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Filipe José de Oliveira Marques Cortesão1

O CÍRCULO HERMENÊUTICO E AS CIÊNCIAS SOCIAIS

Resumo: O presente trabalho pretende debruçar-se sobre o conceito de círculo


hermenêutico e o modo como este foi, e continua a ser, igualmente transposto para as
ciências sociais. Procura-se uma abordagem expositiva que identifique alguns contributos
e limitações mas sobretudo sublinhar como se aproximam as duas esferas em análise.
Palavras-chave: Hermenêutica; Círculo Hermenêutico; Ciências Sociais.

THE HERMENEUTIC CIRCLE AND THE SOCIAL SCIENCES

Abstract: The present paper intends to focus on the concept of the hermeneutic
circle and the way it was and continues to be equally transposed to the social sciences.
An expository approach is sought that identifies some contributions and limitations, but
above all underlines how the two spheres under analysis are brought together.
Keywords: Hermeneutics; Hermeneutic Circle; Social Sciences.

1
1 Efetivo na Polícia Marítima. Economista pela Ordem dos Economistas. Mestre em Economia pela
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Mestrando de Filosofia na Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. Estudo realizado no âmbito do seminário de Ética e Filosofia Política. E-mail:
decortesao@gmail.com
Cumprimento das normas de publicações no âmbito da edição de filosofia da Revista da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto:
https://ojs.letras.up.pt/index.php/filosofia/about/submissions#authorGuidelines

Filipe Cortesão | 2021


Índice

1. A Hermenêutica e o Círculo Hermenêutico .......................................................................... 3

2. O Círculo Hermenêutico e as Ciências Sociais ..................................................................... 4

3. Considerações finais .............................................................................................................. 7

4. Referências bibliográficas ..................................................................................................... 9

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1. A Hermenêutica e o Círculo Hermenêutico

A filosofia apresenta-nos a hermenêutica como sua vocação para a interpretação,


ou arte da interpretação, através da análise de textos, designadamente ao lidar com ações
humanas e seu produto: «Serve como uma ferramenta eficaz para compreender o ser
humano e a relação entre as pessoas a qual é expressa pela cultura»2.
Existe sob este conceito, ou pelo menos acompanha-o, o entendimento de que «a
ideia tradicional de hermenêutica de interpretação visava revelar o conteúdo do texto»3 e
considerar-se que «o papel do hermeneuta seria meramente encontrar o sentido “certo”
do autor»4.
O percurso trilhado pela hermenêutica encontra um processo que estabelece «a
regra segundo a qual é necessário compreender o todo de um texto a partir das suas partes
e estas a partir do todo»5, refere-se pois ao círculo hermenêutico. Taylor, citado por
Mantzavinos expõe que nas relações entre a parte e o todo «tentamos estabelecer a leitura
do texto como um todo e para isso recorremos a leituras de suas expressões parciais mas
(…) a leitura das expressões parciais depende da leitura das outras e, em última análise,
da leitura do todo»6. Neste sentido, concretiza Leonardo Alves, ainda a respeito da noção
de círculo hermenêutico, afirmando que «além da prática “natural” de compreender a
realidade, o círculo hermenêutico é um método complexo de leitura e instrumento de
análise qualitativa»7.
Permitindo-se avançar na exposição desta teoria releva «recordar que
compreensão “é o que diz o texto” e interpretação “é o que o texto quer dizer”»8, neste
processo «o leitor em si é uma parte do mundo e sua abstração oriunda da leitura constitui
uma teoria totalizante»9 asseverando-se ainda que «o objetivo é encontrar significados
sem esperar achar uma única verdade (…) duvidar tanto do que se interpretou quanto

2
Alves, Leonardo M., O Círculo Hermenêutico para leituras críticas, Ensaios e Notas, 2014; Disponível
em: https://ensaiosenotas.com/2014/11/20/o-circulo-hermeneutico-para-leituras-criticas/, p. 1
3
Idem, ibidem
4
Idem, ibidem
5
Silva, Maria Luísa P. F., «Círculo Hermenêutico…», op. cit., p. 1
6
Taylor (1985) apud Mantzavinos, Chrysostomos, «O círculo hermenêutico: que problema é este?»,
Tempo Social, 26(2), 2014, pp.57-69, p. 57
7
Alves, Leonardo M., «O Círculo Hermenêutico…», op. cit., p. 1
8
Idem, ibidem, p. 3
9
Idem, ibidem, p. 2

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confiar nas interpretações possíveis»10. Maria Silva acrescenta, referindo Heidegger, a
propósito da direção aqui apontada:

(…) a estrutura circular da compreensão hermenêutica não pode, de maneira


nenhuma, desembocar num ato puramente psicológico ou adivinhatório, que permita
um acesso direto ao autor, e a partir do qual se atinja uma plena compreensão dos
textos. Pelo contrário, o que agora acontece é o seguinte: toda a compreensão humana
está determinada, de um modo permanente, pelo movimento de antecipação próprio
do ser marcado por uma pré-compreensão.

