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Quando

ainda
era
verão
Copyright © Editora Patuá, 2021.
Quando ainda era verão © Gabriel Biasetto, 2021.

Editor
Eduardo Lacerda

Assistentes editoriais
Amanda Vital
Ricardo Escudeiro

Capa, projeto gráfico e diagramação


Alessandro Romio | Instagram: @romioland

Administrativo e comercial
Pricila Gunutzmann

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Fabio Osmar de Oliveira Maciel – CRB-7 6284

B000q Biasetto, Gabriel

Quando ainda era verão / Gabriel Biasetto.


– 1. ed. — São Paulo: Editora Patuá, 2021.
208 p. ; 21 cm.
Capa de Alessandro Romio.

ISBN

1. Romance brasileiro. I. Título.

322-129-21 CDD : 869.93

Índice para catálogo sistemático:


1. Romances: Literatura brasileira 869.93

Todos os direitos desta edição reservados à:

Editora Patuá – Livraria Patuscada


Rua Luís Murat, 40
Vila Madalena – São Paulo – SP
(11) 96548-0190
editorapatua@gmail.com
www.editorapatua.com.br
Quando ainda era verão

Gabriel Biasetto
Às vezes as coisas boiavam. Coisas daquele outro tempo,
de um tempo antes. A vida ainda pouca. A mediocridade
dos dias inócuos, a indiferença de meu corpo em contato
com a cama de meu pequeno quarto de cidade interiorana.
Eu chorava em silêncio e era um choro de dentro – só de
dentro, dentro, cá dentro. Não se podia expor toda essa coisa
que eu sentia falhar-me todo o corpo: dentro de mim, os edi-
fícios iam caindo, emparedando-se e, tal qual o dominó – ou
o que se chama o seu efeito – iam destruindo uns aos outros.
Todas as construções que eu nunca soubera solidificar.
Então, como dizia: as coisas boiavam. Voltavam a me as-
sombrar, vez ou outra, como lembrete para que eu não me
aventurasse tanto assim. Era para eu não correr perigos, para
eu me lembrar de voltar para de baixo da saia de minha mãe.
Não.
Eu não podia viver como os que se aventuravam mundo
afora – meu mundo afora não existia. Sempre para dentro,
dentro, dentro... sempre caminhando lentamente, pisava em
todos os ovos: qualquer coisa que me assustasse era para que
eu percorresse o caminho de volta para a casa. De volta para
o colo de minha mãe. De volta para a triste atmosfera de
uma realidade cinza-chumbo, esquelética.
O que boiava era, assim, sem mais nem menos: a foto-
grafia. O que boiava era todo o tempo: antes. Um tempo cá
estranho, devo dizer. O que boiava era o café que tomáva-
mos, a família inteira ao redor da mesa de madeira. Os avós
– os avozinhos, tão bonitinhos, não Raphaelzinho? Isso, vai
dar um beijo na vozinha, pede benção ao vozinho.
O que boiava era aquela época. O que boiava era o meu
medo, já naquela época, da época futura acabar. O medo
da época futura nunca vir. O medo da mediocridade e da
impotência e da mentira que contei a mim mesmo – medo
disso tudo ter sido – ser – eterno. Boiava também o eu gos-
tar do que gostava. E os meus sonhos, todos amontoados e
todos cacos que, juntando, assim, aos pedaços, todo dia. O
que boiava era eu, que flutuava entre as partículas de água.
A piscina era a minha vida.
São Paulo, 1976

I Corpo de luz������������������������������ 17
II Horas nuas��������������������������������� 77
III Tempo de silêncio������������������� 129
IV Quando ainda era verão��������� 185

São Paulo, 1990

Epílogo��������������������������������������������� 205
Para Marlene,
Vó minha.
Acordava. E então? Então era preciso prosseguir
vivendo e de um certo modo recomeçar tudo. De-
pois, as coisas chegavam a melhorar tanto que eu
protelava ao máximo o instante de ir dormir.

Lygia Fagundes Telles, Verão no Aquário


São Paulo, 1976
I
Corpo de luz

From the moment I first saw you


All the darkness turned to light

Madonna, Masterpiece
1.

Na noite em que conheci Nathanael, vislumbrei uma


espécie de encontro onírico comigo mesmo – um encon-
tro que, há anos, eu parecia aguardar – como quem semeia
algo, inconscientemente e, mesmo não estando presente de
corpo e alma em meio ao processo de semeação, colhe to-
dos os frutos com uma emoção desconjuntada. Foi como se
eu esperasse por aquele momento durante grande parte da
minha vida; como se eu, de alguma forma, ansiasse profun-
damente por aquele encontro, ainda que não soubesse disso.
Era algo assim, quase uma saudade profunda que eu
sentia de Nathanael, saudade que eu mataria naquela noi-
te, sob o imenso ipê roxo de um dos quarteirões da univer-
sidade – naquele lugar silencioso, o único lugar silencioso
num raio de metros da festa barulhenta regada a jatos de
lança perfume.
E eu nem mesmo era muito chegado às festas da uni-
versidade; eu não gostava muito do aglomerado de pes-
soas, todas com intenções bastante relativas quanto ao que

Quando ainda era verão 19


se pode entender por diversão. Alguns, já tão drogados e
bêbados – o cheiro de maconha misturado ao suor dos jo-
vens universitários, os arrotos de cerveja quente, o som das
tampas de garrafas de vodcas e a onomatopeia do derra-
mamento de seu conteúdo para dentro dos copos de plásti-
co – que eu chegava a sentir um certo asco daquele cenário
lamentavelmente real do qual eu passara a fazer parte.
Se passara de garoto quieto e entediado, com vida de
interior, para rapaz intelectual do curso de Letras de uma
das maiores universidades da cidade de São Paulo, é por-
que a esmagadora quantidade de situações indesejadas que
vinham me acompanhando, nos últimos anos, me faziam
querer desejar profundamente uma mudança – física e
psíquica – do estado sólido para líquido. Como uma tar-
taruga que, após passar o dia banhada pelo sol, descan-
sando na areia quente da praia de Copacabana, decide es-
tar exausta dos elementos taurinos que a terra e a areia
impuseram por sobre si e, caminhando lentamente – mas
não tão lentamente assim – se deixa desaguar pelo oceano,
afundando, afundando... tornando-se, então, um ser aben-
çoado pela abstração do signo de peixes.
Como nunca fui do tipo que realiza ações pela metade
– e nem mesmo estados: se estou triste, fico inteiramente
triste; se estou feliz, posso dançar sob a chuva mais gelada –
resolvi participar, também, de tudo aquilo que dizia respei-

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to à Universidade: as assembleias, os grupos de resistência,
as companhias de teatro... para não fazer feio, então, fiz-me
fingidor da diversão questionável das festas universitárias.
Não é como se eu bebesse tanto, ou fumasse tanto, ou
aspirasse tanto lança perfume assim – nesse ponto, eu con-
seguia agir pela metade. Fazia de tudo um pouco, experi-
mentava de tudo um pouco. Havia – ainda há – um medo
imenso dentro de mim: de que um dia, assim, sem mais
nem menos, eu fumaria um baseado e desenvolveria uma
espécie de esquizofrenia – ficaria paranoico para o resto da
vida; um dia, talvez, estando tranquilo e sereno, dançando
ao som de alguma canção, eu aspiraria um pouco de lança
perfume da manga de meu casaco e entraria numa espécie
de reflexão quase-estado-alfa que me faria chegar a algu-
ma conclusão assustadora – irremediável – a meu respeito
ou a respeito de meus colegas de apartamento.
Tudo isso passava pela minha cabeça naquela noite –
desde a tomada do ônibus até a chegada à universidade.
Tudo fazia parte de mim, do meu corpo, dos meus cheiros,
dos fluidos. Às vezes ocorria de eu tomar consciência –
consciência física e presente – de tudo que me acometia
por dentro e pelos arredores. Consciência de minha bunda
com relação ao banco do ônibus; consciência dos meus pés
pisando o chão – consciência do café descendo, quente,
pela minha garganta. Consciência dos sons – as músicas

Quando ainda era verão 21


como que fragmentadas, divididas visual e auditivamente
– eu conseguia ouvir cada um dos instrumentos tocados
de forma separada.
Tal consciência se apoderava de mim nos momentos
limítrofes de minha existência: a calma e o caos total; a luz
e a escuridão; o sol quente e a chuva, que no verão paulista
caía com força e brutalidade.
Por isso, naquela noite, quando me dei conta da exis-
tência de Nathanael, passei a, instintivamente, desenvolver
tal consciência quanto a uma certa brevidade de todas as
coisas que já existiam no mundo – e Nathanael, persistente
na ideia de que devíamos fazer tudo que fizemos, parecia
estar, de alguma forma, conectado a tudo isso que tomava
conta de meu ser físico e espiritual.
Não que o espírito seja algo necessariamente real – eu
mesmo nunca o levei muito a sério; não sei se acredito em
Deus – se ele existe, deve entender a minha dúvida, a mi-
nha maneira assim torta de enxergar as coisas. Houve um
tempo em que eu pensava que a morte era essa coisa hor-
rível de estar preso dentro de um caixão sem poder dizer
aos outros que ainda havia potencial ali – como num filme
de horror, como se estivéssemos, para quem olha, mortos,
adormecidos – mas nós estamos conscientes; ouvimos as
pessoas e as suas lamentações quanto a nossa passagem;
ouvimos o choro dos amigos e parentes e não podemos

