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1 - Introdução
Uma década de convivência com a incerteza econômica e a instabilidade polí-
tica transformaram em concenso a idéia de que a crise brasileira tem uma natureza
que transcende as flutuações conjunturais. Nesse tempo, generalizou-se, também, a
convicção de que o epicentro dessa crise está no Estado.
O debate político sobre a responsabilidade do Estado na origem e na supera-
ção dos problemas gerados pela crise aparece, entretanto, envolto num manto pro-
fundamente ideológico. O antiestatismo de nossos empresários liberais não consegue
esconder suas prolongadas relações de dependência clientelista com o próprio Esta-
do. Mas o estatismo de nossos desenvolvimentistas — dos conservadores mais do que
dos progressistas — tampouco consegue justificar as alianças que comprometeram
historicamente o Estado com a parafernália corporativa e cartorial e com o autorita-
rismo, sendo que o reformismo de nossos social-democratas não consegue jamais es-
clarecer como se faz a omelete da reforma do Estado sem quebrar os ovos que ali-
mentaram os vários e heterogêneos segmentos pactados na base social de apoio á es-
tratégia que modernizou nossa sociedade sem ampliar a cidadania social e política.
Nesta hora repõe-se a necessidade de rever alguns aspectos do debate sobre a
verdadeira natureza e importância do Estado na caracterização teórica e na imple-
mentação histórica da industrialização brasileira. Este artigo discorda de algumas vi-
sões tradicionalmente associadas às posições marxistas ou estruturalistas e tenta lo-
calizar em alguns momentos privilegiados da história político-econômica brasileira
a verdadeira especificidade de sua trajetória para a modernidade industrial. Especi-
ficidade condensada na esquizofrenia de uma política econômica que retrata de cor-
Este artigo recolhe idéias apresentadas na mesa redonda. O Papel do Estado n o Crescimento
de Longo Prazo, ocorrida n o V l l l Congresso Brasileiro de Economistas, realizado em setem-
bro de 1 9 8 9 , na Cidade de Porto Alegre, n o Rio Grande d o Sul.
Cientista „Político, Professor Titular do Instituto de Economia Industrial da Universidade Fe-
deral do Rio de laneiro.
po inteiro os pactos e compromissos que alinhavaram a perversa relação que une,
desde os anos 30, o Estado com a burguesia brasileira. Compromissos que afastam o
Brasil do modelo prassiano de industrialização e o inscrevem em uma '^ãa desenvol-
vimentista" alavancada por um Estado que nunca conseguiu ir além dos limites que
lhe foram impostos por um empresariado que, contraditoriamente, conseguiu ser
profimdamente antiestatal, não obstante sua longa história de anemia schumpete-
riana e dependência do próprio Estado.
7 - Brevíssimas conclusões
As teses centrais deste artigo são que a importância decisiva do Estado não é
suficiente para especificar nossa industrialização e que nossa industrialização tampou-
co se encaixa no que ficou conhecido como modelo pmssiano de modernização
conservadora. Nessa direção, as frustrações de Vargas e a hecatombe gerada pelo su-
cesso do II PND de Geisel serviram-nos como conjunturas privilegiadas para desnu-
dar compromissos e instituições que individualizam nosso desenvolvimento através
de um padrão de financiamento internacionaUzado e uma política econômica esqui-
zofrênica permanentemente dividida entre uma regulação monetária ortodoxa e uma
política creditícia desenvolvimentista.
O peso do antiestatismo embutido no pacto conservador e de sua estratégia
econômica überal e ao mesmo tempo desenvolvimentista, vigente desde os anos 30 e
reposta nos anos 60, afetou toda a ação estatal, atingindo sua própria institucionali-
dade, em particular quando se tratava da administração da moeda e do crédito ou
do financiamento em geral. Não parece acidental, nesse sentido, o conflito perma-
nente que, através de nossa história, opôs os dois segmentos da administração púbH-
ca responsáveis por aquelas funções; nem que o controle da moeda fosse sempre rei-
vindicado e entregue aos "liberais ortodoxos" ligados, em geral, ao setor financeiro
e empenhados em restringir o grau de arbitragem político-estatal sobre o valor da
moeda fiduciária, enquanto a política de investimento ficava na mão dos "desenvol-
vimentistas", civis ou militares, sendo que o exercício da fundão financeira, entregue
ao Estado ainda quando gerido pelos "desenvolvimentistas", foi permanentemente
limitado e coagido à "externalização", como forma, entre outras coisas, de não so-
brecarregar a lucratividade interna.
