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A SOCIEDADE ANALISADA POR DR.

PLINIO
Arquivo Revista

Alegria de
fazer o bem
No mundo pagão existiam horrores
nefandos relativos ao trato entre as
pessoas. Quando Nosso Senhor entrou
na História, a alegria de ser bom e de
fazer o bem começou a brilhar entre os
homens. Contudo, atualmente há uma
certa melancolia no trato, e a alegria
pela felicidade alheia desapareceu. Se
formos fiéis a Nosso Senhor, o trato
verdadeiramente católico poderá ser
restaurado e aperfeiçoado.

O trato cavalheiresco me faz


lembrar dos meus tempos
de menino uma porção de
coisas, em que o problema do trato
e do modo pelo qual uns devem ver
remediável, de falta de atração, uma es-
pécie de saturação. E eu rompia.
De maneira que a minha vida de
menino, vista debaixo desse ponto de
vista, podia ser considerada uma es-
os outros começavam a aflorar dian- pécie de sucessão de amizades rom-
te de meu espírito. pidas de repente. Inconstância? Ca-
pricho? Fantasia? O que era? Eu só
Sucessão de amizades tive um amigo que me acompanhou
rompidas de repente pela adolescência adentro. Ele tinha
apenas um ano a menos do que eu, e
Eu tinha esta particularidade, co- certo dia, por outras razões, nós nos
mo todo mundo: estabelecia amizade separamos. Eu não queria segui-lo e
com algum menino, no primeiro perí- tomamos rumos diferentes na vida.
odo havia simpatia, interesse, agrado. Mas com esse mesmo menino, mui-
A amizade chegava a um determinado to chegado a mim pelo parentesco
ponto, e de repente me parecia perce- e que, portanto, era uma espécie de
ber o fundo da mentalidade dele. E me amigo com quem tropeçava a toda ho-
vinha sempre uma sensação de tédio ir- ra, eu tinha períodos de saciedade. Pa-

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recia-me que ele também passava por saiu o pé de milho: plantei uma plan- ficar contente.” Naquele tempo se
fases de saciedade em relação a mim, ta! Já era alguma coisa. viajava a cavalo. Foram juntos e a fa-
mas que nos aturávamos pela comodi- Um amigo dele do tempo de meni- zenda estava um primor, florescente.
dade do trato, e por um fundo de esti- no, que possuía negócios naquela zo- Então meu avô quis dar-lhe um
ma que às vezes o parentesco inspira. na, passou pela fazenda de meu avô, pagamento, mas o Lalau respondeu:
Isso acontecia com frequência. viu que estava mal organizada e foi – Nem me fale nisso, está proibido!
A sensação que me vinha, frustran- falar com ele. E eles se tratavam pe- Porque eu fiz isso por amizade a você.
te, era assim: cada pessoa que se co- lo apelido que tinham desde a época Eu olhava para os meus amigos e
nhece de longe dá uma impressão; da infância: o amigo, que se chamava me perguntava: Quem faz isso hoje?
mas quando se tem conhecimento de Estanislau, era tratado de Lalau, e o No meu tempo de infância, ou paga-
perto, às vezes a impressão até melho- meu avô, Antônio, de Totó. va-se muito bem – e ainda ia se exa-
ra; porém, quando se conhece inteira- O Lalau disse para o Totó: minar as contas para ver se não hou-
mente de perto, aparece qualquer coi- – Olhe, Totó, essa sua fazenda ve roubo –, ou saía um desastre. E fi-
sa que repele. E, naturalmente, nota- é uma vergonha! Você precisa me cava com esta interrogação na cabe-
va-se também da parte dos outros al- comprar mais tantos escravos e, du- ça: “O tempo dos amigos acabou?”
go assim: conheciam-me, mas em de- rante cinco anos, não pense na sua
terminado momento havia uma repul- fazenda, não apareça lá, não me per- Episódios do tempo da
sa. E se não acabava em ruptura, dava gunte nada. Apenas, a cada ano, vo- Revolução Francesa,
pelo menos num trato tenso, com bir- cê me dá um cheque de tanto para
ras, invejas, rivalidades, implicâncias, pagar despesas da fazenda. Daqui a da Idade Média...
entusiasmos bruscos acompanhados cinco anos, eu lhe dou uma fazenda Por exemplo, eu lia fatos do tem-
de saciedade. Faltava o alimento para inteiramente formada, com um cafe- po da Revolução Francesa. Manda-
a continuidade dessa amizade. zal produzindo, e você com uma con- vam aqueles nobres todos para a pri-
De outro lado, acho muito bonito ta aberta por mim, no banco, com o são. Chegava o empregado da justiça
ser amigo. Minha mãe contava fatos lucro da fazenda.
da história do pai dela, de conheci- Meu avô achou a ideia muito in-
dos que eram amigos uns dos outros, teressante, comprou os escravos, en-
mas amigos reais, até de espantar. E tregou-os ao Lalau e não se meteu
eu me perguntava: Será que a amiza- mais com a fazenda. Não conversa-
de desertou do mundo? Que na mi- vam sobre ela. Passados cinco anos,
nha geração não há mais amizade? o Lalau – que aliás era um barão do
Que nós somos incapazes de sermos Império – procurou pelo meu avô e
amigos uns dos outros? disse: “Olha, Totó, vamos agora ver
a sua fazenda. Está pronta, você vai
Amizade entre Lalau e Totó