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comunicar que estamos ali.
Depois, descartando tal ideia absurda, passei a acre-
ditar que morríamos para, de fato, termos ali encerrada a
possibilidade da consciência – quase me tornei ateu con-
victo, descrente de Deus, céu ou qualquer outra coisa.
Mas, com o tempo, vai se aquietando essa sensação bi-
zarríssima de não encontrar razão alguma para acreditar
em qualquer ideia – mesmo na impossibilidade da ideia. E
isso tudo vai fermentando até virar um bolo pronto dentro
de nós; um bolo que não podemos comer; não sabemos
o gosto, não fazemos ideia da receita, mas simplesmente
está lá. E então já não questionamos tanto, nem mesmo
sofremos com a dúvida – simplesmente esperamos como
quem espera por uma encomenda. Esperamos como quem
aguarda, ansiosamente ou não, pela campainha.
Eu ia dizendo que Nathanael estava ligado a mim na-
quela noite – Nathanael estava inteiramente dentro de mim.
É que a festa, há muito, já havia me tirado a possibili-
dade do conforto e da paz. Vez ou outra eu bebericava um
vinho do copo de alguém ou tragava um baseado; às vezes
me ocorria tomar alguma pílula ou coisa assim, mas o meu
medo de jovem principiante do interior me fazia brecar o
desejo tal qual o veículo que, quase-tarde-demais, dá-se
conta do pedestre sobre as faixas brancas.
Caminhei, então – caminhei sozinho por longas qua-

Quando ainda era verão 23


dras. Ainda se ouvia a batida frenética das músicas que
quase explodiam as pequenas caixas de som emprestadas
pela secretaria da universidade. Foi só quando cheguei no
quinto quarteirão, aquele do qual já se podia avistar o ipê
roxo, que consegui sentir a possibilidade do silêncio.
O silêncio vindo me buscar.
Acendi um cigarro. Tubo amassado já antigo no bolso
de trás dos meus jeans – o gosto velho logo me nauseou e
desisti. Joguei o Marlboro longe, deixando rolar e rolar, até
que mergulhou num bueiro escuro. Foi então que o vi.
Nathanael.
Era um garoto assim como eu – devia, também, ter
vinte e três anos. A verdade é que nunca soube a sua idade,
pois não me foi objeto de curiosidade naquele momento.
Vinha assim, calmo, fumando. Usava coturnos negros
nos pés; uma espécie de drácula sadomaso adolescente,
um homem já feito tendo, ainda, vinte e poucos. Os ca-
belos, também negros, que lhe caíam feito lençóis recém
lavados pela testa lisa – um imenso casaco de botões todos
abotoados lhe cobriam o corpo.
Logo ao avistá-lo, parei a minha caminhada – não por
temor, mas pelo quase susto que tomei naqueles breves
segundos, pensando ter visto algo assim como uma mi-
ragem. O garoto vinha, então, ao meu encontro, como se
tivéssemos combinado nos encontrar, ali, perto do imenso

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relógio, próximo ao ipê roxo que cobria a grande extensão
da rotatória central da universidade.
Só naquele momento me ocorreu a ideia da possibili-
dade do perigo – onde eu estava com a cabeça, afinal? Me
distanciando tanto assim das pessoas, indo em frente por
entre a velocidade da noite, acompanhado pelo som abis-
sal dos grilos, as ruas de asfalto úmidas da pouca chuva
que caíra naquela tarde. Por que diabos eu havia andado
tanto e tão sozinho?
– Estava na festa? – Perguntou-me o ser misterioso.
Logo que pronunciou tais palavras, meu peito sentiu
uma espécie de certeza quanto à necessidade daquela co-
municação. Por alguns segundos, pensei estar drogado.
Pensei tratar-se, de fato, da miragem provocada pela erva
que fumei.
– Vai voltar para lá? – Perguntou-me outra vez, agora
parecendo impaciente e desconfiado.
– Oi.
– Estava na festa? Lá ao fundo? De que curso você é?
– Letras. – Respondi, agora tranquilo. De fato, não pa-
recia alguém que me faria mal. Talvez ele pensasse o mes-
mo de mim.
– Eu faço História.
– Engraçado... nossos cursos ficam no mesmo campus
e nunca te vi por aqui. – Eu disse aquelas palavras ainda

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me sentindo um pouco drogado, chapado pela erva e pela
situação.
– Também nunca te vi por aqui. Sou Nathanael.
– Raphael.
– Você está aqui há muito tempo?
– É o meu primeiro ano.
– Certo... não quis ficar na festa?
– Não. Estou cansado do barulho.
Ele então concordou com a cabeça e, enquanto ia, aos
poucos, se aproximando de mim, eu sentia uma espécie de
ímã invisível a nos colocar cada vez mais próximos, como
se eu também, sem perceber, caminhasse cada vez mais
certeiro em sua direção.
– Você é daqui?
– Sou do interior. E você?
– Do interior...
– Ambos caipiras na cidade grande. – Soltei uma pe-
quena risada, com medo de que o meu comentário inofen-
sivo pudesse ofendê-lo.
– Estou chegando agora, mas foi me dando um desâ-
nimo ao cruzar os portões. Acho que não vou ficar para a
festa.
– Está chata. – Comentei, ainda inofensivo. Observei,
então, o cigarro que ele tragava com tanta vontade e deter-
minação.

26 Gabriel Biasetto
Como que lendo a minha mente, Nathanael tirou o
maço vermelho do bolso e me ofereceu. Peguei um cigarro
e agradeci com um movimento de cabeça.
– Você fuma desses? – Ele me perguntou educada-
mente.
– Prefiro os mais fracos, mas está tudo bem.
Coloquei o cigarro entre os lábios e Nathanael sacou o
isqueiro do bolso lateral de seu casaco. Acendeu para mim.
– Obrigado. – Eu disse, soltando uma longa fumaça
de alívio.
– Não quer se sentar um pouco na grama?
Concordei com um novo movimento de cabeça.
Sentamo-nos na grama úmida – as flores roxas do ipê
caíam, aos poucos – logo o outono viria, por isso as ár-
vores todas começavam o seu processo de se despir para
expor a nudez cadavérica de seus galhos.
Alguns segundos após um silêncio quase entrecortado
por várias tentativas – minhas e dele – de tentar soltar al-
guma palavra, resolvi perfurar o som dos grilos:
– Você mora aqui perto? – Perguntei.
– No centro... na parte antiga da cidade.
– Adoro aquele lugar. Você mora em prédio?
– Sim. E você?
– Divido um apartamento na rua Martins Fontes com
dois colegas de curso.

Quando ainda era verão 27


– Todos homens? – A sua pergunta vinha, assim, com
uma certa malícia. Ainda que uma malícia encoberta
da mais sincera curiosidade, sem que aquilo parecesse
mal-intencionado.
– Sim. Ambos héteros.
– Diferente de você, eu diria... – E então a sua investi-
da estava clara.
– Diferente de nós dois, eu diria.
– Bem... eu gosto das garotas. E gosto de garotos.
– Alguma preferência? – Perguntei, como que ofendido.
E então, como já não bastasse toda a bizarrice daque-
la cena criada pela noite gelada, pelo distanciamento dos
sons e da pirotecnia da festa que acontecia a algumas qua-
dras dali, Nathanael beijou-me os lábios. Beijou-me com
a força de um querer extasiado, como se eu fosse o aman-
te perdido na guerra, aquele que há muito partira e agora
voltava para os seus braços.
Minha insistência em descrever a intensidade do beijo
dá-se pelo fato de que eu, até aquele momento, não era mui-
to chegado a beijos de língua. Gostava muito de fazer amor,
vez ou outra arrumava algum companheiro para longas
transas. Mas, os beijos... os beijos nunca me convenceram;
os beijos sempre me pareceram uma espécie de virulência
fermentada pelo cinema, uma coisa assim meio estranha
que, ao passar dos tempos, foi se transformando em coisa

28 Gabriel Biasetto
normal. Os beijos não eram bons. Eram desconfortáveis,
desajustados, acabavam com minha autoestima. Tal cren-
ça já tão cimentada em minha mente pouco desenvolvida
acabara por se quebrar ali – após o beijo que Nathanael me
dera, eu passara a compreender a necessidade daquilo.
– Por que fez isso? – Perguntei, esbaforido, tendo os
lábios já distantes dos seus.
– Porque queríamos.
Abraçamo-nos, então – ficamos ali, por horas, quase
até o dia amanhecer, beijando-nos e observando as estre-
las. Deitados por sobre a grama, as nossas roupas e os ca-
belos já úmidos, e eu já certo de que, dali a pouco, estaria
gripado, pegaria um resfriado daqueles de doer o fio de
cabelo, tamanha a minha sensibilidade para com o tempo
frio e a garoa.
Chegou então o momento em que se podia ouvir os
primeiros cantos dos pássaros – o sol ainda não havia des-
pontado, mas o silêncio que encerrava a madrugada ia se
dissipando e a sensação de que a manhã chegaria a qual-
quer momento tomou conta do ambiente. Era o fim do ve-
rão, mas um verão anormal, uma vez que, tanto eu como
Nathanael, encapuzados e usando roupas de frio, sentía-
mos o congelamento de nossos corpos sensíveis.
– Precisamos ir embora. Alguém vai nos ver aqui. –
Proferiu aquelas palavras de modo preocupado, parecen-

