hathi, o Silencioso, nem zombe do javali na própria toca.
Quando na selva se encontram bando com bando e nenhum quer dar
passagem,
Espere que primeiro falem os líderes, pode ser que boas falas
prevaleçam.
Quando lutar com outro lobo do bando, combata longe e sozinho,
Para que ninguém mais entre na briga e o bando em guerra não se
desguarneça.

A toca do lobo é seu refúgio, é onde ele constrói seu lar,


Nem o chefe dos lobos pode entrar nem o próprio conselho interferir.

A toca do lobo é seu refúgio, mas se ele cava pouco e a toca fica rasa,
O conselho pode avisá-lo, para que ele faça tudo de novo.

Antes da meia-noite, cace em silêncio e não acorde a mata com seus


latidos,
Para não assustar o cervo na roça e os irmãos não irem embora com
fome.
Pode matar por fome, pelos irmãos e pelos filhotes o tanto que
precisarem, contanto que consigam,
Mas não pelo prazer de matar, e, sete vezes eu repito, é proibido matar
gente!

Se pilhar a caça do mais fraco, não devore tudo orgulhoso;


O direito do bando é o direito do menor, deixe a cabeça e a pele para
ele.

A caça do bando é a carne do bando. Coma-a onde cair;


Ninguém deve levar essa carne para a toca, do contrário morrerá.

A caça do lobo é a carne do lobo. Ele pode fazer com ela o que quiser,
Mas, enquanto ele não der permissão, o bando não pode devorá-la.

O direito do filhote é o direito das crias. De todo o seu bando, ele pode
exigir
Comer bastante, se o dono da caça não quiser mais; e ninguém pode
recusar isso a ele.

O direito da toca é o direito da mãe. Para cada cria, ela pode exigir,
De cada caça, um pernil; e ninguém pode recusar isso a ela.

O direito da caverna é o direito do pai de caçar sozinho para a família:


Liberado dos deveres do bando, só pode ser julgado em conselho.
Pela idade e pela astúcia, pelos dentes e pelas garras,
Em tudo a lei deixa uma ressalva: a palavra do chefe dos lobos é lei.

Estas são as Leis da Selva, e muitas existem e alto é seu valor;


Mas o princípio e o fim da lei, sua cabeça e sua cauda, é: Obedeça!
O avanço da Selva

Cubram de véus os muros,


Flores, cipós e ervas;
Até esquecermos a imagem e o som,
E o cheiro e o contato dos homens!
Freixo negro na pedra do altar,
Eis a chuva com seus pés brancos!
Gamos avançam no agreste,
Onde ninguém os virá assustar;
Entre muros vazios de ruínas,
Onde ninguém virá morar!

Você deve se lembrar, se leu os contos de O livro da Selva, que depois de


Mowgli pendurar a pele de Shere Khan na Pedra do Conselho, ele
anunciou aos poucos que ficaram na Alcateia de Seeonee que, dali em
diante, caçaria sozinho na selva, e os quatro filhos de Mãe Loba e Pai
Lobo disseram que iriam com ele. Mas não é fácil mudar uma vida
inteira num minuto, especialmente na selva. A primeira coisa que
Mowgli fez quando o bando se dispersou foi voltar para sua caverna e
dormir o dia inteiro e a noite inteira também. Então contou a Mãe Loba
e Pai Lobo o máximo que eram capazes de entender de suas aventuras
entre os homens, e, quando fez o sol refietir na lâmina de sua faca — a
mesma que usara para arrancar a pele de Shere Khan —, eles
concordaram que o menino tinha aprendido mesmo alguma coisa.
Akela e o Irmão Cinzento explicaram sua participação na condução dos
búfalos para a ravina, e Baloo subiu para ouvir, e Bagheera se coçou de
pura delícia pela maneira como Mowgli comandara sua guerra.
Já havia passado muito tempo desde a madrugada, mas ninguém
sonhava em dormir, e, de quando em quando, durante a conversa, Mãe
Loba jogava a cabeça para trás e farejava, profundamente satisfeita toda
vez que o vento lhe trazia o cheiro da pele de tigre na Pedra do
Conselho.
— Mas sem Akela e o Irmão Cinzento — concluiu Mowgli — eu não
teria conseguido fazer nada. Ah, mãe, mãe! Se tivesse visto a manada
dos búfalos pretos descendo a ravina, ou correndo pelos portões
quando o Bando dos Homens atirou pedras em mim!
— Fico contente de não ter visto esse final — rechaçou Mãe Loba. —
Não é costume meu fazer meus filhotes sofrerem, arrastados para lá e
para cá feito chacais. Eu teria cobrado um preço do Bando dos
Homens, mas teria poupado a mulher que lhe deu leite. Sim, só ela.
— Paz, paz, Raksha! — resmungou Pai Lobo, preguiçosamente. —
Nossa rã voltou, e tão sábio que o próprio pai deve lamber seus pés. O
que é um corte, mais ou menos, na cabeça? Deixe o bicho-homem em
paz.
Baloo e Bagheera ecoaram:
— Deixe o bicho-homem em paz.
Apoiando a cabeça em Mãe Loba, Mowgli sorriu contente e disse
que, de sua parte, não desejaria nunca mais ver, ouvir ou sentir cheiro
de homem outra vez.
— Mas e se — conjecturou Akela, espichando uma orelha —, mas e
se os homens não o deixarem em paz, irmãozinho?
— Somos cinco — respondeu o Irmão Cinzento, olhando para os
irmãos e cerrando a mandíbula na última palavra.
— Nós também podemos tomar parte nessa caçada — emendou
Bagheera, com um estalar da cauda e olhando para Baloo. — Mas por
que pensar em homem agora?
— Pelo seguinte motivo — respondeu o Lobo Solitário —, quando
aquela pele amarela estava na pedra, voltei pelo nosso caminho até a
aldeia, acompanhando as minhas próprias pegadas, virando para o lado
e me agachando, para confundir o rastro caso alguém nos seguisse. Mas
depois que estraguei o rastro a ponto de eu mesmo mal conseguir
distingui-lo, Mang, o morcego, veio esvoaçando por entre as árvores,
pendurou-se em cima de mim e disse: “A aldeia do Bando dos Homens,
de onde expulsaram o filhote de homem, zumbe feito um vespeiro”.
— Foi uma pedra grande que atirei — riu Mowgli, que costumava se
divertir atirando paw-paws maduros em vespeiros e correndo até o
lago mais próximo antes que as vespas o pegassem.
— Perguntei a Mang o que ele tinha visto. Ele respondeu que a Flor
Vermelha se abriu no portão da aldeia, e os homens sentaram na
entrada, portando suas armas. Eu sei, pois tenho um bom motivo —
Akela olhava para as velhas cicatrizes secas nos fiancos —, que os
homens não levam armas por prazer. Na verdade, irmãozinho, há um
homem com uma arma seguindo nosso rastro, se é que já não nos
encontrou.
— Mas por que ele faria isso? Os homens já me expulsaram. Do que
mais precisam? — perguntou Mowgli, irritado.
— Você é homem, irmãozinho — respondeu Akela. — Não cabe a
nós, Caçadores Livres, dizer o que sua raça faz ou por quê.
Akela só teve tempo de retirar a pata, e a faca fincou fundo no chão
sob ela. Mowgli atacou mais depressa do que os olhos de um homem
comum conseguiriam acompanhar, mas Akela era um lobo, e até um
cachorro, que está muito distante do lobo selvagem, seu ancestral,
desperta do sono profundo quando ouve um carro de boi se
aproximando e consegue saltar ileso antes que as rodas o atropelem.
— Da próxima vez — disse Mowgli baixinho, devolvendo a faca à
bainha —, não fale do Bando dos Homens e de Mowgli na mesma frase.
— Puf! Que dente afiado — exclamou Akela, farejando o corte da
lâmina na terra —, mas viver com o Bando dos Homens estragou seu
olho, irmãozinho. Eu poderia ter matado um cervo enquanto estava
atacando.
Bagheera saltou aos pés dele, espichou a cabeça o máximo que pôde,
farejou e retesou cada parte de seu corpo. Irmão Cinzento seguiu seu
exemplo rapidamente, mantendo-se um pouco à esquerda para se
proteger do vento que vinha da direita, enquanto Akela ficava
cinquenta metros adiante e, meio agachado, retesava-se também.
Mowgli olhou com inveja. Era capaz de farejar coisas que poucos
humanos conseguiam, mas nunca alcançara a sensibilidade fina de um
focinho da selva, e seus três meses na aldeia enfumaçada o
prejudicaram lamentavelmente. Mesmo assim, umedeceu o dedo,
esfregou-o no nariz e se ergueu para captar o aroma do alto que,
embora sutil, é o mais verdadeiro.
— Homem! — rosnou Akela, subindo nas patas de trás.
— Buldeo! — acrescentou Mowgli, sentando-se. — Está em nosso
rastro, e aí adiante está sua arma, à luz do sol. Vejam!
Não passava de um refiexo de uma fração de segundo nas placas de
latão do velho mosquete da Torre, mas nada na selva brilha daquele
jeito, exceto quando as nuvens correm pelo céu. Então um pedaço de
mica, ou uma pequena poça, ou mesmo uma folha muito lustrosa
lampeja como um heliógrafo. Mas fazia um dia sem nuvens e calmo.
— Sabia que os homens o seguiriam — comentou Akela, triunfante.
— Não era à toa que eu liderava a alcateia.
Os quatro lobos de Mowgli não disseram nada, apenas correram
rente ao chão montanha abaixo, mesclando-se aos espinheiros e
arbustos rasteiros como uma toupeira se camufia num gramado.
— Aonde estão indo sem dizer nada? — chamou Mowgli.
— Shh! Vamos jogar o crânio do caçador do alto do morro antes que
o dia chegue à metade! — respondeu o Irmão Cinzento.
— Voltem! Voltem e esperem! Homem não come homem! — gritou
Mowgli.
— Quem até agora era lobo? Quem me atacou com a faca por falar
que era homem? — questionou Akela, enquanto os quatro lobos se
viravam emburrados e se agachavam.
— Devo explicar os motivos de tudo o que faço? — perguntou
Mowgli, furioso.
— Homem é assim! Aí quem falou foi o homem! — murmurou
Bagheera entre os bigodes. — Era desse jeito que discursavam ao redor
das jaulas do rei, em Oodeypore. Nós da selva sabemos que o homem é
o mais sábio. Mas, se confiássemos em nossos ouvidos, deveríamos
compreender que, de todas as criaturas, é a mais tola. — Levantando a
voz, acrescentou: — O filhote de homem tem razão. Homem caça em
bando. Matar um, se não soubermos o que os outros vão fazer, é uma
caçada ruim. Venham, vamos ver o que esse homem quer conosco.
— Não vamos — rosnou o Irmão Cinzento. — Cace sozinho,
irmãozinho. Nós sabemos o que queremos. O crânio dele já estaria à
disposição a essa altura.
Mowgli ficou olhando para os amigos com o peito arfante e os olhos
cheios de lágrimas. Caminhou na direção dos lobos e, apoiando um dos
joelhos no chão, disse:
— E eu não sei o que quero? Olhem para mim!
Pareceram incomodados, e, quando seus olhos se desviaram, ele os
chamou de volta diversas vezes, até que seus pelos ficaram todos
eriçados em seus corpos, e eles tremeram de medo nas patas, enquanto
Mowgli os encarava um por um.
— Agora — prosseguiu o menino —, dentre nós cinco, quem é o
líder?
— Você, irmãozinho — respondeu o Irmão Cinzento e lambeu o pé
de Mowgli.
— Então me sigam — ordenou Mowgli, e os quatro lobos foram
atrás, rente aos calcanhares dele, com os rabos entre as pernas.
— Isso é o que dá viver com o Bando dos Homens — acrescentou
Bagheera, seguindo logo atrás. — Agora na selva não existe apenas a
Lei da Selva, Baloo.
O velho urso não se manifestou, mas pensou em muitas coisas.
Mowgli atravessou a selva sem fazer alarde, em ângulo reto com o
caminho de Buldeo, até que, afastando a mata, viu o velho, mosquete no
ombro, seguindo o rastro da noite anterior num trote de cachorro.
Você deve se lembrar que Mowgli deixara a aldeia com o peso da
pele morta de Shere Khan nos ombros e Akela e o Irmão Cinzento
trotando logo atrás, de modo que o rastro triplo estava claramente
marcado. Buldeo havia chegado aonde Akela, como você sabe, voltara
para confundir as pegadas. Então sentou, tossiu, grunhiu e fez
pequenas tentativas ao redor para encontrar novamente o caminho, e
todo esse tempo poderia ter atirado uma pedra que teria acertado um
de seus observadores. Ninguém é mais silencioso que um lobo que não
quer ser notado, e Mowgli, embora os lobos o achassem muito
desajeitado, era capaz de entrar e sair feito uma sombra dos lugares.
Eles cercaram o homem como um grupo de botos rodeia um navio indo
a todo vapor e, enquanto o faziam, conversavam despreocupadamente,
pois sua fala começava abaixo do tom mais grave da escala que homens
destreinados são capazes de captar. (O outro extremo da escala é o
guincho agudo de Mang, o morcego, que muitas pessoas também não
conseguem ouvir. A partir dessa nota, começam as línguas de todos os
pássaros, morcegos e insetos.)
— Isto é melhor do que qualquer caça — comentou o Irmão
Cinzento, quando Buldeo parou, olhou e bufou. — Parece um javali
perdido na selva junto ao rio. O que está dizendo? — Buldeo
resmungava barbaramente.
Mowgli traduziu:
— Que bandos de lobos devem ter dançado ao meu redor. Que nunca
viu um rastro assim na vida. Que está cansado.
— Ele vai descansar antes de retomar o caminho — comentou
Bagheera indiferente, ao deslizar junto do tronco de uma árvore
naquela brincadeira de cabra-cega que estavam fazendo. — O que me
interessa é para que serve aquela coisa fina.
— Para engolir e soprar fumaça pela boca. Os homens estão sempre
mexendo a boca — respondeu Mowgli; e os rastreadores silenciosos
viram o velho encher, acender e baforar seu cachimbo, e prestaram
atenção no cheiro do tabaco, para terem certeza de que reconheceriam
Buldeo na noite mais escura, caso fosse necessário.
Então um pequeno grupo de carvoeiros veio pelo mesmo caminho e,
naturalmente, pararam para falar com Buldeo, cuja fama de caçador era
grande num raio de pelo menos trinta quilômetros. Todos sentaram e
fumaram, e Bagheera e os outros vieram ver quando Buldeo começou a
contar do começo ao fim a história de Mowgli, o Menino Diabo, com
acréscimos e invenções. Como ele mesmo tinha de fato matado Shere
Khan; como Mowgli havia se transformado em lobo, lutado contra ele a
tarde inteira e depois se transformado de volta em menino e
enfeitiçado o rifie de Buldeo, de modo que a bala fez a curva quando ele
a disparou contra Mowgli e matou um de seus búfalos; e de como a
aldeia, sabendo que ele era o caçador mais corajoso de Seeonee, o havia
enviado para matar o Menino Diabo. Mas, enquanto isso, a aldeia havia
prendido Messua e o marido, que sem dúvida eram pai e mãe do
Menino Diabo, e os trancado em sua própria cabana. Seriam torturados
até confessar que eram bruxa e feiticeiro, depois do que acabariam
queimados até a morte.
— Quando? — perguntaram os carvoeiros, pois gostariam muito de
comparecer à cerimônia.
Buldeo respondeu que nada seria feito até que ele voltasse, porque
primeiro a aldeia queria que ele matasse o menino da selva. Depois
disso, decidiriam o que fazer com Messua e o marido e dividiriam suas
terras e seus búfalos entre os moradores. O marido de Messua tinha
búfalos muito bons. Era excelente destruir um feiticeiro, apregoou
Buldeo; e as pessoas que abrigavam meninos-lobos saídos da selva
eram, obviamente, o pior tipo de bruxo.
Mas, argumentaram os carvoeiros, o que aconteceria se os ingleses
ficassem sabendo? Os ingleses, segundo tinham ouvido, eram um povo
absolutamente louco que não deixava agricultores honestos matarem
suas bruxas em paz.
Só que, explicou Buldeo, o chefe da aldeia iria dizer que Messua e o
marido haviam morrido de mordida de cobra. Estava tudo combinado,
e a única coisa agora era matar o menino-lobo. Eles não teriam visto tal
criatura?
Os carvoeiros olharam atentamente ao redor e agradeceram às
estrelas por não terem visto nada; mas não tinham dúvidas de que, se
existia alguém capaz de encontrá-lo, haveria de ser um homem
corajoso como Buldeo. O sol estava baixando e eles tiveram a ideia de ir
até a aldeia de Buldeo, dar uma olhada na bruxa maligna. O caçador
comentou que, embora fosse seu dever matar o Menino Diabo, não
conseguia pensar em deixar um grupo de homens desarmados
atravessar sem sua companhia a selva, que poderia revelar o Demônio
Lobo a qualquer momento. Ele, portanto, iria com eles, e se o filho dos
feiticeiros aparecesse — bem, ele mostraria como o melhor caçador de
Seeonee lidava com aquelas coisas. O sacerdote, disse ele, dera-lhe um
amuleto contra a criatura que tornava tudo perfeitamente seguro.
— O que ele disse? O que ele disse? O que ele disse? — repetiam os
lobos a cada dois minutos.
Mowgli traduziu até chegar à parte da bruxa, que lhe pareceu um
tanto incompreensível, e então contou da prisão do homem e da
mulher que haviam sido bons com ele.
— Homem prende homem? — quis saber Bagheera.
— Foi o que ele disse. Não consegui entender tudo. Eles ficam loucos
em bando. O que Messua e o marido têm a ver comigo para serem
postos numa armadilha? E que conversa é essa sobre a Flor Vermelha?
Preciso ver isso. Seja o que for que vão fazer a Messua, vão esperar até
Buldeo voltar. Sendo assim…
Mowgli pensou bem, com os dedos tamborilando no cabo da faca,
enquanto Buldeo e os carvoeiros partiram valentes em fila indiana.
— Vou depressa até o Bando dos Homens — disse Mowgli, por fim.
— E esses aí? — perguntou o Irmão Cinzento, olhando faminto para
as costas pardas dos carvoeiros.
— Podem acompanhá-los cantando — comentou Mowgli, com um
sorriso forçado. — Não quero que cheguem aos portões da aldeia antes
que escureça. Podem atrasá-los?
O Irmão Cinzento mostrou os dentes brancos com desdém.
— Se bem conheço o bicho-homem, podemos fazê-los andar em
círculos feito cabras amarradas.
— Disso não preciso. Cantem um pouco para eles, para que não se
sintam sozinhos na estrada, e, Irmão Cinzento, é preciso que seja a
canção mais suave. Vá com eles, Bagheera, e ajude a compor essa
canção. Quando estiver noite fechada, encontre-me na aldeia. Irmão
Cinzento conhece o lugar.
— Não é uma caçada nada fácil trabalhar para um filhote de homem.
Quando vou poder dormir? — reclamou Bagheera, bocejando, embora
seus olhos mostrassem que estava adorando a diversão. — Eu, cantar
para gente sem pelos! Pois bem, vamos tentar.
Baixou a cabeça para que o som viajasse para longe e entoou um
longo “Boa caçada” — um chamado da meia-noite em plena tarde, o
que por si só já era algo bastante horrível. Mowgli ouviu o chamado
ecoando, aumentando e diminuindo, até morrer num ganido assustador
atrás de si, e gargalhou sozinho enquanto corria pela selva. Podia ver os
carvoeiros amontoados e a espingarda do velho Buldeo balançando
feito uma folha de bananeira para todos os lados da bússola ao mesmo
tempo. Em seguida, o Irmão Cinzento fez seu “Ya-la-hi! Yalaha! ”, o
chamado para conduzir cervos, feito quando a alcateia leva o nilgó, o
grande antílope-azul, à sua frente, e que parece vir de todos os recantos
da terra, cada vez mais perto, mais perto, mais perto, até terminar num
berro subitamente interrompido. Os outros lobos responderam, até
Mowgli entender que toda a alcateia estava cantando a plenos pulmões,
e então começaram todos juntos sua magnífica Canção da Manhã na
Selva, com aqueles fioreios, arpejos e glissandos, ornamentos que todo
lobo de voz grave da alcateia sabe fazer. Eis aqui uma versão
simplificada da canção, mas você deve imaginar como ela soa quando
interrompe o alvoroço da tarde na selva:

Um minuto atrás, os nossos corpos


Nem sombra faziam na planície;
Agora, nítidas e negras, elas seguem nosso rastro,
E vamos correndo para casa.
No alvoroço do dia, cada pedra e planta
Se levanta, firme, alta e se eriça:
E se ouve o chamado: “Bom descanso
Aos que respeitam a Lei da Selva!”.
Agora, chifres e garras se mesclam,
Escondidos para o descanso;
Agachados, imóveis, em tocas, barrancos,
Nossos barões da selva se encaixam.
Agora, rijos e singelos, os bois do homem
Puxam seu novo arado;
Rajada e temida, a aurora se cora
Acima do lago iluminado.

Ho! Volte para a toca! O sol esbraseia


Atrás da mata que respira:
Estalando entre jovens bambus,
Passam sussurros de alerta.
Estranhos graças ao dia, bosques que percorremos,
Vasculhamos de olhos cansados;
Enquanto pelo céu gritam patos-selvagens:
“Começou o dia — é a hora do homem!”.

Seca o orvalho que nos encharca


Ou escorre em nosso caminho;
Ali onde bebemos, a poça da margem
Ressecou, virou lama.
Traidor, o escuro desfaz os rastros
Das garras esticadas ou recolhidas;
E se ouve o chamado: “Bom descanso
Aos que respeitam a Lei da Selva!”.