Como conseqüência disso, o Estado, ao substituir o setor financeiro privado,
mantendo-se dentro de limites impostos pelas reformas dos anos 60, acabou alimen-
tando, nos anos 80, através do seu endividamento, uma forte especulação improdu-
tiva e um encilhamento financeiro que desorganizou completamente a 'Sda desen-
volvimentista" de industrialização. Por outro lado, submetido à pressão cartorial dos
vários e heterogêneos segmentos do pacto conservador, o Estado "privatizou-se" ao
lotear seus aparelhos institucionais entre os vários setores dominantes e ao sustentar
segmentos pouco competitivos do setor privado. No final de uma longa trajetória,
fazia-se mais explícito o que foi sempre, num só tempo: a força e a fragilidade do
Estado desenvolvimentista brasileiro quando comparado ao Estado prussiano. Foi
forte enquanto arbitrou com certa autonomia o valor interno do dinheiro e dos cré-
ditos. Mas foi fraco toda vez que quis ir além dos limites estabelecidos pelos seus
compromissos constitutivos. Movendo-se sempre sobre o fio da navalha de uma alian-
ça conservadora e de uma estratégia econômica "liberal-desenvolvimentista", aca-
bou sucumbindo às contradições que o moveram e instabilizaram constantemente.
Premido entre a necessidade de comandar a "fuga para frente" necessária à solda-
gem de um conjunto extremamente heterogêneo de interesses e a necessidade de
se submeter ao veto que esses mesmos interesses faziam à "estatização", propiciou,
por um lado, a ordem, os subsídios, os insumos e a infra-estrutura, sendo impedido,
por outro, de realizar a monopolização e a centralização financeira. Foi a manuten-
ção das regras desse pacto que, segundo nosso ponto de vista, obrigou o endivida-
mento responsável pela forma financeira da crise vivida nos anos 80 pelo Estado de-
senvolvimentista.
Vargas e Geisel, nesse sentido, confirmam a hipótese de John Zysman (1983,
p . l 6 ) de que "(...) um exame das estruturas financeiras nacionais possa iluminar as
estratégias e os conflitos políticos que acompanham o ajustamento industrial"'. Com
Vargas, fez-se a opção que Geisel levou às últimas conseqüências: uma industrializa-
ção pesada feita com o decisivo aporte do capital internacional. No período entre
um governo e outro, as forças produtivas amadureceram, e as relações capitaUstas se
generalizaram. As bases materiais da indústria foram finalmente constituídas, mas
seu sxxporte institucional e financeiro fez desse um processo fortemente descontínuo e
altamente sensível às reversões cíclicas e às trepidações financeiras internacionais. A
inexistência de uma verdadeira e solidária associação entre o empresariado e o Esta-
do e a postura predominantemente predatória do primeiro com relação ao segundo
impediram a centralização e aceleraram a segmentação dos recursos e do poder esta-
tal, fazendo o Estado brasileiro "(.,.) parecer-se muito mais com uma caricatura da
destruição criadora de Schumpeter, do que com sua admirável máqxxina de cresci-
m e n t o " (Tavares, 1 9 8 5 , p . l l 6 ) .
Vargas naufragou porqxxe lhe faltou o apoio interno "prussiano" em 1939. E
fracassou porque não obteve o apoio externo "associado" em 19.53. Voltou-se en-
tão para o povo e atacou os interesses "forâneos". Deixou montada uma máquina
institucional e um pacote de projetos extremamente úteis para a industriahzação
posterior. Mas, apesar de tudo, não conseguiu fugir a uma po]i'tica macroeconômica
conservadora e contracionista.