Quando ainda era verão 29


do, pela primeira vez em horas, dar-se conta da organici-
dade absurda de toda aquela situação.
– Preciso ir também, estou com pouca roupa, vou
gripar...
Levantei-me e, já de pé, dei-lhe a mão gelada para que
ele segurasse e tomasse impulso. Cruzamos os imensos
portões da universidade – acenei para um táxi.
Despedimo-nos ali, antes que eu entrasse no carro.
A promessa de que nos veríamos durante o intervalo
da próxima semana já habitava meu coração, dando-me
golpes de ansiedade – eu já me preocupava com a possibi-
lidade de não mais vê-lo, de tudo aquilo ter sido uma espé-
cie de brincadeira do universo, uma consequência onírica
das drogas que eu ingerira na noite passada.
Entrei no táxi.
Sentindo o corpo gelado e a cabeça pesada, engoli a
saliva e logo notei a garganta doendo – espirrei.
O verão terminara.

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2.

Quando pequeno, eu tomava chá de camomila com


gengibre e mel – bastava a caneca fumegante, tomada a
goles custosos, para que eu fosse curado de qualquer gripe,
leve ou pesada. Minha mãe, vez ou outra, tentava me dar
comprimidos de algum antigripal que eu cuspia sem que
ela percebesse, uma vez que a dificuldade para engolir drá-
geas era motivo de pânico para mim.
Hoje, tendo descoberto o poder sedativo dos relaxan-
tes musculares, tornei-me especialista em remédios. Sou
amante das drogarias, das consultas médicas marcadas
com o intuito de conseguir uma receita para bons compri-
midos de tarja preta. Gosto de encontrar motivos – nem
tão bons ou convincentes – para me drogar legalmente.
Naquela manhã, após chegar em casa e sentir o corpo
inteiro desabar com o aviso prévio de uma gripe que, horas
mais tarde, me pesaria as pálpebras, ataquei o pequeno ar-
mário de remédios da cozinha improvisada do apartamento.
A aspirina é a minha religião.
Dois comprimidos, chá de gengibre com mel e um

Quando ainda era verão 31


relaxante muscular – dormi o resto do dia; um domingo
inteiro sendo vivido da maneira correta: dormindo, dor-
mindo e dormindo. Um sono sem sonhos, sem vozes, sem
interrupções mentais. Um sono coercitivo.
Acordei quando já era noite, morrendo de sede e com
uma fome extraordinária – não comera nada desde a tarde
de sábado, horas antes da festa.
A festa, aliás.
Nathanael.
Ao me levantar da cama e sentir a dor excruciante que
atravessava a minha cabeça de norte a sul, fui tomado por
uma quase-descarga-de-adrenalina ao me lembrar de Na-
thanael e de seus lábios açucarados. Pensei em tudo que me
acontecera naquela noite shakespeariana. A madrugada in-
teira deitado sobre o peito aberto de um garoto. O qual, até
o momento, me colocava dúvidas quanto a sua identidade.
Dei vários tapas na parede acima da minha cama
em busca do interruptor – tateei até encontrar o botão e,
acendendo a luz do quarto, dei-me conta do furacão que
passara por ali. Roupas, tênis, meias encardidas, a minha
carteira aberta e as moedas despejadas no chão de taco. O
cheiro de suor e bebida alcóolica impregnava o ambiente,
e eu nem mesmo me lembrava de ter botado uma gota de
álcool na boca.
Sim, era ainda muito cedo quando eu me distanciara

32 Gabriel Biasetto
da festa. Era ainda muito cedo quando eu decidira cami-
nhar em direção aos portões da universidade – Nathanael
a me encarar, fumando o seu cigarro.
Mas eu havia fumado um baseado, antes, não havia?
Havia bebido um pouco de vodca, talvez?
Não me lembrava.
Nada me ocorria sobre o que precedera meu encontro
com Nathanael. As investidas imediatas, a necessidade que
o meu corpo sentira, naquele momento, quanto à união de
nossos corpos. O beijo, o momento seguinte ao beijo: as
constatações de que aquilo tudo corria como devia correr
– a umidade congelante do fim do verão.
Passei pela sala de estar e me deparei com os garotos
sentados em dois grandes almofadões – ambos de pijama.
Assistiam a alguma coisa na televisão, tomando coca
cola e comendo pipoca de um imenso balde que eu trou-
xera do interior – o balde amarelo com olhos azuis relu-
zentes. O balde no qual minha mãe me servia a pipoca de
minha infância.
– Ressaca? – Bernardo perguntou, soltando um arroto
de coca cola.
– Das bravas.
Enchi um imenso copo de cristal com água e tomei
quarenta gotas de dipirona.
– Você acabou com o estoque de aspirinas. Eu precisa-

Quando ainda era verão 33


va desesperadamente de uma hoje cedo, sabe, meu chapa...
– Desligava, agora, o televisor.
– Ei! Eu estava assistindo! – Vitório bufou, insatisfeito.
– Agora está acabando com a dipirona... não sei, não,
Raphael... você vai acabar tendo overdose de analgésicos.
– Você é um imbecil! Eu estava assistindo... você desli-
gou sem me perguntar se eu estava assistindo!
– Vitório, eu estou tentando ajudar o nosso amigo
viciado.
– Calem a boca, vocês dois... estou explodindo.
– Raphael, você precisa parar com isso de descontar as
suas dores nos pouquíssimos medicamentos da casa.
– Podemos voltar à televisão? – Vitório tentava pegar
o controle da mão de Bernardo.
– Não! Estou conversando com o Raphaelzinho en-
fermo!
Abri a geladeira e encarei, horrorizado, o vazio exis-
tencial preenchido por duas garrafas de leite vencido e al-
guns ovos que eu me lembrava de ter comprado há mais
de uma semana.
– Onde está o meu iogurte? Vocês tomaram o meu io-
gurte? – Minha cabeça ainda latejando, a fome me deixan-
do mais e mais mal-humorado.
– Vitório comeu o seu iogurte.
– Não foi bem assim! Nós dois estávamos com fome e

34 Gabriel Biasetto
eu tomei um iogurte e o Bernardo tomou outro. Mas va-
mos repor.
– Já devia estar reposto.
Bati a porta da geladeira – estava, enfim, mal-humora-
do e aborrecido.
– Vou sair. Quando voltar, quero o iogurte na geladei-
ra e as outras coisas que vocês comeram.
– Que outras coisas? – Bernardo perguntou, arrega-
lando os olhos.
– Não me lembro, mas eu tinha mais comida ali dentro.
– Se você não se lembra, acho que tomamos apenas o
iogurte.
– Vão à merda!
Fui até o quarto e me agachei para pegar a carteira.
Juntei as moedas e fechei o zíper. Já perto da porta, girei a
chave na fechadura e senti o braço de Vitório me agarran-
do o pescoço.
– Você está triste conosco? Está aborrecido, não é?
Olhe, você desculpe o Bernardo, ele é egoísta demais, eu
sei, mas eu e você vamos encontrar um outro lugar em que
possamos morar só nós dois, sem interferências do idiota.
Me livrei de sua carinhosa chave de pescoço e bati a
porta. No corredor escuro e gelado do prédio, ouvi a sirene
da polícia ao longe; alguém com o rádio ligado no aparta-
mento ao lado; o miado de um gato...

Quando ainda era verão 35


Eu estava tonto, enjoado. Talvez vomitasse ali mesmo.
Chamei o elevador – precisava desesperadamente co-
mer alguma coisa. Uma coxinha, um pão de queijo. Uma
coisa qualquer, mordiscar um biscoito ou uma torrada.
Estava a ponto de desmaiar de fome e enjoo. Como se as
coisas já não estivessem muito difíceis, o elevador não
chegava e o meu enjoo crescia. Pelo fato de estar ansioso
e faminto, ou talvez apenas pela burrice consequente do
meu mal-estar, resolvi descer pelas escadas de caracol. Do
oitavo ao térreo seria uma eternidade.
Quarto andar – a pressão já muito, muito baixa.
Terceiro andar – toquei o corrimão e senti o gosto do
corrimão em minha boca.
Foi chegar ao térreo e vomitei em dois longos jatos, la-
vando o sofá da salinha de entrada do edifício – seu Jaime,
o porteiro, veio ao meu encontro em desespero.
– Raphael... – Disse, enojado e, ao mesmo tempo, com
uma expressão que demonstrava a pena que sentia de mim.
– Olhe, me desculpe... – Eu disse, aliviado. O vômito
lavara a minha alma – eu era um ser livre outra vez. – O
senhor me desculpe, seu Jaime... que vergonha. Olhe, vou
pegar o rodo e os panos úmidos... vou limpar tudo...
– Ora, fique quieto... – Seu Jaime, já corcunda pela ida-
de, me empurrou para longe do vômito. – Não se preocu-
pe, um dos funcionários da limpeza se encarrega disso.