Mas nenhuma tradução é capaz de transmitir o efeito dessa canção,


nem o escárnio agudo que os Quatro Irmãos colocaram em cada
palavra ao ouvir as árvores rachando sob o peso dos homens, que
subiam às pressas nos galhos, e Buldeo repetindo ladainhas e
encantamentos. Então deitaram e adormeceram, pois, como todo
aquele que vive dos próprios esforços, tinham uma mentalidade
metódica; e ninguém consegue trabalhar bem sem dormir.
Enquanto isso, Mowgli percorria quilômetros, quase quinze por
hora, à vontade, satisfeito por se ver tão em forma depois dos meses de
sedentarismo entre os homens. A única coisa que tinha em mente era
tirar Messua e o marido da armadilha, fosse ela qual fosse, pois tinha
uma desconfiança natural contra as armadilhas. Depois, jurou a si
mesmo que acertaria suas contas com a aldeia como um todo.
No final da tarde, viu os pastos de que se lembrava bem e a árvore
dhâk, sob a qual o Irmão Cinzento o havia esperado na manhã em que
matara Shere Khan. Mesmo irritado como estava com toda a raça e a
comunidade dos homens, algo subiu por dentro de sua garganta e o
deixou sem fôlego quando viu os telhados da aldeia. Reparou que todos
haviam voltado mais cedo do que de costume dos campos e que, em vez
de prepararem o jantar, estavam reunidos embaixo da árvore da aldeia,
conversando, aos berros.
— Os homens estão sempre fazendo armadilhas para outros homens,
do contrário não ficam contentes — concluiu Mowgli. — Na noite
passada, foi para Mowgli, mas isso parece ter sido muitas chuvas atrás.
Hoje à noite será para Messua e o marido. Amanhã, e por muitas noites
seguintes, vai ser de novo a vez de Mowgli.
Ele se esgueirou pelo lado de fora até chegar à cabana de Messua e
olhou pela janela para dentro do quarto. Lá estava ela, deitada,
amordaçada, amarrada pelas mãos e pelos pés, respirando com
dificuldade e gemendo. O marido estava atado à cama colorida. A porta
da cabana que dava para a rua estava trancada, com três ou quatro
pessoas sentadas de costas para ela.
Mowgli conhecia muito bem os costumes e os modos das pessoas da
aldeia. Na sua opinião, enquanto conseguissem comer, falar e fumar,
não fariam outra coisa; mas assim que ficavam satisfeitos, começavam a
se tornar perigosos. Buldeo chegaria a qualquer momento, e se os
companheiros de Mowgli tivessem feito seu trabalho, teria uma
história muito interessante para contar. Então entrou pela janela e,
parando junto ao homem e à mulher, cortou-lhes as amarras, tirou as
mordaças e procurou um pouco de leite na cabana.
Messua estava furiosa de dor e medo (havia sido espancada e
apedrejada durante a manhã inteira), e Mowgli fechou sua boca com a
mão a tempo de impedir que ela gritasse. O marido, apenas perplexo e
irritado, continuou sentado tirando a poeira e a sujeira de sua barba
desgrenhada.
— Eu sabia… sabia que ele viria — soluçou Messua, por fim. —
Agora tenho certeza de que é meu filho! — E deu um abraço apertado
em Mowgli.
Até esse momento, Mowgli estivera perfeitamente firme, mas então
começou a tremer por inteiro, e isso o deixou muito surpreso.
— Para que servem essas amarras? Por que a prenderam? —
perguntou, depois de uma pausa.
— Para nos condenar à morte por tê-lo acolhido como filho. Por que
mais poderia ser? — respondeu o homem, amuado. — Veja! Estou
sangrando.
Messua não disse nada, mas foi para as feridas dela que Mowgli
olhou, e eles ouviram seu ranger de dentes quando o menino viu o
sangue.
— Quem fez isso? — quis saber. — Existe um preço a pagar por isso.
— Todas as pessoas da aldeia. Eu era muito rico. Tinha muito gado.
Portanto, ela e eu viramos bruxos, por termos abrigado você.
— Não entendi. Deixe que Messua me conte.
— Eu lhe dei leite, Nathoo, lembra? — disse Messua, timidamente.
— Porque era meu filho que o tigre levou e porque o amei demais. Eles
disseram que eu era sua mãe, a mãe de um demônio, e, portanto,
merecia morrer.
— E o que é um demônio? — perguntou Mowgli. — A morte, eu já vi.
O homem ergueu o rosto soturnamente, mas Messua riu.
— Veja! — disse ao marido. — Eu sabia… falei que não era feiticeiro
coisa nenhuma. Ele é meu filho… meu filho!
— Filho ou feiticeiro, que diferença faz para nós? — retrucou o
homem. — Já estaremos mortos.
— A estrada para a selva fica ali… — Mowgli apontou pela janela. —
Seus pés e mãos estão livres. Podem ir.
— Não conhecemos a selva como… como você, meu filho —
começou Messua. — Não creio que vamos conseguir chegar muito
longe.
— E os homens e as mulheres da aldeia vão sair atrás de nós e nos
arrastar de volta para cá — acrescentou o marido.
— Hum! — pensou Mowgli, coçando a palma da mão com a ponta da
faca. — Não desejo fazer mal a ninguém nesta aldeia… ainda. Mas não
creio que irão persegui-los. Daqui a pouco terão muito em que pensar.
Ah! — Ele ergueu a cabeça e prestou atenção nos gritos e no barulho de
passos do lado de fora. — Então finalmente deixaram Buldeo voltar
para casa?
— Ele foi enviado hoje cedo para matar você! — exclamou Messua.
— Encontrou Buldeo?
— Sim… nós… encontrei. Ele tem uma história para contar, e,
enquanto estiver fazendo isso, vamos ter tempo para muita coisa. Mas
primeiro quero entender o que eles pretendem fazer. Pensem em um
lugar para o qual gostariam de ir e me digam quando eu voltar.
Ele saiu pela janela e correu rente ao muro da aldeia até chegar a
uma distância em que conseguia ouvir a multidão reunida sob a árvore
peepul. Buldeo estava deitado no chão, tossindo e resmungando, e todos
lhe faziam perguntas. Seu cabelo caía solto sobre os ombros, suas mãos
e pernas estavam esfoladas de tanto subir em árvores, e ele mal
conseguia falar, mas sentia agudamente a importância de sua posição.
Deixou escapar algo sobre demônios, demônios que cantavam, e
encantamentos mágicos, só para dar um gostinho à multidão do que
viria pela frente. Então pediu água.
— Bah! — exclamou Mowgli. — Falatório! Só conversa! Os homens
são irmãos de sangue do Bandar-log. Agora ele quer lavar a boca com
água; depois fumar; depois que tudo acabar ainda vai ter história para
contar. Eles são muito sábios, esses homens. Não vão deixar ninguém
vigiando Messua até seus ouvidos estarem cheios das histórias de
Buldeo. E eu… estou ficando preguiçoso como eles!
Ele se sacudiu e voltou se esgueirando para a cabana. Assim que
chegou à janela sentiu um toque no pé.
— Mãe — perguntou, pois conhecia bem aquela língua —, o que faz
aqui?
— Ouvi meus filhos cantando na mata e segui aquele que mais amo.
Rãzinha, desejo ver a mulher que lhe deu leite — pediu Mãe Loba, toda
molhada de orvalho.
— Eles a amarraram e pretendem matá-la. Cortei as amarras, ela vai
com o marido para a selva.
— Vou junto. Estou velha, mas ainda tenho dentes. — Mãe Loba
subiu nas patas de trás e olhou pela janela para dentro da cabana
escura.
No minuto seguinte, voltou às quatro patas sem fazer ruído e tudo o
que disse foi:
— Eu lhe dei seu primeiro leite, mas Bagheera disse a verdade: no
fim, o homem sempre volta para o homem.
— Talvez — disse Mowgli, com uma expressão muito incomodada
no rosto —, mas esta noite estou longe demais desse rastro. Espere
aqui, mas não deixe que ela a veja.
— Você nunca teve medo de mim, rãzinha — comentou Mãe Loba,
voltando para o mato e desaparecendo, como sabia bem fazer.
— E agora — anunciou Mowgli, entusiasmado, entrando outra vez
na cabana —, estão todos sentados em volta de Buldeo, que está lá
contando coisas que não aconteceram. Quando ele acabar de falar,
prometeram vir até aqui com a fior… com o fogo, e queimar vocês dois.
E então?
— Falei com meu marido — respondeu Messua. — Khanhiwara fica
a quase cinquenta quilômetros daqui, mas lá podemos encontrar os
ingleses…
— E de que bando eles são? — quis saber Mowgli.
— Não sei. São brancos e dizem que governam toda a terra e não
deixam as pessoas serem queimadas ou espancadas sem testemunhas.
Se conseguirmos fugir hoje à noite, estaremos salvos. Do contrário,
vamos morrer.
— Salvem-se, então. Pessoa nenhuma vai passar pelo portão hoje à
noite. Mas o que ele está fazendo? — O marido de Messua estava
ajoelhado, cavando a terra do canto da cabana.
— É um pouco do dinheiro dele — respondeu Messua. — Não
podemos levar mais nada.
— Ah, sim. A coisa que passa de mão em mão e nunca esquenta.
Também precisam disso fora daqui? — perguntou Mowgli.
O homem o fitou irritado.
— É mesmo um tolo, e não um demônio — resmungou. — Com o
dinheiro posso comprar um cavalo. Estamos muito feridos para fugir
andando, e a aldeia irá nos procurar dentro de uma hora.
— Estou dizendo que não procurarão, não até que eu decida; mas um
cavalo é uma boa ideia, pois Messua está cansada.
O marido ficou de pé e guardou as rupias numa faixa na cintura.
Mowgli ajudou Messua a passar pela janela e o ar fresco da noite a
reanimou, mas a selva, à luz das estrelas, parecia muito escura e
terrível.
— Conhecem a trilha para Khanhiwara? — sussurrou Mowgli.
Eles fizeram que sim com a cabeça.
— Bom. Lembrem-se, não é preciso ter medo. E não é preciso ter
pressa. A única coisa… a única coisa é que pode haver cantoria na
selva, atrás e na frente de vocês.
— E pensar que arriscaríamos passar a noite na selva por algum
motivo além do medo de morrer queimados! É melhor morrer nas
garras de um bicho do que nas mãos do homem — exclamou o marido
de Messua, mas a mulher olhou para Mowgli e sorriu.
— Estou dizendo — continuou Mowgli, como se fosse o próprio
Baloo repetindo uma velha Lei da Selva pela centésima vez a um filhote
tolo —, estou dizendo que nenhum dente da selva ousará se erguer
contra vocês; nenhuma garra da selva irá atacá-los. Nem homem nem
bicho, ninguém irá detê-los até que avistem Khanhiwara. Vocês terão
uma escolta ao seu redor. — E virou rapidamente para Messua,
dizendo: — Ele não acredita, mas e você, confia em mim?
— Sim, sem dúvida, meu filho. Homem, fantasma ou lobo da selva,
confio.
— Ele vai ficar com medo quando ouvir meu povo cantar. Você vai
saber e entender. Agora vá, sem pressa, pois não há motivo para isso. Os
portões estão fechados.
Messua se atirou aos prantos aos pés de Mowgli, mas ele a levantou
do chão rapidamente, sacudindo-a. Então se pendurou no pescoço dele
e o abençoou com todos os nomes que conseguiu pensar na hora, mas o
marido olhou com rancor para seus campos e disse:
— Se chegarmos mesmo a Khanhiwara e eu conseguir uma
audiência com os ingleses, vou abrir um processo contra o sacerdote, o
velho Buldeo e todos os outros que irão sugar esta aldeia até os ossos.
Eles hão de me pagar em dobro por minhas colheitas perdidas e os
búfalos famintos. Eu farei justiça.
Mowgli riu.
— Não sei o que é justiça, mas… volte nas próximas chuvas para ver
o que sobrou.
Eles foram em direção à selva, e Mãe Loba saiu de seu esconderijo.
— Siga-os! — pediu Mowgli. — E garanta diante de todos na selva
que esses dois estejam a salvo. Espalhe logo a notícia. Eu chamaria
Bagheera.
O uivo comprido e grave aumentou e diminuiu, e Mowgli viu o
marido de Messua se encolher e se virar, tentado a correr de volta para
a cabana.
— Continue — exclamou Mowgli, entusiasmado. — Eu avisei que
poderia haver cantoria. Esse chamado irá até Khanhiwara. É o Favor da
Selva.
Messua apressou o marido para seguirem em frente, e a escuridão se
fechou sobre eles. Mãe Loba e Bagheera foram até perto de Mowgli,
trêmulos daquele prazer noturno que torna selvagens os Povos da
Selva.
— Que vergonha dessa sua raça — disse Bagheera, ronronando.
— O que foi? Não cantaram bonito para Buldeo? — perguntou
Mowgli.
— Muito bonito! Bonito demais! Até esqueci meu orgulho e, pelo
cadeado quebrado que me libertou, comecei a cantar pela selva como
se fosse a primavera! Não nos ouviu?
— Eu tinha outra caça por perto. Pergunte a Buldeo se gostou da
canção. Mas onde estão os Quatro? Não quero que ninguém do Bando
dos Homens atravesse os portões esta noite.
— Então para que precisa dos Quatro? — vangloriou-se Bagheera,
trocando o peso de uma pata para a outra, os olhos faiscantes, e
ronronando mais alto que nunca. — Posso atrasá-los por minha conta,
irmãozinho. É para matar agora? A cantoria e a visão dos homens
subindo nas árvores me deixaram muito disposto. Quem é esse homem
que não podemos tocar… um cavador marrom, sem roupas, sem pelos
e sem dentes, o comedor de terra? Eu o segui o dia inteiro, em pleno
meio-dia, debaixo da luz clara do sol. Conduzi esse homem como os
lobos conduzem cervos. Sou Bagheera! Bagheera! Bagheera! Como
danço com minha sombra, dancei com esses homens. Veja! — A grande
pantera saltou como um filhote numa folha morta que esvoaçava sobre
sua cabeça, com a pata direita e a esquerda atacou o ar, que zuniu com
suas garras, voltou ao chão sem ruído e tornou a saltar e a saltar outra
vez, enquanto o misto de ronronar com rugir lhe saía como o vapor sai
de uma caldeira. — Sou Bagheera, na mata, na noite, e minha força está
toda dentro de mim. Quem há de resistir ao meu ataque? Filhote de
homem, com um golpe da minha pata esmagaria sua cabeça como uma
rã morta no verão!
— Pois então ataque! — disse Mowgli, no dialeto da aldeia, não na
fala da selva.
As palavras humanas fizeram Bagheera parar subitamente, recuar,
sentar nas patas de trás e tremer, com a cabeça na altura do rosto de
Mowgli. Mais uma vez, Mowgli olhou firme para ele, como tinha
encarado os filhotes rebeldes, fitando fundo aqueles olhos verdes até
que o fogo vermelho por trás do verde sumiu como a luz de um farol
desligado a quarenta quilômetros mar adentro, e os olhos baixaram, e,
com eles, a grande cabeça, cada vez mais baixa, e o vermelho da língua
áspera roçaram os pés de Mowgli.
— Irmão… Irmão… Irmão! — sussurrou o menino, acarinhando o
amigo com suavidade ao longo do pescoço e até o dorso arquejante. —
Sossegue, sossegue! A culpa não é sua, é da noite.
— Foram os aromas da noite — justificou-se Bagheera. — Esse ar
grita para mim. Mas como você sabia disso?
Claro que o ar que rodeia uma aldeia na Índia é cheio de todo tipo de
aromas, e para uma criatura cujo pensamento se dá quase todo por
meio do nariz, os aromas são tão enlouquecedores quanto música e
drogas para os seres humanos. Mowgli ficou fazendo carinhos na
pantera por mais alguns minutos, até que o animal se deitou feito um
gato diante de uma lareira, com as patas sob o peito e os olhos quase
fechados.
— Você é da selva e não é da selva — disse, por fim. — E sou apenas
uma pantera-negra. Mas amo você, irmãozinho.
— Eles estão demorando muito nessa conversa embaixo da árvore —
comentou Mowgli, deixando passar aquela última frase. — Buldeo já
deve ter contado muitas histórias. Eles vão chegar a qualquer momento
para tirar a mulher e o marido da armadilha e colocá-los na Flor
Vermelha. Vão encontrar a armadilha aberta. Ha! Ha! Ha!
— Não, escute — alertou Bagheera. — A febre do meu sangue já
passou. Quando chegarem, vão me encontrar lá dentro! Poucos sairiam
de casa depois de me ver. Não será a primeira vez que entro numa
jaula, e não acho que vão me amarrar com cordas.
— Então tome cuidado — concordou Mowgli, dando risada, pois
começava a ficar tão inquieto quanto a pantera, que pulou para dentro
da cabana.
— Bah! — grunhiu Bagheera. — Que fedor de homem, mas aqui só
tem uma cama como a que me deram na jaula do rei, em Oodeypore.
Vou deitar nela. — Mowgli ouviu as cordas do catre estalarem sob o
peso do grande animal. — Pelo cadeado que me libertou, vão pensar
que pegaram uma caça grande! Venha, sente aqui do meu lado,
irmãozinho; vamos mostrar a eles o que é uma “boa caçada” em dupla!
— Não. Tenho outra ideia aqui na minha barriga. O Bando dos
Homens não deve saber de minha parte nisso. Cace sozinho. Não quero
vê-los.
— Assim será — assentiu Bagheera. — Estão chegando!
Do outro lado da aldeia, a conferência debaixo da figueira sagrada
ficara cada vez mais barulhenta. Em pouco tempo, ouviram-se berros
selvagens e um rumor de homens e mulheres subindo a rua, com
porretes, bambus, foices e facas. Buldeo e o brâmane vinham na frente,
mas a multidão vinha logo atrás, gritando:
— A bruxa e o feiticeiro! Vamos ver se moedas em brasa os farão
confessar! Vamos queimar sua cabana! Vamos ensiná-los a nunca mais
abrigar demônios-lobos! Não, primeiro vamos bater neles! Tochas!
Mais tochas! Buldeo, preparar armas!
Tiveram alguma dificuldade com o trinco da porta. Fora firmemente
aferrolhada, mas a multidão a derrubou com força e a luz das tochas
invadiu o quarto, onde, esticado na cama, com as patas cruzadas e
ligeiramente inclinado sobre uma delas, negro como piche e terrível
como um demônio, estava Bagheera. Houve meio minuto de um
silêncio desesperado, enquanto as primeiras fileiras de homens
paravam e voltavam por onde haviam entrado. Nesse momento,
Bagheera ergueu a cabeça e bocejou — elaborada, cuidadosa e
ostensivamente — como teria feito se quisesse insultar outra pantera.
Os dentes se arreganharam, a língua vermelha se curvou, a mandíbula
foi baixando até que dava para ver lá dentro da goela quente, e os
caninos gigantescos ficaram expostos nas gengivas até que se tocaram,
os de cima com os de baixo, com o som dos encaixes metálicos da porta
de um cofre. No momento seguinte, a rua estava vazia; Bagheera havia
saltado pela janela e se colocara ao lado de Mowgli, enquanto uma
multidão berrava e gritava, tropeçando uns nos outros, em pânico para
voltar para as próprias cabanas.
— Não sairão até o amanhecer — comentou Bagheera, suavemente.
— E agora?
Um silêncio de sesta pareceu se abater sobre a aldeia; mas, prestando
bem atenção, eles ouviram o som de pesadas caixas de grãos sendo
arrastadas sobre o chão de terra para bloquearem as portas. Bagheera
tinha toda a razão; a aldeia não faria nada até o dia seguinte. Mowgli
parou e pensou, e seu rosto foi ficando cada vez mais soturno.
— O que foi que fiz? — perguntou Bagheera, enfim rastejando aos
pés do menino, todo carinhoso.
— Nada além de um grande bem. Agora vigie até o amanhecer. Vou
dormir. — Mowgli correu para a selva, caiu feito morto sobre uma
pedra e dormiu e dormiu até o sol nascer e a noite chegar outra vez.
Quando acordou, Bagheera estava a seu lado, e havia um cervo
recém-caçado a seus pés. A pantera ficou assistindo curiosa Mowgli
trabalhar com a faca, comer e beber e virar para ela com as mãos no
queixo.
— O homem e a mulher chegaram a salvo em Khanhiwara —
anunciou Bagheera. — Sua Mãe Loba mandou avisar por meio de Chil,
o milhafre. Conseguiram um cavalo antes da meia-noite do dia em que
fugiram e chegaram bem depressa. Isso não é bom?
— Isso é bom — declarou Mowgli.
— E o seu Bando dos Homens na aldeia não se mexeu até que o sol
estava alto de manhã. Então comeram e voltaram depressa para as
casas.
— Por acaso viram você?
— Talvez. Fiquei rolando na areia na frente do portão de madrugada
e posso também ter cantado um pouco sozinho. Agora, irmãozinho, não
há mais nada a fazer. Venha caçar comigo e com Baloo. Ele quer
mostrar umas colmeias novas, e todos queremos que volte a ser como
antes. Não fique mais com essa cara que dá medo até em mim! O
homem e a mulher não vão mais ser postos na Flor Vermelha, e tudo
vai bem na selva. Não é verdade? Vamos esquecer o Bando dos
Homens.
— Eles serão esquecidos… em breve. Onde Hathi vai comer hoje à
noite?
— Onde bem entender. Quem pode falar pelo Senhor do Silêncio?
Mas por quê? O que Hathi pode fazer que nós também não podemos?
— Peça a ele para vir aqui com os três filhos.
— Mas, na verdade, a bem dizer, irmãozinho, não tem… não tem
cabimento dizer “Venha” e “Vá” para Hathi. Lembre-se de que ele é o
Senhor da Selva, e antes que o Bando dos Homens tivesse mudado o
olhar no seu rosto, foi ele quem lhe ensinou as Palavras Mestras da
Selva.
— Dá na mesma. Tenho aqui uma Palavra Mestra para ele agora.
Peça para vir ver Mowgli, a rã, e se ele não escutar na hora, peça que
venha pelo saque dos campos de Bhurtpore.
— Pelo saque dos campos de Bhurtpore — repetiu Bagheera duas ou
três vezes para garantir. — Vou lá. Hathi pode no máximo ficar irritado,
e eu daria uma lua de caçadas para ouvir uma Palavra Mestra capaz de
obrigar o Silencioso a qualquer coisa.
Ele foi embora e deixou Mowgli enfiando furiosamente a faca na
terra. O menino nunca tinha visto sangue humano até o dia em que viu
e — muito mais importante para ele — sentiu o cheiro do sangue de
Messua nas amarras que a prendiam na cama. Messua havia sido boa
para ele, e, até onde ele sabia o que era amar, amava Messua tão
completamente quanto odiava o resto da humanidade. Mas, mesmo
com esse ódio profundo, com todo aquele falatório, aquela crueldade e
aquela covardia, por nada que a selva pudesse lhe oferecer tiraria uma
vida humana, nem sentiria aquele terrível aroma do sangue outra vez
nas narinas. Seu plano era mais simples, porém muito mais amplo, e ele
riu consigo mesmo ao lembrar que tinha sido uma história que o velho
Buldeo contara embaixo da árvore peepul, uma noite, que enfiara a
ideia em sua cabeça.
— Era mesmo uma Palavra Mestra — sussurrou Bagheera em seu
ouvido. — Eles estavam comendo perto do rio e obedeceram como se
fossem bois. Veja onde estão agora!
Hathi e os três filhos chegavam à maneira de sempre, sem fazer
barulho. A lama do rio ainda fresca em seus corpos, e Hathi mascando
pensativo o talo verde de uma folha de bananeira que abocanhara com
suas presas. Mas todos os sinais em seu vasto corpo demonstravam a
Bagheera, alguém capaz de ver coisas quando se deparava com elas,
que não era o Senhor da Selva falando com um filhote de homem, mas
alguém com medo diante de alguém sem medo. Os três filhos ficaram
lado a lado, atrás do pai.
Mowgli mal ergueu a cabeça quando Hathi o saudou:
— Boa caçada.
O menino continuou balançando para a frente, para trás e para os
lados, mudando o peso de um pé para o outro por um longo tempo,
antes de falar qualquer coisa. Quando abriu a boca, dirigiu-se a
Bagheera, e não aos elefantes.
— Vou contar uma história que ouvi do caçador que você caçou
ontem — anunciou Mowgli. — É sobre um elefante, velho e sábio, que
caiu numa armadilha e feriu-se dos calcanhares até os ombros, numa
branca cicatriz, devido às lanças afiadas do fosso.
Mowgli estendeu a mão, e Hathi posicionou-se sob o luar, mostrando
a cicatriz branca e comprida em seu fianco cinzento como se tivesse
sofrido uma chicotada de ferro em brasa.
— Os homens vieram tirá-lo da armadilha — continuou Mowgli —,
mas ele arrebentou as cordas, pois era forte, e fugiu até a ferida sarar.
Então voltou irritado, à noite, para os campos dos caçadores. E agora
me lembrei que ele tinha três filhos. Isso tudo aconteceu há muitas
chuvas e muito longe daqui, nos campos de Bhurtpore. O que
aconteceu àqueles campos na colheita seguinte, Hathi?
— Foram colhidos por mim e por meus três filhos — respondeu
Hathi.
— E o que aconteceu às roças aradas depois da colheita? —
perguntou Mowgli.
— Não havia mais roça — disse Hathi.
— E os homens que viviam perto das plantações? — indagou
Mowgli.
— Foram embora.
— E as cabanas onde eles dormiam? — continuou Mowgli.
— Pusemos abaixo os telhados e quebramos tudo, e a selva engoliu
os muros — disse Hathi.
— E o que mais? — insistiu Mowgli.
— A selva levou, de leste a oeste, o tanto que consigo andar duas
noites inteiras e, de norte a sul, o tanto que consigo caminhar em três.
Deixamos a selva ocupar cinco aldeias. Nessas aldeias, nas terras de
cada uma delas, nos pastos e nas roças macias, não há homem nenhum
para tirar sua comida do chão. Esse foi o saque dos campos de
Bhurtpore que eu e meus três filhos realizamos. E agora pergunto,
filhote de homem, como essa notícia chegou a você? — quis saber
Hathi.
— Um homem me contou, e agora vejo que até Buldeo é capaz de
falar a verdade. Foi bem feito, Hathi da cicatriz branca, mas da segunda
vez deve ser melhor ainda, pelo fato de que agora existe um homem no
comando. Conhece a aldeia do Bando dos Homens que me expulsou?
São preguiçosos, fúteis e cruéis. Ficam mexendo as bocas e não matam
para comer, mas por esporte. Quando estão satisfeitos, jogam o próprio
povo na Flor Vermelha. Isso eu vi. Não é bom que continuem vivendo
aqui. Odeio essa gente!
— Então mate-os — sugeriu o caçula de Hathi, pegando um tufo de
mato nas patas da frente e jogando longe, enquanto revirava seus
olhinhos vermelhos, curiosos e furtivos.
— De que me valem ossos brancos? — respondeu Mowgli, irritado.
— Será que ainda sou um filhote de lobo para brincar ao sol com uma
cabeça arrancada? Matei Shere Khan, e sua pele está apodrecendo na
Pedra do Conselho. Mas… mas não sei aonde foi parar Shere Khan, e
minha barriga ainda está vazia. Agora vou tomar o que posso ver e
tocar. Deixe a selva avançar sobre essa aldeia, Hathi!
Bagheera estremeceu e se acovardou. Conseguia compreender, na
pior das hipóteses, uma descida rápida até a rua da aldeia e um golpe
de direita e um de esquerda na multidão, ou uma bela caça de homem
enquanto aravam de manhã cedo; mas aquele esquema de
deliberadamente apagar uma aldeia inteira dos olhos do homem e dos
bichos o havia apavorado. Agora entendia por que Mowgli mandara
chamar Hathi. Ninguém senão o velho elefante poderia planejar e levar
a cabo uma guerra assim.
— Deixe que fujam como os homens dos campos de Bhurtpore, até
que só a chuva sulque a terra e o barulho da chuva nas folhas grossas
seja o único som pisando o chão. Até que Bagheera e eu façamos nossa
toca na casa do sacerdote, e que o cervo beba no tanque atrás do
templo! Deixe a selva invadir, Hathi!
— Mas eu… mas nós não temos nenhuma desavença com eles, e é
preciso um tanto da raiva vermelha que advém de muita dor para
destruirmos os lugares onde dormem os homens — argumentou Hathi,
hesitante.
— Vocês por acaso são os únicos comedores de mato da selva?
Conduza o seu povo aldeia adentro. Que o veado, o javali e o nilgó
vejam. Nem precisa vir mostrar os pelos aqui enquanto aqueles campos
não estiverem destruídos. Deixe a selva invadir, Hathi!
— Mas não haverá mortes? Minhas presas ficaram vermelhas no
saque dos campos de Bhurtpore, e eu não poderia suportar aquele
cheiro outra vez.
— Nem eu. Não quero nem os ossos deles sobre a terra limpa. Deixe
que fujam e encontrem uma toca fresca. Aqui não podem ficar. Vi e
cheirei o sangue da mulher que me deu comida, a mulher que teriam
matado se não fosse por mim. Só o aroma de mato novo crescendo
sobre as casas vai apagar aquele cheiro. Ainda me arde a boca. Deixe a
selva invadir, Hathi!
— Ah! — exclamou Hathi. — Assim como ardia a cicatriz da
queimadura em minha pele, até que vi as aldeias morrerem com os
brotos da primavera. Agora entendi. Sua guerra será a nossa guerra.
Vamos deixar a selva invadir!
Mowgli mal teve tempo de tomar fôlego — estava tremendo de raiva
e ódio —, e o lugar em que estavam os elefantes ficou vazio, enquanto
Bagheera o fitava aterrorizado.
— Pelo cadeado quebrado que me libertou! — exclamou, enfim, a
pantera-negra. — É a mesma criatura sem pelos que defendi perante a
alcateia quando era pequeno? Senhor da Selva, quando minha força se
esvair, me defenda… defenda Baloo… defenda-nos a todos! Somos
filhotes diante de você! Gravetos quebrados sob seus pés! Gamos que se
perderam do cervo adulto!
A ideia de Bagheera como um gamo desgarrado desconcertou
Mowgli, e ele gargalhou até perder o fôlego, soluçou e continuou rindo
até que precisou mergulhar num lago para conseguir parar. Então
nadou em círculos, afundando e emergindo através das manchas da lua
como a rã, sua xará.
A essa altura, Hathi e cada um de seus três filhos haviam se dividido
entre os quatro pontos da bússola e desciam silenciosamente os vales a
menos de dois quilômetros dali. Assim prosseguiram, marchando por
mais dois dias pela selva — ou seja, numa longa viagem de quase cem
quilômetros. Cada passo que davam, cada ondulação das trombas, eram
vistos e divulgados por Mang, Chil, o Povo Macaco e por todos os
pássaros. Então começaram a comer, e o fizeram silenciosamente por
uma semana ou mais. Hathi e seus filhos são como Kaa, o píton; só se
apressam quando necessário.
Ao final desse tempo — e ninguém sabe como começou —, um
rumor percorreu a selva, alardeando a melhor comida e bebida que
existia por aqueles vales. O javali, que, claro, iria até os confins da terra
por uma boa refeição, avançou em bando, farejando entre as pedras, e
os cervos foram atrás, com as raposinhas selvagens que vivem dos
mortos e moribundos do rebanho. O nilgó de ombros fortes seguiu em
paralelo com os cervos, e os búfalos selvagens dos charcos
acompanharam os nilgós. Qualquer coisinha espantava os bandos
dispersos e espalhados que pastavam, saltitavam, bebiam e tornavam a
pastar; mas, sempre que havia algum motivo de alarme, alguém se
levantava e os acalmava. Uma vez foi Sahi, o porco-espinho, cheio de
novidades sobre a comida boa que havia um pouco mais adiante; de
outra, Mang guinchou alegre e esvoaçou até uma poça, para mostrar
que estava tudo vazio; ou Baloo, com a boca cheia de raízes, percorreu
uma leira hesitante e assustada, empurrando-a desajeitadamente para
o caminho correto. Muitas criaturas se desgarraram, fugiram ou
perderam o interesse, mas muitas também ficaram e seguiram em
frente. Ao final de mais dez dias, ou quase isso, a situação era a
seguinte. O cervo, o javali e o nilgó haviam formado um círculo de uns
doze, quinze quilômetros de raio em torno do qual posicionaram-se os
Comedores de Carne. O centro desse círculo era a aldeia, e, ao redor da
aldeia, as roças estavam na época de serem colhidas. Nas roças, havia
homens sentados naquilo que chamam de machans — plataformas nas
árvores que parecem pombais, feitas de galhos sobre quatro troncos —
para espantar pássaros e outros bichos ladrões. Então o cervo não teve
mais sossego. Os Comedores de Carne estavam logo atrás dele e
forçaram caminho na direção da aldeia.
Fazia uma noite escura quando Hathi e seus três filhos saíram da
selva e quebraram os postes dos machans com as trombas. As
plataformas caíram como um talo quebrado de cicuta em fior, e os
homens que vieram abaixo ouviram o rugido gutural dos elefantes em
seus ouvidos. Em seguida, a vanguarda dos exércitos assustados de
cervos invadiu e preencheu todos os pastos da aldeia e os campos
arados; e vieram com eles os javalis selvagens, de cascos afiados e
cavadores, e o que o cervo deixava o javali terminava. De quando em
quando, o som de alarme dos lobos agitava os rebanhos, que corriam
desesperadamente, mascando a cevada nova e achatando os bancos de
areia dos canais de irrigação. Antes da madrugada, a pressão do círculo
externo cedeu em determinado ponto. Os Comedores de Carne
recuaram e deixaram um caminho aberto para o sul, e bandos e mais
bandos de cervos fugiram por ali. Outros, mais ousados, deitaram no
mato para terminar de comer na noite seguinte.
Mas o trabalho estava quase terminado. Quando os moradores da
aldeia saíram de casa pela manhã, viram suas roças destruídas. Aquilo
significaria a morte se não fossem embora dali, pois entrava ano, saía
ano, sempre viveram a um passo de perecer de fome, tão próximos da
morte quanto da selva contígua. Quando os búfalos foram levados para
pastar, os bichos famintos descobriram que os cervos haviam devorado
tudo, por isso saíram a perambular pela selva e acabaram partindo com
seus irmãos selvagens. Quando começou a anoitecer, os três ou quatro
pôneis da aldeia foram encontrados em seus estábulos com os pescoços
quebrados. Apenas Bagheera teria sido capaz daqueles golpes, e apenas
Bagheera teria pensado na insolência de arrastar a carcaça aberta na
rua.
Naquela noite, os aldeões não tiveram coragem de acender fogueiras
nos campos, então Hathi e os três filhos passaram aniquilando o que
havia sobrado; e quando Hathi aniquila, não sobra nada. Os homens
resolveram viver das sementes armazenadas até que viessem as chuvas,
quando trabalhariam como escravos para recuperar o ano perdido;
mas, enquanto o negociante de grãos estava pensando em seus caixotes
cheios e no lucro que teria na venda, as presas afiadas de Hathi estavam
furando seus armazéns de barro, estraçalhando os grandes cestos de
vime vedados com esterco em que era guardado o precioso alimento.
Quando esse último estrago foi descoberto, foi a vez de o sacerdote
falar. Havia rezado para os deuses sem obter resposta. Talvez, disse ele,
inconscientemente, a aldeia tenha ofendido algum dos deuses da selva,
pois, sem sombra de dúvida, a selva estava contra eles. Então
mandaram chamar o chefe da tribo de gondes nômades mais próxima
— pequenos caçadores sábios e muito negros que vivem nos confins da
fioresta e cujos ancestrais vinham da raça mais antiga da Índia, os
aborígenes donos da terra. Deram as boas-vindas ao gonde com o que
tinham, e ele parou num pé só, com um arco na mão e duas ou três
fiechas envenenadas espetadas no coque, aparentando um pouco de
medo e um pouco de desdém pelos aldeões afiitos e suas roças
arruinadas. Queriam saber se os deuses dos gondes — os velhos deuses
— estavam irritados com eles e que sacrifícios deveriam ser oferecidos.
O gonde nada disse, apenas colheu um pedaço de karela, a trepadeira
que dá aquele melãozinho selvagem amargo, e amarrou de um lado a
outro da porta do templo, diante do ídolo hindu vermelho e de olhos
arregalados para defender a passagem. Então apontou o vazio na
direção do caminho para Khanhiwara, voltou para sua selva e ficou
observando o Povo da Selva mover-se por ela. Sabia que quando a selva
se mexe, só o homem branco tem alguma chance de fazê-la desviar de
seu caminho.
Não era preciso perguntar o que ele queria dizer. O melãozinho
selvagem iria crescer onde um dia idolatravam seu deus, e quanto antes
se salvassem melhor.
Mas é duro arrancar uma aldeia de seus lastros. Eles ficaram
enquanto restou o que comer, depois tentaram colher nozes na selva,
porém sombras de olhos faiscantes os observavam e cortavam seu
caminho em pleno dia; e quando corriam de medo para dentro das
muralhas, a casca dos troncos das árvores pelas quais haviam passado
menos de cinco minutos antes estava listrada e arranhada com as
garras de uma grande pata. Quanto mais tempo passavam dentro da
aldeia, mais ousadas ficavam as criaturas selvagens, que comiam e
bebiam nos pastos das margens do Waingunga. Os aldeões não tiveram
tempo para reforçar as paredes dos fundos dos estábulos vazios que
davam para a selva; o javali selvagem as derrubou e as trepadeiras
vieram atrás, lançando seus cotovelos sobre o território recém-
conquistado; também o mato duro cresceu no rastro das gavinhas,
como as lanças de um exército de goblins batendo em retirada. Os
homens solteiros fugiram antes, levando para toda parte a notícia de
que a aldeia estava condenada. Quem poderia lutar, perguntaram-se,
contra a selva ou contra os deuses da selva, quando a própria naja da
aldeia fugiu de seu buraco, na plataforma embaixo da figueira? Então o
pouco comércio que tinham com o mundo externo diminuiu, à medida
que as trilhas pelo descampado foram ficando mais raras e menos
marcadas. Por fim, as trombetas noturnas de Hathi e seus três filhos
deixaram de incomodá-los, pois já não havia mais nada para lhes ser
roubado. A colheita das roças e as sementes plantadas haviam sido
levadas. Os campos ao redor foram destruídos, e chegou a hora de se
entregarem à caridade dos ingleses em Khanhiwara.
À maneira dos nativos, postergaram a partida de um dia para outro
até que a primeira chuva os pegou e os telhados estragados deixaram
entrar o aguaceiro. Os pastos foram cobertos de lama até os joelhos, e a
vida brotou com força depois do calor do verão. Foram embora
andando na lama — homens, mulheres e crianças —, sob a chuva
quente e cegante da manhã, mas naturalmente se viraram para um
olhar de despedida para suas casas.
Quando a última família de retirantes atravessou o portão, ouviu o
som de vigas desabando e rachando atrás das muralhas. Viram uma
tromba lustrosa, em forma de serpente preta, erguendo-se por um
instante e espalhando palha molhada. A tromba desapareceu e ouviu-se
um novo estrondo, seguido de um bramido. Hathi arrancava os
telhados das cabanas como se colhesse lírios-d’água, quando foi
espetado por uma viga solta. Isso bastou para desencadear toda a sua
força, pois, de todas as criaturas da selva, o elefante selvagem furioso é
a mais poderosamente destrutiva. Escoiceou um muro de taipa, que
caiu sob o golpe e, ao desmoronar, derreteu e virou lama amarela sob a
torrente de água da chuva. Então virou-se, bramiu e correu pelas vielas
estreitas derrubando tudo por onde passava, cabanas a torto e a direito,
fazendo balançar as portinholas, pisoteando armadilhas; enquanto seus
três filhos vinham atrás, furiosos como no saque dos campos de
Bhurtpore.
— A selva vai engolir essas cascas — disse uma voz suave em meio à
destruição. — É a muralha externa que precisa ser derrubada. — E
Mowgli, com a chuva escorrendo nos ombros e braços nus, saltou de
um muro que desabava feito um búfalo cansado.
— Tudo a seu tempo — arquejou Hathi. — Ah, mas minhas presas
ficaram vermelhas em Bhurtpore. À muralha externa, crianças! Com a
cabeça! Juntos! Agora!
Lado a lado, os quatro empurraram. A muralha externa se mexeu,
rachou e desabou. Pela brecha esgarçada, os aldeões, pasmos de horror,
viram as cabeças selvagens dos demolidores, listradas de barro
escorrido. Sem casa e sem comida, fugiram até o vale, enquanto a
aldeia, destroçada, pisoteada e destruída, derretia atrás deles.
Um mês depois, o lugar era uma ruína trincada, coberta de uma
vegetação jovem e macia; ao final das chuvas, ouviam-se rugidos
selvagens onde há seis meses era tudo cultivado.
Canção de Mowgli contra os homens

Soltarei contra vocês a trepadeira de pés ligeiros…


Convidarei a selva a penetrar seus domínios!
Telhados sumirão debaixo dela,
Vigas mestras cairão,
E a trepadeira do melão amargo, karela,
Cobrirá tudo!

Meu povo cantará nos portões dos conselhos,


Nas portas dos celeiros, se pendurarão morcegos;
E a cobra será a vigia,
Em sua lareira suja;
Pois o melão amargo, karela,
Brotará onde dormiam!

Não verão meus batedores; só ouvirão, a imaginar;


À noite, antes da lua, cobrarei minha taxa,
E o lobo será seu pastor
Junto à cerca arrancada,
Pois o melão amargo, karela,
Vicejará onde amaram!
Saquearei com minhas hostes seus campos,
E verão seu pão desperdiçado,
E o cervo será seu gado
Na terra sem roça,
Pois o melão amargo, karela,
Trepará onde construíram!

Já lancei contra vocês cipós de gavinhas,


Já mandei a selva penetrar seus domínios.
Árvores… agora… crescerão sobre vocês!
Vigas mestras cairão,
E o melão amargo, karela,
Cobrirá tudo!
O aguilhão do rei

Quatro coisas que nunca estão contentes, que nunca


ficam saciadas, desde o cair da noite:
Boca de crocodilo, tripa de milhafre, mãos de macaco
e olhos de homem.
Ditado da selva