Re ista
o Revista
Revi
Minha mãe narrava este fato ocor-

Arquivo
ivo
rido com meu avô. Ele herdou umas
Arqui
Arqu
Arq
terras no interior de São Paulo, que
era um sertão bravio. Naquele tempo
– bem mais de cem anos atrás –, Pi-
rassununga, Araraquara, São Carlos,
essas regiões que estão tão próximas
de nós, eram o sertão. Meu avô resol-
veu mandar organizar uma fazenda.
Entretanto era péssimo fazendeiro,
não tinha sido educado em fazenda,
mas em São Paulo, e não tinha a me-
nor ideia das coisas do campo. Isto eu
herdei dele. Lembro-me do meu en-
tusiasmo, em pequeno, porque uma Fazenda Santo Antônio das Palmeiras, pertencente outrora a
Dr. Antônio Ribeiro dos Santos (em destaque), avô de Dr. Plinio.
vez enfiei um grão de milho na terra e

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A SOCIEDADE ANALISADA POR DR. PLINIO
e ordenava reunir todos os prisioneiros – Eu me ofereço para que este não Afirmou o condenado:
e prisioneiras, e cada dia ele chamava seja preso, porque ele está doente. – Tenho um amigo e que serve de
dez ou quinze para serem guilhotina- – Não, eu não quero, declarava o refém. Se eu não estiver aqui na ho-
dos; os outros ficavam esperando até o beneficiado. ra da execução, ele consente em ser
dia seguinte. Alguns conseguiram atra- Os mouros preferiam o de mais morto em meu lugar.
vessar todo o tempo da Revolução e, categoria. Levavam-no embora e Havia, evidentemente, toda espé-
um belo dia, foram libertados. A espe- deixavam o outro. Quer dizer, coisas cie de perigos, com aquelas estradas
rança deles era conseguir a liberdade. espantosas! muito pouco seguras, bandidos e ou-
Havia dois de nomes muito pare- E pensava: Se eu soubesse que al- tras coisas assim. Podemos imaginar
cidos, não eram parentes, mas muito guém era capaz de ter por mim essa quantas possibilidades havia de que
amigos. O carrasco chama um, estro- dedicação, começava a achar a compa- o prisioneiro que foi visitar a família
piando um pouco o nome – porque nhia dele interessante, e encontraria antes de ser morto, na ida ou na vol-
era analfabeto e não sabia ler bem –, alegria em me dedicar também assim. ta fosse agarrado por ladrões, preso,
e pronunciou o nome do outro. Este Isso dá um certo sentido à vida. e seu amigo ia morrer. Só para per-
disse “presente” e foi para a guilhoti- Mas esse egoísmo mútuo, essa paz mitir àquele o último consolo de se
na. O primeiro não estava ali no mo- armada, isso não é vida! despedir dos seus, o amigo consentiu
mento. Quando chegou, perguntou: em correr esse risco.
– Quem foi chamado? ...e da antiga Grécia Praça pública, forca armada, o
– Foi você. amigo que tinha ficado como refém,
– Mas como eu? Estou aqui! Li até uma historieta do tempo da em pé. Estava chegando o momen-
– Fulano subiu em seu lugar e foi antiga Grécia. Todas as cidades gre- to – eles marcavam a hora pelo reló-
guilhotinado. Agora você está pratica- gas eram republiquetas independen- gio solar – da execução. Todos estão
mente indultado, porque quando cha- tes. Quando uma dessas cidades tinha olhando, o tirano também presente
marem a ele, você pode dizer que não ditador, este era chamado tirano, pala- numa tribuna, numa espécie de tro-
é ele, pois no registro oficial consta vo- vra que não possuía o sentido pejora- no, quando, de repente, entra cor-
cê como morto. Nunca mais vão cha- tivo que tem hoje. Então, o tirano de rendo na praça o condenado e diz:
má-lo. Você fica aqui na prisão. uma cidade tinha condenado à morte – Ah, que alívio! Ainda consegui
Lia também episódios do tempo da um sujeito, o qual era muito amigo de encontrá-lo vivo!
Idade Média, relativos a cavaleiros que um segundo. O sentenciado à morte Abraçaram-se muito cordialmen-
iam combater no Oriente. Por exem- pediu licença ao tirano para ir se des- te e ambos se dirigiram ao tirano, o
plo, um estava cercado por adversá- pedir da família. O tirano disse: qual, impressionado, declarou:
rios, ia ser preso; um outro de mais ca- – Isso é uma brincadeira! Você vai – Mas como é possível uma ami-
tegoria, que convinha mais aos inimi- se despedir da família e foge. Não zade assim? Eu pensava que não
gos prenderem, se apresentava e dizia: vou autorizar. existia. Vamos fazer uma coisa: eu
o perdoo e vocês me admitem como
Georg Heinrich Sieveking (CC3.0)