36 Gabriel Biasetto
– Não, seu Jaime... Jamais! Nunca! Que vergonha... não...
eu jamais faria alguém limpar o meu próprio vômito, eu...
– Você paga o condomínio para quê?
– Bem...
– Faça o seguinte, saia... vá tomar um ar, faça o que
tiver que fazer. Quando você voltar, tudo estará limpo.
– Deus abençoe.
– Pensei que você e os porcos dos seus colegas eram
ateus.
– E somos.
– Amém.

Já na rua e completamente desorientado, pensei no


que faria dali em diante. Estava livre de todo o mal-estar
que me acometera desde o despertar pesadelesco em meu
quarto imundo no oitavo andar.
Caminhei algumas quadras e ouvi novamente o som
da sirene de polícia – ou seria uma ambulância?
Já perto do bar Marajaú, cruzei com uma prostituta.
– O senhor faria a gentileza de me comunicar as horas?
– A senhora me desculpe, mas não tenho relógio.
– São vinte e duas horas e cinquenta e três minutos, te-
nho um relógio mental e ele me diz que, dentro em breve,
às onze, estaremos juntinhos sobre uma imensa cama em

Quando ainda era verão 37


formato de coração no motel mais próximo.
– O seu relógio está enganado.
Continuei caminhando e avistei um barzinho caindo
aos pedaços.
Perfeito.
Podia pedir um café preto, puro e forte. Um salgado
frito para acompanhar – depois compraria um maço de
cigarros. Os longos, fraquinhos – aqueles que costumavam
curar as minhas dores de garganta.
Uma canção em minha mente. De quem mesmo era a
música? Uma canção que me ensurdecia, ainda que fosse
uma canção agradável. Nunca, nunca, nunca mais eu usa-
ria droga alguma – nunca mais daria uma única tragada
em baseado algum. Nunca mais tomaria vodca com Fanta.
Nunca mais deixaria o meu quarto se transformar no ater-
ro sanitário com o qual me deparei ao tocar no interruptor.
Nunca mais queria sentir o odor característico da ressaca.
O cheiro de chulé e álcool e umidade.
Pobre seu Jaime.
Recebendo um salário irrisório e tendo que lidar com
o suco gástrico de um infantiloide metido à intelectual.
Pobre funcionário da limpeza.
Pobre Raphael.
Raphael, Raphaelzinho – eu mesmo. Minha mãe me
ligara dois dias atrás, preocupada. Não queria que eu con-

38 Gabriel Biasetto
tinuasse em São Paulo. Não me queria fazendo faculdade
para ser professor, não me queria enfiado em discussões
filosóficas. Mamãe me queria no curso de direito da fa-
culdade particular de nossa cidade, como os meus irmãos
– mamãe me queria advogado e heterossexual. Mamãe me
queria tradicional, tradicionalíssimo.
A canção...
A canção era de Rita Lee...
Um belo dia eu resolvi mudar... e fazer tudo que eu que-
ria fazer...
Adentrei, então, o bar.
Me libertei daquela vida vulgar, que eu levava estando
junto a você....
Sentei-me em uma das banquetas altas que permitiam
aos clientes o alcance do balcão encardido. Pedi um ca-
chorro quente com o estúpido e dramático acréscimo de
linguiça calabresa e uma pequena porção de batatas fritas.
O cheiro de fritura extasiava-me.
A prostituta que há pouco tentara me convencer de
sua companhia aparecera, de repente.
– Não vou incomodar, mocinho. – Disse, virulenta,
enquanto escolhia um lugar distante de onde eu estava
para se sentar.
– Não estou incomodado. – Eu disse, rabugento e
exausto.

Quando ainda era verão 39


Agora só falta você, iê iêeeeee....
Lá estava o meu imenso lanche com todo o seu con-
teúdo criminoso. O entupimento das veias – senão isso, ao
menos o refluxo da madrugada. Azias das muitas que tive:
de virar do avesso, sentir a ardência queimar-me a alma
como quem faz uma rápida visita ao inferno e volta.
Um lanche imenso: salsicha, molhos de todos os tipos,
purê de batata, batata palha, creme de ervilha, queijo derre-
tido, bacon e algumas pequenas fatias finas de linguiça ca-
labresa. Engoli o lanche como se a minha vida – ou o ato de
sobreviver – dependesse daquilo; engoli o lanche como se,
engolindo-o daquela maneira, eu pudesse salvar a alguém
que amo de estar morto. A minha ansiedade desnudava-se
inteira, solidificando-se entre as mastigadas rápidas dos se-
gundos antes da desgraça do refluxo. O ponto final do amor
próprio – a língua salivando em agonia, as bocadas imen-
sas naquele pedaço de morte, naquele pão recheado com
desespero. Não precisou muito para que eu logo me tor-
nasse a revisão de literatura do arrependimento – a barriga
estufada, a garganta a queimar como se fosse um aviso.
Ao menos a dor de cabeça passara.
Algo como um rodízio de dores e descontentamentos
de meu corpo. Uma troca justa e solidária: dou-lhe uma
dor de estômago acompanhada de uma desgraçada azia,
mas tiro-lhe, como compensação, o peso da cabeça e o en-

40 Gabriel Biasetto
durecimento das pálpebras.
Ainda assim, minha garganta inflamada.
Humilhado e vencido por toda a dívida moral, paguei
pelo lanche e caminhei para fora do bar. Caminhei como
que debilitado – eu era um velhinho, eu era encurvado
como o pobre Jaime, o porteiro.
Estava já para cruzar a pequena viela entre uma esqui-
na e outra, gritou-me a prostituta lá de longe:
– O esquentadinho brocha esqueceu a carteira!
Vire-me, irritadiço. Vi a mulher segurando a carteira,
como quem ganha um prêmio após um duro período de
vida. Vitoriosa, encarava-me, contente.
– Vem buscar?
Fui até a moça alta e orgulhosa. Um pavão que exibia
as penas, arrogante.
– Obrigado. – Eu disse, agarrando a carteira de suas
mãos impecavelmente manicuradas de um escarlate me-
tafórico.
– Não recebo recompensa?
Tirei umas moedas do bolsinho zipado e dei-lhe, ne-
gando-me a permanecer por muito mais tempo em meio à
irritante atmosfera daquele momento.
– Está com medo de mim?
– Medo? Não estou com medo, não, senhora! Vou aca-
bar com a sua graça revelando-lhe que meu pau não sobe

Quando ainda era verão 41


por mulher nenhuma.
Soltou uma gargalhada.
– Está rindo, é?
– Você não tem coisa de marica em si, é só isso.
Convencido pela inutilidade de fazer-me duro e estú-
pido, desmanchei-me num sorriso.
– Sou só um rapaz que quer voltar para a casa e limpar
e quarto.
– Pois o que te impede?
– Você me distrai da vida, querida... compreende?
– Compreendo. Você tem nome, meu querido?
– Raphael.
– Sou Pérola.
– Bom, Pérola... vou-me embora para lá e espero um
dia encontrá-la novamente. – Eu apontava para o lado es-
querdo da rua.
– Pois eu espero que você consiga limpar o quarto.
Me despedi com um aceno de cabeça e, deslizando a
carteira para dentro do bolso traseiro dos jeans imundos,
segui em direção ao meu destino.

Cruzei com o porteiro que começava o novo turno


após seu Jaime – uma pena; queria, mais uma vez, me des-
culpar com o velhinho curvo. Devia ter comprado um ca-

42 Gabriel Biasetto
chorro quente gigantesco que eu guardaria para seu Jaime
– guardaria dentro do guarda roupa, senão os palermões
devorariam sem o meu consentimento.
O elevador agora vinha ao meu encontro. As coisas es-
tavam melhorando – a azia ainda presente a queimar-me a
garganta. Eu espirrava vez ou outra.
Apertei o botão do oitavo e cantarolei o que restara da
canção de Rita Lee.
Girei a maçaneta e os palermas, agora motivados por
sabe lá qual droga, limpavam o apartamento como se fos-
sem contratados para tal. Bernardo lustrando os móveis
com um produto esbranquiçado que mais parecia esperma
e Vitório varrendo a cozinha, já com o balde d’água e um
pano próximo ao rodo que ele passaria depois.
– O senhor ressaca está de volta. – Gritou Bernardo,
irônico.
Vitório, atrapalhado, deixou cair a vassoura e virou-se
para me encarar.
– Você está comido agora?
Sorri, satisfeito.
– Então vocês resolveram dar uma ajeitada no am-
biente?
– Estamos apenas garantindo a nossa vaga, uma vez
que o seu paizinho é o fiador da espelunca e não queremos
viver na rua, sabe, Raphaelzinho. Você entende que está-