Kaa, o píton, havia trocado de pele, quem sabe, pela ducentésima vez
desde que nascera, e Mowgli — nunca esquecendo que sobrevivera
graças a Kaa e seu trabalho de uma noite inteira nas Tocas Frias, de que
você deve se lembrar — foi cumprimentá-lo. A troca de pele sempre
deixa a serpente temperamental e deprimida, até que as novas escamas
comecem a brilhar e a ficar bonitas. Kaa nunca mais zombara de
Mowgli e passara a aceitá-lo, assim como os outros Povos da Selva,
como Senhor da Selva, levando até ele todas as notícias que um píton
do seu tamanho acabava ouvindo. O que Kaa não sabia sobre a Selva do
Meio — como chamam a vida rente ou embaixo da terra, a vida dos
buracos e das tocas — caberia escrito na menor de suas escamas.
Naquela tarde, Mowgli estava sentado no grande círculo das voltas
de Kaa, mexendo, com a ponta do dedo, os ocos de pele velha,
enovelada e retorcida entre as pedras, tal como Kaa a deixara. Kaa se
comprimira gentilmente debaixo dos ombros largos e nus de Mowgli,
de modo que o menino descansasse como se fosse uma poltrona de
verdade.
— É perfeita até nas escamas dos olhos — admirou-se Mowgli,
baixinho, brincando com a pele velha. — Deve ser estranho ver a
cobertura da cabeça jogada aos próprios pés!
— É, mas não tenho pés — respondeu Kaa. — E como é costume do
meu povo, não acho estranho. A sua pele também não fica velha e
áspera?
— Quando isso acontece, eu me lavo, seu cabeça chata. Mas é
verdade… no calor forte, às vezes tenho vontade de arrancar a pele
sem dor e sair correndo por aí.
— Eu me lavo e troco de pele. Que tal essa nova?
Mowgli passou a mão nos losangos de seu dorso gigante.
— A tartaruga tem as costas duras, mas não é tão bonita — disse,
judiciosamente. — A rã, minha xará, é mais bonita, mas não tão dura. É
muito bonita de se ver… como as pintas na boca do lírio.
— Precisa de água. Uma pele nova só ganha toda a cor depois do
primeiro banho. Vamos tomar banho.
— Eu levo você — ofereceu Mowgli, e desceu, rindo, para pegar o
corpo enorme de Kaa pelo meio, justo onde o bojo é mais largo.
Era como um homem tentando levantar uma manilha de meio metro
de diâmetro; e Kaa ficou parado, bufando de excitação discreta. Então
começou a brincadeira que faziam todo final de tarde: o menino, no
ímpeto de sua grande força, e o píton, em sua nova e suntuosa pele,
puseram-se de pé, um contra o outro — numa prova de atenção e força.
Claro que Kaa seria capaz de esmagar uma dúzia de Mowglis se ele se
deixasse levar, mas brincava com cuidado e nunca reduzia um décimo
de seu poder. Assim que Mowgli ficou forte o suficiente para um
confronto mais duro, Kaa lhe ensinara essa brincadeira, que fortalecia
seus membros como nenhuma outra. Às vezes, Mowgli ficava todo
enrolado até o pescoço pelas espirais móveis de Kaa, esforçando-se
para livrar um braço e pegá-lo pela garganta. Então Kaa cedia
hesitante, e Mowgli, com pés ligeiros, tentava segurar o rabo imenso
que chicoteava para trás em busca de uma pedra ou um toco.
Balançavam para os lados, cabeça com cabeça, cada um esperando sua
chance, até que o belo grupo de estátuas se desfizesse num giro de
espirais negras e amarelas, pernas e braços agitados, para depois se
formar de novo.
— Agora! Agora! Agora! — dizia Kaa, fazendo fintas com a cabeça de
que nem mesmo as mãos rápidas de Mowgli conseguiam se esquivar. —
Atenção! Toquei aqui, irmãozinho! Aqui, aqui e aqui! Suas mãos estão
dormindo? Aqui de novo, agora!
A brincadeira sempre terminava da mesma maneira: com um golpe
direto e forte de cabeça que invariavelmente derrubava o menino.
Mowgli nunca conseguia aprender a se defender daquele golpe
lampejante, e, como Kaa disse, nem adiantava tentar.
— Boa caçada! — grunhiu Kaa, por fim, e Mowgli, como de costume,
foi jogado dez metros para longe e caiu tossindo e dando risada.
Levantou-se com grama grudada nos dedos e seguiu Kaa até o local
onde a sábia serpente tomava banho: um lago fundo, muito escuro e
cercado por pedras, que ficava mais interessante com os cepos de
árvores mergulhados ali. O menino entrou no lago à maneira da selva,
sem fazer alarde, e mergulhou até o outro lado. Saiu também sem
barulho e ficou de costas, braços atrás da cabeça, observando a lua
surgir acima das pedras e desfazendo o refiexo do luar na água com a
ponta dos pés. A cabeça de Kaa, em forma de diamante, cortou o lago
feito uma navalha e saiu para repousar no ombro de Mowgli. Deitaram-
se imóveis, aproveitando preguiçosamente o frescor da água.
— Isso é muito gostoso — suspirou Mowgli por fim, sonolento. —
Pelo que me lembro, a essa hora, no Bando dos Homens, eles se deitam
em pedaços duros de madeira dentro de uma armadilha de barro e
fazem questão de impedir todos os ventos limpos, cobrem as cabeças
pesadas com panos sujos e fazem sons ruins pelo nariz. A selva é muito
melhor.
Uma cobra apressada deslizou pela pedra e bebeu água, dizendo aos
dois, antes de ir embora:
— Boa caçada!
— Sssh! — exclamou Kaa, como se tivesse se lembrado subitamente
de uma coisa. — Quer dizer que a selva lhe dá tudo o que sempre
desejou, irmãozinho?
— Nem tudo — respondeu Mowgli, rindo —, ou, a cada lua,
apareceria um Shere Khan novo e forte para matar. Dessa vez, mataria
com as próprias mãos, sem pedir ajuda aos búfalos. E já desejei que o
sol brilhasse no meio das chuvas e que as chuvas cobrissem o sol no
meio do verão. Também nunca fiquei de barriga vazia, mas já quis
matar uma cabra. E nunca matei cabra, mas já quis que fosse um cervo;
cervo não, mas um nilgó. É assim para todos nós.
— Não deseja mais nada? — perguntou a grande serpente.
— O que mais posso querer? Tenho a selva e os favores da selva!
Existem mais coisas em algum lugar entre a aurora e o poente?
— Bem, a cobra disse… — começou Kaa.
— Que cobra? Aquela que foi embora não falou nada. Estava
caçando.
— Outra cobra.
— Tem muito contato com o Povo do Veneno? Sempre deixo que
sigam seu caminho. Eles levam a morte nos dentes da frente, e isso não
é bom, pois são muito pequenos. Mas que cobra é essa de que está
falando?
Kaa deslizou lentamente para dentro d’água, como um barco
navegando em ritmo de cruzeiro.
— Há três ou quatro luas — explicou —, fui caçar nas Tocas Frias,
local de que não vai se esquecer. E a criatura que eu caçava fugiu
gritando pelos tanques, até entrar naquela casa que derrubei uma vez
para salvar você. Então sumiu no chão.
— Mas o povo das Tocas Frias não vive em buracos no chão. —
Mowgli sabia que Kaa estava falando do Povo Macaco.
— Essa coisa não estava vivendo, mas tentando viver — respondeu
Kaa, com um tremular da língua. — A coisa correu para um buraco
bem fundo. Fui atrás e, depois de matar, adormeci. Quando acordei,
continuei em frente.
— Debaixo da terra?
— Para você ver… Por fim, deparei-me com um Capuz Branco [uma
cobra branca] que falou de coisas além do meu alcance e me mostrou
muitas outras que eu nunca tinha visto.
— Caça nova? Era boa? — Mowgli virou-se de lado, rapidamente.
— Não era caça e teria quebrado todos os meus dentes; mas o Capuz
Branco disse que um homem… e falava como se conhecesse esse
povo… que um homem daria o ar de dentro das costelas só para ver
aquelas coisas de perto.
— Então vamos lá ver! — exclamou Mowgli. — Agora me lembrei
que já fui homem.
— Devagar, devagar. A pressa matou a serpente amarela que comeu o
sol. Conversamos debaixo da terra, e comentei de você, dizendo que
era homem. E o Capuz Branco falou (ele é mesmo tão velho quanto a
selva): “Faz muito tempo que não vejo um homem. Traga-o aqui, e ele
vai poder ver todas essas coisas pelas quais muitos homens
morreriam”.
— Isso só pode ser um tipo novo de caça. E, no entanto, o Povo do
Veneno não nos avisa quando a caça está por perto. Eles não são nada
amigáveis.
— Não é caça. É… é… não sei dizer o que é.
— Vamos lá. Nunca vi um Capuz Branco e quero ver logo essas
coisas. São coisas que ele matou?
— São coisas mortas, todas elas. Ele disse que é seu guardião.
— Ah! Como o lobo em cima da carne que levou para a toca. Vamos
logo.
Mowgli nadou para a margem, rolou no mato para secar e os dois
foram para as Tocas Frias, a cidade deserta da qual você já deve ter
ouvido falar. Mowgli já não tinha medo do Povo Macaco, porém o Povo
Macaco nutria o mais declarado horror a Mowgli. Suas tribos, contudo,
estavam percorrendo a selva, e assim as Tocas Frias estavam vazias e
silenciosas sob a luz da lua. Kaa seguiu até as ruínas do pavilhão das
rainhas que havia no terraço, deslizou sobre os escombros e desceu a
escada atulhada que levava ao subsolo pelo centro do pavilhão. Mowgli
fez o chamado da serpente — “Somos do mesmo sangue, você e eu” — e
continuou a partir dali engatinhando. Arrastaram-se por uma longa
distância, descendo por uma passagem em declive, fazendo várias
voltas tortuosas, e, por fim, chegaram à raiz de uma grande árvore, de
quase dez metros de altura, que deslocara uma pedra maciça da parede.
Passaram por essa abertura e se viram dentro de um imenso fosso, cuja
cúpula também havia sido quebrada por raízes de árvores, permitindo
que alguns raios de luz penetrassem a escuridão.
— Uma toca fechada — comentou Mowgli, ficando de pé —, mas é
longe demais para vir todo dia. E agora, o que há para ver aqui?
— Eu não sou nada? — perguntou uma voz no meio do fosso.
Mowgli notou algo branco se mexendo, até que, pouco a pouco, a
maior cobra que já vira na vida surgiu diante de seus olhos — uma
criatura de quase dois metros e meio de comprimento, descolorida por
viver na treva, quase tão branca quanto marfim. Até mesmo a marca em
formato de óculos em seu capuz aberto desbotara num amarelo pálido.
Com olhos vermelhos como rubis, era um ser absolutamente magnífico.
— Boa caçada! — cumprimentou Mowgli, sempre educado e sempre
com sua faca.
— E a cidade? — quis saber a Naja Branca, sem responder à
saudação. — Como vai a grande cidade, a cidade das muralhas, a cidade
dos cem elefantes e dos vinte mil cavalos, das incontáveis cabeças de
gado, a cidade do Rei dos Vinte Reis? Fiquei surdo aqui embaixo, e faz
tempo que não escuto os gongos de guerra.
— Acima de nós só tem selva — respondeu Mowgli. — Elefante
mesmo só conheço Hathi e seus filhos. Bagheera matou todos os
cavalos de uma aldeia, e… o que é um rei?
— Não falei? — Kaa dirigiu-se suavemente à Naja Branca. — Faz
quatro luas que lhe expliquei isso, que essa sua cidade não existe mais.
— A cidade… a grande cidade da fioresta, cujos portões são
guardados pelas torres do rei, não pode acabar. Eles a construíram
antes do pai do meu pai sair do ovo, e ela deve durar até que os filhos
dos meus filhos sejam brancos como eu! Salomdhi, filho de
Chandrabija, filho de Viyeja, filho de Yegasuri, construiu a cidade no
tempo de Bappa Rawal. A que rebanho vocês pertencem?
— É um caso perdido — suspirou Mowgli, virando-se para Kaa. —
Não entendo o que ele diz.
— Nem eu. É velho demais. Pai das Najas, aqui só existe selva, e tem
sido assim desde o início.
— Então quem é ele — prosseguiu a Naja Branca —, que senta diante
de mim, destemido, ignorando o nome do rei, falando a nossa língua
com lábios de homem? Quem é ele com a faca e a língua da serpente?
— Mowgli é como me chamam — foi a resposta. — Sou da selva. Os
lobos são meu povo e Kaa aqui é meu irmão. Pai das Najas, quem é
você, afinal?
— Sou o Guardião do Tesouro do Rei. Kurrun Raja construiu esta
cúpula de pedra, no tempo em que minha pele era escura, para que eu
mostrasse a morte àqueles que viessem roubar. Então baixaram o
tesouro através da cúpula, e ouvi a canção dos brâmanes, meus
senhores.
— Hum! — murmurou Mowgli consigo mesmo. — Conheci um
sacerdote brâmane com o Povo Homem e… sei bem o que vi. Em pouco
tempo, chega o mal.
— Cinco vezes desde que vim para cá, a pedra foi deslocada, mas
sempre para descer mais, nunca para tirar. Não há tesouro como este.
As riquezas aqui são a fortuna de cem reis. Mas faz muito, muito tempo
que a pedra foi removida pela última vez, e creio que minha cidade já
se esqueceu do tesouro.
— Não há mais cidade. Olhe para cima. Ali estão as raízes das
grandes árvores afastando as pedras. Árvores e homens não crescem
juntos — insistiu Kaa.
— Duas e três vezes os homens vieram até aqui — respondeu a Naja
Branca, asperamente —, mas ficaram quietos até que apareci, me
esgueirando no escuro, então gritaram um pouquinho. Agora, no
entanto, me trazem mentiras, homem e serpente, e querem me fazer
acreditar que não há mais cidade, que minha vigília de guardião
terminou. Os homens mudam pouco com os anos. Mas eu nunca mudo!
Até que a pedra seja retirada, e os brâmanes desçam cantando as
canções que conheço, me alimentem com leite morno e me levem de
volta para a luz, eu… eu… somente eu, e ninguém mais, sou o Guardião
do Tesouro do Rei! A cidade está morta, vocês dizem, e aqui só há
raízes de árvores? Então desçam e tomem do tesouro à vontade. Não
existe outro igual na terra. Homem com língua de cobra, se for capaz
de sair com vida pelo mesmo caminho que usou para entrar, os reis
menores serão seus servos!
— Mais uma vez, não entendi nada — comentou Mowgli,
indiferente. — Será que um chacal se enfiou aqui embaixo e mordeu
essa grande Naja Branca? Só pode estar louco. Pai das Najas, não vejo
nada aqui para ser tomado.
— Pelos deuses do Sol e da Lua, esse menino está possuído pela
loucura da morte! — sibilou a Naja Branca. — Antes que seus olhos se
fechem, farei este favor. Olhe e veja o que homem nenhum jamais viu!
— Na selva, quem fala de favor com Mowgli não se dá bem —
retrucou o menino, entre os dentes —, mas a escuridão muda tudo, eu
sei. Vou olhar, se isso o agrada.
Ele abriu bem os olhos e observou o fosso à sua volta, então tirou do
chão um punhado de uma coisa reluzente.
— Uau! — exclamou. — Parece o que eles usam no Bando dos
Homens para brincar, só que este é amarelo, e não marrom.
Mowgli deixou as moedas de ouro caírem no chão e deu um passo à
frente. O fundo do fosso estava coberto por um metro e meio ou dois de
moedas de ouro e prata que haviam caído dos sacos em que
originalmente estiveram estocadas, e, ao longo dos anos, o metal
assentara e se acomodara feito montes de areia na maré baixa. Sobre os
montes e dentro deles, elevando-se por entre as moedas como
naufrágios na areia, havia howdahs, ou arreios de elefantes, de prata em
alto-relevo, decorados com placas de ouro forjado e cravejados de
carbúnculos e turquesas. Palanquins e liteiras para levar rainhas,
revestidos e reforçados com prata e esmalte, as varas para as cortinas
enfeitadas de jade e com ganchos de âmbar; candelabros dourados de
onde pendiam esmeraldas perfuradas que tremeluziam nas hastes;
esculturas de deuses esquecidos de um metro e meio de altura,
prateadas, cravejadas e com olhos de pedras preciosas; cotas de malha
de aço tramadas com os de ouro e franjas enfeitadas com velhas pérolas
enegrecidas; elmos incrustados de rubis-sangue-de-pombo; escudos de
laca, de casco de tartaruga e de pele de rinoceronte com detalhes e
incrustações em ouro vermelho e esmeraldas nas bordas; punhos de
espadas, adagas e facas com diamantes engastados; vasilhas e conchas
sacrificiais douradas, pequenos altares de um formato que nunca vê a
luz do dia; taças e braceletes de jade; incensórios, pentes e potes para
perfume, hena e pó para os olhos, todos de ouro lavrado; incontáveis
argolas de nariz, pulseiras, tiaras, anéis e coletes; cintos de sete dedos
de largura, feitos inteiramente de diamantes e rubis quadrados; e caixas
aferrolhadas, cuja madeira se desfizera em pó, revelando os montes de
saras-estrelas, opalas, olhos-de-gato, saras comuns, rubis, diamantes,
esmeraldas e granadas que um dia guardaram.
A Naja Branca tinha razão. Não havia dinheiro que pagasse o valor
daquele tesouro, a pilhagem seleta de séculos de guerra, saque,
comércio e imposto. Só as moedas já teriam um valor incalculável, sem
falar em todas aquelas pedras preciosas; e o peso bruto de ouro e prata
devia passar de duzentas ou trezentas toneladas. Todo regente nativo
na Índia de hoje, mesmo pobre, acumula um montante que está sempre
aumentando; e embora, muito de vez em quando, um príncipe
esclarecido envie carros de quarenta ou cinquenta bois carregados de
prata para trocar por títulos do governo, a maioria tem um tesouro e o
segredo de sua localização bem guardados consigo.
Mas Mowgli, naturalmente, não entendeu o significado daquelas
coisas. As facas o interessaram, mas não eram tão boas quanto a sua, e
acabou deixando-as de lado. Por fim, encontrou algo que realmente o
fascinou diante de um howdah soterrado por moedas. Era um ankus de
quase um metro de comprimento, um aguilhão de elefante —
instrumento parecido com um croque pequeno, que se usa nos barcos.
No topo, tinha incrustado um rubi redondo e reluzente, e vinte
centímetros do cabo eram cravejados de turquesas brutas, muito
apinhadas, o que oferecia uma aderência perfeita para a mão. Abaixo
das turquesas, o cabo era debruado de jade com um padrão oral — as
folhas eram de esmeraldas e as fiores eram rubis incrustados no fundo
de pedras verdes. O restante do cabo era uma peça única de marfim
puro, enquanto a ponta — a seta e o gancho — era de aço banhado a
ouro com gravuras de caça a elefantes; e essas imagens atraíram
Mowgli, que notou que tinham algo a ver com seu amigo Hathi, o
Silencioso.
A Naja Branca viera acompanhando o menino de perto.
— Não vale a pena dar a vida para contemplar tudo isso? — indagou.
— Não lhe fiz um grande favor?
— Não entendi — respondeu Mowgli. — Essas coisas são duras, frias
e nada boas para comer. Mas isto aqui… — ele ergueu o ankus — …
quero levar comigo para poder ver à luz do sol. Você disse que era tudo
seu. Pode me dar este aqui, e lhe trarei rãs para comer?
A Naja Branca estremeceu com delícia maligna.
— Decerto lhe darei isto — afirmou. — Tudo o que está aqui, lhe
darei… antes de ir embora.
— Mas vou embora agora. Este lugar é escuro, frio, e quero levar esta
coisa pontuda como espinho para a selva.
— O que é isso a seus pés? O que tem aí?
Mowgli pegou algo branco e liso.
— É o osso da cabeça de um homem — respondeu, serenamente. —
E aqui há mais outros dois.
— Há muitos anos, vieram roubar o tesouro. Falei com eles no
escuro, e não se mexeram mais.
— Mas para que preciso desse negócio chamado tesouro? Se me der
o ankus para eu levar, terá sido uma boa caçada. Se não, terá sido uma
boa caçada do mesmo jeito. Não discuto com o Povo do Veneno e
também aprendi a senha da sua tribo.
— Aqui só existe uma senha. E é a minha!
Kaa avançou com olhos faiscantes.
— Quem me pediu para trazer o homem? — sibilou.
— Eu, claro — ciciou a velha naja. — Fazia muito tempo que não via
homem, e este fala nossa língua.
— Mas não havia essa conversa de matar. Como posso voltar para a
selva e dizer que levei o menino para a morte? — perguntou Kaa.
— Só falo em matar quando chega a hora. Quanto a voltar ou não, é
só passar pelo buraco na parede. Paz agora, seu gordo, matador de
macacos! Tudo o que tenho a fazer é tocar seu pescoço, e a selva não o
verá nunca mais. Nunca um homem veio aqui e foi embora com o ar
dentro das costelas. Sou o Guardião do Tesouro da Cidade do Rei!
— Mas estou dizendo, verme branco das trevas, que não existe mais
nem rei nem cidade! Aqui é tudo selva à nossa volta! — exclamou Kaa.
— Ainda existe o tesouro. Mas pode ser assim. Espere um pouco, Kaa
das Pedras, e veja o menino fugindo. Aqui tem bastante espaço para
brincar. A vida aqui é boa. Corra para lá e para cá, brinque, menino!
Mowgli pôs discretamente a mão sobre a cabeça de Kaa.
— Esse bicho branco só lidou com homens do Bando dos Homens.
Ele não me conhece — sussurrou. — Foi ele quem pediu esta caçada.
Vamos dar isto a ele.
Mowgli estava de pé, segurando o ankus apontado para baixo. Ele o
atirou depressa e o ankus fincou no capuz da grande naja, prendendo-a
no chão. Num segundo, todo o peso de Kaa estava sobre o corpo branco
que se retorcia, paralisando-o do capuz ao rabo. Os olhos vermelhos
faiscavam e o restante da cabeça dava botes furiosos a torto e a direito.
— Mate! — exclamou Kaa, enquanto Mowgli pegava a faca.
— Não — disse ele, sacando a faca —, nunca mais vou matar, exceto
para comer. Mas veja, Kaa!
Ele pegou a naja por trás do capuz, abriu-lhe a boca com a lâmina da
faca e mostrou as terríveis presas de veneno da arcada superior, todas
pretas e secas na gengiva. A Naja Branca havia vivido mais tempo que o
próprio veneno, como costuma acontecer com as serpentes.
— Thuu [Está seco] — disse Mowgli, e, afastando Kaa, pegou de volta
o ankus e soltou a Naja Branca. — O tesouro do rei precisa de um novo
guardião — anunciou, gravemente. — Thuu, você não se saiu nada
bem. Corra para lá e para cá, brinque, Thuu!
— Que vergonha. Mate-me! — sibilou a Naja Branca.
— Chega dessa conversa de matar. Vamos embora. Levo comigo a
coisa pontuda, Thuu, pois lutei e venci.
— Cuidado, então, para essa coisa não acabar matando você. Porque
isso é a morte! Lembre-se, é a morte! Essa coisa tem o bastante para
matar todos os homens da minha cidade. Não a terá por muito tempo,
homem da selva, nem aquele que a tomar de você. Eles matarão,
matarão e matarão em nome disso! Minha força secou, mas o ankus vai
fazer meu trabalho. É a morte! É a morte! É a morte!
Mowgli rastejou de volta pelo buraco até a passagem, e a última coisa
que viu foi a Naja Branca dando um bote furioso com suas presas
inofensivas nos rostos de ouro das imagens dos deuses espalhadas pelo
chão, sibilando:
— É a morte!
Ambos ficaram felizes de retornar à luz do dia, e, quando estavam de
volta em sua selva, Mowgli fez o ankus brilhar na luz da manhã e o
menino ficou tão contente quanto se tivesse encontrado um ramalhete
de fiores novas para prender no cabelo.
— Isso é mais brilhante que os olhos de Bagheera — disse, deliciado,
girando o rubi do cabo. — Vou mostrar a ele. Mas o que Thuu quis
dizer quando falou em morte?
— Não sei. Lamento do rabo à cabeça por ele não ter sentido a ponta
da sua faca. As Tocas Frias sempre abrigaram o mal… acima do chão
ou embaixo. Mas agora estou com fome. Caça comigo esta madrugada?
— perguntou Kaa.
— Não. Bagheera precisa ver isto aqui. Boa caçada!
Mowgli saiu saltitante, exibindo o grandioso ankus e parando de
quando em quando para admirá-lo, até que chegou na parte da selva
em que Bagheera costumava ficar e o encontrou bebendo água, depois
de uma intensa matança. Mowgli contou-lhe todas as suas aventuras do
início ao fim, Bagheera farejou algumas vezes o ankus enquanto o
menino falava. Quando Mowgli chegou às últimas palavras da Naja
Branca, a pantera ronronou satisfeita.
— Afinal o que quis dizer a Naja Branca? — perguntou Mowgli,
depressa.
— Nasci nas jaulas do rei, em Oodeypore, e sinto nas entranhas que
sei um pouco a respeito do homem. Muitos homens matariam três
vezes numa noite só por essa pedra vermelha.
— Mas ela o faz ficar pesado. Minha faquinha brilhante é melhor…
E, veja, não dá para comer a pedra. Por que matariam por isso?
— Mowgli, vá dormir. Já viveu com os homens, e…
— Eu lembro. Homens matam porque não caçam… por falta do que
fazer e por prazer. Acorde, Bagheera. Para que serve esta coisa
pontuda?
Bagheera entreabriu os olhos — estava com muito sono — com uma
piscadela maliciosa.
— Foi feita pelos homens para espetar a cabeça dos filhos de Hathi,
para o sangue sair da cabeça. Vi outras como essa nas ruas de
Oodeypore, na frente das jaulas. Essa coisa já provou o sangue de
muitos iguais a Hathi.
— Mas por que eles espetam a cabeça dos elefantes?
— Para ensinar a Lei do Homem. Como o homem não tem garras
nem presas, fazem essas coisas… e outras piores.
— Sempre mais sangue quando me aproximo, mesmo que apenas das
coisas que o Bando dos Homens fez — comentou Mowgli, com
desprezo. Já estava um pouco cansado do peso do ankus. — Se
soubesse disso, não teria trazido. Primeiro o sangue de Messua nas
amarras, agora o de Hathi nisso. Não vou mais usá-lo. Veja!
O ankus voou, cintilante, e fincou sua ponta no chão a uns trinta
metros dali, entre as árvores.
— Minhas mãos agora estão limpas da morte — disse Mowgli,
esfregando as palmas na terra fresca e úmida. — Aquele Thuu disse
que a morte iria me seguir. Ele é velho, branco e louco.
— Branco ou preto, morte ou vida, eu vou dormir, irmãozinho. Não
consigo caçar a noite inteira e uivar o dia inteiro como certas pessoas.
Bagheera foi dormir numa toca que conhecia a uns três quilômetros
dali. Mowgli se acomodou numa árvore confortável, amarrou dois ou
três cipós e, antes mesmo de se dar conta, estava embalado numa rede a
quinze metros do chão. Embora não tivesse objeção à luz forte do dia,
seguia o costume de seus amigos e se expunha a ela o mínimo possível.
Quando acordou com vozes de um povo que falava muito alto, era de
tarde outra vez, depois de ter sonhado com os belos seixos que atirara
longe.
— Vou pelo menos olhar de novo aquela coisa — disse.
Desceu por um cipó até o chão, mas Bagheera o estava esperando.
Mowgli podia ouvi-lo farejando na penumbra.
— Cadê a coisa pontuda? — perguntou.
— Um homem levou. Aqui está o rastro dele.
— Agora veremos se Thuu disse a verdade. Se a coisa pontuda for a
morte, esse homem vai morrer. Vamos segui-lo.
— Matar primeiro — disse Bagheera. — Barriga vazia atrapalha a
visão. Os homens são lentos e a selva é úmida o bastante para conservar
até as pegadas mais leves.
Caçaram assim que conseguiram achar alguma coisa, mas levou
quase três horas até terminarem de comer e beber para retomar o
rastro do homem. O Povo da Selva sabe que nada justifica comer
depressa.
— Você acha que a coisa pontuda vai se virar na mão do homem e
matá-lo? — perguntou Mowgli. — Aquele Thuu disse que era a morte.
— Veremos quando o encontrarmos — respondeu Bagheera,
trotando com a cabeça baixa. — É rastro de um pé só — (queria dizer
que havia apenas um homem) —, e o peso da coisa afundou mais o
calcanhar dele.
— Hai! Isso é claro como um relâmpago no verão — concordou
Mowgli.
Mudaram para o trote ligeiro e descontínuo de quem segue um
rastro, entrando e saindo do tabuleiro de manchas formadas pelo luar,
acompanhando as pegadas daqueles dois pés descalços.
— Aqui estava correndo solto — observou Mowgli. — Porque os
dedos estão afastados. — Passavam por um terreno úmido. — Mas por
que virou para o lado aqui?
— Espere! — avisou Bagheera, pulando para a frente com impulso
extremo, o mais distante que conseguiu. A primeira coisa a fazer
quando um rastro deixa de se explicar é saltá-lo sem deixar as próprias
pegadas confusas no chão. Bagheera se virou ao aterrissar e olhou para
Mowgli, exclamando: — Aqui vem um outro rastro ao encontro dele. É
um pé pequeno, esse segundo rastro, e os dedos apontam para dentro.
Mowgli correu até o amigo e viu.
— É pé de caçador gonde — disse. — Repare! Aqui arrastou o arco
no chão. Foi por isso que o primeiro rastro virou para o lado tão
depressa. Pé Grande se escondeu de Pé Pequeno.
— Verdade — concordou Bagheera. — Agora, para não estragarmos
as pegadas cruzando os dois rastros, cada um segue o seu. Sou Pé
Grande, irmãozinho, e você vai ser o Pé Pequeno, o gonde.
Bagheera saltou de volta para o rastro original, deixando Mowgli
com a pista estreita e curiosa do selvagem homenzinho da fioresta.
— Aqui — disse Bagheera, acompanhando passo a passo a sequência
de pegadas —, eu, Pé Grande, viro para o lado. Aqui, me escondo atrás
dessa pedra e fico parado, sem ousar mover os pés. Cante a sua pista,
irmãozinho.
— Aqui, eu, Pé Pequeno, chego a essa pedra — disse Mowgli,
correndo com seu rastro. — Então, sento embaixo da pedra, apoiado na
mão direita, e descanso o arco entre os dedos. Espero bastante, pois
minha pegada está bem funda aqui.
— Eu também — comentou Bagheera, escondido atrás da pedra. —
Espero, apoiando a coisa pontuda nessa outra pedra. A coisa escorrega,
pois aqui está o arranhão. Cante a sua pista, irmãozinho.
— Um, dois gravetos e um galho grande quebrados aqui — observou
Mowgli, em voz baixa. — Humm, como cantar isso? Ah! Entendi. Eu,
Pé Pequeno, saio fazendo barulho para que Pé Grande possa me ouvir.
— Ele saiu de detrás da pedra, passo a passo, andando por entre as
árvores e aumentando a voz com a distância, conforme se aproximava
de uma pequena cachoeira. — Agora… vou… bem… longe… onde…
o… som… da… queda-d’água… encobre… o… meu… e… espero…
aqui. Cante a sua pista, Bagheera, Pé Grande!
A pantera estava olhando para todas as direções, em busca do rastro
do Pé Grande a partir da pedra. Por fim, anunciou:
— Saio de detrás da pedra ajoelhado, arrastando a coisa pontuda.
Não vejo ninguém e corro. Eu, Pé Grande, corro solto. O rastro é claro
agora. Cada um segue o seu. Saio correndo!
Bagheera seguiu o rastro das pegadas nítidas e Mowgli seguiu os
passos do gonde. Por algum tempo, fez-se silêncio na selva.
— Onde está, Pé Pequeno? — chamou Bagheera.
A voz de Mowgli respondeu a menos de cinquenta metros à direita.
— Humm! — exclamou a pantera, com um pigarro grave. — Os dois
estão correndo lado a lado, estão se aproximando!
Disputaram corrida por quase um quilômetro, sempre mantendo
mais ou menos a mesma distância, até que Mowgli, cuja cabeça não
estava tão perto do chão quanto a de Bagheera, gritou:
— Eles se encontraram. Boa caçada, veja! Aqui, Pé Pequeno parou,
com o joelho numa pedra. E ali está o Pé Grande!
A menos de dez metros à frente deles, estirado sobre uma pilha de
pedras lascadas, estava o corpo de um homem do vilarejo, com uma
fiecha atravessada nas costas e no peito, comprida e de penas
diminutas, típica dos gondes.
— Será que Thuu não estava afinal tão velho e tão louco,
irmãozinho? — insinuou Bagheera, suavemente. — Até agora já temos
um morto.
— Vamos continuar seguindo. Mas onde está o bebedor de sangue de
elefante, o espinho de olho vermelho?
— Pé Pequeno está com ele… talvez. O rastro voltou a ser de um
homem só.
O rastro solitário de um homem leve, que ia depressa com um peso
no ombro esquerdo, seguia por um trecho longo de mato seco e
rasteiro, onde cada pegada parecia, aos olhos sagazes de seus
rastreadores, marcada a ferro em brasa.
Ninguém falou nada até que o rastro chegou às cinzas de uma
fogueira de acampamento, escondida numa ravina.
— Outra vez! — anunciou Bagheera, parando de repente como se
tivesse topado com uma pedra.
O corpo de um pequeno gonde envelhecido estava ali, deitado com
os pés nas cinzas, e Bagheera olhou perplexo para Mowgli.
— Foi um bambu — disse o menino, assim que viu a cena. — Usei
isso com os búfalos, quando estava com o Bando dos Homens. O Pai das
Najas… sinto muito se zombei dele… conhecia bem essa raça, como eu
deveria ter imaginado. Não fui eu que disse que o homem mata por
falta do que fazer?
— Na verdade, eles matam pelas pedras vermelhas e azuis —
respondeu Bagheera. — Lembra que estive nas jaulas do rei, em
Oodeypore.
— Um, dois, três, quatro rastros — contou Mowgli, de pé junto às
cinzas. — Quatro pegadas de homens calçados. Não são rápidos como
os gondes. Agora, o que o homenzinho da fioresta fez para eles? Veja,
conversaram aqui, todos os cinco, antes de matá-lo. Bagheera, vamos
voltar. Estou de barriga cheia, ainda assim meu estômago sobe e desce
como o ninho de um oriolídeo na ponta de um galho.
— Não se deixa a caça no meio. Vamos! — chamou a pantera. —
Esses oito pés calçados não foram longe.
Nada mais foi dito durante uma hora, enquanto seguiam o rastro
largo dos quatro homens calçados.
Fazia um dia claro e quente agora, então Bagheera disse:
— Sinto cheiro de fumaça.
— Homens sempre preferem comer a correr — respondeu Mowgli,
trotando em zigue-zague entre os arbustos rasteiros da nova selva que
estavam explorando.
Bagheera, um pouco à sua esquerda, fez um som indescritível com a
garganta.
— Eis aí alguém que não vai comer mais nada — anunciou.
Havia uma trouxa de panos coloridos derrubada embaixo de um
arbusto, com um pouco de farinha derramada em volta.
— Outra vez o bambu — comentou Mowgli. — Veja! Os homens
comem esse pó branco. Levaram a caça deste aqui… era quem levava a
comida deles… e o deixaram para servir de caça a Chil, o milhafre.
— Já é o terceiro — disse Bagheera.
— Vou levar rãs frescas e grandes para o Pai das Najas e deixá-lo bem
gordo — prometeu Mowgli a si mesmo. — O bebedor de sangue de
elefante é mesmo a morte, mas ainda não consigo entender!
— Vamos! — chamou Bagheera.
Não tinham avançado um quilômetro quando ouviram Ko, o corvo,
cantando a canção da morte no alto de um tamarisco, sob cuja sombra
três homens estavam deitados. Um fogo quase morto enfumaçava no
centro do círculo, sob uma placa de ferro que continha um bolo preto e
queimado de pão sem fermento. Perto do fogo, reluzindo ao sol, estava
o ankus de rubi e turquesa.
— A coisa age depressa, o rastro acabou aqui — disse Bagheera. —
Como foi que esses morreram, Mowgli? Não há marcas em nenhum
deles.
Um morador da selva acaba aprendendo, por experiência, a respeito
de plantas e frutos venenosos, tanto quanto muitos médicos. Mowgli
farejou a fumaça da fogueira, partiu um pedaço do pão preto, provou e
cuspiu.
— Figo da morte — respondeu, tossindo. — O primeiro deve ter
posto na comida para esses aí, que o mataram, depois de matar o gonde.
— Boa caçada, de fato! As mortes foram próximas umas das outras
— disse Bagheera.
“Figo da morte” é como a selva chama a figueira-brava ou dhatura, o
veneno mais comum em toda a Índia.
— E agora? — quis saber a pantera. — Devemos nos matar um ao
outro por causa desse matador de olho vermelho?
— Essa coisa fala? — perguntou Mowgli num sussurro. — Será que
fiz mal em jogá-la fora? Entre nós, não fará mal nenhum, pois não
desejamos o que os homens desejam. Se a deixarmos aqui, sem dúvida
continuará matando homem após homem, tão rápida como as nozes
caem na ventania. Não amo os homens, mas também não quero que
morram seis por noite.
— Que importa? Não passam de homens. Eles mesmos se matam e se
satisfazem com isso — argumentou Bagheera. — Aquele primeiro
homenzinho da fioresta caçou bem.
— Mesmo assim, não passam de filhotes, e um filhote se afoga
tentando morder a luz da lua na água. O erro foi meu — concluiu
Mowgli, que falava como se soubesse tudo sobre todas as coisas. —
Nunca mais trarei objetos estranhos para a selva, nem que sejam belos
como fiores. Isto… — ele segurou o ankus com cuidado — voltará para
o Pai das Najas. Só que primeiro precisamos dormir, não podemos
dormir perto desses aí. E precisamos enterrar isto, para que não fuja e
mate mais seis. Cave um buraco embaixo daquela árvore.
— Mas, irmãozinho — argumentou Bagheera, aproximando-se do
local —, já disse que a culpa não é do bebedor de sangue. O problema
são os homens.
— Dá no mesmo — concluiu Mowgli. — Cave um buraco fundo.
Quando acordarmos vou desenterrá-lo e devolvê-lo.

Duas noites depois, quando a Naja Branca estava sentada,


lamentando-se no escuro do fosso, envergonhada, saqueada e sozinha,
o ankus turquesa rodopiou pelo buraco na parede e caiu no chão de
moedas de ouro.
— Pai das Najas — anunciou Mowgli (tomando o cuidado de se
manter do outro lado da parede) —, arrume outro jovem forte do seu
povo para ajudar a guardar o Tesouro do Rei, para que nunca mais
homem nenhum saia vivo daí.
— Arrá! Eis que voltou. Eu disse que essa coisa era a morte. Como
pode ser que ainda esteja vivo? — murmurou a velha naja, enrolando-
se amorosamente no cabo do ankus.
— Pelo touro que me comprou, não sei! Essa coisa matou seis vezes
numa noite. Não deixe que saia nunca mais.
Canção do Pequeno Caçador

Antes que Mor, o pavão, e o Povo Macaco grite,


Antes que Chil, o milhafre, despenque duzentos metros,
Pela selva, segue suave uma sombra e um suspiro…
É o medo, ó Pequeno Caçador, é o medo!
Bem leve, pela selva, corre essa sombra muito atenta,
E o suspiro se espalha e se alastra em toda parte,
E o suor em sua testa, pois ele passou agora mesmo…
É o medo, ó Pequeno Caçador, é o medo!

Antes que a lua escale o monte e as rochas se listrem de luz,


Quando as trilhas ficam pestilentas e pavorosas
Arqueja noite afora… arqueja, vem um sopro forte atrás de você
É o medo, ó Pequeno Caçador, é o medo!
De joelhos, puxa a corda do arco; solta a fiecha que zune;
No vazio, a mata espessa esconde a seta
Mas suas mãos estão frouxas e o sangue sumiu de sua face…
É o medo, ó Pequeno Caçador, é o medo!