terceiro nessa amizade.


Eles responderam:
– Não, porque a amizade não se
compra nem se vende. Querendo,
mate um de nós, mas para ser um
terceiro nessa amizade elevada e de-
dicada o senhor precisa merecer.
Tudo isto é uma problemática
que saiu completamente das men-
tes. Não se ouvem contar casos des-
ses, não se comentam coisas assim. É
uma outra visão do mundo.
O que o tirano fez? Mandou matar
os dois? Ele revelou um traço, pelo
menos, de grandeza de alma ao dizer:
– Está bom, eu perdoo os dois;
vão ser amigos por aí.

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Considerem que, em geral, es- do ttão festivo, tão solene, tão boni-
ses tiranos eram bandidos, homens
ens to, que
q dava gosto em ver.
sem-vergonha que galgavam o po-o-
der por meio de crimes. Mas este C
Cortesia muito comum
teve um lampejo de honestidade e cinematográfica
nesse gesto.
Em nossa família nós cons-

ista
Revista
Duas senhoras

t
tituíamos uma roda de primos

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R
exemplarmente bonitas, e tínhamos muitas conversas

Arquivo
rquivo
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com muita animação, mas não

Arqu
muito finas e elegantes

A
era como as conversas de an-
Eu via pessoas antigas, da ge- tigamente. Nestas havia uma
ração de meus pais e, sobretudo, qualquer coisa que estava pre-
da dos meus avós, tratarem-se en- ssente e não se encontrava nas
tre si. E notava que o modo de see conversas de minha geração.
co
tratarem era muito diferente do de Mais de uma vez, quando vejo os
M
minha geração. Elas se tratavam com om ônibus cheios – isto é uma confidên-
ônib
respeito, mas com uma forma de res- Dona Gabriela cia paterna – eu me pergunto: co-
peito que na minha geração não havia.
via. mo será o ambiente lá dentro? Em
Minha avó tinha uma amiga, e comparação com os velhos ambien-
com
mantiveram a amizade até o fim da Eu as conheci já bem velhas. Essa tes que conheci, como se passam as
vida. A minha avó morreu com oi- senhora ia visitar minha avó todas as coisas ali?
tenta e quatro anos de idade. Essa semanas, num dia fixo. E para minha Eu via essa diferença e me per-
senhora viveu mais um pouquinho, avó esse era um dia sagrado: “Esta guntava: O que tinha desapareci-
talvez um ano ou dois. tarde é para Dona Fulana, que vem do? O que havia transformado de
Eram duas senhoras exemplar- aqui em casa. Não tem conversa!” tal maneira o convívio? Eu tive que
mente bonitas, das mais formosas Mais de uma vez eu me meti na analisar muito para saber responder.
que eu tenha visto. Não só bonitas sala para ver as duas se cumprimen- A primeira noção que me veio
por terem o rosto bem feito – como tarem. foi que na minha geração as pessoas
pode ser uma boneca de vidro –, mas Elas chegavam, se davam um bei- se tratavam com cortesia. Mas uma
eram muito finas, elegantes. jo de cada lado do rosto: cortesia muito comum e cinemato-
Elas tinham-se conhecido quan- – Como vai passando, bem? gráfica. Em comparação com a dos
do mocinhas. As casas delas, na São – Bem. E a senhora, como está? antigos tempos, como eram as ami-
Paulinho minúscula daquele tempo, – Bem. zades de outrora, as gentilezas, as
eram relativamente próximas. Não Sentavam-se e começava aquela formas, as polidezes, a coisa tinha
havia telefone, e uma moça só podia prosa que continuava a conversa de baixado muito. Pode-se dizer que a
sair à rua com alguém da família; so- nem sei quantos tempos atrás. autêntica cortesia estava morrendo
zinha nunca. E elas, então, muitas ve- Em geral, vinha uma filha de mi- para dar lugar simplesmente a um
zes tinham vontade de se encontrar, nha avó, ou outra pessoa da família, trato não incorreto, mas que não era
mas não podiam porque não havia que participava um pouco da con- mais com as doçuras de outrora.
alguém para acompanhá-las. Então, versa, mas deixava depois as duas a
numa hora marcada, elas se punham sós, porque se via que elas gostavam Doçura de viver
nas janelas das respectivas casas, com de conversar sobre coisas dos tem-
binóculo, e faziam sinais, comunica- pos delas e suas recordações. Era E uma ocasião, lendo um livro
vam coisas, etc., conversavam. mais carinhoso deixá-las a sós. francês escrito por um historiador ul-
Ambas, depois, foram fazendeiras Mas eu lamentava porque que- trainteressante, Lenôtre – Gosselin
no interior de São Paulo. E passa- ria ouvir a conversa delas, que era Lenôtre –, Gens de la Vieille France,
ram alguns anos sem se verem, por- o tempo inteiro tão entretida, falan- Gentes da França Antiga, eu encon-
que as fazendas eram muito distan- do numa voz um pouco mais baixa; trei uma frase de Talleyrand, um ban-
tes. Posteriormente, os maridos vol- elas diziam tanta coisa, que era mui- dido, mas homem inteligentíssimo,
taram para morar em São Paulo e to e não era nada. Quando acabava o qual ainda tinha conhecido Maria
elas recomeçaram a amizade. a conversa, se beijavam de um mo- Antonieta – não preciso dizer mais

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A SOCIEDADE ANALISADA POR DR. PLINIO
to devia. O francês – Madame, fico desolado, mas sou
MMA (CC3.0)