Geisel teve um enorme sucesso na obtenção do financiamento privado exter-
no e deixou montada uma extraordinária máquina produtiva estatal bem como o so
'•(...) an sxamination o f national financial structures can iUuminate the estrategies of these
g o v e m m e n t s and the poUtical conflicts and that accompany industrial adjustment".
nho de uma Nação-potência. Mas, mesmo assim, teve que se submeter a uma rigoro-
sa, ainda que oscilante, política macroeconômica monetarista, que, instigada pela
inflação e pelo desequililjrio do balanço de pagamentos, estimulou, até o limite, o
endividamento externo em, que todos, unidos, se afundaram mais à frente. Deixou
como herança de seu sucesso a forte suspeita dç que esse Estado não foi montado
com vistas a uma industriahzação pesada, mas como objeto de desfrute cíclico gene-
ralizado. Desfrute na predação, quando as coisas vão bem, e na socialização das per-
das, quando as coisas vão mal.
Em síntese, Vargas e Geisel põem-nos frente a um Estado que não pôde fun-
cionar como aglutinador do processo de monopoHzação e centralização de capital
necessário a uma industrialização pesada e auto-sustentada. Mas põem-nos, igualmen-
te, frente ao paradoxo de que a monopoHzação e a centralização privadas tampouco
ocorreram de maneira contínua e homogênea, devido à dependência dos empresá-
rios frente a esse mesmo Estado que entrevaram.
É sobre esse pano de fundo que se ressalta a natureza "paroxista" dos debates
ideológicos que acompanharam a trajetória do Estado desenvolvimentista e se inten-
sificaram em cada uma de suas crises. NacionaHsmo versus cosmopolitismo, estatis-
mo versus liberaHsmo e "contracionismo" versus desenvolvimentismo são, e sempre
foram, clivagens táticas, só adquirindo dimensões ideológicas e estratégicas na cabe-
ça de intelectuais militantes, de alguns militares e de pouquíssimos empresários. Nos
momentos de expansão e "fuga para frente", com inflação estável, gasto público
equilibrado e crescimento, todos estiveram juntos, e o debate arrefeceu. Mas o con-
senso desfez-se sempre e regularmente em todas as reversões cíclicas, acompanhadas
de aceleração inflacionária e aumento do déficit público. Nos primeiros momentos,
agigantava-se a face desenvolvimentista, ainda que levasse atrelada uma parafernália
cartorial, Nos outros, reacendiam-se periodicamente a ira antiestatal e a força dos
"hberais", ainda que o Estado seguisse sendo cobrado em sua "obrigação" de "so-
cializar" as perdas próprias da crise. Sendo que, se na expansão os salários se disper-
saram, na crise, como parte das políticas de estabiHzação, pagaram irremediavelmen-
te o preço do "arrocho" e dos inevitáveis aumentos da carga tributária, destinados a
sustentar o gasto corrente e a financiar a socialização das perdas. Só que, na crise dos
anos 80, se somou a tudo isso a falência do Estado.
Nesse jogo, excluídos alguns sonhadores prussianos, as idéias estiveram pei:ma-
nentemente a serviço das táticas mais do que das estratégias, da "hquidez" mais
que da produção, ou seja, perfeitamente no seu lugar: o das crises brasileiras.
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F E É- C EDO C
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Abstract
This paper aims to demonstrate that the present crisis o f the brazilian e c o n o m y
has poHtical roots and very old origins situated within the heart of the brazihan state in
its way o f capitalist development. Hace where the political conflicts derivated from the
heterogeneity of our poHtical elites inscribed their pacts and compromises in a contradic-
tory strategy of development wich took form in the e c o n o m i e policy and the pattern of
financing e c o n o m i e growth. In t w o crucial moments of the economie and political trajec-
tory this was particularly visible:in the g o v e m m e n t s o f Getúlio Vargas and Ernesto Geisel,
when development went definitely away from the Prussian model o f conservative m o -
demization. This specifity was blurred and even denied b y the ideological nature of the
debate over the present crisis of the brazilian state.