Quando ainda era verão 43


vamos apenas famintos e que o envelope onde o Bernardo
escondeu seus últimos trocados estava perdido em algum
lugar pela casa? Por isso tomamos o precioso iogurte, mas
já ligamos para a venda lá de baixo e estão trazendo.
– Ótimo. – Respondi, ranzinza.
– Mas existe a possibilidade de não trazerem, devo
avisar. – Bernardo agora descansava a bunda no sofá. – É
que o energúmeno que agora varre a cozinha não pagou as
últimas três encomendas e estamos queimadíssimos com
a vendinha.
– Vocês não sentem vergonha pela vida que levam?
– Exclamei, já com o bom humor voltando às paradas de
sucesso.
– Por que haveríamos de nos envergonhar, Raphaelzi-
nho? Somos pobres operários. Eu dou aulas particulares e
recebo por hora-aula, e o Vitório faz de conta que é guia do
museu, mas nós sabemos que ele fica sentado peidando no
estofado de uma poltrona velha que pertenceu à princesa
Isabel. Sim, o Vitório sim devia sentir vergonha... você tem
razão!
– Porcos... – Eu disse, já arrependido ao adentrar o
meu quarto e observar os arredores.
– Acho que o porquinho é você, Rapha. Entrei no seu
quarto para ver se encontrava dinheiro para pagar o iogur-
te e senti o mesmo odor característico do vestiário mascu-

44 Gabriel Biasetto
lino da Universidade.
– E ainda dizem que os gays são mais limpos e cheiro-
sos. Uma barbaridade... – Vitório agora torcia o pano até
deixar apenas úmido.
Dentro do quarto, abri a imensa janela que cobria qua-
se toda a extensão da parede e, sem pensar muito – para
que eu não desistisse – comecei a arrumação.
Cacarecos das mais diferentes ordens, montes de pa-
péis de bala que eu ia largando por ali. Encontrei negativos
que eu pretendera revelar no início daquele ano. Copos,
três ou quatro pontas de baseados. Uma revista detonada
pela umidade da parede exibindo o triste sorriso de Mary-
lin e um cartão de aniversário – aquele da mamãe. Dizia
assim: Feliz vida!
Encontrei também o perfume que eu perdera há duas
semanas e que viera junto do cartão. Um perfume delicio-
samente amadeirado. Espirrei no ar, esperançoso de que o
odor que impregnava o ambiente começasse a se dissipar.
O resultado esperado começava a se efetivar: o odor hor-
roroso já não estava mais lá como há alguns minutos.
Juntei tralhas e papeis e roupas que deviam estar na
máquina de lavar já há muito tempo. O meu humor melho-
rava à medida que eu conseguia enxergar o chão de tacos.
– Vitório, me empresta esse rodo com o pano úmido
que preciso tirar o melado do chão.

Quando ainda era verão 45


Vitório empunhou o cabo do rodo como se segurasse
uma espingarda e, patético, veio ao meu encontro, rindo.
Agarrei o rodo e comecei a juntar, grudando no pano
úmido, a sujeira acumulada de uma vida toda.
– Não é assim que se faz. – Ouvi Vitório opinar, atrás
de mim.
– Quer fazer?
– Você tem que varrer, meu chapa. Tem que varrer e
depois passar o pano.
– Quer varrer?
– Com você não tem trato, não é? Sabe, Raphael, vocês
maricas são uma farsa.
– Vocês héteros são a vergonha deste edifício. Nunca
mais teremos entregas do mercadinho porque você e o seu
namorado estão devendo desde a virada do século.
Ironicamente, alguém batia à porta. Bernardo aten-
deu, animado – eram as encomendas do mercado.
– Bem, Raphaelzinho... a justiça de Deus é forte. –
Proclamou, encarando o entregador. – Estão aqui com os
seus iogurtes e alguns pãezinhos de queijo para tomarmos
um delicioso café no terraço.
– Não temos terraço.
– Ah, sim..., mas não custa imaginar.
– E quem vai pagar pela vasta compra de supermerca-
do? – Perguntei.

46 Gabriel Biasetto
– Ora, Raphael, cada um faz a sua parte. Nós tivemos o
trabalho de ligar para o mercadinho e pedir a mercadoria.
– Vou começar a anotar... se eu tivesse começado des-
de o início do ano, vocês teriam, a essa altura, de me dar
um carro zero.
– Um carro zero... – Vitório agarrara o rodo de minha
mão e agora passeava pelo apartamento, segurando-se ao
cabo como se estivesse em uma escola de samba. – Já pen-
sou? Iríamos atravessar a Universidade em nosso carrão e
as garotas da psicologia finalmente nos dariam bola.
A Universidade...
Eu era invadido outra vez pela lembrança de Nathanael.
Aquilo me atingia como se eu fosse uma fotografia a ser
batida em flashes cujo disparo se dava em longos intervalos
de tempo. Mas, quando eu era fotografado, sentia o êxtase
daquela noite me preenchendo por inteiro, dos pés à cabeça.
Ainda veria Nathanael. Beijaria, outra vez, os seus lá-
bios. Faria tanto, tanto... Bastava me lembrar de pequenos
detalhes daquela noite e a minha vida recomeçava d’um
ponto em que a alegria era uma coisa a ser sentida pela
primeira vez. Bastava o pensamento da ideia que eu fazia
de sua concepção: Nathanael. Garoto. Beijou-me a boca.
Pronto – eu estava feliz, eu era alguém outra vez. O verão
viria novamente.
Corri para a porta, já com a carteira na mão – eu paga-

Quando ainda era verão 47


ria a compra e dias maravilhosos viriam pela frente.
O entregador me estendeu as sacolas e recebeu o di-
nheiro. “Fique com o troco”, pensei, não pedindo que ele
me devolvesse. Bati a porta, estonteado e feliz.
– Eu estou apaixonado. – Confessei, carregando as sa-
colas.
Bernardo saltou do sofá como um ginasta e, aproxi-
mando-se de mim, agarrou as sacolas de minha mão e me
abraçou as costas.
– Apaixonado? Você está apaixonado, Raphael? – Gar-
galhou, contagiado.
– Sim... ele está no curso de história.
– Bem, fico feliz que você esteja agora faxinando o
quarto... – Vitório abocanhava, selvagemente, o pão de
queijo borrachudo. – Imagine só trazer namorado aqui em
casa e ele se deparar com o cortiço...
Sentamo-nos na pequena mesinha encostada na pare-
de de madeira da sala e, enquanto os brutamontes devora-
vam os pãezinhos, servi-me de café preto e lembrei-me de
comprar cigarros.

Às vezes as coisas boiavam. Coisas daquele outro


tempo, de um tempo antes. A vida ainda pouca. A me-
diocridade dos dias inócuos, a indiferença de meu corpo

48 Gabriel Biasetto
em contato com a cama de meu pequeno quarto de cida-
de interiorana. Eu chorava em silêncio e era um choro de
dentro – só de dentro, dentro, cá dentro. Não se podia ex-
por toda essa coisa que eu sentia falhar-me todo o corpo:
dentro de mim, os edifícios iam caindo, emparedando-se
e, tal qual o dominó – ou o que se chama o seu efeito – iam
destruindo uns aos outros. Todas as construções que eu
nunca soubera solidificar.
Então, como dizia: as coisas boiavam. Voltavam a me
assombrar, vez ou outra, como lembrete para que eu não
me aventurasse tanto assim. Era para eu não correr peri-
gos, para eu me lembrar de voltar para de baixo da saia de
minha mãe.
Não.
Eu não podia viver como os que se aventuravam mun-
do afora – meu mundo afora não existia. Sempre para
dentro, dentro, dentro... sempre caminhando lentamente,
pisava em todos os ovos: qualquer coisa que me assustasse
era para que eu percorresse o caminho de volta para a casa.
De volta para o colo de minha mãe. De volta para a triste
atmosfera de uma realidade cinza-chumbo, esquelética.
O que boiava era, assim, sem mais nem menos: a fo-
tografia. O que boiava era todo o tempo: antes. Um tempo
cá estranho, devo dizer. O que boiava era o café que tomá-
vamos, a família inteira ao redor da mesa de madeira. Os

Quando ainda era verão 49


avós – os avozinhos, tão bonitinhos, não Raphaelzinho?
Isso, vai dar um beijo na vozinha, pede benção ao vozinho.
O que boiava era aquela época. O que boiava era o meu
medo, já naquela época, da época futura acabar. O medo
da época futura nunca vir. O medo da mediocridade e da
impotência e da mentira que contei a mim mesmo – medo
disso tudo ter sido – ser – eterno. Boiava também o eu gos-
tar do que gostava. E os meus sonhos, todos amontoados e
todos cacos que, juntando, assim, aos pedaços, tododia. O
que boiava era eu, que flutuava entre as partículas de água.
A piscina era a minha vida.