Quando a nuvem quente suga a tempestade, pinhos se lascam,


Quando a chuva cega e venta, açoita e atormenta,
Voz mais alta que os gongos de guerra do trovão!
É o medo, ó Pequeno Caçador, é o medo!
As torrentes represadas estão fundas, saltam rochedos…
Os relâmpagos mostram a nervura das menores folhas…
Mas sua garganta secou e fechou, e seu coração no peito
Martela: medo, ó Pequeno Caçador, isto é o medo!
Cão Vermelho

Pelas noites brancas magníficas, pelas noites correndo ligeiras,


Boa atenção, boa visão, boa caçada, astúcia certeira!
Pelo aroma da madrugada, ilesa, antes que o sereno se desfaça!
Pelo alvoroço na neblina, em disparada, à caça!
Pelo grito dos nossos quando o sambar fica afoito,
Pelo risco e a revolta da noite!
Pelo sono de dia na boca da gruta,
Chegou a hora, vamos à luta.
Uivemos! Ó, uivemos!

Foi depois que a selva avançou sobre a aldeia que a parte mais
agradável da vida de Mowgli começou. Ele possuía a consciência
tranquila de quem acertara suas contas; e todos na selva eram seus
amigos e tinham apenas um pouco de medo do menino. As coisas que
havia feito, visto e ouvido em suas andanças de um povo para outro,
com ou sem seus quatro companheiros, renderiam muitas e muitas
histórias, cada uma delas longa como esta. De modo que você nunca vai
saber como ele conheceu o Elefante Louco de Mandla, que matou as
vinte e duas reses que levavam onze carroças de moedas de prata para
o Tesouro Nacional, deixando rupias brilhantes espalhadas na terra;
como lutou contra Jacala, o crocodilo, numa longa noite nos Charcos
do Norte, e quebrou sua faca nas placas dorsais do bicho; como
encontrou uma faca nova e mais comprida pendurada no pescoço de
um homem que havia sido morto por um javali, e como seguiu o rastro
desse javali e o matou como preço justo pela faca; como se viu cercado
pelos cervos durante a Grande Fome e quase morreu pisoteado pelo
bando; como salvou Hathi, o Silencioso, de cair mais uma vez numa
armadilha com lanças afiadas no fundo do fosso, e como, no dia
seguinte, ele mesmo caiu numa bem armada arapuca de leopardo, e
como Hathi quebrou as barras de madeira grossa que estavam em cima
dele; ou como ordenhou búfalas selvagens no charco, e como…
Mas contemos uma história de cada vez. Pai Lobo e Mãe Loba
morreram, e Mowgli rolou uma pedra enorme até a entrada da caverna
e cantou a Canção da Morte para eles. Baloo ficou muito velho e perdeu
a agilidade, e até Bagheera, que tinha nervos de aço e músculos de
ferro, estava um pouco mais lento do que costumava ser na caçada.
Akela, que era cinzento, ficou branco como leite com a idade, suas
costelas agora protuberavam e ele andava como se fosse feito de
madeira. Mowgli caçava para ele. Mas os lobos jovens, filhotes da
alcateia dispersa de Seeonee, prosperaram e se multiplicaram. Quando
eram já cerca de quarenta deles, animais de voz ativa, patas limpas,
com cinco anos de idade e sem líder, Akela anunciou que deviam se
unir e seguir a lei, correndo sob uma liderança única, como cabia ao
Povo Livre fazer.
Essa questão não envolvia Mowgli, pois, como ele dizia, já provara a
fruta amarga e conhecia a árvore que a produzia. Mas quando Phao,
filho de Phaona (seu pai era o Rastreador Cinzento na época em que
Akela era o líder), lutou e conquistou a liderança da alcateia de acordo
com a Lei da Selva, e os velhos chamados e as antigas canções
começaram a soar sob as estrelas outra vez, Mowgli chegou à Pedra do
Conselho cheio de saudades. Quando resolveu falar, a alcateia esperou
até que tivesse terminado, e ele sentou ao lado de Akela, na pedra
acima de Phao. Eram tempos de boa caçada e bom sono. Nenhum
estranho ousava invadir a selva do povo de Mowgli, como chamavam a
alcateia. Os jovens lobos ficaram gordos e fortes, havendo muitos
filhotes para ser apresentados à inspeção. Mowgli ia sempre à inspeção,
lembrando-se da noite em que uma pantera-negra trouxera um bebê
marrom sem pelos para o bando, e o chamado comprido, “Olhem,
olhem bem, ó lobos”, fazia seu coração pular. Quando não comparecia,
era porque estava longe na selva com os irmãos, provando, tocando,
vendo e sentindo coisas novas.
Certa tarde, quando trotava à vontade pelas serras para levar a Akela
metade de um cervo que caçara, seguido pelos Quatro Irmãos,
brincando de luta e tropeçando uns nos outros de pura alegria por
estarem vivos, ele ouviu um grito que não escutava desde os tempos
ruins de Shere Khan. Era o que chamavam na selva de pheeal, um uivo
hediondo que o chacal solta quando está caçando atrás de um tigre, ou
quando há boa caça por perto. Se você puder imaginar um misto de
ódio, triunfo, medo e desespero com uma dose de escárnio, terá uma
noção do pheeal que se ergueu e baixou, se espalhando e estremecendo
até bem longe do outro lado do Waingunga. Os Quatro pararam de
repente, agressivos e rosnando. A mão de Mowgli foi em busca da faca e
ele parou, com o rosto vermelho, as sobrancelhas franzidas.
— Nenhum Listrado ousaria vir caçar aqui — disse.
— Isso não foi o grito daquele seguidor de tigre — respondeu o
Irmão Cinzento. — É uma grande caçada. Escute!
O gritou voltou, meio soluçado, meio gargalhado, como se o chacal
tivesse lábios humanos. Então Mowgli tomou fôlego e correu para a
Pedra do Conselho, chamando no caminho os lobos da alcateia. Phao e
Akela estavam juntos na pedra, e, abaixo deles, com os nervos à fior da
pele, reuniram-se todos os demais. As mães e os filhotes ficaram
tomando conta das tocas, pois quando se ouve o pheeal não é hora de
criaturas frágeis ficarem do lado de fora.
Tudo o que podiam ouvir era o Waingunga correndo depressa e
rumorejando no escuro e a leve brisa nas copas das árvores, até que,
subitamente, do outro lado do rio, um lobo chamou. Não era da
alcateia, pois estavam todos reunidos no conselho. A nota mudou para
um longo e desolado uivo:
— Dhole! — dizia. — Dhole! Dhole! Dhole!
Ouviram patas cansadas sobre as pedras, até que um lobo esquálido,
de listras vermelhas nos fiancos, a pata direita da frente ferida e a
mandíbula espumando, saltou dentro da roda e se deitou ganindo aos
pés de Mowgli.
— Boa caçada! Quem é seu líder? — perguntou Phao, com a voz
séria.
— Boa caçada! Sou Won-tolla — foi a resposta.
Queria dizer que era um lobo solitário, lutando sozinho por sua
sobrevivência, a da fêmea e de seus filhotes em alguma toca isolada,
como fazem muitos lobos do sul. Won-tolla quer dizer Arredio —
aquele que não pertence a bando nenhum. Em seguida, arfou, e todos
viram que as batidas de seu coração faziam com que tremesse todo
para trás e para a frente.
— O que está acontecendo? — indagou Phao, pois essa era a
pergunta que toda a selva faz quando se ouve o pheeal.
— Os dholes, os dholes do Dekkan — Cão Vermelho, Matador! Estão
vindo do norte para o sul, dizendo que o Dekkan estava vazio e
matando tudo no caminho. Quando esta lua era nova, havia quatro
comigo: minha loba e três filhotes. Ela ia ensiná-los a caçar nas
planícies de relva, a esconder e a conduzir o cervo, como fazemos nós
habitantes do descampado. À meia-noite, ouvi os dholes, todos já no
rastro dos meus lobos. De madrugada, estavam duros na relva… os
quatro, ó Povo Livre… Eram quatro quando esta lua era nova. Então,
quis reivindicar meu Direito de Sangue e encontrei os dholes.
— Quantos são? — quis saber Mowgli rapidamente; a alcateia
rosnou, grave e gutural.
— Não sei. Três deles sei que nunca mais matarão. Mas, no final, me
encurralaram como a um cervo, me fazendo andar em três patas. Veja,
Povo Livre!
Ele exibiu a pata ferida, já escura de sangue seco. Havia mordidas
cruéis em seus fiancos, além de ter o pescoço todo lanhado e
arranhado.
— Coma um pouco — ofereceu Akela, afastando-se da carne que
Mowgli lhe havia trazido, e o Arredio logo se pôs a comer.
— Esta comida não será desperdiçada — disse, humildemente,
depois de saciar um pouco a fome. — Dê-me um pouco de força, Povo
Livre, e também irei caçar. Minha toca, que estava cheia quando esta
lua era nova, ficou vazia, e a dívida de sangue ainda não foi paga.
Phao ouviu aqueles dentes rachando um osso duro de cervo e
grunhiu que estava de acordo.
— Vamos precisar de seus dentes — declarou. — Havia filhotes com
os dholes?
— Não, nenhum. Só Caçadores Vermelhos, cães adultos, grandes e
fortes de tanto comerem lagartos no Dekkan.
O que Won-tolla queria dizer era que os dholes, os cães vermelhos
caçadores do Dekkan, tinham saído para caçar, e a alcateia sabia bem
que até mesmo o tigre deixava uma caça para o dhole. Eles correm pela
selva, e o que encontram pelo caminho, pegam e rasgam em pedaços.
Embora não sejam tão grandes, nem possuam metade da astúcia dos
lobos, são muito fortes e andam em grandes números. Os dholes, por
exemplo, só começam a referir-se a si mesmos como matilha quando
juntam cem adultos; enquanto quarenta lobos já fazem uma alcateia e
tanto. As caminhadas de Mowgli o tinham levado aos limites das
encostas relvadas do Dekkan, e o menino já vira os destemidos dholes
dormindo, brincando e se coçando nos pequenos ocos e moitas que
usam como tocas. Desprezava-os e odiava-os, porque não tinham o
mesmo cheiro do Povo Livre, porque não viviam em cavernas e,
sobretudo, porque possuíam pelos entre os dedos, enquanto ele e seus
amigos tinham pés limpos. Mas sabia, pois Hathi lhe contara, que uma
matilha de dholes caçadores era uma coisa terrível. Até Hathi dá um
passo para o lado e sai de seu caminho, pois eles, enquanto não são
mortos ou até que a caça fique escassa, não retrocedem jamais.
Akela também sabia um bocado sobre dholes, pois disse a Mowgli em
voz baixa:
— É melhor morrer com a alcateia do que sem líder e sozinho. Essa
vai ser uma boa caçada e… a minha última. Mas como os homens
vivem mais, você terá ainda muitas outras noites e muitos outros dias,
irmãozinho. Vá para o norte e espere, e se sobrar alguma criatura viva
depois que os dholes passarem, ela lhe contará como foi a luta.
— Ah — comentou Mowgli, muito sério —, devo ir para o charco,
pegar um pouco de peixe e dormir numa árvore ou devo pedir ajuda ao
Bandar-log e quebrar cocos, enquanto a alcateia luta lá embaixo?
— Vai ser uma luta até a morte — explicou Akela. — Você não
conhece o dhole, o Matador Vermelho. Até o Listrado…
— Aowa! Aowa! — exclamou Mowgli desbragadamente. — Matei um
macaco listrado, e, certo como ele está aqui na minha barriga, Shere
Khan deixaria a própria fêmea virar carne para o dhole se tivesse
perseguido uma matilha por três serras. Escute: havia um lobo, meu
pai, e havia uma loba, minha mãe, e houve um velho lobo cinzento (não
lá muito sábio, está todo branco agora) que foi meu pai e minha mãe.
Portanto eu — ele levantou a voz — digo que, quando e se o dhole vier,
Mowgli e o Povo Livre serão uma mesma pele nessa caçada. E digo que,
pelo touro que me comprou, o touro que Bagheera pagou por mim nos
velhos tempos e de que a alcateia não se lembra mais, eu digo, para que
as árvores e o rio escutem e me lembrem se eu esquecer; eu digo que
esta minha faca será mais um dente da alcateia, e um dente bem afiado.
Essa é a minha Palavra, esse é o meu Voto.
— Você não conhece o dhole, homem da língua de lobo —
acrescentou Won-tolla. — Só quero acertar a dívida de sangue com eles
antes que me rasguem em pedaços. Eles se movem lentamente,
matando tudo pelo caminho, mas em dois dias terei recuperado um
pouco minhas forças e estarei pronto para cobrá-la. Contudo, a vocês,
Povo Livre, digo que devem correr para o norte e comer pouco por um
tempo, até que os dholes tenham ido embora. Será uma caçada sem
carne.
— Escutem o Arredio! — zombou Mowgli, dando risada. — Povo
Livre, temos de ir para o norte, comer lagartos e ratos das margens para
evitar a todo custo encontrar os dholes. Deixar que eles cacem toda a
comida de nosso território enquanto ficamos escondidos no norte, até
que decidam nos devolver nosso lar. O dhole é um cão… e pequeno,
ainda por cima… vermelho, de barriga amarela, sem tocas e com pelos
entre os dedos! Tem seis, oito filhotes por cria, como se fosse Chikai, o
ratinho saltitante. Claro, devemos fugir, Povo Livre, e pedir permissão
aos povos do norte para comermos as migalhas de suas caças!
Conhecem o ditado: “Ao norte, lombriga; ao sul, piolho”. Nós somos a
selva. Escolham, ó, escolham. Vai ser boa caçada! Pois para a alcateia,
para a alcateia inteira, para a toca e o ninho, para a caça e o caçador,
para o macho que persegue o gamo e o filhote na caverna… chegou a
hora! Chegou a hora! Chegou a hora!
A alcateia respondeu com um latido grave e rascante que soou na
noite como uma grande árvore caindo.
— Chegou a hora! — berraram.
— Fiquem com eles — ordenou Mowgli aos Quatro. — Vamos
precisar de todos os dentes. Phao e Akela devem se aprontar para a
batalha. Vou contar os cães.
— É a morte! — exclamou Won-tolla, erguendo-se um pouco. — O
que alguém sem pelos poderá fazer contra o Cão Vermelho? Nem o
Listrado, lembrem-se…
— Você é mesmo um Arredio — retrucou Mowgli —, mas vamos
voltar ao assunto quando os dholes estiverem mortos. Boa caçada a
todos!
Ele fugiu depressa para o escuro, louco de entusiasmo, mal
reparando onde punha o pé, e a consequência natural disso foi que
tropeçou e caiu em cheio sobre os anéis espiralados de Kaa, onde o
píton observava o rastro de um gamo, perto do rio.
— Kssha! — reclamou Kaa, irritado. — Isso lá são modos de agir na
selva, pisar forte e fazer tropelia, estragando a caçada da noite… e logo
quando a coisa ia tão bem?
— A culpa foi minha — desculpou-se Mowgli, voltando a ficar de pé.
— Na verdade, estava procurando você, Cabeça Chata, mas cada vez
que o encontro está maior e mais largo que o comprimento do meu
braço. Não há ninguém como você em toda a selva, mais sábio, mais
velho, mais forte e mais belo, Kaa.
— Agora, aonde leva esse rastro? — quis saber Kaa, com voz mais
gentil. — Não faz uma lua, um homenzinho com uma faca jogou pedras
na minha cabeça e me xingou de tudo o que é pior, porque eu estava
dormindo na clareira.
— Isso mesmo, dormindo na clareira e dispersando os gamos para
todos os lados, enquanto Mowgli caçava. E esse mesmo Cabeça Chata é
surdo e não ouviu Mowgli assobiar, pedindo para sair do caminho dos
gamos — respondeu educadamente o menino, sentando entre os anéis
coloridos.
— Agora esse mesmo homenzinho vem todo suave, escolhendo
palavras para agradar este mesmo Cabeça Chata, dizendo que ele é
sábio, forte e belo. E não é que este mesmo Cabeça Chata acredita e o
acolhe, pois esse mesmo homenzinho atirador de pedras e… Está
confortável? Será que Bagheera seria capaz de oferecer um lugar bom
como este para descansar?
Kaa, como de costume, havia feito uma espécie de rede macia com o
corpo para sustentar o peso de Mowgli. O menino estendeu as mãos no
escuro e segurou no pescoço em forma de cabo, até a cabeça de Kaa
encostar em seu ombro, então lhe contou tudo o que acontecera na
selva aquela noite.
— Sábio, talvez eu seja — comentou Kaa, por fim —, mas surdo, isso
sou com toda a certeza. Do contrário teria escutado o pheeal. Não me
espanta os Comedores de Mato estarem tão alvoroçados. Quantos
seriam esses dholes?
— Ainda não vi nenhum. Vim depressa procurar você. É mais velho
que Hathi. Mas, ó Kaa — e Mowgli deu uma risada de pura alegria —,
vai ser uma boa caçada. Poucos de nós veremos outra lua.
— Você vai participar? Lembre-se de que é homem e que a alcateia o
expulsou uma vez. Deixe que o lobo cuide do cão. Você é homem.
— Os cocos do ano passado são a terra preta deste ano — retrucou
Mowgli. — Mas é verdade que esta noite digo que sou lobo. Chamei os
rios e as árvores para me lembrarem se eu esquecer. Sou do Povo Livre,
Kaa, até que passem os dholes.
— Povo Livre! — grunhiu Kaa. — Ladrões livres, isso sim! E você se
amarrou a este nó da morte em homenagem à memória de lobos
mortos? Isso não é boa caçada.
— Dei minha palavra. As árvores sabem, o rio sabe. Enquanto o
dhole não tiver ido embora, minha palavra continua valendo.
— Ngssh! Isso muda tudo. Eu tinha pensado em levá-lo comigo para
os Charcos do Norte, mas sua palavra… ainda que vinda de
homenzinho nu e sem pelos… é palavra dada. Agora, eu, Kaa, digo…
— Pense bem, Cabeça Chata, para não se amarrar também com a
morte. Não quero a sua palavra, pois bem sei que…
— Que seja, então — interrompeu Kaa. — Não darei minha palavra;
mas o que quer que aconteça quando vierem os dholes?
— Eles terão de cruzar o Waingunga a nado. Pensei em encontrá-los
no raso com minha faca, com a alcateia atrás de mim. E assim,
esfaqueando e atacando, talvez os desviemos rio abaixo, ou pelo menos
lhes refrescaremos as gargantas.
— Os dholes não se deixam desviar, e suas gargantas são bem
quentes — argumentou Kaa. — Não vai sobrar nem homenzinho nem
filhote de lobo ao final dessa caçada, não vai restar nada além de ossos
secos.
— Alala! Se for para morrer, morreremos. Será a melhor das caçadas.
Mas minhas entranhas são novas, ainda não vi muitas chuvas. Não sou
sábio nem forte. Tem um plano melhor, Kaa?
— Já testemunhei centenas e centenas de chuvas. Antes de Hathi
perder seus marfins de leite, meu rastro já era grande nesta poeira. Pelo
primeiro ovo, sou mais velho que muitas árvores e já vi de tudo o que
esta selva fez.
— Mas esta caçada será novidade — insistiu Mowgli. — O dhole
nunca cruzou nosso rastro.
— Tudo o que existe já existiu antes. O que vai vir não passa de um
ano esquecido que volta a acontecer. Fique aí e lhe contarei desses
meus anos.
Durante uma longa hora inteira, Mowgli ficou recostado sobre os
anéis do píton, enquanto Kaa, com a cabeça imóvel sobre o chão,
pensou em tudo o que já havia visto desde o dia em que saiu do ovo. A
luz pareceu sumir de seus olhos, deixando-os semelhantes a duas
opalas baças, e, de quando em quando, ele fazia breves meneios duros
com a cabeça, para a direita e para a esquerda, como se estivesse
caçando no sono. Mowgli cochilou em silêncio, pois sabia que não há
nada melhor do que dormir antes de caçar, e havia sido treinado para
cochilar a qualquer hora do dia e da noite.
Então sentiu o dorso de Kaa ficar maior e mais largo embaixo de si, e
o imenso píton se mexeu, sibilando como uma espada de aço saindo de
sua bainha.
— Vi todas as estações mortas — disse Kaa, por fim. — E as grandes
árvores, os velhos elefantes, as pedras quando eram nuas e
pontiagudas, antes que o musgo as cobrisse. Ainda está vivo,
homenzinho?
— A lua acabou de se pôr — comentou Mowgli. — Não entendi…
— Sssh! Sou Kaa de novo. Sei que passou pouco tempo. Agora vamos
para o rio, e vou lhe mostrar o que deve ser feito contra os dholes.
Ele se virou, reto como uma fiecha, na direção do Waingunga e
mergulhou pouco antes do pequeno lago que ocultava a Pedra da Paz,
com Mowgli ao lado.
— Não, não nade. Sou mais rápido. Venha nas minhas costas,
irmãozinho.
Mowgli passou o braço esquerdo em volta do pescoço de Kaa,
grudou o direito junto do corpo e esticou os pés. Então Kaa entrou na
correnteza como só ele sabia fazer, e a onda da água passando à sua
volta formou uma espuma no pescoço de Mowgli, e seus pés foram
balançando de um lado para o outro no redemoinho, sob os fiancos do
píton em movimento. Dois ou três quilômetros acima da Pedra da Paz,
o rio Waingunga se estreita entre uma garganta de granitos de
mármore de vinte e cinco, trinta metros de altura, e a correnteza segue
por entre todo tipo de pedras sem beleza. Mas Mowgli não estava
preocupado com a água; quase nenhuma água do mundo teria lhe
causado medo, por um momento que fosse. Ele olhava para ambos os
lados da garganta, farejando inquieto, pois havia um cheiro agridoce no
ar, muito semelhante ao de um formigueiro grande num dia quente.
Instintivamente, afundou na água, só tirando a cabeça para respirar de
quando em quando, e Kaa lhe serviu de âncora, com duas voltas da
cauda presa a uma pedra do fundo, segurando Mowgli dentro de um de
seus anéis, enquanto a água corria.
— Aqui é o Lugar da Morte — disse o menino. — Por que viemos
aqui?
— Estão dormindo — observou Kaa. — Hathi não sai do caminho do
Listrado. Mas tanto Hathi quanto o Listrado saem do caminho dos
dholes, e dizem que os dholes não desviam por ninguém. No entanto,
por quem o Povo Pequeno das Pedras desvia seu caminho? Diga,
Senhor da Selva, quem é o Senhor da Selva?
— São elas — sussurrou Mowgli. — Aqui é o Lugar da Morte. Vamos
embora.
— Não, olhe bem, pois estão dormindo. Ainda é como quando eu era
menor que o seu braço.
A fenda e as pedras gastas da garganta do Waingunga eram usadas
desde o começo da selva pelo Povo Pequeno das Pedras — as agitadas,
furiosas e negras abelhas selvagens da Índia. E, como Mowgli sabia
muito bem, todos os rastros terminavam quase um quilômetro antes de
chegarem à garganta. Durante séculos, o Povo Pequeno fez suas
colmeias e voou de greta em greta, em muitos enxames, manchando o
mármore branco de mel rançoso, e fez seus favos altos e fundos no
escuro das cavernas mais esconsas, onde nem homem, nem bicho, nem
fogo, nem água, nunca, ninguém jamais os tocou. Dos dois lados da
garganta, pendiam como que verdadeiras cortinas de veludo preto e
brilhante. Mowgli afundou ao vê-las, pois aquilo eram milhões de
abelhas dormindo. Havia outros cachos, tufos e coisas, como troncos
podres apoiados na superfície da pedra, velhas colmeias de anos
passados, novas cidades construídas na sombra da garganta sufocante e
imensas massas de detritos esponjosos e putrefatos, que iam parar
entre as árvores e os cipós que trepavam pelo muro de pedra.
Prestando atenção, o menino ouviu mais de uma vez o roçar e o
deslizar de uma colmeia cheia de mel se virando e caindo em algum
ponto nas galerias escuras; então o zumbido de asas em fúria, e o
sombrio gotejar, gota a gota, de mel desperdiçado, pingando até
preencher uma fresta, surgir à tona e se agarrar feito caramujo a algum
graveto. Numa das margens do rio, havia uma praia minúscula, de
menos de um metro e meio, e, nela, jazia uma pilha de destroços de
incontáveis anos. Abelhas mortas, zangões, favos rançosos e asas de
mariposas que se perderam em busca do mel, tudo formando montes
de um pó preto e fino. O mero cheiro daquilo era forte o bastante para
assustar qualquer coisa que não tivesse asas e que soubesse quem era o
Povo Pequeno das Pedras.
Kaa se deslocou contra a corrente até chegarem a um banco de areia
na entrada da garganta.
— Aqui está a caça desta estação — anunciou. — Olhe!
No banco de areia, estavam os esqueletos de um gamo e de um
búfalo. Mowgli notou que nem lobo nem chacal tocaram aqueles ossos,
que jaziam expostos ao tempo.
— Ultrapassaram as fronteiras, não conheciam a lei — murmurou
Mowgli —, e o Povo Pequeno os matou. Vamos embora antes que
acordem.
— Só acordam de madrugada — explicou Kaa. — Agora, vou lhe
contar. Muitas e muitas chuvas atrás, um gamo veio do sul para cá, sem
conhecer a selva, com uma matilha no seu rastro. Cego de medo, saltou,
e a matilha veio junto, pois estavam quentes e também cegos naquele
rastro. O sol estava alto, e, no Povo Pequeno, havia muitos e estavam
furiosos. Vários da matilha também saltaram no Waingunga, mas
morreram antes de tocar a água. Quem não saltou, pereceu lá em cima,
nas pedras. O gamo, no entanto, sobreviveu.
— Como?
— Porque veio antes, correndo para não morrer. Saltou sem que o
Povo Pequeno notasse e já estava no rio quando chegaram para matá-lo.
A matilha, logo atrás, desapareceu sob o ataque do Povo Pequeno.
— E o gamo sobreviveu? — repetiu Mowgli, lentamente.
— Pelo menos não morreu na hora, embora não houvesse ninguém
esperando por ele que fosse forte o bastante para segurá-lo contra a
correnteza, como certo Cabeça Chata, velho, gordo, surdo e amarelado
faria por um tal homenzinho… sim… ainda que todos os dholes do
Dekkan estivessem em seu encalço. O que deseja, lá no fundo?
A cabeça de Kaa estava perto da orelha de Mowgli; e levou algum
tempo até que o menino respondesse.
— Puxar os bigodes da morte, mas… Kaa, você é mesmo o mais sábio
da selva.
— Muitos já disseram isso. Veja, se os dholes o seguirem…
— Como certamente farão. Ah! Ah! Tenho muitos espinhos debaixo
da língua para espetar seus pelames.
— Se o seguirem, cegos e quentes, olhando só para os seus ombros,
aqueles que não morrerem lá em cima vão afundar na água aqui ou
mais para baixo, pois o Povo Pequeno vai vir inteiro para cobri-los. Ora,
o Waingunga é água faminta, e eles não terão Kaa para segurá-los. Os
que sobreviverem descerão até o raso das Tocas de Seeonee, e, lá, a sua
alcateia poderá pegá-los pelo pescoço.
— Ahai! Eowawa! Melhor que isso só se as chuvas caíssem no estio.
Agora resta apenas o pequeno detalhe da fuga e do salto. Vou fazer com
que os dholes me vejam, para que me sigam bem de perto.
— Já viu as pedras sobre a sua cabeça? Já viu-as pelo lado de fora?
— Na verdade, não. Esqueci de olhar.
— Vá lá fora ver. É um chão todo podre, rachado e cheio de buracos.
Se o seu pé desajeitado ficar preso num deles, a caçada acaba. Olhe, vou
deixá-lo aqui e só por você é que vou avisar a alcateia, para que saibam
onde procurar os dholes. Quanto a mim, não sou da mesma pele que
lobo nenhum.
Quando Kaa não gostava de alguém, sabia ser a criatura mais
desagradável da selva, afora Bagheera, talvez. Ele nadou rio abaixo e
depois, na altura da pedra, aproximou-se de Phao e Akela, que
prestavam atenção nos ruídos da noite.
— Hssh! Cães — disse entusiasmado —, os dholes virão descendo o
rio. Não tenham medo e irão conseguir matá-los no raso.
— Quando virão? — perguntou Phao.
— E onde está meu filhote de homem? — acrescentou Akela.
— Saberá quando chegarem aqui — respondeu Kaa. — Espere e
verá. Quanto ao seu filhote de homem, de quem aceitou uma palavra,
deixando-o, portanto, exposto à morte, seu filhote está comigo e se
ainda não morreu, não foi por sua causa, cão desbotado! Espere aqui
pelos dholes e dê-se por satisfeito que o filhote de homem e eu estamos
lutando do seu lado.
Kaa disparou de volta rio acima e parou no meio da garganta,
olhando para o alto, atento à beira do penhasco. Então enxergou a
cabeça de Mowgli se mexendo contra as estrelas. Em seguida, ouviu-se
um zumbido no ar e o “chuá” claro e sonoro de um corpo caindo com os
pés na água. No minuto seguinte, o menino estava novamente
descansando nas voltas do corpo de Kaa.
— Não é um bom salto para dar à noite — disse Mowgli, baixinho. —
Pulei duas vezes de brincadeira; mas aquele lugar lá em cima é cruel…
arbustos rasteiros, fendas profundas, tudo cheio do Povo Pequeno.
Empilhei pedras grandes perto de três desses buracos. Vou derrubá-las
com os pés quando passar correndo, e o Povo Pequeno vai acordar atrás
de mim, muito irritado.
— Isso é fala de homem, é astúcia de homem — comentou Kaa. —
Você é sábio, mas o Povo Pequeno está sempre irritado.
— Não, quando anoitece, todas as asas de perto e de longe
descansam um pouco. Vou mexer com os dholes no fim da tarde, pois
os dholes caçam melhor de dia. Estão agora no rastro de sangue de
Won-tolla.
— Chil não deixa carniça de boi; nem dhole, rastro de sangue —
sentenciou Kaa.
— Então vou fazer deles um novo rastro de sangue, do sangue deles,
se puder, e lhes darei terra para comer. Você ficará aqui, Kaa, até que eu
volte com meus dholes?
— Sim, mas e se o matarem na selva, ou se o Povo Pequeno o matar
antes que consiga saltar para dentro do rio?
— Amanhã caçamos a caça de amanhã — respondeu Mowgli,
citando um ditado da selva; e ainda completando: — Quando estiver
morto, será hora de entoar a Canção da Morte. Boa caçada, Kaa!
Ele soltou o braço do pescoço do píton e desceu pela garganta feito
um toco de madeira na enchente, remando para a outra margem, onde
encontrou águas calmas e deu uma risada alta de pura felicidade. Não
havia nada que Mowgli gostasse mais, como ele mesmo dizia, do que
“puxar os bigodes da morte” e fazer com que a selva soubesse quem era
seu verdadeiro senhor. Muitas vezes, com a ajuda de Baloo, roubava
colmeias avulsas de árvores, e sabia que o Povo Pequeno odiava o
cheiro de alho selvagem. Então colheu um maço, amarrou-o com uma
corda de casca de árvore e foi atrás do rastro de sangue de Won-tolla,
que seguia para o sul vindo das tocas, por cerca de oito quilômetros,
olhando para as árvores com a cabeça deitada de lado e gargalhando.
— Já fui Mowgli, a rã — disse consigo mesmo —, já afirmei que sou
Mowgli, o lobo. Agora devo ser Mowgli, o macaco, antes que vire
Mowgli, o gamo. No final, vou ser Mowgli, o homem. Ah! — E deslizou
o polegar pelos quarenta e cinco centímetros da lâmina de sua faca.
O rastro de Won-tolla, todo marcado de respingos de sangue, corria
sob uma mata de árvores grossas, cerradas, e se estendia para nordeste,
sumindo gradualmente a cerca de três quilômetros das Pedras das
Abelhas. Da última árvore até os arbustos rasteiros das Pedras das
Abelhas, havia um descampado onde dificilmente um lobo conseguiria
se esconder. Mowgli trotou sob as árvores, avaliando as distâncias entre
os galhos, de quando em quando subindo num tronco e ensaiando
saltos de uma árvore a outra, até chegar ao descampado, que examinou
cuidadosamente durante uma hora. Então virou-se, retomou o rastro
de Won-tolla onde o havia deixado, acomodou-se numa árvore com um
galho mais comprido que os outros, a quase dois metros e meio do
chão, e ficou ali sentado, afiando a faca na sola do pé e cantarolando
sozinho.
Pouco antes do meio-dia, quando o sol estava bem quente, ouviu um
rumor de patas no chão e sentiu o cheiro abominável da matilha de
dholes trotando impiedosamente atrás do rastro de Won-tolla. Visto do
alto, o dhole vermelho parece ter menos da metade do tamanho do
lobo, mas Mowgli sabia como suas patas e mandíbulas eram fortes. Viu
a cabeça ruça do líder farejando o rastro e o saudou:
— Boa caçada!
O bicho ergueu os olhos, e seus companheiros pararam logo atrás
dele, dezenas e dezenas de cães vermelhos com caudas baixas, ombros
pesados, ancas fracas e bocas sujas de sangue. Os dholes são, via de
regra, um povo muito silencioso e sem modos mesmo quando na
própria selva. Deveria haver duzentos deles reunidos logo abaixo do
menino, que percebeu os líderes farejando famintos o rastro de Won-
tolla e tentando fazer a matilha prosseguir. Não era bem isso que o
menino desejava, pois eles chegariam às Tocas de Seeonee ainda em
plena luz do dia, e Mowgli queria atrasá-los ali até o entardecer.
— Quem permitiu a vinda de vocês até aqui? — questionou Mowgli.
— Todas as selvas são a nossa selva — foi a resposta, e o dhole que a
deu arreganhou os dentes brancos.
Mowgli olhou para baixo sorrindo e imitou perfeitamente a
tagarelice aguda de Chikai, o rato saltitante do Dekkan, no intuito de
que os dholes entendessem que para ele não eram melhores que ratos.
A matilha avançou ao redor da árvore e o líder deu um uivo selvagem,
chamando Mowgli de mico. Em resposta, Mowgli esticou uma perna e
mexeu os dedos do pé logo acima da cabeça do líder. Foi o bastante, até
demais, para acender a raiva estúpida da matilha. Aqueles que têm
pelos entre os dedos não gostam de ser lembrados disso. Quando o líder
saltou, Mowgli puxou o pé e disse, suavemente:
— Cão, Cão Vermelho! Volte para o Dekkan, vá comer lagarto. Volte
para Chikai, seu irmão! Cão, Cão Vermelho! Tem pelos entre os dedos!
— Ele mexeu os dedos do pé uma segunda vez.
— Desça aqui ou vai morrer aí de fome, macaco pelado! — berrou a
matilha, e era exatamente isso que Mowgli queria.
Deitou-se no galho, encostando a bochecha na casca da árvore, braço
direito solto, e dali contou à matilha o que pensava, o que sabia sobre
eles, seus costumes, seus hábitos, suas fêmeas, seus filhotes. Nada no
mundo é mais rancoroso e ferino que a língua do Povo da Selva para
mostrar desprezo e desdém. Se você pensar bem no caso, verá que é
assim mesmo que deve ser. Como Mowgli dissera a Kaa, ele tinha
muitos espinhos embaixo da língua e, lenta e calculadamente, levou os
dholes do silêncio aos rosnados, dos rosnados aos berros e dos berros à
fúria rouca e espumante. Eles tentaram reagir às provocações, mas era
o mesmo que um filhote responder com fúria diante de Kaa; e todo esse
tempo a mão direita de Mowgli ficou encolhida junto do corpo, pronta
para agir, os pés enganchados ao redor do galho. O grande líder ruço
saltou diversas vezes no vazio, porém Mowgli não ousou um golpe em
falso. Por fim, enfurecido além das próprias forças, ele saltou dois
metros, dois metros e meio do chão. Então a mão de Mowgli atacou
como a cabeça de uma cobra na árvore e agarrou-o pelo tufo do
pescoço. O galho balançou com o peso, quase derrubando Mowgli no
chão. Mas ele não se soltou e, centímetro a centímetro, foi puxando o
bicho, pendurado pelo cangote como um chacal afogado, para a copa da
árvore. Com a mão esquerda, procurou a faca e cortou o rabo vermelho
e fofo, descartando em seguida o dhole de volta na terra. Só precisava
do rabo. A matilha não iria mais seguir o rastro de Won-tolla enquanto
não matasse Mowgli ou Mowgli os matasse. Ele viu que começaram a
fazer círculos, estremecendo as ancas, como quem diz que não sairá
dali de jeito nenhum, então pulou para um galho mais alto, descansou
as costas confortavelmente e adormeceu.
Quatro ou cinco horas depois, acordou e contou os dholes lá
embaixo. Estavam todos ali, calados, parrudos, secos e com olhos de
aço. O sol começava a se pôr. Dentro de meia hora, o Povo Pequeno das
Pedras estaria encerrando os trabalhos, e, como você sabe, dhole não
luta bem quando escurece.
— Não precisava de guardiões tão fiéis — agradeceu educadamente,
ficando de pé no galho —, mas vou me lembrar disso. São dholes
legítimos, mas, a meus olhos, são todos iguais. Por isso não vou
devolver o rabo ao grande comedor de lagarto. Que tal, Cão Vermelho?
— Eu mesmo vou rasgar suas entranhas! — berrou o líder,
arranhando o tronco lá embaixo.
— Não, mas pense bem, sábio rato do Dekkan. A partir de agora, vai
haver muitos filhotes de Cão Vermelho de rabinho curto, sim, com
tocos de carne viva que ardem quando a areia está quente. Vá embora,
Cão Vermelho, e vá dizendo que um macaco fez isso a você. Não quer
ir? Venha, então, venha comigo que vou lhe ensinar uma lição!
Ele saltou, à maneira do Bandar-log, para a árvore seguinte, e assim
por diante, de árvore em árvore, com a matilha o acompanhando de
olho nele, as bocas famintas. De quando em quando, fingia cair, e a
matilha tropeçava apressada para tomar parte na morte. Era uma visão
peculiar — o menino com a faca reluzindo ao poente, saltando pelas
copas, e a matilha calada com seus pelames vermelhos fiamejantes,
acotovelando-se, seguindo lá embaixo. Ao chegar à última árvore,
pegou o alho e esfregou no corpo cuidadosamente, e os dholes uivaram
zombeteiros.
— Macaco com língua de lobo, quer disfarçar seu cheiro? —
perguntaram. — Nós vamos segui-lo até a morte.
— Toma seu rabo — disse Mowgli, jogando a cauda no caminho por
onde viera. A matilha instintivamente correu atrás. — E continue me
seguindo… até a morte.
Antes que os dholes pudessem prever seus movimentos, Mowgli
escorregou pelo tronco da árvore e correu feito o vento de pés
descalços até as Pedras das Abelhas.
Eles soltaram um uivo grave e adotaram o ritmo paciente e regular
que acaba desgastando qualquer criatura corredora. Mowgli sabia que
o meio-galope da matilha era muito mais lento que o dos lobos, ou
jamais teria arriscado correr mais de três quilômetros na frente deles.
Os dholes estavam certos de que o menino sucumbiria ao final, e ele,
por sua vez, certo de que estavam fazendo exatamente o que ele queria.
Seu problema era mantê-los quentes o suficiente atrás de si, para evitar
que desistissem cedo demais. Correu solto, liso, saltitante; o líder sem
rabo a menos de cinco metros atrás; e a matilha talvez uns
quatrocentos metros depois, cega e louca de raiva assassina. Mowgli
manteve os ouvidos atentos, reservando seu último esforço para a
corrida sobre as Pedras das Abelhas.
O Povo Pequeno dormira no início do entardecer, pois não era
estação das fiores; mas, quando Mowgli pisou no chão oco pela
primeira vez, ouviu um barulho como se toda a terra estivesse
murmurando. Ele correu como nunca antes na vida, derrubou uma,
duas, três de suas pilhas de pedras no escuro daquelas fendas de cheiro
adocicado; ouviu um rugido feito o barulho do mar numa caverna; viu,
com o rabo do olho, o ar escurecer atrás de si; enxergou a corrente do
Waingunga bem lá embaixo e uma cabeça chata em forma de diamante
dentro da água; saltou com toda a sua força, os dentes do dhole sem
rabo arranhando seu ombro em pleno ar, mas furou as águas com os
pés, caindo na segurança do rio, sem fôlego e triunfante. Não sofreu
uma picada sequer, pois o cheiro do alho selvagem afastara o Povo
Pequeno durante os poucos segundos em que esteve entre eles. Quando
veio à tona, Kaa estava lá para segurá-lo, enquanto caíam tufos do
penhasco — grandes tufos, aparentemente de abelhas amontoadas
despencando feito pesos de pesca. Mas antes que esses tufos batessem
na água, as abelhas voavam para cima, e o corpo de um dhole ia
rodopiando rio abaixo. Sobre suas cabeças, ouviam-se gritos curtos e
furiosos, submersos num maremoto — o som das asas do Povo Pequeno
das Pedras. Alguns dholes caíram nas fendas que davam nas cavernas
subterrâneas, e ali sufocaram, lutaram e morderam, em meio aos favos
de mel das colmeias derrubadas, até, por fim, voltarem à tona, mesmo
quando mortos, levados pelas ondas densas de abelhas sob eles,
sumindo por algum buraco na parede da garganta e rolando até as
pilhas de detritos. Outros deram um salto curto até as árvores do
penhasco, e as abelhas cobriram seus corpos; mas a maior parte deles,
enlouquecida pelas picadas, atirou-se no rio; e, como Kaa dissera, o
Waingunga era água faminta.
Kaa segurou firme até que Mowgli recuperasse o fôlego.
— Não podemos ficar aqui — disse. — O Povo Pequeno está mesmo
em fúria. Vamos!
Nadando embaixo d’água e mergulhando o mais fundo que podia,
Mowgli desceu o rio, de faca na mão.
— Devagar, devagar — disse Kaa. — Dente para matar uma centena,
só se for dente de cobra, e muitos dholes entraram logo na água quando
viram o Povo Pequeno atacar.
— Então será mais trabalho para a minha faca. Phai! Como o Povo
Pequeno é perseguidor! — Mowgli mergulhou de novo. A superfície da
água estava coberta por uma manta de abelhas selvagens, zumbindo
muito sérias e picando tudo o que encontravam.
— Silêncio nunca fez mal a ninguém — disse Kaa, cujas escamas o
protegiam de qualquer ferrão —, e tens a noite inteira ainda para caçar.
Ouça, estão uivando!
Quase metade da matilha percebera a armadilha em que seus colegas
haviam caído, e, virando abruptamente para o lado, escapou pulando na
água onde a garganta se abria em barrancos íngremes. Seus gritos de
raiva e suas ameaças contra o “mico” que os havia envergonhado
mesclaram-se aos berros e rugidos daqueles que haviam sido punidos
pelo Povo Pequeno. Permanecer fora d’água significava a morte, e o
bando, percebendo isso, deixou-se levar pela correnteza até as quedas
profundas da Lagoa da Paz, mas, mesmo lá, o irritado Povo Pequeno os
perseguiu e os obrigou a voltar para a água. Mowgli podia ouvir a voz
do líder sem rabo, mandando seu povo esperar e matar todos os lobos
de Seeonee. Mas não perdeu tempo dando ouvidos àquela conversa.
— Alguém está nos matando por trás no escuro! — latiu um dhole.
— Veja aqui o sangue na água!
Mowgli mergulhara para a frente feito uma lontra, atacara um dhole
que se revolvia embaixo d’água antes que conseguisse abrir a boca, e
anéis escuros subiram quando o corpo veio à tona, caído de lado. Os
dholes tentaram fugir, mas a correnteza os impediu, e o Povo Pequeno
ferroou suas cabeças e orelhas, e eles ouviram o desafio da Alcateia de
Seeonee rosnando cada vez mais alto e mais grave na noite que se
fechava. Mowgli mergulhou de novo, e outra vez um dhole afundou e
emergiu morto, e novamente se ouviu o clamor na traseira do bando,
uma espécie de uivo de que era melhor sair do rio, alguns chamando o
líder para que os levasse de volta ao Dekkan, e outros pedindo que
Mowgli aparecesse e se apresentasse para morrer.
— Eles vêm para a luta com dois desejos e várias vozes — sentenciou
Kaa. — O resto é com seus irmãos rio abaixo. O Povo Pequeno voltou a
dormir. Eles nos perseguiram bastante por hoje. Agora também faço
meia-volta, pois não sou da mesma pele que lobo nenhum. Boa caçada,
irmãozinho, e lembre que o dhole morde baixo.
Um lobo vinha correndo pela margem do rio em três patas, saltando
para cima e para baixo, deitando a cabeça de lado perto do chão,
curvando as costas e pulando bem alto no ar, como se brincasse com os
filhotes. Era Won-tolla, o Arredio, e não falou nada, mas continuou seu
jogo horrível ao lado dos dholes. Àquela altura, já estavam na água
havia um bom tempo, cansados de nadar, encharcados e pesados, com
os rabos fofos parecendo esponjas, tão exauridos e abalados que
também se calaram, observando o par de olhos faiscantes que se movia
logo ao lado.
— Isso não é uma boa caçada — disse um deles, ofegante.
— Boa caçada! — saudou Mowgli, ao emergir ousadamente ao lado
do bicho, e enfiou-lhe a faca comprida por trás do ombro, empurrando-
o com força para evitar a mordida mortal.
— Está aí, filhote de homem? — indagou Won-tolla da margem.
— Pergunte dos mortos, Arredio — respondeu Mowgli. — Não veio
nenhum descendo rio abaixo? Enchi as bocas desses cães de terra,
enganei-os em plena luz do dia, e o líder deles ficou sem rabo, mas aqui
ainda sobraram alguns para você. Para onde quer que os leve?
— Vou esperar — respondeu Won-tolla. — Tenho a noite inteira pela
frente.
A baía dos lobos de Seeonee estava cada vez mais perto.
— Para a alcateia, para toda a alcateia, chegou a hora!
E uma curva no rio levou os dholes para os bancos de areia bem
diante das tocas.
Foi então que viram seu erro. Deveriam ter saído do rio um
quilômetro antes e enfrentado os lobos em terra firme. Agora era tarde
demais. A margem estava repleta de olhos faiscantes, e, com exceção do
horrível pheeal, que não cessara desde o poente, não se ouvia outro
ruído na selva. Parecia que Won-tolla estava provocando os dholes para
saírem da água.
— Para fora e ao ataque! — ordenou o líder sem rabo.
Toda a matilha se lançou em direção à margem, patinhando na água
rasa do banco de areia até que a superfície do Waingunga ficou toda
branca de espuma, com grandes ondulações indo de um lado a outro do
rio, como o rastro de um barco. Mowgli acompanhou o alvoroço,
esfaqueando e talhando, enquanto os dholes, agrupados, rumavam à
praia do rio com uma onda.
Então começou a grande luta, arquejando, forçando, rachando,
espalhando, acuando e dispersando-se ao longo das areias vermelhas e
úmidas, pelas raízes de árvores emaranhadas e por entre elas próprias,
em meio e no meio de arbustos, dentro e fora das touceiras de mato,
pois mesmo então os dholes eram dois para um. Porém, eles
encontraram lobos que brigavam por tudo aquilo que a alcateia
significava, e não apenas os caçadores baixos, de peito largo e caninos
brancos, mas também as lahinis de olhos afiitos — as lobas das tocas,
como diz o ditado — lutando por suas crias, e aqui e ali também um
lobo novo, com o primeiro pelame ainda lanoso, fofo, puxando e
prendendo pelos fiancos. O lobo, você deve saber, ataca a garganta ou
morde os fiancos, enquanto o dhole, de preferência, morde a barriga, de
modo que os dholes, quando se esforçavam para sair da água e
precisavam esticar a cabeça, favoreciam os lobos. Na terra firme, os
lobos sofriam; mas dentro e fora da água, a faca de Mowgli ia e vinha
sem descansar. Os Quatro correram, preocupados, para junto dele. O
Irmão Cinzento, agachado entre os joelhos do menino, protegia sua
barriga, enquanto os outros guardavam as costas e os fiancos, ou
ficando em cima dele, na hora do impacto com um dhole, que saltou
berrando em cima da lâmina e derrubou Mowgli no chão. No mais, foi
uma confusão total — um grupo compacto que subia e descia a
margem para então subir de novo, girando lentamente em torno de si
mesmo. Aqui, um amontoado arquejante, feito uma bolha de água num
redemoinho, que emergia e se rompia exatamente como uma bolha,
revelando quatro ou cinco cães mutilados, tentando voltar ao centro;
ali, um único lobo, atacado por dois ou três dholes, esforçando-se para
arrastá-los para a frente e afundando em seu intento; acolá, um lobo
jovem emergindo pela pressão à sua volta, embora tivesse sido morto
pouco antes, enquanto a mãe, enlouquecida de raiva cega, rolava sem
parar, mordendo e passando para a próxima mordida; e no meio da
mais densa confusão, talvez, um lobo e um dhole, ignorando todo o
resto, manobrando pela vantagem do primeiro golpe, até serem
dispersados pelo alvoroço dos demais combatentes furiosos. A certa
altura, Mowgli passou por Akela, que tinha um adversário de cada lado
e a mandíbula quase desdentada fechada na virilha de um terceiro; e
depois viu Phao, com os dentes na garganta de um cão, puxando o
bicho contrariado para que os lobos mais jovens terminassem a
matança. Mas o grosso da luta foi uma comoção cega e sufocante no
escuro, à volta, atrás e acima de Mowgli; bater, correr, tropeçar, ganir,
grunhir e morder, morder, morder. Conforme a noite foi passando, a
velocidade dos giros vertiginosos foi aumentando. Os dholes ficaram
acuados, temendo atacar lobos mais fortes, mas não ousaram fugir.
Mowgli sentiu que o fim chegaria logo e se contentou em esfaquear
apenas para aleijar. Os lobos novos foram ficando mais ousados. De
quando em quando, havia tempo de respirar e comentar com um
amigo, e, às vezes, o mero reluzir da faca desencorajava um cão.
— A carne está quase no osso — berrou o Irmão Cinzento. Estava
sangrando em inúmeras feridas em carne viva.
— Mas o osso ainda não foi quebrado — respondeu Mowgli. —
Eowawa! É assim que fazemos na selva! — A lâmina vermelha ia veloz
feito uma labareda nos fiancos de um dhole cujas ancas se ocultavam
sob o peso de um lobo agarrado às suas costas.
— Esta caça é minha! — grunhiu o lobo pelas narinas franzidas. —
Deixem este para mim.
— Sua barriga ainda está vazia, Arredio? — zombou Mowgli.
Won-tolla havia sido gravemente ferido, mas conseguira imobilizar o
dhole, que não podia se virar para mordê-lo.
— Pelo touro que me comprou — exclamou Mowgli, com uma
gargalhada mordaz —, é o dhole sem rabo!
De fato, era o grande líder ruço.
— Não é muito inteligente matar filhotes e lahinis — continuou
Mowgli, filosoficamente, limpando o sangue dos olhos —, a não ser que
também tivessem matado o Arredio; e tenho cá comigo que esse Won-
tolla vai matar você.
Um dhole saltou para ajudar o líder, mas antes que seus dentes se
cravassem nos fiancos de Won-tolla, a faca de Mowgli já estava em sua
garganta, e o Irmão Cinzento cuidou do resto.
— E assim é que fazemos na selva — disse Mowgli.
Won-tolla não disse uma palavra, mas sua boca abria e se fechava na
espinha do cão cuja vida se esvaía. O dhole estremeceu, a cabeça
pendeu, o corpo ficou imóvel e Won-tolla pisou sobre o cadáver.
— Huh! A dívida de sangue está paga — exclamou Mowgli. — Cante
a canção, Won-tolla.
— Este não caçará mais — disse o Irmão Cinzento —, e Akela
também esteve calado todo esse tempo.
— Quebramos o osso! — gritou Phao, filho de Phaona. — Estão indo
embora! Matem, matem todos, ó caçadores do Povo Livre!
Dhole após dhole, eles foram tentando escapar daquelas areias
escuras e sangrentas e voltar para o rio, para a selva fechada, rio acima
ou rio abaixo, conforme viam um caminho desimpedido.
— A dívida! A dívida! — berrou Mowgli. — Cobrem a dívida! Eles
massacraram o Lobo Solitário! Não deixem cão nenhum escapar!
Ele ia correndo para o rio, de faca na mão, para impedir qualquer
dhole que ousasse entrar na água, quando, debaixo de uma pilha de
nove corpos, surgiram a cabeça e as patas dianteiras de Akela, e Mowgli
se ajoelhou ao lado do Lobo Solitário.
— Não disse que seria minha última luta? — murmurou Akela. —
Foi uma boa caçada. E quanto a você, irmãozinho?
— Sobrevivi, matei muitos deles.
— Mesmo assim, estou morrendo e… morreria por você,
irmãozinho.
Mowgli pousou a cabeça terrivelmente arranhada em seus joelhos e
pôs os braços em torno do pescoço lanhado.
— Há muito que os velhos tempos de Shere Khan ficaram para trás e
um filhote de homem rolava nu na terra.
— Não, não, sou lobo. Sou da mesma pele do Povo Livre! —
exclamou Mowgli. — Não é minha vontade ser homem.
— Você é homem, irmãozinho, lobinho de quem cuidei. Você é
homem, do contrário a alcateia teria fugido diante dos dholes. Devo-
lhe minha vida, e hoje você salvou a alcateia como um dia o salvei.
Esqueceu? Todas as dívidas agora estão pagas. Vá para o seu povo. Digo
outra vez, olho do meu olho, esta caçada terminou. Vá para o seu
próprio povo.
— Jamais. Vou caçar sozinho na selva. Já disse.
— Depois do verão, vão chegar as chuvas, e, depois das chuvas, a
primavera. Vá embora antes que o levem.
— Quem vai me levar?
— Mowgli vai levar Mowgli. Volte para o seu povo. Volte para o
homem.
— Quando Mowgli levar Mowgli, então eu vou — respondeu o
menino.
— Mais uma coisa deve ser dita — continuou Akela. — Irmãozinho,
pode me colocar de pé? Também fui líder do Povo Livre.
Com todo o cuidado e gentileza, Mowgli afastou os cadáveres e
colocou Akela de pé, segurando-o com os dois braços. O Lobo Solitário
respirou fundo e começou a Canção da Morte, que o líder da alcateia
deve cantar ao morrer. A canção foi ganhando força conforme ele
prosseguia, aumentando e aumentando, fazendo-se ouvir bem longe do
outro lado do rio, até chegar ao último “Boa caçada!”. E Akela se
desvencilhou de Mowgli por um instante, saltando no ar, e caiu morto
para trás, vítima de sua derradeira e mais terrível caçada.
Mowgli sentou com a cabeça entre os joelhos, sem pensar em mais
nada, enquanto os últimos dholes em fuga eram capturados e
derrotados pelas impiedosas lahinis. Pouco a pouco, os gritos foram
sumindo, e os lobos voltaram mancando, acostumando-se às próprias
feridas, para fazer um balanço das perdas. Quinze lobos da alcateia,
além de meia dúzia de lahinis, quedavam mortos junto ao rio. Entre os
dholes nenhum escapou ileso. Mowgli ficou ali sentado até a
madrugada fria, quando o focinho molhado e vermelho de Phao roçou
suas mãos, e o menino lhe mostrou o corpo caído de Akela.