apresentou a con- Cartouche. Estou morto de fome e


ta. O chefe de fa- vim pedir à senhora para mandar vir
mília olhou... – já se alguma coisa para comer e beber. A
está vendo a briga senhora teria a extrema gentileza de
– e disse que pro- me atender?
testava, não podia Ela disse, trêmula, apavorada:
aceitar aquela con- – Pois não!
ta, porque era tão – Eu me escondo atrás de sua ca-
barata e o trato tão ma e a senhora toca a campainha pa-
excelente, que ele ra chamar o seu empregado ou a sua
não podia consentir empregada. E mande vir uma refeição
em pagar só aquilo. com tudo quanto a senhora tem guar-
É inacreditável! dado, porque eu quero comer bem.
Discussão vai, dis- – Ah, pois não…
cussão vem, o inglês O modo de chamar os emprega-
era mais obstinado e dos era o seguinte: entre um andar
o francês acabou di- e outro de um palácio havia sempre
zendo: um espaço vazio e por aí corriam os
– Está bom, quan- cordões. Para uma pessoa de luxo o
to o senhor quer pa- cordão era de seda; ela puxava o cor-
gar? dão, que ia tocar um sino no quarto
– Quero pagar do empregado.
tanto. Então, a duquesa toca o sino, vem a
Charles Maurice de Talleyrand-Périgord - Museu Era bem mais. O empregada e pergunta o que ela deseja.
Metropolitano de Arte, Nova Iorque, EUA francês aceitou, fe- – Quero tal coisa. Traga com uma
charam a conta e a mesinha.
nada – e que dizia o seguinte: “Quem carruagem seguiu. Durante a viagem, A empregada trouxe as coisas, e a
não viveu antes da Revolução France- na hora do almoço, os ingleses para- duquesa lhe diz:
sa não conheceu a doçura de viver.” ram, foram pegar os víveres que ti- – Agora pode ir dormir, não pre-
Eu pensava com os meus botões: nham na parte de trás do carro, numa ciso de mais ninguém.
“É isso mesmo! Essas cidades com fá- caixa, e perceberam que o hospedeiro O Cartouche saiu detrás do corti-
bricas, bondes, automóveis, buzinas, francês havia posto várias garrafas de nado, que se usava em torno das ca-
luz elétrica – a São Paulinho já tinha vinho excelente, que não estavam na mas naquele tempo, e começou a co-
tudo isso, em ponto pequeno –, o cor- conta, para retribuir e gentileza. mer. A certa altura, disse para ela:
re-corre, os trens e tudo o mais; só não Isso, num hotel de hoje, seria in- – Olhe, a comida de sua casa é
havia os aviões: é impossível nesta at- teiramente impossível. Pois bem, era muito gostosa. Agora eu vou provar
mosfera a douceur de vivre antiga.” um fato que fazia parte da cortesia o vinho.
Fui ver um livro do Lenôtre que de antigamente. Abriu uma garrafa de vinho, be-
trata disso. Lembro-me do caso de beu; depois outra garrafa. Eram vi-
uma família que no trajeto entre Pa- Cartouche “assalta” nhos de qualidades diferentes. En-
ris e Londres, em território francês, uma duquesa tão, ele afirmou:
possuía uma hospedaria. Viajava-se – Positivamente, eu tenho bebido
de carro a cavalo naquele tempo, e Havia na França, no Ancien Régi- vinho muito melhor do que estes…
o trajeto durava muitos dias. Então, me1, um famoso bandido chamado Quando terminou, acrescentou:
os viajantes dormiam em hospeda- Cartouche. Certa ocasião, uma du- – Senhora Duquesa, perdão de