50 Gabriel Biasetto
3.

Os dias na universidade transcorriam lentamente, tal


qual a lesma que mergulha num pote de geleia. As segun-
das, entretanto, acompanhavam a velocidade da luz. Eu ti-
nha apenas uma aula na parte da manhã e outras duas na
parte da tarde, o que significava que, naquela segunda fria
e chuvosa, não havia necessidade de permanecer para o
intervalo entre as aulas.
Ainda assim, Nathanael.
Nathanael me encontraria no intervalo da manhã,
perto da cafeteria do segundo pátio. Tomaríamos café e
fumaríamos os nossos cigarros. Era a minha vez de com-
partilhar do meu maço.
Eu assistia à primeira aula já ansioso, as pernas num
vai-e-vem, num desce-e-sobe; Bernardo, sentado na car-
teira colada à minha e irritado com o meu movimento,
empurrou o meu joelho esquerdo para baixo, olhando-me
fixamente.
– Você está me desviando a atenção, Raphaelzinho. –
Sussurrou.

Quando ainda era verão 51


– Saia de perto de mim, então.
Passara do movimento das pernas para as leves mor-
didas nos lábios, descascando e arrancando a pele da boca,
como num acesso sadomasoquista.
Um certo frio.
É que o verão passara num piscar de olhos – uma coi-
sa louca, inexplicável. Não fizera tanto calor assim, mas
os dias frios, já no fim da estação, vinham se anunciando
com a neblina que se espalhava pela cidade de São Pau-
lo – a neblina nostálgica transpassando as árvores peladas
da Universidade. O frio do outono era um frio diferente;
fazia-me lembrar de minha antiga cidade, dos meus pais
ainda inocentes de quem eu era, de minha mãe preocupa-
da com a lancheira da escola.
O verão parecia, então, uma ideia distante que eu fize-
ra de um sonho – ocorrera-me, de certa forma, que o verão
todo fosse uma miragem. Junto a isso, um medo imenso
que ocupava todo meu pensamento ao dar-me conta de
que, se o verão fosse uma miragem, Nathanael e tudo que
fizemos naquela noite se transformaria em uma miragem
junto com o verão.
Era como um piscar de olhos do espaço-tempo: aca-
bara o verão e tudo fora embora – como os pássaros que
carregaram um rio congelado para bem longe, soltando-o,
já líquido, em algum outro lugar.

52 Gabriel Biasetto
Agora, eu mesmo me preocupava com o peso de meu
corpo e com o meu sustento. Eu mesmo tinha de admi-
nistrar o pouco dinheiro que os meus pais enviavam; eu
mesmo tinha de continuar a procurar por um emprego
ou coisa assim, senão ficaria para trás em meio aos vultos
coléricos e velozes da cidade grande. Eu mesmo tinha de
segurar as minhas rédeas e aguardar pelo som do sinal que
demarcava o fim da primeira aula.
E então, já que o intervalo chegava apenas após as três
primeiras aulas, esperar na biblioteca, fingindo ler alguma
coisa, puxando papo com a bibliotecária fumante cuja voz
de pré-câncer se colocaria a anunciar qualquer tragédia a
qualquer momento.
Tragédia como a possibilidade de Nathanael não ter
ido à aula naquele dia.
Tragédia como a possibilidade de o intervalo nunca
chegar.

Já na biblioteca, um livro de Lyginha em meu colo.


Verão no aquário.
A história de Raíza.
Comecei a fingir uma leitura despretensiosa e acabou
que livros como aquele jamais poderiam ser lidos, assim,
despretensiosamente.
A personagem Raíza desejava... desejava tanto.

Quando ainda era verão 53


E sua vida estava como que parada num cano em que a
água acabara por congelar – eu era como Raíza a aguardar
acontecimentos, já que eu mesmo estava doente de aguar-
dar pelo sinal da última aula antes do intervalo.
Reservei o livro para poder ler, depois, no ônibus.
Bobagem.
Jamais...
Eu que vivia a enjoar por qualquer coisinha besta,
imagine só ler livro em veículo se movimentando. Leria
em casa, mesmo. O meu quarto agora um brinco – arru-
mado, limpo e cheiroso – o perfume que minha mãe me
dera deixara o ambiente com ar renovado, ainda que leve-
mente enjoativo, mas, evidentemente, um odor superior à
flagrância da imundície que antes tomava conta do local. A
minha cama com uma linda manta azul escura que eu her-
dara de vovó; os tacos do chão, ainda que rachados, limpos
e brilhantes – o cheiro de lustra móveis espalhando-se pelo
meu bem mais precioso: a estante de livros.
Os livros, a maioria comprada em sebos, eram uma es-
pécie de portal que me ligava ao mundo real, à necessidade
do trabalho, do estudo e do enfrentamento da vida – os
livros eram, no fim das contas, a minha vida real. Eram o
desassossego sossegado.
Eis que me ocorrera um sonho antigo, de anos atrás,
quando eu ainda estava na cidade pequena e me via es-

54 Gabriel Biasetto
cravo da família atrasada. Sonho que tive com o sebo de
livros, porque sempre fui apaixonado pelos sebos e pela
velhice carcomida das almas que habitavam milhares e mi-
lhares de páginas perfuradas pelo cupim. Mesmo a minha
rinite reagia ao livro de sebo com um certo constrangi-
mento por espirrar.
Mas, o sonho...
Os pingos batiam leves – e quentes – sobre o asfalto.
Carros, muitos carros e, consequentemente, buzinas, mui-
tas buzinas – eu e quem... quem era? Era um garoto, era.
Nathanael?
Já naquela época?
O guarda-chuva completamente torto, quase quebra-
do, que ele segurava por cima de nossas cabeças. Eu ria
um pouco, ria de nervoso porque o sinal ia fechar e a gente
deixou cair um pacote de balas de goma que compramos
na bomboniere. Eu queria tanto aquelas balas de goma
que talvez valesse a pena ser quase atropelado para recu-
perá-las da queda em solo molhado, da queda em meio ao
trânsito do centro da cidade de São Paulo. E ele agarrou o
pacote para mim, o guarda-chuva voando longe, fugindo
de suas mãos. E ríamos – ríamos tanto que o nervoso co-
meçava, ali, a se dissipar.
Atravessamos a rua, então; os carros, furiosos, cruza-
vam a extensão que antes preenchíamos, e nós adentramos

Quando ainda era verão 55


o sebo – livros, pilhas e pilhas de livros, de mofo, de so-
nhos guardados, de desejos frustrados, de filmes, de fitas,
de ácaros e nostalgias.
Ele um pouco furioso, pois tinha pago coisa cara no
guarda-chuva, agora inexistente de nossa visão.
Eu havia pressentido – era um sonho. Não era real, é
claro: eu, que há tanto estava exausto dessa situação...
Dessa situação: ele, ali, fora da possibilidade do meu
alcance; eu-sozinho, sempre sozinho, longe da possibili-
dade de sentir o seu cheiro (coisa com a qual já sonhei,
embora eu ache que é meio impossível sentir, de verdade,
alguma coisa em sonho relacionada ao olfato). Mas, na-
quele momento, naquele pedaço de vida, de potencial ou
qualquer coisa que alguns chamam sonho, ele me dava as
mãos e percorria o sebo, as diversas estantes, os livros –
tudo, tudo era ali.
O Mundo inteiro era ali.
Abríamos, então, o pacote de balas de goma: verdes,
amarelas, vermelhas – ele não gostava muito das laranjas,
então escolhemos meio que a dedo, de modo que não fosse
possível alguma balinha laranja escorregar para dentro do
saco. Mas, é claro: havia umazinha, uma só bala laranja
que ele, com um peteleco, fez voar por entre os livros que,
há anos, estavam desmaiados nas estantes.
E eu já sentia a impotência, aquela impotência de pen-

56 Gabriel Biasetto
samento do tipo: nunca, nunca conseguirei explicar para
ninguém essa coisa gigantescamente simples e profunda
que sinto no peito. Nunca conseguirei compartilhar com
ninguém – e talvez nem mesmo com ele, a sensação que
me caiu nas veias, coisa gelada feito anestésico geral, quan-
do ele me dava balas enfiando-as em minha língua, com
suas mãos de luvas com corte no dedo – e eu sorria, sorria
quase a ponto de chorar, e eu não consigo e nem mesmo
conseguirei explicar.
E ele me silenciava, colocando-me balas e mais balas
na boca.
“Você leu esse aqui? Olha, é um livro bem merda. Mas
você leu, né?”
Ele perguntava meio com deboche, meio com hones-
tidade – os seus olhos redondos e gigantes, aqueles olhos
que ninguém no mundo tinha igual.
“Eu não li isso aí, não. Eu jamais leria isso.”
Eu respondia, meio bobo – uma tontura gostosa –
pela primeira vez na vida (no sonho) eu sentia essa ton-
tura gostosa.
A chuva lá fora batia nas janelas do sebo, meio avisan-
do que logo eu teria de ir.
Ele teria de ir.
O sonho ia acabar.
O dia nem existiu.