Ultimando Maria Silva que «uma consciência hermenêuticamente formada não pode
entregar-se, de facto, desde o início, ao acaso das suas próprias opiniões prévias sobre o
assunto, deve, pelo contrário, estar disposta a que o texto lhe diga algo de novo»11.
Na relação que se adensa entre o objetivo da hermenêutica «pensada e
desenvolvida como método para compreender a alteridade»12 e o empenho da ferramenta
do círculo hermenêutico que «não deve ser reduzido ao nível de um círculo vicioso ou
mesmo de um círculo tolerado»13, vem sugerir deste modo que o exercício interpretativo
resultante se inicia não «num grau zero mas, pelo contrário, de uma pré-compreensão que
envolve a nossa própria relação com o todo do texto, embora apenas se torne compreensão
explícita quando, por sua vez, as partes que se definem a partir do todo, definem este
mesmo todo»14.

2. O Círculo Hermenêutico e as Ciências Sociais

O estudo do comportamento humano, sua compreensão, e interpretação das


relações sociais que se estabelecem e como significam, toma o seu lugar nas Ciências
Sociais, sublinha Dilthey (1981): «o conhecimento nas Ciências do Espírito distingue-se
pela tendência de recuar até à vivência que se exprime em determinadas formas»15. O seu

10
Idem, ibidem, p. 3
11
Silva, Maria Luísa P. F., Círculo Hermenêutico, E-Dicionário de Termos Literários, 2009, Disponível
em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/circulo-hermeneutico/, p. 3
12
Alves, Paulo C.; Rabelo, Míriam C.; Souza, Iara M., «Hermenêutica-fenomenológica e compreensão nas
ciências sociais», Sociedade e Estado, 29(1), 2014, pp. 181-198, p .191
13
Heidegger (1962) apud Mantzavinos, Chrysostomos, «O círculo hermenêutico: que…», op. cit.,
p. 58
14
Silva, Maria Luísa P. F., ibidem, p. 1
15
Dilthey (1981) apud Jahnke, Hans-Richard, O Conceito da Compreensão na Sociologia de Max Weber,
Universidade de Coimbra, Coimbra, 2013, p. 55

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surgimento veio permitir um novo olhar sobre a sociedade, imprimindo uma nova ordem
social que «desenhou mapas para a construção de instituições e culturas; providenciou
legitimações para um estado central burocratizado e para as suas aspirações de
reordenamento da ordem social»16.
Os avanços nas novas formas de conhecimento, também como resposta à
hegemonia analítica das ciências naturais, contribuem para o crescimento e autonomia
das ciências sociais que tomam como seu objeto os «seres humanos, agentes socialmente
competentes, que interpretam o mundo que os rodeia para melhor agirem nele e sobre
ele»17 importando daqui esclarecer:

As ciências sociais não são «ciências», se este termo for usado com o mesmo sentido
que tem nas ciências naturais; mas se, ao contrário, por ele se entender uma forma
sistemática de abordagem da realidade que visa obter conhecimentos dotados de um
suficiente grau de rigor e verificados pelos factos com o uso de um método adequado
(1985: 100).18

As ciências sociais destacam-se sobretudo pelo seu objeto e método. Neste


domínio, «interpretam-se os entes a partir de um horizonte de compreensão constituído
pela tradição cultural e pelas práticas sociais do intérprete»19 e estas «envolvem
necessariamente interpretação e um movimento circular de validação de interpretações
com base noutras interpretações»20. Convergente com esta assunção, sintetiza Boaventura
Sousa Santos ao atentar que «se todo o conhecimento científico é social na sua
constituição e nas consequências que produz, só o conhecimento científico da sociedade
permite compreender o sentido da explicação do mundo “natural” que as ciências naturais
produzem»21, assiste-se à construção de um argumento que coloca no social a origem de
todo o conhecimento científico (ciências naturais) e, como tal, o desenvolvimento deste
apenas se fará partindo de um progressivo conhecimento científico da sociedade (ciências
sociais). Declara-se por esta via, que «o círculo hermenêutico serve como um argumento