rias ao longo do caminho. Nessa hos- quesa já estava preparada para dor- lhe ter incomodado; pelo mesmo
pedaria, uma família inglesa se hos- mir quando vê de repente um ho- caminho pelo qual entrei, vou sair.
pedou e foram muito bem tratados, mem que salta para dentro do quar- Mas a senhora me permitirá uma li-
ficando muito contentes com a hos- to, pela janela; faz a ela um cumpri- berdade: vou mandar-lhe vinho me-
pedagem. Na hora de irem embora, mento, e o diálogo que se travou en- lhor do que a senhora bebe, o qual
o chefe da família perguntou quan- tre eles é mais ou menos o seguinte: eu tirei – não disse que roubou – da

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casa de tal magistrado. Se a senhora mos de um modo igual, porque éra- não era assim. Havia coisas no sen-
permitir, vou mandar vinho da casa mos obrigados. Mas eu percebia que tido oposto, que nos causam constri-
dele para a senhora. ele tinha uma certa alegria em nos ver ção. Por exemplo: um homem manda
Naquela situação, ela concorda- contentes. E que, entre possuir algu- chamar um escravo e diz: “Eu que-
va com tudo. O Cartouche devia es- mas notas de dinheiro a mais na car- ro matar alguém e preciso ver se es-
tar vendo, pela fisionomia dela, que teira ou ter causado aquela alegria, se veneno é eficaz. Você vai tomar
a duquesa estava apavorada. pelo reflexo desta sobre ele, meu tio e vou verificar os efeitos.” O escra-
Quando o Cartouche foi embora, auferia um prazer que ele pagava. vo sabia que se resistisse era castiga-
ela chamou a empregada e mandou- Às vezes eu percebia pessoas mais do. Então tomava o veneno e morria
-a fechar tudo, etc., e não sei se ela velhas do que eu fazerem pequenas com contorções diante do dono de-
conseguiu dormir. gentilezas. Por exemplo, lembro-me le, o qual às vezes ficava tratando de
Raiou o dia, começa a vida, a ca- que um senhor foi visitar nossa ca- negócios, etc., olhava um pouco para
sa na sua normalidade; a certa hora sa. Entrou com duas flores de cactos ver se correspondia à morte que ele
vem um empregado dizer: lindíssimas e disse: “Eu encontrei is- queria causar ao inimigo.
– Senhora Duquesa, está aqui to numa florista por onde passei. Banquetes em Roma, no tempo da
uma caixa de vinhos que mandaram São bonitas e talvez a senhora gos- decadência do Império Romano. As
entregar-vos. te.” E entregou-as para a dona da mesas eram em forma de “U” e os ro-
Ela foi ver, era a caixa de vinhos casa, a qual ficou muito contente e manos faziam os banquetes deitados;
que o Cartouche tinha enviado, com mandou que fossem colocadas num apoiavam-se sobre uma mão e co-
um bilhete: “Desculpe-me o susto vasinho perto dela. Notei que esse miam com a outra. E não existiam ta-
que lhe dei ontem à noite!” senhor, que era cunhado dela, esta- lheres como hoje, mas apenas faca. As
Se vamos comparar com nossos va contente de ver que esta senho- pessoas comiam com a mão. Nos ban-
dias, a comparação é até imbecil. ra ia passar o resto da tarde olhan- quetes daqueles ricaços de Roma, eles
do para aquelas flores. Independen- se empanturravam de alimentos, se
Drágeas deliciosas, flores temente de qualquer coi-
de cacto lindíssimas sa, dava a ele alegria ver a