Quando ainda era verão 57


As balas eu nem comi.
Nem guarda-chuva quebrou.
Nem trânsito.
Nem nada.
Penso agora: aquele era Nathanael?
Eu nunca fui de gravar rostos, expressões – a feição dos
outros me é como a cera de vela derretida quando estou
vivendo em sonho. Mesmo sonho profundo como aquele,
mesmo sonho em que tudo é vivido como se vivesse, na-
quele pedaço, a vida inteira e ali permanecesse, repetindo
e repetindo todos os movimentos, como que rebobinando
um filme antigo.
Chegou enfim o momento de atravessar o pátio para ir
ao seu encontro.
Desci as escadas feito uma lebre. Cruzei com Vitório
fumando um cigarro em um dos degraus, parecendo en-
tediado.
– Pode me dar um trocado para o lanche?
Continuei caminhando, veloz, fingindo não ter ouvido.
Já próximo da cafeteria, penteei os cabelos com as
mãos e sentei-me num banco de gesso todo pichado de
pornografias rasas e representações fálicas.
Tudo era pura atuação – eu, um péssimo ator.
Péssimo.
Fingindo não me importar, fingindo não estar espe-

58 Gabriel Biasetto
rando pessoa alguma.
Peguei o livro de Lyginha e, sem perceber que o
exemplar estava de ponta cabeça, folheei algumas pági-
nas, patético, atuando enquanto leitor assíduo. Eis que o
tal Maurício, bicha de unhas pintadas e brincos de argola,
aproximou-se, inconveniente.
– Raphael...
Não.
Não estou!
Tive que sair, não estou em casa!
Não estou, não estou, não estou...
– Raphael, faz tempo que não converso contigo. Você
tem um cigarro?
– Tenho.
– Pode me dar?
– Posso.
Com toda a má vontade, ofereci-lhe o maço.
– O que faz aqui? Por que está sozinho aqui parado?
– Estou lendo... peguei este livro na biblioteca e me
apaixonei. Lygia Fagundes Telles, um romance famosérri-
mo, sabe...
Como se eu já não estivesse incomodado o suficiente
com a sua presença inesperada, Maurício soltou uma gar-
galhada dos infernos, um som de hiena prestes a dar à luz.
– Por que ri, Maurício? – Perguntei, tentando deixar

Quando ainda era verão 59


transparecer a braveza que vinha de minhas tremidas cor-
das vocais.
– É que está lendo o livro de ponta cabeça, Raphael...
está fingindo algo e está fingindo errado.
– Escuta, Maurício... vou te perguntar uma coisa e
você não questiona. Você faz História, não faz?
– Sim... – Disse, acendendo o cigarro.
– Maurício, você conhece o Nathanael?
– Que nome estranho... não, não... não conheço nin-
guém com esse nome.
Soltou a fumaça e, descansando o cigarro na têmpora
esquerda, pareceu refletir sobre o nome que eu lhe dera,
assim, de bandeja.
– Eu estou esperando por ele... conheci na festa do sá-
bado.
– E ele disse que faz História?
– Sim.
– Mas não tem ninguém com esse nome no curso de
História, Rapha...
– Ué, como você sabe? Pode ser que não esteja na sua
turma, só isso.
– Imagina, eu conheço todo mundo.
– Bem... ele vai chegar aqui e você vai vê-lo.
Parecendo muito desinteressado, Maurício jogou o
cigarro – ainda aceso e comprido – numa poça cinza do

60 Gabriel Biasetto
chão cimentado e colocou a mochila nas costas.
– Bom, obrigado pelo cigarro. Depois você me conta
se viu o tal Nathanael.
Nem mesmo respondi – estava apreensivo, ansioso e
irritado com a possibilidade de Nathanael não aparecer,
como se eu fosse um tolo, um sonhador apaixonado que
levara consigo um afeto não existente – uma profundidade
sentida só por mim.
Mas, não...
Não...
Não era possível que o sentimento inteiro daquela noi-
te fosse só meu – não caberia em mim; nada, naquele mo-
mento, fora inteiramente meu. Assim como o sonho que
tive com o passeio no sebo.
Tudo era nosso.
O beijo, o som dos grilos... o cheiro, as sensações – o
fim do verão.

O tempo passando e passando, eu com aquela sensa-


ção cunhada no pré-desespero: assim como o verão, o in-
tervalo entre as aulas também chegaria ao fim e, com ele,
a minha esperança. Eu nem mesmo observava o relógio
prateado em meu pulso. Nem mesmo tentava compreen-
der a passagem do tempo como fato. Pensava, apenas, na

Quando ainda era verão 61


possibilidade da impossibilidade. Pensava em Nathanael
se aproximando, ainda misterioso, mas familiar... o cigarro
queimando entre os lábios, os coturnos negros batendo,
um atrás do outro, sobre o chão de cimento.
Nada.
Como que derrotado, observei o relógio e permaneci
estático em meio à conclusão de que o intervalo acaba-
ra. Levantei-me do banco e, quase que manco, tamanha
a frustração e o incômodo no peito, desci as longas esca-
das do campus e fui andando até a o ponto de ônibus, fu-
mando sem parar. O verão agora parecia ter acontecido
há muitos e muitos anos, há séculos de distância – o verão
agora era como uma estação que há milhares e milhares de
dias não mais ocorria. Tentei raciocinar, assim assado: ele
aparece amanhã, Raphael... ah, Raphaelzinho, você ainda
terá longos anos pela frente em seu curso de Letras, mui-
tos e muitos anos para se encontrar com o tal Nathanael.
Amanhã ele aparece, não é mesmo?
Amanhã ele aparece, compreende?
Mas, como já me ocorrera no dia seguinte ao nosso
encontro sob o ipê, uma certa ideia de conspiração lida-
va, então, comigo: talvez Nathanael não fosse aquilo que
se apresentou para mim naquela noite – talvez Nathanael
fosse mais fruto das drogas que usei do que qualquer outra
coisa que se pudesse chamar, assim, real. Talvez Nathanael

62 Gabriel Biasetto
fosse coisa que a psicanálise me explica – eu cunhando
ideias e revelações num divã de psicanálise. E a ideia final,
após o pai, a mãe e a infância... a ideia final seria algo as-
sim: você criou esse Nathanael para lidar com tal vazio e...
É que Maurício, de fato, conhecia a todos os estudan-
tes do curso de História – Maurício era como a vizinha
fofoqueira, como a senhora que fica na barraquinha do
pastel em quermesse de igreja: sabia de tudo e de todos;
sabia os nomes, os detalhes – quem casou, quem descasou,
quem engravidou, quem abortou...
Se Nathanael fosse aluno do curso de História, Mau-
rício saberia...
Se Nathanael fosse aluno do curso de História, estaria
ali, comigo, tomando café e fumando cigarros...
Quem era Nathanael, afinal de contas?

Já na porta do apartamento, tirei os tênis, deixando-os


no capacho. Adentrei a sala quente e abafada pelo fedor
da fumaça de cigarro – abri as janelas e observei o trân-
sito correr tranquilo pela Martins Fontes. As folhas des-
pencando das árvores tal qual o roxo que se desfazia do
ipê naquela noite... a noite, agora, longínqua e nostálgica,
como um sonho antigo de criança que quer tanto um brin-
quedo e não ganha.

Quando ainda era verão 63


Naquele dia, naquela segunda-feira cinza e desgraçada,
a minha alma se derramava pelo piso do apartamento como
a alma do poeta hipocondríaco – daquele que temia, não me
lembro... seria a tuberculose? Sim, o poeta que não estava
doente e pensava estar... vivia, então, o inferno na terra...
aguardava um fim insuportável, um fim que nunca chegava.
Esparramei o corpo na cama e, tampando a cabeça
com o travesseiro, apaguei.
Acordei já de noite, perdera as aulas da tarde – o sono
completamente desregulado – tudo estava tão errado. A
festa, as drogas, o domingo inteiro a dormir, desajeitado
– a bagunça mental, os analgésicos... os companheiros de
apartamento comendo da minha comida. O meu dinhei-
ro indo embora, todo embora, para pagar a reposição da
comida que os companheiros de apartamento devoraram.
Um ódio tomou conta de mim, então. Levantei-me
d’um salto e tampei o ralo da pia do banheiro. Enchi de
água e mergulhei a cabeça inteira – até onde pude – dei-
xando borbulhar o oceano em meus ouvidos. Voltando à
vida, então, encarei-me, encharcado – o reflexo de meu ser
atormentado no espelho.
Mas agora um pouco mais vivo, mais consciente.
Removi a tampa do ralo e observei a água ir embora
num redemoinho – todo o meu desespero a se despedir
de mim.