— Boa caçada! — cumprimentou Phao, como se Akela ainda


estivesse vivo, e então disse por sobre o ombro mordido aos demais: —
Uivem, cães! Um lobo morreu esta noite!
Mas, de todo o bando de duzentos dholes matadores, que diziam que
todas as selvas eram a sua selva e que nenhuma criatura viva poderia
resistir diante deles, nenhum voltou ao Dekkan para levar a notícia.
Canção de Chil

Esta é a canção entoada por Chil quando, aos milhares,


os milhafres começaram a descer até o leito do rio, depois
que a grande batalha terminou. Chil é amigo de todo mundo,
mas, no fundo, é uma criatura de sangue-frio, porque sabe que,
no fim, praticamente todos na selva acabam sobrando para ele.

Estes foram meus companheiros avançando à noite,


(Chil! Atenção, lá vem Chil!)
Agora venho anunciar que acabou a luta.
(Chil! Vanguardas de Chil!)
Eles me avisam aqui em cima da caça recém-abatida,
Eu os aviso, lá embaixo, do cervo morto na planície.
Aqui terminam todos os rastros; esses não falam mais!

Dos que fizeram o chamado de caça, os que corriam depressa,


(Chil! Atenção, lá vem Chil!)
Dos que fizeram o sambar desviar, que o bicaram ao passar,
(Chil! Vanguardas de Chil!)
Dos que ficavam e eram farejados, dos que corriam com seu faro,
Dos que erguiam alto seus chifres, dos que foram chifrados.
Aqui terminam todos os rastros; esses não caçam mais.
Esses foram meus companheiros. Pena, não serão mais!
(Chil! Atenção, lá vem Chil!)
Agora venho consolar quem no auge conheci.
(Chil! Vanguardas de Chil!)
Flancos lanhados, olhos fundos, bocas abertas, vermelhas,
Caídos, secos e sós, ali deitados, mortos e mais que mortos.
Aqui terminam todos os rastros; aqui se alimentam os meus.
A corrida da primavera

Homem ao homem! Grita o desafio pela selva!


Aquele que foi nosso irmão vai embora.
Ouve agora e julgue, ó Povo da Selva,
Diz, quem o fará voltar… quem o impedirá?

Homem ao homem! Ele chora na selva:


Aquele que foi nosso irmão, triste, nos entristece!
Homem ao homem! (Ai, nós o amamos na selva!)
Na trilha do homem, não podemos mais segui-lo.