(CC3..0)
o (CC3 0)
alegria de outrem.
Entretanto, põe-se um problema: Devo dizer que es-

t llazo
azo
stelaz
astel
Caste
Como essa gente sentia a vida? Como se sentimento estava qua-

T mas Ca
C
conseguiam agir assim? Como era o se desaparecido na minha

Toma
modo de ser deles? E por que isso geração. E percebi, olhan-
acabou? Um menino, que observava do para o passado, que ele
do lado de cá as coisas, era natural- fora cada vez maior nas ge-
mente levado a fazer essas perguntas. rações anteriores, quanto
Introduzido o problema, vou dar mais se recuava no tempo.
as reflexões como as fui fazendo, Era um sentimento que cor-
gradualmente. respondia a um hábito so-
Na casa de minha avó havia um cial que consistia na alegria
jardim grande. Às quintas-feiras, to- de causar alegria, a satisfa-
da a criançada ia lá, corria, brinca- ção de causar satisfação. E (CC3.0)
azo (CC3 0)
va, etc. Um tio meu chegava quan- a douceur de vivre estava im-
do a animação atingia o auge. Na- plantada, estabelecida.
stela
Castel
Caste azo
llazo

quele tempo, não se toleravam cer-


Horrores da
Tomas C

tas infrações à educação. Então pa-


Toma

rava a brincadeira e todas as crianças Roma pagã


iam beijar a mão desse tio e pergun-
tar como estava. Essa ideia me levou a
Ele tinha um prazer especial em perguntar: Mas na época
trazer, de vez em quando, uns paco- pagã era assim ou não? Vi,
tes de drágeas estrangeiras, com ge- então, que, com uma ou
leia de frutas dentro, deliciosas. Se outra raríssima exceção,
ele não as trouxesse, nós o trataría- no tempo do paganismo Flores de cacto

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A SOCIEDADE ANALISADA POR DR. PLINIO
embriagavam com vinhos, etc.. De vez quid
quidarem, pouco importa, contanto
em quando, comiam tanto que sen- en- que eu tenha o meu próprio bem.
tiam não caber mais alimento no estô-tô- Como
C pode ser agradável a con-
mago. Então mandavam vir escravos vos versa entre duas pessoas se cada
ver
especialistas em provocar vômitos. s. uma
um sabe que a outra tem essas
Com penas de certas aves, faziam ideias
i a respeito de si mesma?
cócega na garganta e eles rejeita- É impossível não perceber
vam na própria sala do banquete. uma certa melancolia no trato
Depois vinham escravos ou es- de hoje. Há excitação nervosa.
((CC3.0)
idt (CC3 .0)
cravas com o cabelo abundante, Mas essa alegria pela felicidade
G.F.Schmidt
Schmidt

armado, trazendo bacias perfu- do outro desapareceu. Como se


G.F.Schm

madas. Eles lavavam as mãos, a explica que isto houve e como


G.F.

boca, etc. e enxugavam no cabelo tenha deixado de existir?