16
Tralhão, Regina, «O Sujeito no Pensamento Social: A Hermenêutica e as Ciências Sociais e Humanas»,
Interações: Sociedade e As Novas Modernidades, 9(16), 2009, pp. 7-51, pp. 9-10
17
Santos, Boaventura de Sousa, «Introdução a uma ciência pós-moderna», Graal, Rio de Janeiro, 1989, pp.
51-77, p. 63
18
Idem, ibidem, p. 65
19
Silva, Rui S., «O Círculo Hermenêutico e a Distinção Entre Ciências Humanas E Ciências Naturais»,
Ekstasis: revista de fenomenologia e hermenêutica, 1(2), 2013, pp. 54-72, p. 60
20
Cfr. Taylor apud Idem, ibidem, p. 61
21
Santos, Boaventura de Sousa, «Introdução a uma ciência…», op. cit., p. 75

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padrão para aqueles que querem sustentar a autonomia das ciências [sociais e]
humanas»22.
O crescimento e desenvolvimento das ciências sociais beneficiou em parte da
influência do Iluminismo que procurava sujeitar «a tradição aos critérios universais da
razão e, contra as restrições e os preconceitos impostos pela tradição, prega a liberdade
da razão»23, e do Romantismo que «reage ao movimento devastador da razão iluminista,
pregando o retorno à tradição, a verdade do mythos em oposição à verdade do logos»24.
Concorre para tal os principais contributos da tensão que resulta entre estes dois
movimentos, desdobrando-se numa série de «oposições entre razão e emoção, liberdade
da razão e autoridade da tradição que repercutem nas ciências sociais e se traduzem em
diversas polaridades»25 designada e resumidamente, em traços gerais, no «universalismo
versus singularismo, holismo versus individualismo»26. Neste equilíbrio de forças,
importa refletidamente considerar que:

(…) a proposta da hermenêutica romântica desemboca claramente na proposta


iluminista: ambas comungam do mesmo ideal de objetividade. E aproximam-se
justamente naquilo que ambos negligenciam: a natureza essencialmente histórica do
conhecimento e, portanto, o papel da tradição enquanto horizonte em que se processa
todo conhecimento.27

Existe, pois, um vetor diretor que conduz a uma interseção entre as dimensões envolvidas,
refletindo-se nas ciências sociais, conforme Gadamer ao insistir:

(…) esta relação, entre a parte e o todo, não pode ser pensada em termos do universal
e particular: a experiência enquanto parte não é simplesmente a instância singular,
uma versão empobrecida do todo e que nada diz além do que nele já está dado. A
relação entre experiência e vida, ação e mundo, é antes de tudo orgânica. Isso quer
dizer que a experiência continuamente redescobre o sentido do todo da vida.28

Desenha-se um sentido convergente, permitindo-se daqui inferir que «se na experiência


hermenêutica não há “ponto zero” a partir do qual passa a haver compreensão (…)
também nas ciências sociais não há um ponto fora do mundo ou uma instância

22
Mantzavinos, Chrysostomos, «O círculo hermenêutico: que…», op. cit., p. 57
23
Alves, Paulo C.; Rabelo, Míriam C.; Souza, Iara M., «Hermenêutica-fenomenológica…», op. cit., p. 191
24
Idem, ibidem
25
Idem, ibidem, p. 190
26
Idem, ibidem
27
Idem, ibidem, p. 192
28
Cfr. Gadamer apud Idem, ibidem, p. 194

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metodológica que permita lançar sobre a realidade aquilo que Merleau-Ponty (1994)
chama de “olhar de sobrevoo”»29.

3. Considerações finais

O movimento circular aparente das ciências sociais, nas quais o círculo


hermenêutico toma o seu lugar, assemelha-se a este sobretudo como ponto de partida,
impulso após o qual, em um ponto, se dá uma rutura de força centrípeta, onde «os
conhecimentos das ciências sociais e humanas abandonam os padrões absolutos,
categorias universais e grandes teorias, favorecendo, ao invés, a apropriação local, a
contextualização histórica e as formas pragmáticas de investigação social»30. Visão
sucinta e de semelhante amplitude é clarividente em Richard Rorty ao imaginar «as
análises sociais, simultaneamente, como críticas culturais e como histórias cujo valor
reside no compromisso com um público democrático»31, alinhando, também aqui,
Bauman ao considerar que «como acontece na crítica literária, o analista social
interpretativo aborda as comunidades como textos, com a intenção de traduzir o não
familiar para o familiar»32.
Seria manifesta presunção negligenciar alguns dos problemas elencados e das
críticas dirigidas à simbiose aqui descrita, o entendimento literal da eventual circularidade
do círculo hermenêutico, bem como potenciais fragilidades no método interpretativo:

(…) a interpretação tem os seus limites numa relação de condicionamento recíproco


da compreensão do conjunto e das suas partes, conhecida como círculo hermenêutico.
Julgamos que esta relação de reciprocidade se encontra, não só, no caso da
interpretação de obras literárias, mas também, na compreensão de outras
manifestações do ser humano (…).33

Pode, deste modo, resultar um problema empírico nas análises que venham a ser
desenvolvidas, Gadamer refere a este propósito:

A pessoa que tenta compreender um texto está sempre projetando. Ela projeta um
significado para o texto como um todo tão logo algum significado inicial emerja no
texto. O significado inicial só emerge porque a pessoa lê o texto com expectativas

29
Idem, ibidem, p. 195
30
Tralhão, Regina, «O Sujeito no Pensamento Social: A Hermenêutica…», op. cit., p. 13
31
Idem, ibidem, p. 15
32
Idem, ibidem, p. 25
33
Dilthey (1964) apud Jahnke, Hans-Richard, «O Conceito da Compreensão…», op. cit., p. 70

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particulares em relação a um certo significado. A elaboração dessa projeção, que é
constantemente revista conforme o que emerge ao se penetrar no significado, é a
compreensão do texto.34

Problemática recorrente que se instala sobre o método das ciências sociais à luz do círculo
hermenêutico, contudo, o percurso interpretativo não se constrói univocamente, importa
destacar:

Se as ciências sociais podem revelar algo que não está contido nas autointerpretações
dos agentes não é porque desvendam sentidos ocultos, mas porque o entendimento
que produzem envolve o encontro de dois horizontes distintos; é guiado por uma
interpelação e se processa no jogo de pergunta e resposta, reconhecimento e
descoberta.35

Recordando que a aprendizagem, a influência relacional, e filosófica merecem o devido


destaque no papel que desempenham, ou desempenharam, sublinhando-se que «a
hermenêutica constitui uma das tradições que, mais consistentemente, se dedicaram à
interrogação do sujeito e da sua constituição. As tradições interpretativas nas ciências
sociais são fortemente devedoras da tradição hermenêutica»36.

34
Gadamer (2003) apud Mantzavinos, Chrysostomos, «O círculo hermenêutico: que…», op. cit., p. 62
35
Alves, Paulo C.; Rabelo, Míriam C.; Souza, Iara M., «Hermenêutica-fenomenológica…», op. cit., p. 196
36
Tralhão, Regina, «O Sujeito no Pensamento Social: A Hermenêutica…», op. cit., p. 13

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4. Referências bibliográficas

• Alves, Leonardo M., O Círculo Hermenêutico para leituras críticas, Ensaios e


Notas, 2014, Disponível em: https://ensaiosenotas.com/2014/11/20/o-circulo-
hermeneutico-para-leituras-criticas/
• Alves, Paulo C.; Rabelo, Míriam C.; Souza, Iara M., «Hermenêutica-
fenomenológica e compreensão nas ciências sociais», Sociedade e Estado, 29(1),
2014, pp. 181-198
• Jahnke, Hans-Richard, O Conceito da Compreensão na Sociologia de Max Weber,
Universidade de Coimbra, Coimbra, 2013
• Mantzavinos, Chrysostomos, «O círculo hermenêutico: que problema é este?»,
Tempo Social, 26(2), 2014, pp.57-69
• Santos, Boaventura de Sousa, «Introdução a uma ciência pós-moderna», Graal,
Rio de Janeiro, 1989, pp. 51-77
• Silva, Maria Luísa P. F., Círculo Hermenêutico, E-Dicionário de Termos
Literários, 2009, Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/circulo-
hermeneutico/
• Silva, Rui S., «O Círculo Hermenêutico E A Distinção Entre Ciências Humanas
E Ciências Naturais», Ekstasis: revista de fenomenologia e hermenêutica, 1(2),
2013, pp. 54-72
• Tralhão, Regina, «O Sujeito no Pensamento Social: A Hermenêutica e as Ciências
Sociais e Humanas», Interações: Sociedade e As Novas Modernidades, 9(16),
2009, pp. 7-51

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