No segundo ano após a grande luta contra os cães vermelhos e a morte


de Akela, Mowgli devia estar com quase dezessete anos. Parecia mais
velho, pois os exercícios pesados, a melhor alimentação possível e
tantos banhos, tomados sempre que se sentia minimamente suado ou
sujo, haviam lhe proporcionado uma força e um tamanho muito
maiores que os de sua idade. Quando queria olhar a estrada das
árvores, conseguia se balançar com apenas uma das mãos num galho
alto durante meia hora de cada vez. Era capaz de deter um gamo novo a
meio-galope e derrubá-lo de lado segurando-o pela cabeça. Podia até
mesmo montar os grandes javalis que viviam nos Charcos do Norte. O
Povo da Selva, que costumava temer sua astúcia, agora temia sua força,
e quando Mowgli vinha silencioso, cuidando de seus assuntos, a um
mero boato de que iria chegar todos saíam do caminho entre as árvores.
No entanto, seu olhar era sempre gentil. Mesmo quando estava lutando,
seus olhos nunca faiscavam como os de Bagheera. Apenas ficavam mais
interessados e entusiasmados; e isso era uma das coisas que nem
Bagheera conseguia entender.
Ele perguntou a Mowgli a respeito, o menino riu e disse:
— Quando deixo a caça escapar, fico irritado. Quando preciso ficar
dois dias de barriga vazia, fico muito irritado. Meus olhos não dizem
isso?
— A boca está irritada — disse Bagheera —, mas os olhos não dizem
nada. Caçar, comer, nadar, é tudo a mesma coisa… como uma pedra no
tempo molhado ou seco.
Mowgli fitou o amigo preguiçosamente, por baixo de seus longos
cílios, e, como de costume, a pantera baixou a cabeça. Bagheera
conhecia seu dono.
Estavam deitados ao ar livre, bem no alto de uma serra que dava para
o Waingunga, com a neblina da manhã abaixo deles, em faixas brancas
e verdes. Quando o sol nasceu, elas se transformaram em mares
borbulhantes de ouro vermelho, afastaram-se e deixaram os raios ainda
baixos listrarem o mato seco em que Mowgli e Bagheera descansavam.
Era o final do tempo frio, as folhas e as árvores pareciam velhas e
gastas, e havia um farfalhar seco quando batia a aragem. Uma folha
tamborilava furiosamente num graveto, como faz quando é pega por
uma corrente de vento. Aquilo despertou Bagheera, que inspirou o ar
da manhã com uma tosse grave e rouca, deitou de barriga para cima e
ficou batendo as patas dianteiras na tal folha.
— O ano está virando — anunciou. — A selva segue em frente. Já
está chegando a Hora das Falas Novas. Esta folha sabe. Isso é muito
bom.
— O mato está seco — respondeu Mowgli, puxando uma touceira. —
Nem o olho-da-primavera [uma fiorzinha bem vermelha em forma de
trompete, que nasce enfiada no meio do mato], nem o olho-da-
primavera abriu, e… Bagheera, é certo a pantera-negra ficar deitada
brincando com as patas para cima como se fosse um gato-do-mato?
— Hein? — exclamou Bagheera. Ele parecia pensar em outras coisas.
— Perguntei se é certo a pantera-negra ficar assim o tempo todo
bocejando, uivando e rolando na relva. Lembre-se de que somos os
senhores da selva, você e eu.
— De fato, somos; é o que dizem, filhote de homem. — Bagheera
rolou apressado e sentou, os fiancos negros falhados cobertos de
poeira. (Estava trocando os pelos do inverno.) — Claro que somos os
senhores da selva! Quem é tão forte quanto Mowgli? Quem é mais
sábio?
Isso foi dito num tom curioso de voz, que fez Mowgli se virar para
ver se por acaso a pantera-negra não estava zombando dele, pois a selva
é cheia de palavras que soam uma coisa, mas querem dizer outra.
— Eu disse que, sem dúvida, somos os senhores da selva — repetiu
Bagheera. — Fiz algo de errado? Não sabia que o filhote de homem já
não vivia na terra. Ele voa agora?
Mowgli sentou apoiando os cotovelos nos joelhos, olhando o vale à
luz do dia. Lá embaixo, em algum lugar da fioresta, um pássaro
experimentava, com voz pesada e esganiçada, as primeiras notas de sua
canção de primavera. Não era mais que uma sombra do chamado fiuido
e gorjeado que faria mais tarde, mas Bagheera ouviu.
— Não falei que a Hora das Falas Novas iria chegar? — rugiu a
pantera, balançando a cauda.
— É o que dizem — respondeu Mowgli. — Bagheera, por que está
tremendo todo? O sol está quente.
— É Ferao, o pica-pau escarlate — disse Bagheera. — Ele não
esqueceu. Agora também preciso lembrar minha canção — e começou
a ronronar e cantarolar sozinho, interrompendo-se contrariado
algumas vezes.
— Não vejo caça alguma por perto — comentou Mowgli.
— Irmãozinho, nenhuma de suas orelhas funciona mais? Isso não foi
senha de caça, mas uma canção que estou fazendo, para quando chegar
a hora.
— Tinha me esquecido. Quando a Hora das Falas Novas chegar, vou
ficar sabendo, porque você e os outros todos saem correndo e me
deixam sozinho — resmungou Mowgli, um tanto feroz.
— Na verdade, irmãozinho — começou Bagheera —, nem sempre
nós…
— Todos vocês, estou dizendo — insistiu Mowgli, mostrando
irritado o dedo indicador. — Vocês fogem, sim. E eu, que sou o Senhor
da Selva, sou obrigado a ficar sozinho. Lembra quando fui colher cana-
de-açúcar dos campos do Bando dos Homens na primavera passada?
Mandei um mensageiro… mandei você!… até Hathi, para pedir que
viesse numa certa noite e tirasse a cana com a tromba para mim.
— Ele só atrasou duas noites — argumentou Bagheera, um tanto
amuado. — E, daquela cana doce que você tanto gosta, colheu mais do
que um filhote de homem conseguiria comer em todas as noites das
chuvas. Não foi culpa minha.
— Ele não veio na noite em que pedi. Não, ficou trombeteando,
correndo e rugindo pelos vales à luz da lua. Seu rastro parecia o de três
elefantes, porque não se escondia entre as árvores. Ficou dançando ao
luar na frente das casas dos homens. Eu vi, e mesmo assim ele não veio.
E eu sou o Senhor da Selva!
— Era Hora das Falas Novas — insistiu a pantera, ainda muito
humildemente. — Será, irmãozinho, que você não usou uma outra
senha com ele? Ouça Ferao e aproveite!
O mau humor de Mowgli como que evaporou. Ele fechou os olhos e
recostou a cabeça nos braços.
— Não sei… e também não me importa — respondeu, sonolento. —
Vamos dormir, Bagheera. Minha barriga está pesada. Deixe-me
descansar em você.
A pantera se deitou de novo, suspirando, porque ouviu Ferao se
exercitar e repetir sua canção das Falas Novas, como os animais
chamam a Primavera.
Nas selvas da Índia, as estações deslizam umas nas outras, quase sem
divisão. Como se houvesse apenas duas — a molhada e a seca. Mas se
você prestar atenção, sob as torrentes da chuva e sob as nuvens de
cinzas e poeira, verá que se encontram as quatro em seu ciclo regular. A
primavera é a mais magnífica, porque não precisa cobrir um terreno
descampado e limpo com folhas e fiores novas, mas simplesmente
retirar e guardar o emaranhado remanescente e subsistente de coisas
semiverdes que o inverno gentil permitiu sobreviver, deixando a terra
rançosa e semidespida sentir-se nova outra vez, jovem outra vez. E ela
faz isso tão bem que não há primavera no mundo igual à da selva.
Chega um dia em que todas as coisas cansam, e os próprios cheiros,
vagando pelo ar pesado, ficam velhos e gastos. Ninguém pode explicar
isso, mas é o que se sente. Depois, chega outro dia — os olhos não
distinguem uma mudança sequer — em que todos os cheiros estão
novos e deliciosos, e os bigodes do Povo da Selva estremecem até a raiz
e os pelos do inverno caem em cachos longos e desgrenhados. Então,
talvez, chegue uma chuvinha, e todas as árvores, arbustos, bambus,
musgos e plantas de folhas suculentas acordam, com um rumor de
crescimento que quase dá para ouvir, e sob esse rumor, dia e noite,
ressoa um murmúrio grave. Esse é o som da primavera — um estrondo
vibrante que não é de abelhas, nem de cachoeira, nem do vento das
copas das árvores, mas o ronronar do mundo aquecido e feliz.
Até aquele ano, Mowgli sempre adorara a mudança das estações. Era
ele quem geralmente via o primeiro olho-da-primavera escondido no
mato, e o primeiro bando de nuvens da primavera, que não se parecem
com nada em toda a selva. Sua voz se ouvia nos mais diversos lugares,
fossem eles úmidos, estrelados ou fiorescentes, ajudando as grandes rãs
em seus corais ou zombando dos pequenos mochos que arrulham de
cabeça para baixo em noites brancas. Assim como para todo o seu povo,
a primavera era sua estação preferida para as fugas — quando corria
pela pura alegria de sair correndo pelo ar quente, cinquenta, sessenta,
oitenta quilômetros entre o poente e a estrela-d’alva, e voltava
ofegante, rindo e coberto de fiores estranhas. Os Quatro Irmãos não o
acompanhavam nessas perambulações loucas pela selva, mas saíam
para cantar suas canções com os outros lobos. O Povo da Selva tem
muito o que fazer na primavera, e Mowgli ouvia cada animal
grunhindo, gritando e assobiando conforme sua espécie. As vozes ficam
diferentes das outras épocas do ano, e esse é um dos motivos por que
na selva a primavera é chamada de Tempo das Falas Novas.
Naquela primavera, porém, como ele disse a Bagheera, suas
entranhas estavam diferentes. Assim que os brotos de bambu
começaram a ficar pintados de marrom, ele vinha desejando o dia em
que os cheiros mudariam. Mas quando o dia chegou, e Mor, o pavão,
reluzindo em bronze, azul e dourado, gritou bem alto pelos bosques
nebulosos, e Mowgli abriu sua boca para responder ao grito, as palavras
engasgaram entre seus dentes e veio-lhe uma sensação que começava
nos dedos dos pés e ia até a ponta dos cabelos — uma sensação de tão
pura infelicidade que ele até conferiu se não tinha pisado num espinho.
Mor anunciou os novos cheiros, outros pássaros responderam e, das
pedras do Waingunga, ele ouviu o rugido de Bagheera — algo entre o
grito de uma águia e o relinchar de um cavalo. Ouviram-se a gritaria e o
alvoroço do Bandar-log, nos galhos cheios de brotos no alto, e ali estava
Mowgli, com o peito infiado para responder a Mor, mas afundando em
pequenos engasgos, à medida que o ar lhe era sugado para fora por essa
infelicidade.
Ficou olhando ao redor, mas não via nada além do Bandar-log
zombeteiro, pulando de galho em galho, e Mor, a cauda aberta em
pleno esplendor, dançando lá embaixo.
— Os cheiros mudaram — gritou Mor. — Boa caçada, irmãozinho!
Onde está a sua resposta?
— Irmãozinho, boa caçada! — assobiou Chil, o milhafre, com a
fêmea a seu lado. Ambos revoaram bem debaixo do nariz de Mowgli,
tão rente que um punhado de penas brancas roçou seu rosto.
Uma leve chuva de primavera — uma chuva-elefante, como eles
chamam — atravessou a selva numa faixa de um quilômetro de largura,
molhando as folhas novas e acenando em seguida, até morrer num
arco-íris duplo e num trovão ligeiro. O murmúrio da primavera cessou
por um minuto, fez-se o silêncio, então todo o Povo da Selva cantou ao
mesmo tempo. Todos menos Mowgli.
— Comi boa comida — disse, consigo mesmo. — Bebi boa água.
Minha garganta não está doendo nem apertada, como quando mordi a
raiz pintada de azul que Oo, a tartaruga, disse que era boa para comer.
Mas minhas entranhas me pesam, e fui muito grosseiro com Bagheera e
os demais, com o Povo da Selva e o meu povo. Agora estou quente,
agora estou frio, e agora não estou nem quente nem frio, mas irritado
com o que não consigo ver. Huhu! É hora de sair correndo! Esta noite
vou cruzar as serras; isso, uma corrida de primavera até os Charcos do
Norte e de volta. Tive muita caça fácil, por muito tempo. Os Quatro
devem me acompanhar, pois estão ficando gordos como larvas brancas.
Ele os chamou, mas nenhum dos Quatro respondeu. Estavam longe
demais para ouvir, cantando as canções da primavera — a Canção da
Lua e a Canção do Sambar — com os lobos da alcateia; pois, na época
da primavera, o Povo da Selva não diferencia muito a noite do dia. Ele
emitiu uma nota seca, latida, mas a única resposta foi o miado
zombeteiro do gato-do-mato-pintado, que pulava entre os galhos
procurando ninhos com pequenos ovos de passarinhos. Com isso,
Mowgli estremeceu de raiva e quase puxou sua faca. Então ficou muito
altivo, embora ninguém o visse, e desceu solenemente a colina;
sobranceiro, mas carrancudo. Em momento algum, no entanto, alguém
de seu povo lhe fez qualquer pergunta, muito ocupados que estavam
com seus próprios assuntos.
— Sim — disse Mowgli consigo mesmo, embora no fundo soubesse
que não tinha motivo para dizê-lo. — Que venha o dhole vermelho do
Dekkan, que a Flor Vermelha dance entre os bambus, e que toda a selva
venha correndo reclamar com Mowgli, chamando-o pelo nome dos
grandes elefantes. Mas agora, porque o olho-da-primavera está
vermelho e porque Mor, infelizmente, precisa mostrar as pernas nuas,
numa dança primaveril, a selva ficou louca como Tabaqui… Pelo touro
que me comprou! Sou ou não sou o Senhor da Selva? Silêncio! O que
fazem aqui?
Uma dupla de jovens lobos da alcateia vinha a meio-galope por uma
trilha, procurando um descampado onde lutar. (Você deve se lembrar
que a Lei da Selva proíbe lutar aos olhos da alcateia.) Os pelos do
pescoço de ambos estavam eriçados feito arame farpado, e eles uivavam
furiosamente, agachados para o primeiro ataque. Mowgli saltou na
frente, pegou os dois pela garganta, um em cada mão, achando que
apartaria a briga como costumava fazer nas brincadeiras da alcateia.
Mas nunca tinha interferido numa luta de primavera. Os dois saltaram
para a frente, empurraram-no de lado e, sem dizer uma palavra,
rolaram atracados no chão.
Mowgli já estava de pé quase antes de cair, mostrando a faca e os
dentes brancos. Naquele instante, sentiu-se capaz de matar os dois sem
outro motivo além de estarem brigando enquanto ele queria que
ficassem quietos, embora todo lobo tenha pleno direito de brigar,
segundo a lei. Ele dançou ao redor do par, os ombros baixos e as mãos
trêmulas, pronto para um ataque duplo que encerraria a briga logo na
primeira rusga; mas, enquanto esperava, aparentemente a força se
esvaiu de seu corpo, a ponta da faca baixou e ele a guardou na bainha,
observando.
— Devo ter comido veneno — suspirou, por fim. — Desde que desfiz
o conselho com a Flor Vermelha, desde que matei Shere Khan,
ninguém na alcateia me empurra de lado. E esses aí são apenas lobos
sem importância da alcateia, caçadorezinhos! Minha força se esvaiu e
sinto como se fosse morrer. Ah, Mowgli, por que não mata esses dois?
A luta continuou até que um dos lobos fugiu, e Mowgli ficou ali
sozinho no terreno desgrenhado e ensanguentado, olhando para a
própria faca, depois para as próprias pernas e braços, enquanto uma
sensação de infelicidade, como nunca sentira antes, o encobriu como
água a um tronco boiando.
Havia caçado mais cedo naquela noite e comera pouco, de modo a
estar bem-disposto para sua corrida de primavera, e sozinho, porque
todo o Povo da Selva estava longe cantando ou lutando. Fazia uma
perfeita noite branca, como eles dizem. Todas as coisas verdes
pareciam ter crescido um mês desde a manhã. O ramo, que ontem tinha
folhas amarelas, gotejou seiva quando Mowgli o quebrou. O musgo
estava grosso e aquecido a seus pés, o capim novo ainda não tinha as
bordas afiadas, e todas as vozes da selva ecoavam como uma harpa
grave dedilhada pela lua — a Lua das Falas Novas, que lançava sua luz
em cheio sobre as pedras e as poças, enfiando-a por entre troncos e
cipós, peneirando-a por um milhão de folhas. Esquecendo sua
infelicidade, Mowgli cantou alto de puro prazer, enquanto descia a
colina. Era como se voasse, pois escolhera o longo declive que dá nos
Charcos do Norte, atravessando o coração da selva principal, onde o
terreno primaveril amortecia o peso de seus pés. Um homem educado
entre homens teria medido cada passo e tropeçado muitas vezes, sob o
luar traiçoeiro, porém os músculos de Mowgli, treinados por anos de
experiência, levaram-no pelo ar como se fosse uma pluma. Quando um
tronco apodrecido ou uma pedra escondida se punham em seu
caminho, ele desviava sem diminuir o ritmo, sem esforço, sem pensar.
Quando se cansou de ir a pé, estendeu as mãos para o cipó mais
próximo, feito um macaco, e partiu, mais fiutuando que escalando
pelos ramos finos, seguindo a estrada das árvores até mudar de humor,
quando então desceu, numa longa curva entre as folhagens, até o chão
outra vez. Em algumas cavernas, quentes e cercadas de pedras
molhadas, mal conseguiu respirar, graças ao cheiro forte das fiores
noturnas e dos brotos de trepadeiras se abrindo; avenidas escuras onde
o luar se projetava em faixas regulares, como um xadrez de mármore
em uma nave de igreja; matas cujos brotos úmidos cresciam até a altura
do peito e abraçavam sua cintura; e colinas coroadas de rochas
partidas, onde ele pulou de pedra em pedra, sobre tocas de raposinhas
assustadas. Muito sutil e distante, ouvia, às vezes, o ronco áspero de um
javali afiando as presas num tronco, e deparava-se com o grande bicho
cinzento, sozinho, arranhando e arrancando a casca de uma árvore alta,
a boca espumando e os olhos soltando faíscas. Ou virava de lado ao som
de chifres se marrando e grunhidos sibilantes, e passava correndo por
uma dupla de sambares furiosos, cambaleantes, cabisbaixos, com listras
de sangue que pareciam pretas à luz do luar. Ou, em um vau de águas
agitadas do rio, ouvia Jacala, o crocodilo, mugir feito um touro, ou
perturbava um emaranhado do Povo Venenoso, mas, antes que dessem
o bote já estava a salvo, bem longe, atravessando os seixos reluzentes,
de volta ao coração da selva.
E assim ele correu, ora berrando alto, ora cantando consigo mesmo, a
coisa mais feliz em toda a selva naquela noite, até que o cheiro das
fiores o alertou de que estava perto dos charcos, e os charcos ficavam
muito além de seus territórios de caça, mesmo os mais remotos.
Ali, outra vez, um homem ensinado por homens teria afundado até a
cabeça em três passos, mas os pés de Mowgli tinham olhos nas solas e o
fizeram passar de touceira em touceira, de montinho em montinho de
terra, sem pedir ajuda aos olhos da cabeça. Ele correu até o meio do
pantanal, espantando os patos na corrida, e sentou num tronco coberto
de musgo, deitado na água preta. Todo o charco estava acordado à sua
volta, pois, na primavera, o Povo dos Pássaros tinha o sono muito leve, e
turmas inteiras deles ficavam indo e vindo a noite toda. Mas ninguém
reparou em Mowgli, sentado entre os juncos altos, entoando canções
sem palavras, olhando para as solas duras de seus pés marrons, em
busca de espinhos que esquecera de arrancar. Toda a sua tristeza
parecia deixada para trás, na selva de onde viera, e ele começava a
sentir uma canção lhe encher a garganta, quando a tristeza voltou…
dez vezes pior do que antes.
Dessa vez, Mowgli ficou apavorado.
— Aqui também! — exclamou consigo mesmo, a meia-voz. — A
tristeza me seguiu até aqui. — E olhou por cima do ombro, para ver se
ela não estava logo atrás. — Não tem ninguém.
Os ruídos noturnos do charco continuaram, mas nem pássaro nem
bicho algum falou com ele, e a nova sensação de angústia cresceu.
— Na certa, me envenenei — disse, perplexo. — Devo ter comido
veneno sem perceber, e a minha força está indo embora. Fiquei com
medo, mas não era eu quem estava com medo, Mowgli ficou com medo
quando os dois lobos lutaram. Akela, ou até mesmo Phao, teriam calado
a boca daqueles dois; mas Mowgli ficou com medo. Um sinal claro de
que tomei veneno… Mas o Povo da Selva nem se importa! Só fazem
cantar, uivar, lutar e correr em bando, ao luar, e eu… Hai-mai!… estou
aqui, morrendo no charco, morrendo do veneno que tomei.
Sentiu tanta pena de si mesmo que quase chorou:
— E depois — continuou —, vão me encontrar deitado na água
preta. Não! Voltarei para a minha selva, morrerei sobre a Pedra do
Conselho, e Bagheera, a quem amo, se não estiver gritando pelo vale,
talvez possa ficar vigiando meus restos por algum tempo, para Chil não
fazer comigo o que fez com Akela.
Uma lágrima grande e quente pingou em seu joelho. Infeliz como
estava, Mowgli ficou contente por sua angústia, se é que dá para
entender essa felicidade de cabeça para baixo.
— Como Chil, o milhafre, fez com Akela — repetiu —, na noite em
que salvei a alcateia do Cão Vermelho. — Ele ficou calado um pouco,
pensando nas últimas palavras do Lobo Solitário, das quais você se
lembra, claro. — Akela me disse muitas tolices antes de morrer, pois
quando morremos nossas entranhas mudam. Ele disse… Mesmo assim,
sou da selva!
Em seu entusiasmo, lembrando a luta na margem do Waingunga, ele
gritou bem alto as últimas palavras, e uma búfala selvagem entre os
juncos se ajoelhou, grunhindo:
— Homem!
— Uhh! — retrucou Mysa, o búfalo selvagem (Mowgli ouviu quando
ele se virou na poça). — Isso aí não é homem. É só aquele lobo sem pelo
da alcateia de Seeonee. Em noites assim, ele fica correndo por aí.
— Uhh! — respondeu a búfala, baixando a cabeça para mascar outra
vez: — Achei que era homem.
— Já disse que não é. Ei, Mowgli, há algum perigo? — perguntou
Mysa, baixinho.
— Ei, Mowgli, há algum perigo? — repetiu o menino, zombeteiro. —
Mysa só pensa nisso: se há algum perigo. Mas, com Mowgli, que fica
correndo pela selva à noite, vigiando, ninguém se importa?
— Como ele grita alto! — disse a búfala.
— Eles gritam assim — respondeu Mysa, com desdém —, porque,
depois de estragar o mato, não sabem como comê-lo.
— Por menos do que isso — resmungou Mowgli consigo mesmo —,
por menos do que isso, na chuva passada, tirei Mysa de sua poça e o pus
para correr pelo pantanal. — Ele estendeu a mão para quebrar um
junco felpudo, mas retirou-a com um suspiro. Mysa continuou
mascando seu capim ruminado, e os talos altos se quebraram onde a
búfala pastava. — Não morrerei aqui — disse o menino, irritado. —
Mysa, que é do mesmo sangue que Jacala e o javali, iria me ver. Vou
além do pantanal, descobrir o que está acontecendo. Nunca corri assim
na primavera, quente e frio ao mesmo tempo. Ânimo, Mowgli!
Ele não conseguiu resistir à tentação de cortar caminho pelos juncos,
na direção de Mysa, e espetá-lo com a ponta da faca. O grande búfalo
saiu pingando de sua poça feito uma bomba explodindo, enquanto
Mowgli riu até Mysa sentar.
— Agora diga que o lobo sem pelos da alcateia de Seeonee um dia o
conduziu pela selva, Mysa — ordenou.
— Lobo! Você? — grunhiu o búfalo, pisoteando a lama. — Toda a
selva sabe que era pastor de boi manso, um filhote de homem desses
que gritam lá longe nas roças. Você, da selva?! Que caçador rastejaria
entre as sanguessugas e, por uma brincadeira suja dessas, uma
brincadeira de chacal, me envergonharia na frente de minha búfala?
Venha para a terra firme, que vou… vou… — Mysa espumava pela
boca, pois era talvez a criatura mais mal-humorada da selva.
Mowgli ficou observando Mysa bufar e resfolegar com olhos fixos.
Quando conseguiu se fazer ouvir entre as pisadas na lama, disse:
— Qual Bando dos Homens tem toca perto dos charcos, Mysa? Isso
aqui é selva nova para mim.
— Vá para o norte — rugiu o búfalo, irritado, pois Mowgli o espetara
feio. — Foi uma brincadeira de pastor de boi manso sem pelo. Vá
contar a todos na aldeia perto do charco.
— O Bando dos Homens não gosta de histórias da selva. E não acho,
Mysa, que um arranhão assim ou assado no pelame é questão para um
conselho. Mas vou até a aldeia. Vou mesmo. Mais cuidado, daqui para a
frente. Não é toda noite que o Senhor da Selva vem pastorear Mysa.
Ele saiu da beira do charco, sabendo que Mysa jamais atacaria
naquele terreno macio, e riu, ao correr, pensando na raiva do búfalo.
— Minha força ainda não acabou — raciocinou. — Pode ser que o
veneno não tenha chegado ao osso. Vejo uma estrela lá longe, lá
embaixo. — Olhou pelas frestas das mãos em concha. — Pelo touro que
me comprou, é a Flor Vermelha… a Flor Vermelha que deixei de lado
antes… antes de vir pela primeira vez à Alcateia de Seeonee! Agora que
a vi, vou terminar minha corrida.
O charco acabava numa planície larga, onde brilhava uma luz. Fazia
muito tempo que Mowgli não se interessava pelas coisas dos homens,
mas, naquela noite, o brilho da Flor Vermelha o atraiu e fez com que
seguisse em frente.
— Vou espiar — disse —, como fiz nos velhos tempos, e vou ver se o
Bando dos Homens mudou muito.
Esquecendo que já não estava em sua fioresta habitual, onde podia
fazer o que bem entendesse, caminhou sem se preocupar pelo mato
orvalhado, até chegar à cabana onde estava a luz. Três ou quatro
cachorros latiram, com ele já nos arrabaldes da aldeia.
— Ei! — exclamou Mowgli, sentando sem fazer barulho, depois de
responder com um rosnado grave de lobo, que calou os vira-latas. — O
que tiver de ser será. O que Mowgli ainda quer com as tocas do Bando
dos Homens? — E esfregou a boca, lembrando o ponto em que uma
pedra o atingira anos atrás, quando foi expulso pelo outro Bando dos
Homens.
A porta da cabana se abriu e uma mulher saiu, observando a
escuridão. Uma criança chorou, e a mulher disse, sem se virar para
dentro:
— Durma. Foi só um chacal, que acordou os cachorros. Daqui a
pouco irá amanhecer.
Ali no mato, Mowgli começou a tremer como se estivesse com febre.
Conhecia bem aquela voz, mas, para ter certeza, chamou baixinho,
surpreso ao notar como a fala de homem voltou:
— Messua! Ó Messua!
— Quem é? — perguntou a mulher, com voz trêmula.
— Esqueceu de mim? — questionou Mowgli, a garganta seca
enquanto falava.
— Se é você, qual foi o nome que lhe dei? Diga!
Ela, deixando a porta entreaberta, trazia a mão na altura do peito.
— Nathoo! Ohé, Nathoo! — respondeu Mowgli, pois, como você se
lembra, foi esse o nome que Messua lhe deu quando ele esteve pela
primeira vez no Bando dos Homens.
— Venha, meu filho — ela chamou.
Mowgli deu um passo para a luz e olhou bem para Messua, a mulher
que havia sido boa com ele, cuja vida ele salvara do Bando dos Homens
muito tempo atrás. Estava mais velha, o cabelo grisalho, mas seus olhos
e a voz não tinham mudado. Como mulher que era, esperava encontrar
Mowgli como quando se viram pela última vez, e seus olhos espantados
percorreram-no do peito à cabeça, que roçava o batente da porta.
— Meu filho — balbuciou, em seguida ajoelhando-se aos seus pés: —
Mas esse já não é o meu filho. É um deus da fioresta! Ahai!
Ali parado, sob a luz vermelha da lamparina, forte, alto e bonito, os
cabelos pretos compridos até os ombros, a faca balançando no pescoço
e a cabeça coroada com uma grinalda de jasmim branco, ele podia
facilmente ser confundido com algum lendário deus selvagem. A
criança acordou no catre e gritou aterrorizada. Messua virou para
acalmar o garotinho, enquanto Mowgli continuou de pé, olhando o que
tinha dentro das jarras e das panelas, no cesto de grãos e em todos os
outros pertences humanos de que, como percebeu, se lembrava tão
bem.
— O que quer comer ou beber? — murmurou Messua. — É tudo seu.
Devemos nossa vida a você. Mas é mesmo aquele que chamei de
Nathoo, ou é de fato um deus?
— Sou Nathoo — respondeu Mowgli. — Estou muito longe do meu
lugar. Vi esta luz e vim para cá. Não sabia que estava aqui.
— Quando viemos para Khanhiwara — explicou Messua,
timidamente —, os ingleses nos ajudaram contra as pessoas da aldeia
que tentaram nos queimar vivos. Lembra?
— Sim, não esqueci.
— Mas quando a Lei dos Ingleses ficou pronta, fomos até a aldeia
daquela gente ruim, e já não existia mais nada ali.
— Disso também me lembro — disse Mowgli, dilatando a narina.
— Meu marido, então, foi trabalhar na roça, e, por fim, pois ele era
mesmo um homem forte, conseguimos esta terrinha aqui. Não é tão
rica quanto a da aldeia antiga, mas não precisamos de muito… nós dois.
— Onde está o homem que cavou a terra de tanto medo naquela
noite?
— Morreu… faz um ano.
— E este aqui? — Mowgli apontou para o garotinho.
— É meu filho, que nasceu há duas chuvas. Se é um deus, conceda a
ele o Favor da Selva, que possa ficar seguro com o seu… com o seu
povo, como nós ficamos a salvo aquela noite.
Ela ergueu a criança, e esta, já sem medo, esticou o braço para
brincar com a faca pendurada sobre o peito de Mowgli, e ele tirou seus
dedinhos dali com todo o cuidado.
— E se for mesmo Nathoo que o tigre levou embora — continuou
Messua, quase chorando: — Então ele é seu irmão mais novo. Dê sua
bênção de irmão mais velho.
— Hai-mai! O que sei dessa coisa chamada bênção? Não sou deus,
nem irmão dele, e… ó mãe, mãe, meu coração está pesado.
Ele estremeceu ao soltar a criança.
— Ora, mas é claro — disse Messua, mexendo nas panelas. — É
porque você correu no charco à noite. Não tenho a menor dúvida, a
febre inundou seus ossos.
Mowgli sorriu brevemente diante da ideia de alguma coisa na selva
lhe fazer mal.
— Vou acender o fogo — continuou Messua —, você deve beber leite
morno. Tire essa grinalda de jasmim: o cheiro é muito forte para um
lugar tão pequeno.
Mowgli sentou, resmungando, com o rosto apoiado nas mãos. Sentia-
se atravessado por todo tipo de sentimento esquisito, que nunca
experimentara antes, exatamente como se tivesse sido envenenado, e
sentiu tontura e um pouco de enjoo. Bebeu o leite morno em longos
goles, Messua acariciando seu ombro, sem muita certeza se aquele era
mesmo seu filho Nathoo muito tempo depois, ou algum ser
maravilhoso da selva, mas contente porque pelo menos ele era de carne
e osso.
— Filho — disse, por fim, os olhos cheios de orgulho —, alguém já
lhe disse que é o mais bonito de todos os homens?
— Ahn? — murmurou Mowgli, pois naturalmente nunca ouvira nada
parecido.
Messua abriu um sorriso suave e feliz. Só a expressão no rosto dele
foi o bastante para ela.
— Fui a primeira então? É o certo, embora não seja comum, que a
mãe seja a primeira a fazer ao filho esses elogios. Você é muito bonito.
Nunca vi um homem assim.
Mowgli virou a cabeça e tentou olhar para trás, e Messua riu tanto
que Mowgli, sem saber por quê, foi obrigado a rir com ela, e o
garotinho começou a correr de um para o outro, rindo também.
— Não, não ria do seu irmão — repreendeu Messua, pegando o
garotinho no colo. — Quando tiver metade da beleza dele, vamos casá-
lo com a filha caçula de um rei, e vai montar grandes elefantes.
Mowgli não conseguia entender um terço do que ela dizia; o leite
morno estava fazendo efeito depois da longa corrida, então encolheu-
se e, no minuto seguinte, dormia profundamente. Messua lhe tirou os
cabelos dos olhos, cobriu-o com a manta e sentiu-se feliz. Como se faz
na selva, ele dormiu o restante da noite e o dia seguinte inteiro, pois
seus instintos, que nunca adormeciam totalmente, avisavam que não
havia o que temer. Acordou, por fim, com um sobressalto, que fez
tremer a cabana, pois a manta sobre o rosto lhe fizera sonhar com
armadilhas; e ali ficou de pé, mão sobre a faca, olhos revirando pesados
de sono, pronto para uma luta.
Messua riu e lhe serviu o jantar. Eram apenas alguns bolos duros
assados no fogão de lenha, um pouco de arroz e uma porção de
tamarindos azedos em conserva — o suficiente para ele suportar até a
caça da noite. O cheiro de orvalho nos charcos o deixou faminto e
irrequieto. Queria terminar sua corrida da primavera, mas o garotinho
insistia em sentar em seu colo, e Messua fazia questão de pentear seus
cabelos compridos e quase azuis de tão pretos. Então ela cantou,
enquanto penteava, ingênuas canções de ninar, chamando Mowgli de
filho, e implorou que concedesse à criança parte de seu poder sobre a
selva. A porta da cabana estava fechada, mas Mowgli ouviu um som que
conhecia bem, e viu o queixo de Messua cair de horror quando uma
grande pata cinzenta apareceu embaixo da porta. Do lado de fora, o
Irmão Cinzento fez um som abafado e sofrido, um ganido de angústia e
medo.
— Espere aí fora! Não veio quando pedi — ordenou Mowgli na
língua da selva, sem virar a cabeça, e a pata grande e cinzenta
desapareceu.
— Não traga… não traga seus… seus súditos consigo — pediu
Messua. — Nós sempre vivemos em paz com a selva.
— Está tudo em paz — declarou Mowgli, levantando-se. — Lembre-
se daquela noite no caminho para Khanhiwara. Havia centenas de
lobos à sua frente e às suas costas. Mas vejo que, mesmo na primavera,
o Povo da Selva nem sempre esquece. Mãe, vou embora.
Messua abriu caminho humildemente — era, de fato, um deus
selvagem, ela pensou. Mas quando a mão dele ainda estava abrindo a
porta, o instinto maternal de Messua pôs os braços em volta do pescoço
de Mowgli, abraçando-o muito.
— Volte! — sussurrou. — Filho meu ou não, volte, porque o amo…
Olhe, ele também está triste.
O garotinho estava chorando porque o homem da faca brilhante ia
embora.
— Volte sempre — repetiu Messua. — Noite e dia, esta porta nunca
estará fechada para você.
A garganta de Mowgli funcionou como se as cordas vocais
estivessem sendo puxadas, e sua voz pareceu arrastada, quando
respondeu:
— Volto, sem dúvida.
E, olhando para a cabeça do lobo junto à porta, disse:
— E agora tenho uma pequena queixa a fazer, Irmão Cinzento. Por
que não vieram os Quatro quando chamei, há muito tempo?
— Muito tempo? Foi ontem à noite. Eu… nós… estávamos na selva,
cantando as músicas novas, pois é Tempo das Falas Novas. Não se
lembra?
— É verdade, é verdade.
— E assim que terminamos de cantar as canções — continuou o
Irmão Cinzento, muito sincero —, segui seu rastro. Corri para longe
dos outros e segui seu rastro até esquentar. Mas, ó irmãozinho, o que foi
que fez? Comendo e bebendo com o Bando dos Homens!
— Se tivesse vindo quando chamei, isso nunca teria acontecido —
argumentou Mowgli, correndo muito mais rápido.
— E agora o que vai ser? — questionou o Irmão Cinzento.
Mowgli ia responder, quando uma menina de roupas brancas veio
por um caminho que dava nos arrabaldes da aldeia. O Irmão Cinzento
se escondeu na hora, Mowgli recuou, sem alarde, para dentro de uma
plantação viçosa. Quase tocou-a com a mão, mas os talos verdes e
quentes se fecharam à sua passagem, e ele desapareceu feito um
fantasma. A menina gritou, porque pensou ter visto um espírito, então
soltou um longo suspiro. Mowgli afastou os talos com as mãos e a
observou até sumir de vista.
— Não sei o que vai ser — respondeu, suspirando também. — Por
que não vieram, os Quatro, quando chamei?
— Nós o seguimos… nós o seguimos — balbuciou o Irmão Cinzento,
lambendo os calcanhares de Mowgli. — Nós sempre o seguimos, exceto
no Tempo das Falas Novas.
— E me seguiriam até o Bando dos Homens? — sussurrou Mowgli.
— Não o segui na noite em que nossa antiga alcateia o expulsou?
Quem o acordou deitado na roça?
— Sim, mas faria tudo de novo?
— Não o segui esta noite?
— Sim, mas faria tudo de novo e para sempre, Irmão Cinzento?
O Irmão Cinzento ficou calado. Quando falou, rosnou consigo
mesmo:
— A pantera-negra disse a verdade.
— E o que foi que ela disse?
— Que, no final, o homem volta para o homem. Raksha, nossa mãe,
disse que…
— Mas isso foi também o que disse Akela na noite do Cão Vermelho
— resmungou Mowgli.
— E Kaa, que é mais sábio que todos nós.
— Do que está falando, Irmão Cinzento?
— Eles o expulsaram uma vez, com palavras más. Cortaram sua boca
com pedras. Mandaram Buldeo matar você. Eles o teriam jogado na
Flor Vermelha. Você, e não eu, você disse que eles são maus e
estúpidos. Você, e não eu… eu sigo meu próprio povo… fez a selva
avançar sobre eles. Você, e não eu, compôs canção contra eles, ainda
mais amarga que a nossa contra o Cão Vermelho.
— Já perguntei: do que está falando?!
Iam conversando enquanto corriam. O Irmão Cinzento continuou a
meio-galope, sem responder por algum tempo, mas então falou, entre
um salto e outro:
— Filhote de homem, Senhor da Selva, filho de Raksha, irmão da
minha toca, ainda que eu o esqueça por um momento, na primavera,
seu rastro é o meu rastro, sua toca é a minha toca, sua caça é a minha
caça, e toda luta mortal sua é minha também. Falo pelos Quatro. Mas o
que você tem a dizer à selva?
— Bem pensado. Entre ver a caça e matá-la, é melhor não esperar. Vá
na frente e chame toda a alcateia para a Pedra do Conselho, e vou lhes
contar o que desejo no fundo de minhas entranhas. Mas talvez eles não
venham… no Tempo das Falas Novas, talvez me esqueçam.
— E você também não está esquecendo algo? — retrucou o Irmão
Cinzento por sobre o ombro, agachando-se para passar ao galope, e
Mowgli foi atrás, pensando.
Em qualquer outra estação, a notícia teria reunido toda a selva com
os pelos eriçados, mas agora estavam todos ocupados, caçando,
lutando, matando e cantando. De um em um, o Irmão Cinzento foi
correndo e gritando:
— O Senhor da Selva vai voltar para os homens! Venham à Pedra do
Conselho.
E o povo, ávido e feliz, apenas respondeu:
— Ele vai acabar voltando para cá no verão. As chuvas o trarão de
volta para a toca. Corra e cante conosco, Irmão Cinzento.
— Mas o Senhor da Selva vai voltar para os homens — repetia o
Irmão Cinzento.
— Eee-Yoawa? E o Tempo das Falas Novas é por isso menos doce? —
responderam eles.
E assim, quando Mowgli chegou, com o coração pesado, por entre as
conhecidas pedras, até o local onde fora trazido perante o conselho,
encontrou apenas os Quatro, Baloo, que estava quase cego pela idade, e
Kaa, pesado e frio, enrolado no lugar vazio de Akela.
— Então seu rastro termina aqui, homenzinho? — perguntou Kaa,
enquanto Mowgli se ajoelhava, com as mãos cobrindo o rosto. — Grite
o seu grito. Somos do mesmo sangue, você e eu… homem e serpente
juntos.
— Por que não morri na luta contra o Cão Vermelho? — gemeu o
menino. — Minha força está indo embora, e não por veneno. Noite e
dia, ouço um passo dobrado em meu rastro. Quando me viro, é como se
alguém tivesse se escondido de mim naquele instante. Vou ver atrás das
árvores, não há ninguém. Chamo, ninguém responde; mas é como se
ouvissem e não quisessem responder. Deito, mas não descanso. Corro
na primavera, mas nem assim encontro a paz. Entro na água, ela não
me refresca. A caça me enoja; não tenho vontade de lutar, embora mate.
A Flor Vermelha está no meu corpo, meus ossos são água… e não sei
nem o que sei.
— E ainda precisa falar? — interveio Baloo, lentamente, virando a
cabeça para Mowgli. — Akela disse isso na margem do rio, que Mowgli
levaria Mowgli de volta ao Bando dos Homens. Eu disse isso. Mas quem
dá ouvidos a Baloo hoje em dia? Bagheera… onde está Bagheera agora?
Ele também sabe. É a lei.
— Quando nos conhecemos nas Tocas Frias, homenzinho, eu
também sabia — disse Kaa, apertando um pouco suas voltas
musculosas. — No final, o homem vai para o homem, embora a selva
não o expulse.
Os Quatro se entreolharam e viraram para Mowgli, intrigados, mas
obedientes.
— Então a selva não vai me expulsar? — balbuciou Mowgli.
O Irmão Cinzento e os outros rosnaram furiosos e começaram:
— Enquanto vivermos, ninguém ousará…
Baloo interrompeu-os, contudo:
— Eu ensinei a lei a você. Cabe a mim lhe explicar isso — disse. — E,
embora agora mal consiga distinguir as pedras diante de mim, posso
enxergar muito longe. Rãzinha, siga o seu caminho; faça a sua toca com
os seus, seu sangue, seu bando, seu povo. Mas quando precisar de patas,
dentes, olhos, ou quando quiser enviar sem demora um recado pela
noite, lembre-se, Senhor da Selva, eles estarão às suas ordens.
— A Selva do Meio também está às suas ordens — anunciou Kaa. —
Falo por um povo nada pequeno.
— Hai-mai, meus irmãos — chorou Mowgli, erguendo os braços com
um soluço. — Não sei nem o que sei! Por mim, não iria embora; mas
estou sendo arrastado pelos dois pés. Como abandonar noites como
esta?
— Não, levante a cabeça, irmãozinho — repetiu Baloo. — Não há
vergonha nenhuma nisso. Depois de comer o mel, deixamos a colmeia
vazia.
— Depois de trocar a pele — acrescentou Kaa —, não podemos nos
arrastar logo de volta para ela. É a lei.
— Escute, meu mais querido — disse Baloo. — Aqui não haverá
palavra ou vontade contrária a prendê-lo. Levante a cabeça! Quem
poderia questionar o Senhor da Selva? Eu o vi brincar com os seixos
brancos quando era uma rãzinha; e também o viu Bagheera, seu
comprador pelo preço de um touro jovem que tinha acabado de matar.
Daquela inspeção à alcateia, apenas nós dois estamos vivos; pois
Raksha, a mãe de sua toca, morreu com o pai de sua toca; a velha
alcateia morreu desde então; você sabe o que aconteceu a Shere Khan,
e Akela morreu entre os dholes, quando, não fosse a sua força e
sabedoria, a segunda Alcateia de Seeonee também teria morrido. Não
sobrou nada além de ossos antigos. Já não é mais o filhote de homem
pedindo para deixar a alcateia, mas o Senhor da Selva mudando de
caminho. Quem questionará o homem em seus caminhos?
— Mas Bagheera e o touro que me comprou — argumentou Mowgli.
— Eu não deveria…
Suas palavras foram interrompidas por um breve rugido e um
estalido na mata, e Bagheera, leve, forte e terrível como sempre, estava
diante dele.
— Pois bem — disse, esticando a pata direita —, não consegui chegar
antes. Foi uma caçada demorada, mas agora ele está morto ali nos
arbustos… um touro de dois anos… o touro que o liberta, irmãozinho.
Todas as dívidas estão pagas agora. Quanto ao resto, minha palavra é a
palavra de Baloo. — Ele lambeu os pés de Mowgli. — Lembre-se de que
Bagheera ama você — gritou ele, saltando para longe. No pé da serra,
gritou de novo, alto e demorado: — Boa caçada no novo caminho,
Senhor da Selva! Lembre-se de que Bagheera ama você.
— Já ouviu tudo — disse Baloo. — Não há mais nada a dizer. Agora
vá, mas antes venha aqui. Ó sábia rãzinha, venha aqui!
— É duro trocar de pele — comentou Kaa, enquanto Mowgli
soluçava sem parar, com a cabeça no peito do urso cego e os braços em
seu pescoço, e Baloo tentando lhe lamber os pés.
— As estrelas estão fracas — disse o Irmão Cinzento, farejando o
vento da madrugada. — Onde vamos fazer nossa toca agora? De agora
em diante, vamos seguir novos caminhos.
E esta foi a última das histórias de Mowgli.
Canção da despedida

Esta é a canção que Mowgli ouviu atrás de si, na selva,


até chegar de volta à casa de Messua.
BALOO

Pelo bem daquele que mostrou


À sábia rã a Estrada da Selva
Respeite a lei do Bando dos Homens,
Pelo bem do seu velho e cego Baloo!
Limpa ou suja; quente ou velha,
Não a deixe, como a trilha,
Dia e noite, noite e dia,
Nem esquerda, nem direita.
Pelo bem de quem o ama
Mais que a tudo o que se move,
Quando seu bando dor lhe causar,
Diga: “Tabaqui voltou a cantar”.
Quando seu bando lhe der desgosto,
Diga: “Shere Khan ainda não está morto”.
Quando a faca sacar para a caça,
Respeite a lei e siga seu caminho.
(Raízes, mel, frutos e fiores
Salvam o filhote de feridas e dores!)
Madeira, água, vento e árvore,
Que o Favor da Selva o acompanhe!
KAA

A ira é o ovo do medo,


Somente o olho sem pele pode vê-lo.
Ninguém suga veneno de naja,
O mesmo vale para nossa fala.
Ser franco atrairá para você
A força, cujo par é a cortesia.
Não faça alarde do seu tamanho;
Ao galho podre, não mostre sua força.
Encha o bucho de cervo ou cabra,
Ou seu olho o fará engasgar.
Depois de engolir, poderá dormir?
Faça seu antro oculto e fundo,
Para que um erro, um esquecimento,
Não atraia ao local seu algoz.
Leste e oeste e norte e sul,
Lave seu pelo e feche sua boca.
(Poço e penhasco e beira de lago,
Que o cerne da selva siga consigo!)
Madeira, água, vento e árvore,
Que o Favor da Selva o acompanhe!
BAGHEERA

Na jaula, começou minha vida;


Ora, conheço o valor do homem.
Pelo cadeado quebrado que me libertou —
Filhote de homem, cuidado com eles!
Com sereno perfumado ou palidez de estrelas,
Não vá atrás de gato-do-mato.
Em bando ou conselho, caçada ou toca,
Não peça trégua ao homem-chacal.
Faça silêncio quando disserem:
“Venha conosco, aqui é mais fácil”.
Faça silêncio quando quiserem
Sua ajuda contra o mais fraco.
Não se gabe feito bandar;
Prefira a paz à matança.
Nenhum chamado, canção ou sinal
O desvie em suas andanças.
(Neblina da manhã, clarão da tarde,
Sirvam a ele, Guardiões do Gamo!)
Madeira, água, vento e árvore,
Que o Favor da Selva o acompanhe!
OS TRÊS

Na trilha que deve seguir


Até as portas do nosso pavor,
Onde a fior que brota é vermelha;
Nas noites em que deitar preso
Sem ver nossa mãe, o céu,
Nos ouvirá, seus amores, passar;
Nas madrugadas, acordado
Sem descanso da labuta,
Com saudades da sua selva:
Madeira, água, vento e árvore,
Sabedoria, força e cortesia,
Que o Favor da Selva o acompanhe!
Apêndice1
Dentro da rukh2

O Filho Único deitou novamente e sonhou que sonhava um sonho.