do escravo ou da escrava. E reco-
meçavam o banquete. Com Nosso Senhor,
Mas aquele que os via lançarem a alegria começou a
fora a comedoria toda era, muitass
vezes, uma pessoa que mal tinha po- se irradiar na Terra
dido comer. Porque os escravos eram am Houve Alguém que entrou na
H
tratados como podemos imaginar. ar. Marquesa de His
História. Quando isso ocorreu, o
Sévigné
Quer dizer, os romanos não tinham am mun
mundo inteiro era uma noite igual a
o mínimo gosto da felicidade do ou- essa que acabo de descrever. Ele bri-
tro, o mínimo senso da reciprocida- É ou não a mesma mentalidade? lhou na História e a alegria de ser
de, a mínima alegria de terem sido Então, nota-se que está estabe- bom e de fazer o bem começou a re-
afáveis dando algo. Só buscavam a lecido um outro clima moral total- luzir entre os homens.
própria vantagem. Resultado, nume- mente diverso, em que essa recipro- A alegria de respeitar e até de ve-
rosos suicídios, que às vezes aconte- cidade, o desejo de fazer o bem pelo nerar, a alegria de se dedicar, a ale-
ciam durante o banquete. Matavam- bem que o outro sente desaparece. gria de se sacrificar, a alegria de ter
-se mandando abrir as veias dos pul- E outra coisa que some é o respei- causado o bem e saber que o outro
sos, e ficavam com as mãos dentro de to: a alegria porque o outro é mais ficou alegre, sem que o outro saiba
uma bacia com água perfumada, con- do que nós, de lhe fazer reverência, que fomos nós que lhe causamos o
versando, até cair morto. Era um epi- de honrá-lo. bem, mas pelo bem que foi feito. Es-
sódio do banquete. Mandavam levar Há pouco, aqui falaram da ta alegria começou a se irradiar na
embora o cadáver do indivíduo que, Bonbonnière Marquesa de Sévigné, Terra por Alguém designado por
diziam, foi viajar para outro lugar... que é uma casa de bombons em Pa- quatro palavras: duas indicam o títu-
ris. Mas essa marquesa foi uma per- lo, e duas o nome: Título: Nosso Se-
Marquesa de Sévigné sonagem histórica célebre. Ela viveu nhor. Nome: Jesus Cristo.
no tempo de Luís XIV, escreveu car- São Pedro emprega uma fórmu-
A solidariedade que vincula uma tas famosas, ninguém redigia missi- la que eu li e ficou como uma fulgura-
criatura à outra, pela qual o que cau- vas tão bem como ela. ção, a qual nunca se apagou em meu
sa dor em uma dói na outra, o que Por exemplo, numa carta para uma espírito. Para descrever a vida de Nos-
alegra uma alegra a outra, esse sen- amiga – digamos que fosse uma baro- so Senhor, ele disse esta síntese lati-
so de reciprocidade desapareceu nesa – ela escreveria: “Queira crer, pre- na: “pertransivit benefaciendo” (At 10,
completamente em nossos dias. zada amiga, Senhora Baronesa, os sen- 38), passou pela vida fazendo o bem.
Nas estradas, quando ocorre um timentos de indefectível amizade com O tempo inteiro, desde o começo até
desastre, às vezes pedem aos moto- os quais eu tenho a honra de me subs- o fim, fazendo o bem, fazendo o bem,
ristas que parem para colocar den- crever: sua amiga e servidora, Fulana.” fazendo o bem, sem olhar para nada, a
tro de seus carros um ferido. Eu co- A alegria de honrar os outros desa- não ser para a alegria de fazer o bem.
nheço o caso de alguém que deu esta pareceu também. Qualquer alegria de E com o transbordamento, a abun-
resposta: “O meu automóvel é novo fazer o bem sumiu. Fazer o bem pas- dância que conhecemos e chegou a es-
e o sangue dele vai sujar. Não que- sou a ser desagradável. E, pelo contrá- te auge: no Horto das Oliveiras, quan-
ro.” E toca para a frente. rio, ver os outros deperecerem, se li- do foi preso, Ele deu ordem aos car-

