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Gilberto Stam
Ao contrário das cidades do passado, cujo centro havia necessariamente uma igreja, a
metrópole moderna deixou pouco espaço para a religiosidade, encarada como uma
atividade de âmbito privado e que não deveria ser contemplada pelo planejamento urbano.
Isso não significa, no entanto, que a religião tenha passado a desempenhar um papel menos
importante na configuração da metrópole moderna. Nos últimos quarenta anos, com o
crescimento e diversificação das igrejas evangélicas, mas principalmente a partir do
crescimento vertiginoso dos neopentecostais, uma intensa mobilização religiosa começou a
transformar as metrópoles brasileiras.
O crescimento dos evangélicos deu origem a dois modelos religiosos que dominam hoje a
cidade de São Paulo. O primeiro ocorre na periferia, onde as igrejas pentecostais adotaram
um caráter comunitário mais profundo do que o da igreja católica, promovendo uma
socialização que gera vínculos de amizade, família e trabalho. O segundo modelo, mais
recente, vem dos neo-pentecostais, de igrejas como a Universal e a Renascer em Cristo, e
ocupa locais de grande fluxo, aparecendo também na televisão, nas ruas e na política. Tal
movimento, atinge sua visibilidade máxima em eventos que levaram milhões de pessoas às
principais avenidas ou estádios das metrópoles brasileiras.
“Esses eventos, fundados no conceito da ‘fé em ação’, nada mais são do que o resultado de
uma ampla disputa religiosa pelo espaço da cidade. Dentro dessa disputa, diferentes igrejas
elaboram distintos discursos e estratégias de legitimação, auto-afirmação e visibilização”,
diz Edlaine Gomes, pesquisadora do CEM. O Dia da Semente, evento da Igreja
Internacional da Graça de Deus, é um exemplo dessa busca pela auto-afirmação. Em 2007,
o evento comemorou os 450 anos do primeiro culto protestante no Brasil, denotando uma
busca por legitimação e autenticidade, por meio da celebração das origens.
Embora apresentem peculiaridades no que diz respeito à tradição religiosa, São Paulo e Rio
de Janeiro compartilham muitas das transformações que ocorrem nesse campo. No Rio
também se observa uma maior penetração das igrejas pentecostais nos bairros mais pobres.
“Em bairros mais novos, ainda em crescimento, com menos estrutura estatal, mais
ocupados pelo narcotráfico, em que as festas religiosas e outras manifestações não contam
tanto com o apoio de políticos ou de outras pessoas influentes, a tendência é haver mais
pentecostais”, conta Clara Mafra, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (PPCIS) da UERJ.
No Rio de Janeiro, que tem uma forte tradição de religiões afro-brasileiras, um dos
resultados mais visíveis do crescimento dos pentecostais foi o esvaziamento dos terreiros.
“Hoje, as igrejas se posicionam em oposição umas com as outras. Era comum, há algumas
décadas, você encontrar quem fosse umbandista e se dissesse católico. Não havia
rivalidade”, diz Marcia Contins, também pesquisadora do PPCIS/UERJ. Em grande
medida, isso se devia ao posicionamento da Igreja Católica, que sempre incorporou grupos
com outras práticas religiosas. Até hoje, de acordo com pesquisas desenvolvidas por
Contins, não é raro encontrar pessoas de outras religiões em cultos da linha carismática
católica.
Dessa forma, em metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo, mas também em outras
grandes cidades brasileiras, a religiosidade não é um mero passageiro no movimento
constante de transformações da metrópole, mas um veículo importante dessa
transformação. Ao mesmo tempo em que a própria religiosidade se adapta ao mundo
contemporâneo - procurando novas práticas e estratégias de evangelização e buscando
legitimação e reconhecimento para suas instituições diante do olhar público - ela contribui
para modificar o espaço da cidade, seja com novos templos, que se tornam também locais
privilegiados de socialização no espaço fragmentado da cidade, seja arrastando milhões de
pessoas para as ruas nos grandes eventos. Reconfigura, assim, as relações humanas que
ocorrem dentro da cidade, ao propiciar novas formas de sociabilidade que, por sua vez,
podem ser instrumentos importantes de ajuda mútua e distribuição de recursos e
oportunidades. Ao contrário do antigo papel centralizador, o que vemos hoje é que as
religiões são marcadas pelo constante fluxo e pela disputa por adeptos, sendo que o espaço
urbano se constitui num elemento fundamental desse processo.