A última cinza caiu do fogo moribundo com o estalo de
uma fagulha em queda,
E o Filho Único acordou outra vez e chamou através da escuridão:
— Então eu nasci de uma mulher e descansei no colo de minha mãe?
Pois sonhei com um rude esconderijo onde eu descansava.
E nasci eu de uma mulher e descansei nos braços de um pai?
Pois sonhei com longos dentes brancos que me protegiam do perigo.
Oh, nasci eu de uma mulher e brinquei sozinho?
Pois sonhei com dois colegas de brincadeira que me mordiam até o osso.
E parti eu o pão de cevada e molhei-o no leite cremoso?
Pois sonhei com um jovem menino recém-tirado do estábulo.
Falta uma hora e falta uma hora até a lua despontar no céu —
Mas posso ver os brilhos do teto negro como se fosse meio-dia!
É uma légua e uma légua até a cachoeira de Lena, para onde vai
a tropa dos sambar,
Mas posso ouvir o jovem cervo que bale atrás da fêmea!
É uma légua e uma légua até a cachoeira de Lena, onde a colheita e
as terras altas se encontram,
Mas sinto o cheiro do vento quente e úmido que sussurra ao passar
pela plantação do trigo!
O Filho Único

Das engrenagens do serviço público, girando sob o governo da Índia,


não há nenhuma mais importante que o Departamento de Matas e
Florestas. O reboisement de todo o país está em suas mãos; ou estará,
quando o governo tiver o dinheiro necessário. Seus servidores lutam
contra tempestades ambulantes de areia e dunas movediças, as quais
amarram pelos lados, represam pela frente e fixam com a grama rústica
e os talos das coníferas, conforme as regras de Nancy. Eles são
responsáveis por toda a lenha nas fiorestas governamentais dos
Himalaias, bem como pelas encostas nuas que as monções lavam até
transformar em erosões ressequidas e ravinas dolorosas; cada vala é
uma boca gritando bem alto o que o descuido pode provocar. Eles
fazem experiências com batalhões de árvores estrangeiras,
estimulando o eucalipto-da-tasmânia a se enraizar e, quem sabe, secar
o Canal da Febre. Nas planícies, é sua tarefa mais importante cuidar
que os compridos aceiros na fioresta sejam mantidos limpos, de modo
que, quando a seca vier e o gado estiver faminto, eles possam abrir a
reserva aos rebanhos dos habitantes das vilas e permitir que mesmo os
seres humanos possam colher alguma lenha. Eles podam copas e
galhos para os depósitos de combustível da estrada de ferro, nas linhas
que não queimam carvão; calculam o lucro de suas plantações até cinco
pontos decimais; são os médicos e as parteiras das imensas fiorestas de
teca no norte de Burma, da borracha das selvas orientais e dos lauréis-
da-índia no sul; e estão sempre tolhidos pela falta de recursos. Mas
como o trabalho de supervisor fiorestal o leva para longe das estradas
batidas e das unidades fixas, ele aprende e se torna sábio, indo além do
folclore das matas; conhece os povos e a etiqueta da selva; topando com
tigres, ursos, leopardos, cães-selvagens-asiáticos e todos os cervídeos,
não uma ou duas vezes após dias de ronda, mas de novo e de novo no
cumprimento de seu dever. Ele passa muito tempo na sela ou sob a lona
— é o amigo das árvores recém-plantadas, habituado a rudes guardas-
fiorestais e aos rastreadores hirsutos —, até as matas, que demonstram
o cuidado recebido, nele deixarem também sua marca, quando então
para de cantarolar as ridículas canções francesas aprendidas em Nancy,
tornando-se silencioso com as coisas silenciosas do matagal.
Gisborne completava quatro anos trabalhando no Matas e Florestas.
De início, amou o serviço sem restrições, pois o levava a fazer
cavalgadas ao ar livre e conferia-lhe autoridade. Então odiou-o
furiosamente, e teria dado um ano de salário por um mês do convívio
social que a Índia é capaz de oferecer. Passada a crise, as fiorestas o
conquistaram outra vez, e ele se contentou em servi-las, aprofundando
e alargando os aceiros, observando a umidade verde de sua nova
plantação em contraste com a folhagem mais velha, desassoreando o
riacho afunilado, acompanhando e apoiando o último suspiro da
fioresta, onde ela acabava e morria junto à grama de pasto. Em algum
dia abafado essa grama iria arder e centenas de animais que moravam
ali sairiam correndo, antes que as cercas fossem tomadas pelas
labaredas do meio-dia. Mais tarde, a fioresta avançaria sobre o chão
enegrecido, em linhas regulares de mudas, e Gisborne, ao vê-las, ficaria
bastante satisfeito. Seu bangalô, uma choupana de paredes brancas,
teto de folhas secas e dois quartos, ficava na extremidade de uma
grande rukh, num plano elevado. Ele nem fingia cultivar um jardim,
pois a rukh chegava até sua porta, redobrando-se numa densa moita de
bambus, e ele não precisava de nenhuma viagem de charrete para ir de
sua varanda até o coração da fioresta.
Abdul Gafur, seu gordo mordomo maometano, alimentava-o quando
estava em casa e passava o resto do tempo fofocando com o pequeno
bando de serviçais nativos, cujas cabanas ficavam atrás do bangalô.
Havia dois criados, um cozinheiro, um carregador de água e um
varredor, isso era tudo. Gisborne limpava suas próprias armas e não
tinha cachorro. Cachorros assustavam os animais, e agradava ao
homem ser capaz de dizer onde os súditos de seu reino bebiam água ao
luar, comiam antes do amanhecer ou descansavam durante o dia de sol.
Os inspetores e guardas-fiorestais viviam em pequenas cabanas muito
distantes pela rukh adentro, aparecendo apenas quando um deles se
feria no desabamento de uma árvore ou pela ação de um animal
selvagem. Ali, Gisborne estava sozinho.
Na primavera, a rukh produz uma quantidade pequena de novas
folhas, mas continua seca e intocada pelo avanço dos meses, à espera
das chuvas. Enquanto isso, ouvia-se por lá apenas um número maior de
chamados e rosnados no escuro da noite calma; o tumulto dos tigres em
guerra aberta, o bramido do cervo arrogante ou o constante lascar de
madeira do velho javali, afiando suas presas num toco de árvore. Nessas
ocasiões, Gisborne deixava inteiramente de lado sua já pouco usada
espingarda, pois para ele era um pecado matar. No verão, durante os
furiosos calores de maio, a rukh fiutuava no vapor, e Gisborne
aguardava a primeira espiral de fumaça, que denunciaria um incêndio
fiorestal. Então vinham as chuvas com um rugido, a rukh era borrada
com camadas e mais camadas de vapor quente, as folhas largas
batucavam a noite toda sob grossos pingos; começava o ruído da água
corrente, de matéria verde e cheia de seiva estalando quando tocada
pelo vento, e o trovão riscava padrões por trás do denso emaranhado de
folhagem, até o sol se libertar novamente e a rukh ficar com suas bordas
quentes esfumaçando rumo ao céu recém-lavado. Então o calor e o frio
seco reduziam tudo às cores de tigre mais uma vez. Assim Gisborne
aprendeu a conhecer sua rukh e era feliz. Seu pagamento vinha todo
mês, mas ele tinha muito pouca necessidade de dinheiro. As notas
acumulavam-se na gaveta onde ele guardava as cartas vindas de casa e a
máquina de recauchutagem. Se usava alguma coisa, era para fazer
compras no Jardim Botânico de Calcutá, ou pagar à viúva de um
inspetor a soma que o governo da Índia jamais teria autorizado pela
morte de seu homem.
O salário era bom, mas a vingança também se fazia necessária, e ele a
cumpria quando possível. Certa noite dentre outras, um corredor, sem
fôlego e afiito, apareceu-lhe com a notícia de que um guarda-fiorestal
estava morto junto ao rio Kanye, com um lado da cabeça despedaçado
como uma casca de ovo. Quando o dia raiou, Gisborne saiu à procura do
assassino. Apenas os viajantes, e de vez em quando os jovens soldados,
tornam-se conhecidos pelo mundo afora como grandes caçadores. Os
supervisores fiorestais encaram a shikar3 como parte do dia de
trabalho, e ninguém fica sabendo. Gisborne foi a pé ao local onde a
morte ocorrera: a viúva gritava sobre o corpo, disposto num estrado,
enquanto dois ou três homens procuravam pegadas no terreno úmido.
— Esse é o Vermelho — disse um. — Eu sabia que ele atacaria
humanos uma hora dessas, mas, com certeza, há caça suficiente até
para ele. Deve ter feito isso por maldade.
— O Vermelho está nas rochas, para além das árvores-de-buda —
refutou Gisborne. Um tigre, ele sabia, era o suspeito.
— Agora não, sahib, agora não. Ele vai ficar na raiva e na ronda daqui
para lá. Lembre que a primeira morte é sempre feita de três mortes.
Nosso sangue deixa eles doidos. Pode estar atrás de nós agora mesmo.
— Pode ter ido para a próxima cabana. Fica a quatro koss4 apenas —
disse outro. — Wallah, quem é esse aí?
Gisborne e os demais se viraram. Um homem caminhava no leito
seco do rio, nu exceto pela tanga, mas coroado com uma guirlanda da
qual pendiam os cálices brancos da trepadeira em fior. Tão
silenciosamente ele andava, sobre o cascalho miúdo, que mesmo
Gisborne, acostumado ao passo leve dos rastreadores, teve um choque.
— O tigre que matou — ele disse, sem qualquer introdução — foi
beber, e agora está dormindo debaixo da pedra depois daquela colina.
Sua voz era clara como um sino, muito diferente do tom manhoso
dos nativos, e seu rosto, quando o levantou contra o sol, podia bem ser
o de um anjo perdido nas matas. A viúva parou de uivar sobre o corpo,
arregalando os olhos na direção do desconhecido, para em seguida
voltar à sua tarefa com força duplicada.
— Posso mostrar ao sahib? — ele perguntou com simplicidade.
— Se você tem certeza… — respondeu Gisborne.
— Tenho, sim. Eu vi uma hora atrás, o cão. Está cedo para ele comer
carne de gente. Ainda tem uma dúzia de bons dentes em sua boca
malvada.
Os homens, ajoelhados sobre as pegadas, se encolheram
discretamente, com medo de que Gisborne exigisse sua companhia, e o
jovem deu um pequeno sorriso para si mesmo.
— Venha, sahib! — ele exclamou, e girou nos calcanhares, guiando
seu companheiro.
— Não tão rápido. Não consigo manter esse ritmo — disse o homem
branco. — Pare aí. Eu nunca vi o seu rosto.
— Isso pode ser. Cheguei a esta fioresta faz pouco tempo.
— Veio de qual vilarejo?
— Não sou de nenhum vilarejo. Vim de lá — ele esticou o braço para
o norte.
— Um cigano, então?
— Não, sahib. Sou um homem sem casta e, para falar a verdade, sem
pai.
— Como os outros o chamam?
— Mowgli, sahib. E qual o nome do sahib?
— Sou o supervisor nessa rukh. Gisborne é meu nome.
— O quê? Aqui se numeram as árvores e as espadas de grama?
— Praticamente; para que ciganos como você não toquem fogo nelas.
— Eu! Eu não faria mal à selva por nada. Ela é o meu lar.
Ele se virou para Gisborne com um sorriso irresistível, fazendo um
sinal de alerta com a mão.
— Agora, sahib, precisamos andar com menos barulho. Não se deve
acordar o cão, por mais pesado que esteja dormindo. Talvez fosse
melhor eu ir sozinho na frente e tocá-lo na direção do vento até o sahib.
— Wallah! Desde quando tigres são tocados como gado, para lá e
para cá, por homens sem roupa? — exclamou Gisborne, ultrajado pela
audácia do homem.
Ele sorriu com doçura novamente:
— Não? Então venha comigo e atire nele do seu jeito, com o grande
rifie inglês.
Gisborne refez as pegadas de seu guia, esgueirou-se, rastejou,
escalou, inclinou-se e sofreu todas as inúmeras agonias de uma
perseguição na selva. Estava afogueado e pingando de suor quando
Mowgli afinal pediu-lhe que levantasse a cabeça e espiasse por sobre
uma pedra quente e azulada, próxima a um pequeno poço natural.
Junto à água estava o tigre, estendido e relaxado, limpando com
lambidas preguiçosas seu enorme cotovelo e a pata dianteira. Ele era
velho, com os dentes já amarelos, bastante sarnento, mas, naquele
cenário e debaixo daquele sol, ainda era imponente.
Gisborne não tinha ilusões esportivas quando se tratava do comedor
de homens. Aquilo era uma praga, devendo ser eliminada o mais rápido
possível. Ele esperou até recobrar a respiração, descansou o rifie na
pedra e assobiou. A cabeça da fera virou lentamente, a menos de sete
metros do cano da arma, e Gisborne acertou dois tiros, com método,
um atrás do ombro e o outro logo abaixo do olho. Àquela distância, seus
ossos maciços não eram defesa contra a violência das balas.
— Bem, de qualquer jeito, não valia a pena guardar essa pele — disse
Gisborne, enquanto a fumaça ia levantando e a fera esperneava e
sufocava na agonia final.
— Uma morte de cão para um cão — sussurrou Mowgli. — Não tem
mesmo nada nessa carcaça que valha a pena levar.
— Os bigodes. Você não pega os bigodes? — espantou-se Gisborne,
que sabia como os inspetores prezavam tais coisas.
— Eu? E lá sou um reles shikarri da selva para perder tempo com
focinho de tigre? Que apodreça aí. Aliás, os amigos dele já estão
chegando.
Um milhafre deu um assobio agudo, planando baixo sobre suas
cabeças, enquanto Gisborne removia os cartuchos vazios e enxugava o
rosto.
— Se você não é um shikarri, onde aprendeu a conhecer tão bem o
povo dos tigres? — perguntou. — Nenhum rastreador teria feito
melhor.
— Odeio todos os tigres — disse Mowgli secamente. — Que o sahib
me dê sua arma para eu carregar. Arré, é uma bela arma. E para onde o
sahib vai agora?
— Para minha casa.
— Posso ir junto? Nunca olhei a casa de um homem branco por
dentro.
Gisborne retornou ao seu bangalô, enquanto Mowgli caminhava sem
um ruído à sua frente, com a pele marrom brilhando ao sol.
Ele observou com curiosidade a varanda e as duas cadeiras que lá
ficavam, tocou, desconfiado, as persianas feitas com varetas de bambu
partidas ao meio, e entrou, sempre olhando atrás de si. Gisborne soltou
uma das persianas para barrar a entrada do sol, e ela caiu farfalhando.
Antes que tocasse o parapeito da janela, Mowgli pulou de volta para a
varanda e estacou, com o peito arfante.
— É uma armadilha — concluiu logo.
Gisborne riu:
— Homens brancos não fazem armadilhas para outros homens. Você
é mesmo da selva.
— Entendo — disse Mowgli. — Isso não é arapuca nem laço. Eu… eu
nunca tinha visto essas coisas até hoje.
Ele entrou na ponta dos pés e olhou com olhos arregalados para o
mobiliário de ambos os quartos. Abdul Gafur, que servia o almoço,
encarou-o com desgosto profundo.
— Tanto trabalho para comer e tanto trabalho para se deitar depois
de ter comido! Na selva fazemos melhor — disse Mowgli com um
sorriso. — É muito maravilhoso. Tem muita coisa preciosa aqui. O sahib
não tem medo de ser roubado? Nunca vi tanta coisa maravilhosa.
Ele admirava um empoeirado prato metálico de Benares, preso à
parede por umas velhas mãos-francesas.
— Só um ladrão da selva roubaria aqui — disse Abdul Gafur,
dispondo um prato com espalhafato. Mowgli arregalou os olhos e
encarou o maometano de barbas brancas.
— No meu país, quando as cabras balem muito alto, cortamos suas
gargantas — rebateu alegremente. — Mas não tenha medo, você. Já
vou indo.
Ele deu meia-volta e desapareceu na rukh. Gisborne assistiu-o partir
com uma gargalhada, que terminou num pequeno suspiro. Além do
trabalho cotidiano, pouca coisa interessava ao supervisor fiorestal, e
aquele filho da fioresta, que parecia conhecer os tigres assim como
outras pessoas conhecem cachorros, teria sido uma boa distração.
— Ele é um excelente companheiro — pensou Gisborne. — É como
as ilustrações do Dicionário clássico. Gostaria de tê-lo feito meu
carregador de armas. Não tem graça fazer uma shikar sozinho, e esse
sujeito teria sido o perfeito shikarri. Fico me perguntando como
chegou a ser o que é.
Naquela noite ele sentou na varanda sob as estrelas, fumando
enquanto continuava a se perguntar. Uma baforada de fumaça
rodopiou, saída do fornilho do cachimbo. À medida que se desfez no ar,
ele percebeu Mowgli sentado com os braços cruzados na beira da
varanda. Um fantasma não teria deslizado mais imperceptivelmente.
Gisborne se assustou e derrubou o cachimbo.
— Não há homem para conversar lá no meio da rukh — disse
Mowgli. — Vim aqui por isso — ele pegou o cachimbo e devolveu-o a
Gisborne.
— Ah… — ensaiou Gisborne, e, após uma longa pausa: — Quais são
as novidades na rukh? Você achou mais um tigre?
— Os nilgós estão trocando de pasto por causa da lua nova, como
sempre fazem. Os javalis agora comem perto do rio Kanye, porque não
aceitam comer com os nilgós, e um dos seus filhotes foi morto por um
leopardo na grama alta, junto à nascente. Não sei mais nenhuma.
— E como você ficou sabendo de tudo isso? — perguntou Gisborne,
inclinando-se para a frente e olhando nos olhos que refietiam a luz das
estrelas.
— Como eu poderia não saber? Os nilgós têm esse uso e costume, e
até uma criança sabe que os porcos jamais comeriam com eles.
— Eu não sabia disso — disse Gisborne.
— Tsk! Tsk! E você é o chefe, os homens das cabanas me contaram, o
chefe de toda esta rukh.
Ele riu para si mesmo.
— Vá em frente, pode falar, contar suas fábulas de criancinha —
rebateu Gisborne, com um riso áspero. — Dizer que isso e aquilo está
acontecendo na rukh… Nenhum homem pode refutá-lo, afinal.
— Quanto à carcaça do filhote, eu mostrarei os ossos dele a você
amanhã — Mowgli respondeu, totalmente impassível. — Sobre o
assunto dos nilgós, se o sahib ficar sentado aqui bem quieto, eu guiarei
um nilgó até esse ponto e, se ouvir os sons com cuidado, o sahib poderá
saber de onde ele veio.
— Mowgli, a selva o deixou louco — falou Gisborne. — Quem pode
guiar um nilgó?
— Quieto… Sentado e quieto, agora. Eu vou.
— Deus! O homem é um fantasma! — espantou-se Gisborne, pois
Mowgli desaparecera na escuridão e seus pés não faziam nenhum
barulho.
A rukh se espalhava em amplas dobras aveludadas, sob o piscar
trêmulo da poeira de estrelas; tão silenciosa que a brisa errante, por
mais ínfima, ecoava nas copas das árvores, tranquila como a respiração
de uma criança que dorme. Na cozinha, Abdul Gafur retinia as peças de
louça uma na outra.
— Faça silêncio aí! — gritou Gisborne, recompondo-se em seguida
para ouvir, como alguém habituado à quietude da rukh.
Era seu hábito, ainda que no isolamento, preservar o respeito consigo
mesmo, vestindo-se para o jantar todas as noites, e o peitilho engomado
da camisa ficou rangendo no ritmo regular de sua respiração, até ele se
ajeitar um pouco de lado. Então o tabaco, num cachimbo de qualidade
duvidosa, começou a ronronar, e ele o atirou para longe. Agora, exceto
pela respiração noturna da rukh, tudo o mais emudecera.
De uma distância incerta, cruzando a escuridão sem medida, veio
fraco, e vago, o eco de um lobo uivando. Então o silêncio baixou
novamente, ou assim pareceu, por longas horas. Afinal, quando suas
pernas já estavam dormentes do joelho para baixo, Gisborne escutou
alguma coisa que podia ter sido uma batida, muito longe através do
matagal. Ele não teve certeza até que o barulho se repetiu uma, duas
vezes.
— Vem do oeste — murmurou. — Alguma coisa está andando por lá.
O barulho aumentou, batida atrás de batida, impulso atrás de
impulso, acompanhado pelo ronco escuro de um nilgó correndo e
suando, num voo de completo terror e sem escolher por onde passava.
Uma sombra desajeitada pulou de entre as árvores, deu meia-volta,
virou-se novamente, roncando, e então, batendo os cascos no chão de
terra, disparou quase à distância da mão de Gisborne. Era um nilgó
macho, pingando de transpiração. Tinha em volta do pescoço um galho
rasgado de cipó, seus olhos brilhavam com a luz que vinha da casa. A
criatura estacara ao ver o homem e saíra voando junto aos limites da
rukh, até derreter na escuridão. A primeira coisa que passou na cabeça
transtornada de Gisborne foi a indecência de arrastar até ali, para
inspeção, o grande “touro azul” da rukh… de botá-lo para correr numa
noite que ele deveria ter fruído livremente.
Então uma voz macia falou em seu ouvido, enquanto ele, de pé,
olhava paralisado:
— Ele veio da nascente onde liderava o rebanho. Do oeste ele veio. O
sahib acredita em mim agora, ou devo trazer o rebanho para que conte
quantos são? O sahib é o chefe desta rukh.
Mowgli havia sentado na varanda novamente, com a respiração um
pouco acelerada. Gisborne olhou para ele boquiaberto:
— Como você fez isso? — ele perguntou.
— O sahib viu. O nilgó foi tocado… como se toca um búfalo. Ha! Ha!
Ha! Ele terá uma bela história para contar quando se juntar ao rebanho
outra vez.
— Esse truque é novo para mim. Você, então, consegue correr tão
rápido quanto os nilgós?
— O sahib acaba de ver. Se o sahib precisar saber mais, a qualquer
momento, da movimentação dos animais, eu, Mowgli, estou pronto.
Essa é uma boa rukh, e vou ficar aqui.
— Fique, então, e se quiser um prato de comida, não importa a hora,
meus empregados irão servi-lo.
— Sim, é verdade, eu gosto de alimentos cozidos — Mowgli
apressou-se em responder. — Nenhum homem pode negar que eu
coma carne refogada e assada tanto quanto qualquer outro. Virei para
essa refeição. Agora, de minha parte, prometo que o sahib irá dormir
em segurança em sua casa à noite, e nenhum ladrão irá invadi-la e levar
embora seus tesouros tão preciosos.
A conversa morreu sozinha com a abrupta partida de Mowgli.
Gisborne ficou sentado por um bom tempo, fumando, e o eixo de suas
refiexões era que em Mowgli, afinal, encontrara o inspetor perfeito e o
guarda-fiorestal por quem ele e o departamento sempre haviam
procurado.
— Tenho que atraí-lo para o serviço público, de algum jeito. Um
homem que pode dirigir os nilgós deve saber mais da fioresta que
cinquenta outros. Ele é um milagre… um lusus naturae…5 Mesmo
assim, precisa se tornar guarda-fiorestal, basta fixar residência num
sítio qualquer — disse Gisborne.
A opinião de Abdul Gafur era menos favorável. Ele confidenciou a
Gisborne, na hora de dormir, que desconhecidos, vindos Deus sabe de
onde, eram mais provavelmente ladrões profissionais, e que de sua
parte não aprovava indivíduos sem casta e nus, ignorantes do modo
correto de se dirigir aos homens brancos. Gisborne gargalhou e pediu-
lhe que se recolhesse a seus aposentos. Abdul Gafur bateu em retirada
resmungando. Mais tarde, aquela noite, achou por bem se levantar e
surrar sua filha de treze anos. Ninguém ficou sabendo a causa da briga,
mas Gisborne ouviu a gritaria.
Ao longo dos dias seguintes Mowgli veio e foi como uma sombra. Ele
estabelecera a si próprio e levava sua selvagem rotina doméstica perto
do bangalô, bem no limiar da rukh, onde Gisborne, ao sair para a
varanda em busca de ar fresco, podia vê-lo ocasionalmente, sentado sob
o luar, com a testa apoiada nos joelhos, ou deitado ao comprido na
junta de um galho, ao qual se agarrava como uma fera da noite. De lá
Mowgli costumava saudá-lo e pedia-lhe que dormisse sossegado, ou,
descendo, tecia histórias prodigiosas sobre o comportamento dos
animais da rukh. Tendo ido passear pelos estábulos certa vez, ele foi
encontrado olhando os cavalos com interesse.
— Eis aí — vaticinou Abdul Gafur sobre o episódio — o sinal seguro
de que um dia roubará um deles. Por que, se mora nas redondezas
dessa casa, não arrumar um emprego honesto? Não, ele quer ficar
andando por aí como um camelo sem dono, virando a cabeça dos tolos
e deixando os ingênuos de boca aberta com suas loucuras.
Por isso Abdul Gafur dava ordens ríspidas a Mowgli quando se
encontravam, mandando-o buscar água e depenar as aves, e Mowgli,
rindo despreocupadamente, obedecia.
— Ele não tem casta — disse Abdul Gafur. — É capaz de qualquer
coisa. Atenção, sahib, para que ele não cause maiores problemas. Uma
cobra é uma cobra, e um cigano da selva é ladrão até morrer.
— Não fale mais — ordenou Gisborne. — Autorizo-o a castigar sua
família desde que sem muito barulho, pois conheço seus usos e
costumes. Os meus costumes você não conhece. O homem é, sem
dúvida, meio maluco.
— Muito meio maluco, realmente — concordou Abdul Gafur. —
Vamos ver o que irá aprontar.
Poucos dias depois, o trabalho fez Gisborne se embrenhar na rukh
por três dias. Abdul Gafur, velho e gordo como era, ficou em casa. Ele
não admitia dormir na barraca dos inspetores fiorestais, sendo
propenso a, em nome do patrão, exigir contribuições de cereal, óleo e
leite daqueles que mal podiam arcar com tais larguezas. Gisborne saiu
a cavalo certo dia ao raiar do sol, um tanto contrariado que seu homem
das matas não estivesse na varanda para acompanhá-lo. Gostava dele…
de sua força, de sua agilidade, do silêncio de seus passos e da prontidão
de seu sorriso; de sua ignorância de todas as etiquetas e saudações, e de
suas lendas infantis (nas quais agora Gisborne acreditava) sobre o que a
fauna estava fazendo na rukh. Depois de uma hora cavalgando por
entre a vegetação, ele ouviu um farfalhar atrás de si, e Mowgli apareceu
trotando junto a seu estribo.
— Temos três dias de trabalho pela frente — disse Gisborne —, junto
às árvores novas.
— Bom — disse Mowgli. — Sempre é bom cuidar das árvores novas.
Elas dão sombra se os animais as deixam em paz. Precisamos remover
os javalis outra vez.
— Outra vez? Como assim? — sorriu Gisborne.
— Ah, eles estavam comendo as raízes das jovens árvores-de-buda e
afiando nelas suas presas, então tirei todos de lá noite passada. Por isso
não fui à varanda esta manhã. Os porcos não devem de jeito nenhum
ficar desse lado da rukh. Precisamos levá-los para baixo da foz do rio
Kanye.
— Se um homem pudesse arrebanhar as nuvens, ele poderia fazer
algo assim; mas, Mowgli, se você é, como diz, um pastor na rukh por
vocação e sem salário…
— É a rukh do sahib — disse Mowgli, erguendo rapidamente o olhar.
Gisborne assentiu em agradecimento e continuou:
— Não seria melhor trabalhar remunerado pelo governo? Há uma
aposentadoria ao fim da longa carreira.
— Ah, isso eu pensei — disse Mowgli. — Mas os inspetores vivem
em cabanas com portas que fecham, e tudo isso é parecido demais com
uma armadilha. Ainda assim eu penso…
— Pense bem, então, e diga-me depois o que decidiu. Vamos parar
aqui e tomar o café da manhã.
Gisborne desmontou, pegou sua refeição matinal num dos alforjes da
sela, feitos em casa, e viu o dia quente acordar sobre a rukh. Mowgli
deitou na grama a seu lado, olhando para o céu.
Prontamente, num sussurro preguiçoso, ele falou:
— O sahib deu alguma ordem para a égua branca sair do bangalô
hoje?
— Não, ela é gorda, velha e, além disso, um pouco manca. Por quê?
— Ela está sendo cavalgada agora, e não devagar, no caminho que
leva até a estrada de ferro.
— Que bobagem, isso fica a dois koss de distância. É apenas um pica-
pau.
Mowgli, com o antebraço, protegeu os olhos do sol.
— Depois que começa, o caminho se dobra numa grande curva. Não
é mais que um koss, se tanto, os milhafres que o digam; e o som viaja
com os pássaros. Vamos ter certeza?
— Que loucura! Correr um koss debaixo do sol para verificar um
barulho na fioresta.
— Não, a égua é a égua do sahib. Quero apenas trazê-la até aqui. Se
não for a égua do sahib, melhor. Se for, o sahib pode fazer o que desejar.
Com certeza está sendo obrigada a correr, e muito.
— E como irá trazê-la aqui, seu louco?
— O sahib esqueceu? Pela trilha dos nilgós, nenhuma outra.
— Levante-se e corra, já que é tão zeloso.
— Oh, eu não corro!
Ele fez um gesto de silêncio com a mão e, ainda deitado de costas,
chamou três vezes bem alto, com um grito gorgolejante que era novo
para Gisborne.
— Ela vai chegar — Mowgli disse, afinal. — Vamos esperar na
sombra.
Seus longos cílios caíram sobre os olhos selvagens, e Mowgli ficou
dormitando na calma da manhã. Gisborne esperou pacientemente;
Mowgli sem dúvida era louco, mas era também a companhia mais
divertida que um solitário supervisor fiorestal podia desejar.
— Ora, ora! — disse Mowgli preguiçosamente, sem abrir os olhos. —
Ele caiu. Bem, primeiro vai chegar a égua, depois o homem.
Então bocejou e, ao mesmo tempo, o belo cavalo de Gisborne
relinchou. Três minutos depois a égua branca de Gisborne, selada,
encabrestada, mas sem cavaleiro, rompeu a clareira onde estavam e
marchou para junto do seu companheiro.
— Ela não está muito quente — constatou Mowgli. — Mas nesse
calor o suor vem fácil. Logo vamos ver o cavaleiro, pois os homens
andam mais devagar que os cavalos, ainda mais se for um velho gordo.
— Wallah! Isso é coisa do demônio — exclamou Gisborne,
levantando-se num pulo, pois acabara de ouvir um grito na fioresta.
— Não tenha medo, sahib. Ele não vai se machucar. Ele também vai
dizer que é coisa do demônio. Ah! Ouça! De quem é essa voz?
Era Abdul Gafur num transe de terror, clamando por forças
superiores para que poupassem a ele e a seus cabelos brancos:
— Chega, não consigo mais dar um passo — ele uivou. — Sou velho e
perdi meu turbante. Arré! Arré! Mas preciso me mexer. Na verdade, vou
me apressar. Vou correr! Oh, diabos do inferno, sou um muçulmano!
O matagal se abriu e revelou Abdul Gafur, sem turbante, sem sapatos,
a faixa da cintura desamarrada, lama e grama em suas mãos crispadas,
o rosto apoplético. Ele viu Gisborne, soltou novo grito e se projetou aos
seus pés, exausto e tremendo. Mowgli assistia com um doce sorriso.
— Isso não tem graça — repreendeu-o Gisborne. — O homem está
quase morrendo, Mowgli.
— Ele não morrerá. Está apenas com medo. Não precisava ter
desmontado do cavalo.
Abdul Gafur rosnou e ficou de pé, com as pernas tremendo.
— Foi bruxaria… bruxaria e diabrura! — ele soluçou, levando a mão
ao peito. — Por força do meu pecado, os demônios me chicotearam
enquanto atravessava a fioresta. Acabou tudo. Estou arrependido. Fique
com elas, sahib!
Ele esticou um rolo de papéis sujos.
— O que significa isso, Abdul Gafur? — inquiriu Gisborne, já
prevendo o que estava por vir.
— Ponha-me em Jail Khana,6 as notas estão todas aí, mas tranque-
me bem para que os diabos não possam me seguir. Eu pequei contra o
sahib e o sal que compartilhou comigo; não fosse por esses malditos
demônios-das-matas, eu teria comprado terras bem longe daqui e
vivido em paz pelo resto dos meus dias.
Ele batia a cabeça no chão num surto de desespero e mortificação.
Gisborne virava e desvirava o rolo de notas. Era o seu salário
acumulado dos últimos nove meses, o mesmo rolo guardado na gaveta
com as cartas vindas de casa e a máquina de recauchutagem. Mowgli
fitava Abdul Gafur, rindo por dentro.
— Não precisa me colocar no cavalo de novo. Eu vou andando para
casa com o sahib, então ele pode me mandar sob escolta para Jail
Khana. O governo cobra muitos anos por tal ofensa — disse o
mordomo, resignado.
A solidão na rukh afeta muito a cabeça das pessoas, em vários
aspectos. Gisborne contemplou Abdul Gafur, lembrando-se do bom
serviçal que era, e que um novo mordomo precisaria aprender do início
todas as regras da casa, para na melhor das hipóteses ser um novo rosto
e uma nova matraca.
— Ouça, Abdul Gafur — ele disse. — Você cometeu um erro grave, e
perdeu completamente sua izzat7 e sua reputação. Mas creio que não
foi premeditado.
— Wallah! Nunca desejei essas notas antes. O Diabo me esganou só
de olhar.
— Também acredito nisso. Vá, então, para minha casa. Quando eu
voltar, mandarei que um mensageiro leve as notas ao banco, e não se
fala mais nisso. Você é muito velho para a Jail Khana. E sua família não
tem culpa de nada.
Como resposta, Abdul soluçou entre as botas de montaria de
Gisborne, feitas de couro de vaca.
— Não serei demitido, então? — ele perguntou, engolindo em seco.
— Isso veremos. Depende de sua conduta quando retornarmos. Suba
na égua e volte para casa, sem correr.
— Mas os demônios! A rukh está cheia de demônios.
— Não se preocupe, paizinho. Eles não o machucarão mais, a não ser,
é claro, que as ordens do sahib não sejam obedecidas — pontuou
Mowgli. — Aí, pode ser que eles conduzam você até em casa… pela
trilha dos nilgós.
O queixo de Abdul Gafur caiu enquanto ele amarrava a faixa da
cintura, deparando-se com Mowgli.
— Os demônios são dele? São dele! Quando voltasse, eu estava
mesmo pensando em jogar a culpa nesse feiticeiro!
— Era uma boa ideia, Huzrut;8 mas, antes de montarmos uma
armadilha, primeiro vemos o tamanho do animal que pode cair nela. Eu
sabia apenas que alguém havia pego um dos cavalos do sahib. Se
soubesse que o plano era fazer de mim um ladrão perante o sahib, os
meus demônios o teriam arrastado até aqui pelas pernas. Mas ainda
não é tarde demais.
Mowgli, com um olhar, pediu permissão a Gisborne; mas Abdul
Gafur cambaleou rapidamente até a égua branca, pulou desajeitado na
sela e fugiu, com os gravetos e o mato estalando e ecoando por onde
passava.
— Foi um bom castigo — disse Mowgli. — Mas ele cairá novamente,
a não ser que se agarre à crina.
— Chegou a hora de você me contar o que significa tudo isso — disse
Gisborne, com sutil severidade. — Que conversa é essa de demônios?
Como os homens podem ser guiados para cima e para baixo na fioresta,
que nem o gado? Responda.
— O sahib está bravo por eu ter salvado seu dinheiro?
— Não, mas há algum truque nisso que não me agrada.
— Essa é boa. Se eu levantasse agora e desse três passos largos pela
rukh adentro, ninguém, nem mesmo o sahib, poderia me encontrar se
eu não quisesse. Como eu não gostaria de fazer algo assim, da mesma
forma não gostaria de contar. Tenha paciência, sahib, e um dia eu
mostrarei tudo, pois, se quiser, um dia conduziremos juntos os cervos.
Não há nenhuma magia negra envolvida. Apenas… eu conheço a rukh
como um homem conhece a cozinha de sua casa.
Mowgli falava como a uma criança impaciente. Gisborne, intrigado,
sem ação e bastante contrariado, não disse nada, mas olhou para o chão
e pensou. Quando levantou o rosto, o homem das matas havia
desaparecido.
— Não está certo — disse uma voz neutra, vinda do matagal — que
amigos fiquem com raiva. Espere até a noite, sahib, quando o ar é mais
fresco.
Deixado consigo mesmo, largado como fora no coração da rukh,
Gisborne praguejou, depois riu, montou outra vez no cavalo e seguiu
viagem. Visitou a cabana de um inspetor, supervisionou duas novas
plantações, deu instruções quanto à queima de uma faixa de grama
ressecada e saiu rumo a um acampamento que lhe convinha, uma pilha
de lascas de rocha ligeiramente recoberta por galhos e folhas,
relativamente próximo das margens do rio Kanye. O sol já caía quando
avistou seu local de descanso, e a rukh acordava para a vida selvagem e
silenciosa da noite.
Uma fogueira cintilou na colina, e o vento trouxe até ele o cheiro de
um ótimo jantar.
— Hum — disse Gisborne. — Eis algo melhor do que carne fria,
afinal. O único homem que poderia estar aqui é o Muller, mas,
oficialmente, ele deveria estar inspecionando a rukh Changamanga.
Suponho que por isso mesmo esteja no meu território.
O gigantesco alemão, autoridade máxima do Matas e Florestas de
toda a Índia, inspetor-geral de Burma a Bombaim, tinha o hábito de
cortar o espaço como um morcego, indo sem aviso de um lugar a outro,
e surgindo exatamente onde menos era esperado. Tinha a teoria de que
visitas repentinas, a identificação de trabalhos malfeitos, a bronca dada
de viva-voz nos subordinados, eram infinitamente melhores que
arrastadas trocas de correspondência, sempre passíveis de acabar
numa reprimenda protocolar e por escrito, algo que, futuramente, iria
macular a ficha de um oficial fiorestal. Ele explicava assim:
— Se eu fala com meus garroto só como uma tio holandês, eles dizer,
“Foi só o maldita Muller”, e eles fazer melhor no vez seguinte. Mas se
meu secretárria cabeça-durra escrrever e dizer que Muller, der
inspetor-gerral, non comprreender e estar muito chateada, primeirra
non adiantar porrque eu non estar lá, e segunda, der idiota ir lá depois
de mim e dizer parra minhas melhorres homens: “Olhar aqui, vocês
forram marrcados por minha prredecessor”. Eu dizer, esta negócio der
chapéus grrandes e distintivas non fazer os árvores crrescer.
A voz gutural de Muller vinha da escuridão, de atrás da luz
produzida pela fogueira, enquanto ele se debruçava nos ombros de seu
cozinheiro preferido:
— Non tanto molho, seu filho de Belial! Worcester Sauce ser
temperra e não um líquida qualquer. Ah, Gisborne, você vir para um
jantar nada pom. Onde é seu acampamenta? — e ele se aproximou para
que apertassem as mãos.
— Meu acampamento sou eu, senhor — respondeu Gisborne. — Não
esperava encontrá-lo por aqui.
Muller admirou sua esguia figura:
— Pom! Isso ser muito pom! Um cavalo e umas coisas frias parra
comer. Quando eu ser jovem, acampar assim tampém. Agorra você
janta comigo. Eu fui ao quartel-generral fazer meu relatórrio mês
passada. Eu escrever metade. Ha! Ha! Ha! E der resto deixar parra
minhas assistentes, saindo parra um caminhada. Der governo estar
louca por causa dessas relatórrios. Eu dizer isso ao vice-rei em Simla.
Gisborne deu uma risadinha, lembrando-se das muitas histórias
contadas sobre os confiitos de Muller com o governo central. Ele
ganhara imunidade em relação a todas as burocracias, pois como oficial
fiorestal era inigualável.
— Se eu encontrrar você, Gisborne, sentada na bangalô e chocando
relatórrios parra mim sobrre der lavourras, eu transferrir você parra o
meio do deserta Bikaneer, parra refiorrestar ela. Eu estar cheia de
relatórrios e de mastigar o papelada, temos muito trabalho parra fazer.
— Não é grande o risco de eu gastar meu tempo fazendo cálculos
anuais. Odeio-os tanto quanto o senhor.
A conversa, a essa altura, recaiu sobre assuntos profissionais. Muller
tinha algumas perguntas a fazer e Gisborne, ordens e dicas para
receber, até que o jantar ficou pronto. Foi a refeição mais civilizada que
Gisborne tivera nos últimos meses. A distância dos empórios centrais,
por maior que fosse, não tinha permissão de prejudicar o trabalho do
cozinheiro de Muller. A mesa, posta no cenário selvagem, começou
com um peixe de água doce fortemente temperado, e terminou com
café e conhaque.
— Ah! — disse Muller por fim, com um suspiro de satisfação,
enquanto acendia o cheroot e desabava em sua bastante surrada cadeira
de campanha. — Quando eu faz relatórrios, eu ser uma livrre-pensador
e uma ateu, mas aqui em der rukh eu ser mais que crriston, ser pagon
tampém.
Ele girou a ponta do cheroot na língua com luxúria, deixou as mãos
caírem nos joelhos e olhou diante de si para o coração sombrio e
sempre mutante da rukh, cheio de ruídos misteriosos; o estalido das
plantas nascentes como os estalos da fogueira atrás dele; a visão e o
som dos galhos dobrados pelo calor recuperando sua retidão na noite
fresca; o murmúrio incessante das águas do Kanye; e a nota grave dos
campos muito populosos, altos e verdejantes, que não podiam ser vistos
do outro lado da colina. Ele soltou uma grossa baforada de fumaça e
começou a recitar Heine para si mesmo.
— Sim, isto ser muito pom. Muito pom. Sim, eu faz milagrres e, por
Deus, eles acontecer tampém. Eu lembro quando non haver nenhum
rukh mais alto que seu joelho, daqui até der terras cultivadas, e no
tempo da seca der gado comia osso de gado morto a toda horra. Agorra
der árvores voltarrom. Eles forram plantadas por um livrre-pensador,
porrque ele saber que todo causa ter consequência. Mas der árvorres
eles tinhom seu culto der deuses antigos… e der deuses cristons uivar
alto. Eles não poder viver no rukh, Gisborne.
Uma sombra deslizou numa das trilhas dos cavalos; deslizou e
revelou-se sob a luz das estrelas.
— Eu ter falada o verrdade. Silêncio! Aí está Faunus, veio em pessoa
ver a inspetor-gerral. Himmel,9 ele ser sua deus! Olhar!
Era Mowgli, coroado com sua guirlanda de fiores brancas e andando
com um galho parcialmente descascado na mão; Mowgli, muito
desconfiado da luz do fogo e pronto a se embrenhar no emaranhado
verde ao menor sinal de alarme.
— É um amigo meu — explicou Gisborne. — Está me procurando.
Aqui, Mowgli!
Muller mal teve tempo de respirar antes que o homem estivesse ao
lado de Gisborne, exclamando:
— Eu errei ao ir embora! Eu errei, mas não sabia que a companheira
daquele que foi morto junto ao rio estava acordada procurando você. Se
soubesse não teria ido. Ela seguiu seu rastro desde lá de trás, sahib.
— Ele é meio maluco — disse Gisborne. — E fala de todos os animais
como se fossem seus amigos.
— É clarro, é clarro. Se Faunus não sabe, quem pode saber? — disse
Muller com gravidade. — O que ele sabe de tigres… essa deus que
conhece você tão pem?
Gisborne avivou seu cheroot e, antes que a história de Mowgli e suas
andanças houvesse terminado, ele já estava a ponto de lhe queimar os
bigodes. Muller ouviu sem interrupções.
— Non, isso non ser loucurra — disse ele afinal, quando Gisborne
descreveu o episódio de Abdul Gafur. — Isso non ser loucurra em
absoluto.
— O que é, então? Ele me irritou hoje pela manhã, pois eu lhe
perguntei como fazia tais coisas. Suponho que o sujeito esteja sob
alguma forma de possessão.
— Non, non ser possesson, mas é muito marravilhoso. Normalmente
eles morrer cedo, esses jovens. E você diz agorra que seu cozinheirra-
ladron non sabia o que guiou der cavalo, e é clarro que der nilgó non
falar.
— Não, mas, além deles, não havia mais ninguém. Eu agucei os
ouvidos e sei identificar quase todos os barulhos. O nilgó e o homem
simplesmente vieram até mim, loucos de medo!
Como resposta, Muller examinou Mowgli de cima a baixo, da cabeça
aos pés, então pediu-lhe que se aproximasse. Ele foi, como o cervo
numa trilha que cheira mal.
— Não precisa ter medo — disse Muller, agora no vernáculo. —
Levante um braço.
Ele correu sua mão até o cotovelo, apalpou-o e assentiu:
— Como eu pensei. Agora o joelho.
Gisborne viu-o apalpar a patela e sorrir. Duas ou três cicatrizes logo
acima do tornozelo chamaram a sua atenção:
— Essas estão aí desde quando você era muito jovem? — ele
perguntou.
— Sim — respondeu Mowgli com um sorriso. — Elas foram as
marcas de amor dos pequenos.
Então, dirigindo-se a Gisborne por cima do ombro:
— Esse sahib entende tudo. Quem é ele?
— Isso virá depois, meu amigo. Agora, onde estão eles? — inquiriu
Muller.
Mowgli fez um gesto circular com a mão acima de sua cabeça.
— Então é isso! E você sabe guiar os nilgós? Olhe ali! Lá está minha
égua, amarrada à estaca. Você consegue chamá-la para cá sem que se
assuste?
— Se consigo chamar sua égua para cá sem que se assuste! — repetiu
Mowgli, elevando a voz um pouco acima do tom normal. — O que pode
ser mais fácil, se os laços dos tornozelos estiverem frouxos?
— Solte os cabrestos e as cordas dos tornozelos — gritou Muller
para o criado.
As amarras mal haviam sido tiradas do chão quando a égua, uma
australiana imensa e toda preta, ergueu a cabeça num repelão e espetou
as orelhas no ar.
— Atenção! Eu não quero ela se metendo na rukh — advertiu Muller.
Mowgli parou de frente para as labaredas, na exata forma e
semelhança do Deus grego tão ricamente descrito nos romances. A
égua relinchou, levantou uma pata traseira, entendendo que as cordas
estavam soltas, e foi com passos ágeis até o dono, em cujo peito deitou a
cabeça, com uma leve transpiração.
— Ela veio de espontânea vontade. Meus cavalos fariam isso —
duvidou Gisborne.
— Sinta se ela está suando — pediu Mowgli.
Gisborne pousou a mão no dorso úmido.
— Já chega — disse Muller.
— Já chega — repetiu Mowgli, e uma pedra atrás dele ecoou suas
palavras.
— É inacreditável, não é? — exclamou Gisborne.
— Não, apenas maravilhoso, muito maravilhoso. Você ainda não
entendeu, Gisborne?
— Confesso que não.
— Então eu não contar. Ele prrometer um dia mostrar o que é isso.
Ser maldade eu contar. Mas por que ele não estar morto, eu não
entender. Agora, você escuta. — Muller encarou Mowgli e retomou o
vernáculo:
— Eu sou o chefe de todas as rukhs da Índia e de outras para além
das Águas Negras. Não sei quantos homens tenho sob minhas ordens;
talvez cinco mil, talvez dez. Sua obrigação é a seguinte: não perambular
mais na rukh para cima e para baixo, ou guiar os animais como
brincadeira ou demonstração, mas aceitar um cargo sob minha
autoridade, que sou o governo em matéria de Matas e Florestas, e viver
numa rukh como guarda-fiorestal; conduzir as cabras dos aldeões para
longe quando não houver ordem para alimentá-las na rukh; deixar que
o façam quando houver tal ordem; manter sob controle, como você
sabe manter, os javalis e nilgós, quando estiverem em número muito
grande; dizer a Gisborne Sahib como e por onde os tigres andam, e que
animais há nas fiorestas; e emitir avisos confiáveis sobre todos os
incêndios na rukh, pois você pode avisar mais rápido que qualquer
outro. Por esse trabalho há um pagamento mensal, em prata, e ao final,
quando você tiver mulher, gado e, quem sabe, filhos, uma pensão. Que
responder?
— Foi isso que eu… — balbuciou Gisborne.
— Meu sahib falou comigo esta manhã sobre esse trabalho. Andei
sozinho o dia inteiro pensando no assunto, e minha resposta está
pronta agora. Aceito trabalhar, se trabalhar nesta rukh e em nenhuma
outra, com Gisborne Sahib e nenhum outro.
— Assim será. Em uma semana virá o documento que oficializa o
compromisso do governo com a pensão. Depois você ocupará a cabana
que Gisborne Sahib indicar.
— Eu iria falar com o senhor sobre isso — disse Gisborne.
— Eu prefiro não ter apenas ouvido falar, agora que vi este homem.
Nunca haver um guarda-fiorrestal como ele. Ele é um milagre. Estou
dizendo, Gisborne, um dia você concordará. Escute bem, ele é irmão de
sangue de todo animal em der rukh!
— Eu ficaria mais tranquilo se pudesse entendê-lo.
— Isso virrá com a tempo. Agora eu lhe dizer que um só vez em meu
carreirra, e já fazer trrinta anos, eu encontrrar um rapaz que começar
como essa homem começar. E ele morrer. De vez em quando ouvir
sobre eles em der relatórrios do censo, mas eles todos morrer. Essa
homem estar vivo, e é um anacronismo, pois é de antes der Idade da
Ferro e der Idade do Pedrra. Olhe pem, ele estar em der princípio do
histórria do homem; Adão em der parraíso, e agorra nós só precisamos
de uma Eva! Non! Ele é mais velho que esse fábula de crriança, assim
como der rukh é mais velha que as deusas. Gisborne, eu ser um pagon
agorra, de vez por todas.
Pelo resto da longa noite, Muller ficou sentado fumando e fumando,
mirando e mirando a escuridão, com seus lábios articulando inúmeras
citações e grande admiração em seus olhos. Ele foi para a barraca, mas
logo retornou em seu majestoso pijama rosa-choque, e as últimas
palavras que Gisborne ouviu-o dirigir à rukh, cortando a calma
profunda da meia-noite, foram as seguintes, pronunciadas com imensa
ênfase:

Emborra nós mudar, enfeitar e vestir,


Você ser nobrre, pelada e antiga;
Libitina ser seu mãe, Prriapus,
Seu pai, uma deus e um grrega.

— Mas eu dizer uma coisa, pagon ou criston, eu jamais conhecer os


profundezas der rukh!

Era meia-noite no bangalô, na semana seguinte, quando Abdul Gafur,


pálido e cinza de ódio, postou-se ao pé da cama de Gisborne e o
despertou, sussurrando.
— Acorde, sahib — ele repetiu, após uma rápida pausa. — Levante-
se e traga sua arma. Minha honra foi embora. Levante-se e mate antes
que todos vejam.
O rosto do velho se transformara, tanto que Gisborne encarou-o
estupidificado.
— Foi para isso, então, que aquele indivíduo da fioresta, o sem casta,
me ajudava a polir a mesa do sahib, ia buscar água e depenava as aves.
Eles foram embora juntos, por causa das surras que eu dava, e agora ele
está com seus demônios puxando a alma dela para o inferno. Levante-
se, sahib, venha comigo!
Ele tascou o rifie na mão ainda semidesperta de Gisborne e
praticamente arrastou-o para fora do quarto até a varanda.
— Eles estão na rukh; daqui podemos alcançá-los com um tiro.
Venha comigo sem fazer barulho.
— Mas o que aconteceu? Qual é o problema, Abdul?
— Mowgli e seus demônios. Junto com minha própria filha — disse
Abdul Gafur.
Gisborne assobiou e o seguiu. Não havia sido por acaso, ele sabia, que
Abdul Gafur batera em sua filha nas últimas noites, e não por acaso
Mowgli ajudara nos trabalhos domésticos a um homem que seus
próprios poderes, fossem quais fossem, haviam condenado por roubo.
Fato é, os namoros da fioresta evoluem rapidamente.
Havia uma fiauta soando calmamente na rukh, como a melodia de
um deus nômade das matas, e, à medida que se aproximaram, um
murmúrio de vozes. A trilha acabou numa pequena clareira
semicircular, limitada em parte pela vegetação alta e em parte pelas
árvores. No centro, sentado num tronco caído, de costas para os
observadores e com o braço em volta do pescoço da filha de Abdul
Gafur, estava Mowgli, coroado com fiores novas, tocando uma fiauta
rústica de bambu, para cuja música quatro imensos lobos dançavam
solenemente em suas patas traseiras.
— Aí estão os demônios dele — sussurrou Abdul Gafur.
Ele ergueu um punhado de cartuchos que tinha na mão. Os animais
interromperam a dança quando uma nota longa tremulou, subitamente
quietos, com olhos verdes e fixos, contemplando a menina.
— Veja — disse Mowgli, deixando de lado a fiauta. — Há alguma
coisa para temer nisso? Eu disse a você, coraçãozinho de pedra, que
não havia, e você duvidou. Seu pai disse… Ora, se você tivesse visto seu
pai ser empurrado pela trilha dos nilgós! Seu pai disse que eles eram
demônios; por Alá, que é o seu Deus, não me admira que ele pensasse
assim.
A garota deu uma risadinha sibilada, e Gisborne ouviu Abdul
apertando os dentes. Esta não era absolutamente a garota na qual
Gisborne mal reparara, movendo-se furtiva pelo arraial, com o véu no
rosto e silenciosa, mas outra; mulher amadurecida numa única noite,
assim como basta uma hora de calor úmido para a orquídea fiorescer.
— Mas eles são meus colegas nas brincadeiras, e meus irmãos, filhos
da mesma mãe que me amamentou, como eu já contei a você atrás da
cozinha — continuou Mowgli. — Filhos do pai que me protegia do frio,
deitando na saída da gruta quando eu era criancinha sem roupa. Veja…
Um lobo cinzento levantou as mandíbulas, subserviente, próximo
aos joelhos de Mowgli.
— Meu irmão sabe quando estou falando deles. Sim, quando eu era
criancinha, ele era um filhote rolando comigo no barro.
— Mas você disse que era filho de gente — ela disse, com voz doce,
aninhando-se em seu ombro. — Você é filho de gente?
— Disse! Não, eu sei que sou filho de gente, porque meu coração está
em suas mãos, querida.
A cabeça dela caiu sob o queixo de Mowgli. Gisborne fez um sinal
para conter Abdul Gafur, que não estava nem um pouco impressionado
pela extraordinária visão.
— Mas eu fui um lobo entre lobos, ao menos até chegar o dia em que
Eles da selva me pediram que partisse, por ser humano.
— Quem pediu que você partisse? Você não está sendo honesto
comigo.
— Os próprios animais da fioresta. Querida, contando você nunca irá
acreditar, mas foi assim. Os animais da fioresta me pediram que
partisse e só esses quatro me seguiram, porque eu era seu irmão. Então
fui um pastor de gado entre os homens, e aprendi a falar como eles. Ha!
Ha! Ha! Os rebanhos faziam sua cota de sacrifício para remunerar
meus irmãos, até que uma mulher, uma velha muito respeitada, certa
noite me viu na plantação brincando com meus irmãos. Fui acusado de
estar possuído pelos demônios e me expulsaram da vila com pedras e
paus. Os quatro vieram comigo de forma disfarçada e não aberta. Foi
quando eu já havia aprendido a comer carne cozida e a falar melhor.
Fui de vila em vila, coração do meu coração, como pastor de gado,
amansador de búfalos, rastreador de caça, mas nunca houve um
homem que ousasse levantar o dedo contra mim mais de uma vez.
Ele se inclinou e acariciou um dos lobos.
— Seja como eles. Não há perigo nesses aí, nem mágica. Vê? Já a
reconhecem.
— As matas são cheias de todo tipo de demônio — disse a jovem com
um arrepio.
— Mentira. Uma mentira infantil — rebateu Mowgli, convicto. — Eu
já deitei no orvalho sob as estrelas na noite escura, e sei. A fioresta é
minha casa. Por acaso um homem teme seu próprio teto, ou uma
mulher o lar de seu marido? Abaixe-se e faça carinho neles.
— Eles são cães, e sujos — ela murmurou, aproximando o corpo mas
não o rosto.
— Tendo comido o fruto, agora lembramos a lei! — exasperou-se
Abdul Gafur com amargura. — Qual a necessidade dessa espera, sahib?
Mate!
— Quieto, você. Vamos descobrir tudo que aconteceu — ordenou
Gisborne.
— Isso, assim… — disse Mowgli, escorregando de novo o braço em
volta da jovem. — Cães ou não cães, eles estavam comigo quando eu
percorri mil vilas.
— Ai, e onde estava seu coração? Passou por mil vilas. Você viu mil
donzelas. Eu… que não… que não sou mais donzela, sou dona do seu
coração?
— Pelo que devo jurar? Por Alá, de quem você tanto fala?
— Não, pela vida que existe em você, e estarei satisfeita. Onde estava
seu coração nessa época?
Mowgli riu de leve:
— Em minha barriga, porque eu era jovem e estava sempre com
fome. Então aprendi a rastrear e caçar, enviando e chamando meus
irmãos para lá, para cá, como um rei chama seu exército. Por isso eu
guiei o nilgó para o jovem e tolo sahib, e a grande e gorda égua para o
grande e gordo sahib, quando duvidaram da minha capacidade. Teria
sido igualmente fácil guiar os próprios homens. Como agora — e sua
voz elevou-se ligeiramente —, como agora eu sei que atrás de mim
estão seu pai e Gisborne Sahib. Não, não fuja, nem dez homens teriam
coragem de dar um passo. Lembrando que seu pai bateu em você mais
de uma vez, devo dar o comando e despachá-lo novamente para a rukh?
Um lobo ficou em prontidão, com os dentes à mostra.
Gisborne sentiu Abdul Gafur tremendo a seu lado. Sem demora, seu
lugar ficou vazio; o homem gordo esgueirou-se para longe da clareira.
— Agora resta apenas Gisborne Sahib — disse Mowgli, ainda sem se
virar. — Mas eu comi do pão de Gisborne Sahib e logo estarei a seu
serviço. Meus irmãos também seguirão suas ordens para guiar o
deslocamento dos animais e fazer as notícias circularem. Esconda-se
no matagal.
A jovem obedeceu, a grama alta se fechou ao redor dela e do lobo
guardião que a seguiu, e Mowgli, virando-se com seus três ajudantes,
encarou Gisborne quando o supervisor fiorestal se adiantou.
— Essa é toda a mágica — ele disse, apontando para os três. — O
sahib gordo sabia que nós, criados entre os lobos, por uma estação
corremos com nossos cotovelos e joelhos. Apalpando meus braços e
minhas pernas, ele sentiu a verdade que você não sabia. Isso é assim tão
incrível, sahib?
— Na verdade, é mais incrível do que mágica. Foram eles que
guiaram o nilgó?
— Sim, assim como teriam guiado Éblis, se eu mandasse. Eles, para
mim, são meus olhos e meus pés.
— Cuide, então, que Éblis não esteja carregando um rifie de cano
duplo. Eles ainda têm o que aprender, esses seus demônios, pois ficam
enfileirados um atrás do outro, de modo que dois tiros matariam os
três.
— Ah, mas eles sabem que serão seus funcionários assim que eu me
tornar guarda-fiorestal.
— Guarda ou não guarda, Mowgli, você causou uma grande
vergonha a Abdul Gafur. Você desonrou sua casa e enegreceu seu rosto.
— Por isso não, ele o enegreceu quando roubou seu dinheiro, e o
tornou ainda mais negro quando sussurrou em seu ouvido, há pouco,
que matasse um homem desarmado. Eu mesmo falarei com Abdul
Gafur, pois sou um homem a serviço do governo, com uma pensão. Ele
realizará o casamento pelo rito que preferir, ou fugirá mais uma vez. Eu
falarei com ele ao amanhecer. Por enquanto, o sahib tem sua casa e esta
é a minha. É hora de dormir novamente, sahib.
Mowgli girou nos calcanhares e desapareceu no matagal, deixando
Gisborne sozinho. A sugestão do deus das matas não deveria ser
ignorada, e Gisborne voltou para o bangalô, onde Abdul Gafur,
dilacerado entre a raiva e o medo, esbravejava na varanda.
— Calma, calma — ordenou Gisborne, balançando-o, pois ele parecia
prestes a ter um ataque. — Muller Sahib fez dele um guarda-fiorestal, e
você sabe que há uma pensão ao fim dessa carreira, é um trabalho para
o governo.
— Ele não tem casta, é um mlech,10 um cão entre cães, um comedor
de carniça! Que pensão pode pagar algo assim?
— Só Alá sabe, e você ouviu, o mal está feito. Você gostaria de
alardeá-lo para todos os outros criados? Prepare rápido o shadi,11 a
jovem fará dele um muçulmano. Ele é muito cordial. Você acha
estranho, depois das surras que lhe aplicou, ela ir atrás dele?
— Ele disse que iria me perseguir com suas feras?
— Assim pareceu. Se for um mago, é no mínimo bastante poderoso.
Abdul Gafur pensou um pouco, então se deixou vencer e uivou,
esquecendo-se de que era muçulmano:
— Você é um brâmane. Sou seu gado. Diga-me o que devo fazer, salve
minha honra se ela puder ser salva!
Uma segunda vez Gisborne mergulhou na rukh e chamou Mowgli. A
resposta veio do alto, mas não em tom submisso.
— Fale com jeito — disse Gisborne, olhando para cima. — Ainda há
tempo de despojá-lo de seu posto e caçar você e seus lobos. A jovem
deve passar a noite na casa do pai. Amanhã haverá o shadi, pela lei
muçulmana, então poderá levá-la embora. Traga-a para Abdul Gafur.
— Entendo.
Ouviu-se o murmúrio de duas vozes entre a folhagem.
— Nós obedeceremos; pela última vez.

Um ano mais tarde, Muller e Gisborne cavalgavam juntos pela rukh,


conversando sobre seus afazeres. Eles despontaram entre as rochas,
perto do rio Kanye; Muller um pouco à frente. Protegido pela sombra e
os espinhos de uma moita, debatia-se um bebê de pele marrom. Do
mato, imediatamente atrás dele, surgiu a cabeça de um lobo cinzento.
Gisborne mal teve tempo de abalroar o rifie de Muller, e a bala rasgou e
dispersou-se por entre os galhos acima deles.
— Você está louco? — trovejou Muller. — Olhe!
— Estou vendo — respondeu Gisborne calmamente. — A mãe
encontra-se em algum lugar aqui perto. Você acordará toda a alcateia,
por Deus!
As moitas se abriram uma vez mais, e uma mulher sem véu no rosto
agarrou a criança.
— Quem atirou, sahib? — ela gritou para Gisborne.
— Este sahib aqui. Ele esqueceu a que povo seu marido pertence.
— Esqueceu? De fato, pode ser, pois nós que vivemos com eles
esquecemos completamente que não são como nós. Mowgli está rio
abaixo, pescando. O sahib gostaria de vê-lo? Apareçam, seus mal-
educados. Saiam das moitas e venham cumprimentar os sahibs.
Os olhos de Muller se arregalaram mais e mais. Num pulo, ele
desmontou da égua agitada, enquanto a selva revelava quatro lobos,
que se acercaram afetuosamente de Gisborne. A mãe ficou ninando a
criança e afastou-os quando se juntaram a seus pés descalços.
— Você tinha razão a respeito de Mowgli — disse Gisborne. —
Deveria tê-lo avisado, mas me acostumei tanto a esses amigos nos
últimos doze meses que acabei me esquecendo.
— Ora, não se desculpe — respondeu Muller. — Não foi nada. Gott
in Himmel!12 E eu faz milagrres — e eles acontecer tampém!

1. Primeira história escrita por Rudyard Kipling sobre Mowgli, “Dentro da rukh” não faz parte
do conjunto consagrado de contos de Os livros da Selva. Como o texto é pouco conhecido no
Brasil, aproveitamos a ocasião para oferecer ao leitor o conjunto completo de narrativas sobre
Mowgli. (N. E.)
2. Rukh denominava a reserva de terras feita pelo governo indiano para criar fiorestas
governamentais que pudessem suprir a demanda crescente por madeira e outros recursos
naturais. (N. T.)
3. Em híndi, caçada. (N. T.)
4. Unidade de medida usada na Índia de então; dependendo da região, variava de 1,6 a 4,8
quilômetros. (N. T.)
5. Em latim, no original: “uma extravagância da natureza”. (N. T.)
6. Na Índia, nome oficial do sistema penitenciário. (N. T.)
7. Em híndi, honra, familiar ou pessoal. (N. T.)
8. Em híndi também, outra forma de hazrat. Equivalente a Sua Alteza. Mowgli, evidentemente,
usa o termo com ironia. (N. T.)
9. Em alemão, no original: céu, ou paraíso. No caso, equivale a interjeição “Céus!”. (N. T.)
10. Em híndi, termo pejorativo para designar o indivíduo sem casta, ou simplesmente um
forasteiro. (N. T.)
11. Nome dado na Índia aos ritos matrimoniais. (N. T.)
12. Em alemão, no original: “Deus do céu!” (N. T.)
Copyright © 2021 by Editora Zahar

Copyright da tradução © 2016 by Alexandre Barbosa de Souza

Ilustrações de miolo de J. L. Kipling (1837-1911) e W. H. Drake (1856-1926) para as primeiras


edições de O livro da Selva e O segundo livro da Selva (Londres, Macmillan, 1894 e 1895,
respectivamente).

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.

Título original: The Jungle Book


Capa e ilustração: Rafael Nobre
Tradução de “Dentro da rukh”: Rodrigo Lacerda
Revisão: Ana Maria Barbosa e Jane Pessoa
Versão digital: Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-102-2

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
Praça Floriano, 19 — sala 3001
20031-050 — Rio de Janeiro — RJ
Telefone: (21) 3993-7510
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criado por lobos nas florestas da Índia. Protagonista de oito das
quinze extraordinárias narrativas que formam o conjunto deste livro,
Mowgli se tornou um mito por suas aventuras emocionantes ao lado
de personagens inesquecíveis como Bagheera, a poderosa pantera-
negra que o protege; Baloo, o urso que ensina as Leis da Selva aos
filhotes de lobo; Kaa, o sábio píton; Akela, o lobo solitário líder da
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