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rascos: “A estes deixai-os ir em paz” sabia que Nosso Senhor Jesus Cris- Não esperem retribuição. Quem
(Jo 18, 8). Eram os discípulos que fu- to, no Céu, fica alegre. Porque Ele faz bem aos outros por causa da re-
giam! Eles não podiam ter fugido, mas amava aquela filha leprosa, aquele tribuição procura fazer um negócio.
fugiram. Porém, o perdão era tal que monte de pus, um foco de fedentina, Esperem ingratidão, desprezo, mau
Ele teve só essa expressão: “A estes e Ele tem pena e quer que uma ou- trato, mas digam: “Eu fiz porque ele
deixai-os ir em paz.” tra filha, a quem Ele deu saúde, vá ficou um pouco satisfeito. Nosso Se-
Mais ainda: São Pedro cortou a lá alegrar aquela. E quando Ele viu nhor e Nossa Senhora foram glorifi-
orelha de Malco. Jesus Se curvou, a filha miserável sorrir, alegre, com cados nele, porque teve um instante
pegou a orelha do chão e a colou seus lábios descarnados, Ele fica de alegria boa. Isto um dia fará bem
em Malco, o qual estava prenden- alegre. Santa Catarina pensava: No para a alma dele. Vou fazer mais!”
do a Ele, para que sofresse o pro- Céu, Ele está alegre da alegria que Quando derem acordo de si, o aro-
cesso mais injusto que se possa ima- aquela pobre filha está tendo. ma do convívio estará embalsama-
ginar. E depois, matá-Lo da morte Nasce a alegria de respeitar. E uma do, perfumado e agradável. É Cristo
mais cruel e mais injusta que se pos- outra mulher que era neurastênica, de Nosso Senhor que está presente. Y
sa conjeturar. Apesar disso, Ele re- um temperamento insuportável, uma
põe a orelha de Malco. bruxa, a Santa tratava de “minha mãe”. (Extraído de conferência de
Nosso Senhor ensinou e reve- Tudo isto junto faz com que nas- 10/6/1985)
lou aquilo de que Ele mesmo dava ça, então, nos homens esta alegria
o exemplo: Ele era o Verbo de Deus bem ordenada de sentir a alegria dos 1) Sistema social e político aristocrático
encarnado nas entranhas puríssimas outros, a alegria de dar, de sacrifi- em vigor na França entre os séculos
de Nossa Senhora, por obra do Divi- car-se, de imolar-se,
lar-se, sa-
ar-se, de causar sa XVI e XVIII.
no Espírito Santo. Ele ensinava de Si tisfação nos outros,
utros, de distender as
mesmo que Deus é a bondade, a ma- garras do egoísmo,
m do amor-próprio,
mo,
jestade infinita, o esplendor sem fim, do orgulho por meio
m de um gesto, de
a perfeição insondável, a onipotên- uma palavra amável.
máável.
cia, mas também a misericórdia, a Uma palavraa amável, às vezes,
compaixão, o perdão várias vezes re- transforma alguém.
uéém. Sobretudo quan-
petido com afeto, a solicitude, e tu- do não estamos comc vontade de dizê-
do mais, até morrer na Cruz por nós. -la, mas dizemososs para servir a Nossa
Senhora.
Fazendo o bem a um outro,
alegramos a Jesus Cristo Sacrificar-se pelos
p outros,
sem esperar retribuição
r
E por seu ensinamento, fazendo-
-nos ver que todos temos este Pai co- Aqui está, longamente expos-
mum, existe este Deus que nos ama ta, a história daa doçura na humani-
assim, e Nosso Senhor Jesus Cristo dade: como elaa nasceu e existiu en-
nos amou e nos ama assim, que Ele tre os homens. OsO pagãos, no tempo
fundou uma Igreja a qual é a súmula om
do Império Romano,mano, olhavam para
de todas as perfeições e de todas as os católicos e di
diziam
iziam entre si: “Veja
maravilhas, mesmo dentro das triste- como eles se querem
ueerem bem.” É o bom
zas do século XX; quanto mais a co- aroma, a luz dee Nosso Senhor Jesus
Arquivo Revista

nhecemos, tanto mais a admiramos. Cristo que ilumina


min na e modifica tudo.
Isto deu aos homens a noção de Dou-lhes um m conselho: querem
que todos são um só n’Ele, que parti- ter alegria verdadeira
adeira na alma? Que-
cipam dos sentimentos e das disposi- rem ter a luz dee Nosso Senhor Je-
ções d’Ele, e que, fazendo o bem ao tee dos olhos? Querem
sus Cristo diante
outro, nós alegramos a Ele. sentir na respiração
a
ação de suas almas o
Santa Catarina de Siena, certa aroma de Nosso so
o Senhor Jesus Cris-
vez, precisou tratar de uma lepro- m-se e tenham a ale-
to? Sacrifiquem-se
sa. Ela teve alegria de causar alegria gria de ver que os o outros estão con-
a essa leprosa; mais do que isso, ela tentes com o sacrifício.
crifício.

Cristo Flagelado - Basílica


Mauriziana, Turim, Itália
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