64 Gabriel Biasetto
Ao menos era o que eu desejava.
Então ouvi a porta da frente – os garotos chegaram. Es-
tavam ensopados, pisando com os tênis, deixando pegadas
pelo taco da sala e rindo alto. Ocorreu-me, então, que eu
deveria reagir de modo oposto: como um choque de perso-
nalidade, faria exatamente o oposto; se, naquele momento,
sentia vontade de gritar com eles, dando-lhes as mais pro-
fundas lições de moral, expondo toda a estupidez e rancor
que me pesava o peito, resolvi me juntar às risadas.
– Tomaram chuva? – Perguntei.
– Pois não é que o Bernardo mergulhou o tênis numa
poça que mais parecia o lago do Ibirapuera? Afundou o pé,
sabe... – Ria, divertindo-se. – E aí eu resolvi me juntar a ele.
– Viraram crianças outra vez. – Eu disse, sorrindo.
– Está de bom humor conosco, Raphinha... – Vitório
parecia surpreso.
– O que quer dizer com isso?
– É que você anda nos hostilizando... – Bernardo ago-
ra desabava no sofá. – Sabe, Raphinha, tem de pegar mais
leve porque não somos de ferro...
– Hostilizando? Eu não hostilizo vocês.
– Ah, sim... hostiliza! – Vitório enchia um copo com
coca cola. – Hostiliza, Raphaelzinho... você nos ofende
porque somos diferentes de você.
– Eu não ofendo vocês, só perco a paciência com a

Quando ainda era verão 65


folga... vejam, eu...
– Não, não... – Bernardo se levantara, agarrando o
copo da mão de Vitório. – Não se preocupe, meu chapa.
Nós te amamos! Certo?
E então aquilo tudo que se instalara em meu corpo
desde a conclusão da ausência de Nathanael – a concre-
tização de que ele não apareceria – caiu em cima de mim
como um raio que atinge a uma árvore.
– Ué... o que foi que dissemos? – Bernardo largara o
copo de coca cola na mesinha da sala, marcando-a com
um redondo úmido. – Você está chorando por quê?
Sentei-me no sofá e, derrotado pela frieza daquele iní-
cio de outono, contei tudo aos meus companheiros.

66 Gabriel Biasetto
4.

Relatava o acontecido e logo os garotos juntavam-se a


mim em minha orquestra composta por violinos minús-
culos – um drama categórico.
Vitório serviu-me coca cola, como se a bebida gasei-
ficada fosse um tipo de remédio, uma coisa assim para se
tomar feito anestésico dado às surpresas para os loucos de
hospício. Tomei a coca cola num gole só, um gole inteiro,
gole desses de machucar a garganta, tão profunda era a
intensidade e a sede por ter qualquer coisa descendo, lí-
quida, drogando-me.
Ter chorado tanto e dito tanto fizera-me sentir um
pouco mais calmo e tranquilo. Uma bobagem daquelas...
que bobagem, Raphaelzinho. Que besteira!
É só que me ocorria todo o acontecido de antes, tudo
que fora vivido ainda na cidade pequena – as inúmeras
idas ao lugar de sala branca: tudo branco, esterilizado,
confortável... queria eu ter alguém assim o tempo todo:
um médico à disposição para injetar-me o mais doce anes-

Quando ainda era verão 67


tésico nas veias toda vez que me invadisse a sensação fria e
cruel do desamparo: depressão.
Eu fora diagnosticado...
Um lugar para receber, das gueixas, o delicioso copo
de cristal contendo água também cristalina – cristal, cris-
talino... as gueixas, só de ler o meu pensamento: “estou
com sede”, viriam encontrar-me com copos lindos... muita
água, muitas nascentes: veredas.
– Olhe, Raphaelzinho, eu, sendo você, deitava-me na-
quele sofá de terapeuta para falar dessa coisa toda... você
diz isso com uma dor que me foge a possibilidade de real-
mente ajudar. Estou impotente. – Disse Bernardo, sincero
e afetuoso.
Eu parara de chorar e estava, então, sereno. Um alívio
imenso tomava conta de meu peito. Era a sensação con-
clusiva de que os brutamontes me amavam e queriam-me
bem. Ao mesmo tempo, um quase-remorso pelas tantas e
infinitas vezes em que lhes destratei.
– Olha... quero pedir desculpas pela minha constante
irritabilidade... eu...
– Shhhhh! – Bernardo sacudia a cabeça para lá e para
cá, como que me implorando para calar a boca. – Já dis-
semos que te amamos, não é? Veja, Raphael... é tudo uma
fase, sabe? É só fase e passa...
– É que algumas coisas me visitaram nos últimos mi-

68 Gabriel Biasetto
nutos... uma sensação de todos os acontecimentos pas-
sados... toda a rejeição que senti antes de chegar em São
Paulo... ter saído da cidade pequena foi a melhor coisa que
fiz em toda a vida e, ainda assim, estou aqui me sentindo
desse jeito. Sentindo essa coisa estupidamente gigantesca
que me atinge inteiro, que me preenche o peito tal qual a
fumaça tóxica da cidade.
– Você fuma muito, Raphaelzinho.
– Seu idiota, ele está sendo metafórico. – Vitório esta-
peou, levemente, a testa de Bernardo.
– Sinto uma espécie de banalidade brutal me cobrir
de desesperança. É como se tudo fosse areia, entendem?
Compreendem o que quero dizer?
Ficaram, ambos, em silêncio... um silêncio calmo,
preenchido por uma óbvia compreensão. Tudo aquilo
que me ocorria era tão intenso que chegava a se espalhar
pelo ambiente físico que nos compreendia: o apartamento
pesava com a intensidade de minha lamentação por não
ter me encontrado com Nathanael – é que o fato de estar,
outra vez, apaixonado e perdido... o fato de estar, então,
idiota: um amor que não viria – um amor que era apenas o
movimento dos lábios sob o ipê roxo e nada mais que isso.
Um amor que não era amor.
Isso tudo fazia com que todo o resto – aquilo que eu
pensara ter deixado para trás – boiasse. Todos os casacos e

Quando ainda era verão 69


fotografias que eu pensava estarem já submersos e decom-
postos no fundo de uma lagoa, agora boiavam, intactos. A
voz de meu pai boiava intacta: “você devia se envergonhar
de estar fazendo isso conosco. Maricas!”
A voz de minha mãe, ainda que tentando deixar evi-
dente o amor em seu íntimo: “você está passando por uma
fase muito vergonhosa, isso nos constrange...”
Uma fase.
Uma fase muito vergonhosa, porra!
Ah, Raphaelzinho... por que falar? Por que decidir, de
uma hora para a outra, que o melhor seria abrir a boca e
deixar a língua desenrolar toda a frustração dos últimos
anos? Por que deixar os pais conscientes de todo o proces-
so doloroso e ininterruptamente desesperador... o deses-
pero, as unhas todas roídas, os colegas de sala de aula já
percebendo tudo.
Tudo.
A mutilação de meu ser em tantos e tantos fragmentos
rasos, amedrontados – aquele último ano na escola: eu ora
era eu, ora outro, ora eu, ora alguém desconhecido. Ten-
tativas.
Tantas tentativas: quero ser amado.
Ser amado por alguma coisa que eu fiz.
E eu nunca fui.
Não podia ser uma decepção e, ainda assim, ser amado.

70 Gabriel Biasetto
E então o pior: podiam ter mesmo me enxotado, con-
tinuado a dizer todas aquelas coisas horríveis e me empur-
rado para longe de suas vidas; podiam ter simplesmente
me deixado na sarjeta, faminto e pobre. Mas, pior, fingi-
ram estar tudo muito bem esclarecido: o filho bicha era
uma decepção e nós jamais aceitaríamos coisa do tipo –
por isso, um silêncio infinito.
Não falar sobre.
Jamais falar sobre isso e tudo corre muito bem.
É claro que nós te amamos, Raphaelzinho, imagina...
apesar dessa escolha.
A sua escolha é ferimento para toda a família, mas te
amamos.
Isso!
Vá para São Paulo.

Irremediável.
Estava, agora, na companhia dos garotos e de...
Sim!
Pérola – a prostituta.
Estávamos sentados por sobre as banquetas altas do bar-
zinho. Comíamos cachorro quente – os garotos tão engra-
çados, assim, tão engraçados... como bebês imbecis, como
crianças ignorantes e inocentes, perguntavam tudo à Pérola.

Quando ainda era verão 71


Afinal de contas, como era a vida fazendo programa?
Fora uma decisão das mais absurdas: após a sessão de
choros e lamentos, após o meu drama teatral, chegamos à
conclusão de que estávamos com fome.
– E vai ver só, meu amigo... – Bernardo já animado.
– Vai comer alguma coisa e perceber que grande parte do
seu drama é só fome.
Sugeri, então, como num movimento suicida, que fôs-
semos até ao tal bar para comer cachorro quente.
Eu nem considerava o refluxo do último lanche.
No caminho, demos com Pérola vestindo um tubinho
azul claro, as unhas também pintadas no mesmo tom de
azul. Os cabelos presos num coque perfeito; uma coroa de
falsos diamantes cobrindo-lhe a cabeça.
– Raphael!
Gritara já ao se dar conta de minha presença atraves-
sando a rua – eu, acompanhado de meus colegas. Bernar-
do e Vitório olharam-se confusos...
– Explico depois. – Falei, como que sussurrando.
– Raphael! – Pérola se aproximava, esfuziante. – Olha,
você precisa tirar o tarô. Sonhei com você e acho que não
vem coisa boa pela frente...
Beijei-a no rosto como se fôssemos amigos de infân-
cia. No fim das contas, a sensação era mesmo essa: a de
que éramos amigos há tantos e tantos anos. E, mesmo sen-

72 Gabriel Biasetto
do aquela a segunda vez que eu cruzava com Pérola, havia
uma conclusão quanto à simpatia que eu sentia por aquela
personagem.
– Quem são os rapazes?
– Meus colegas de apartamento... Bernardo e Vitório.
– Desfrutam do mesmo que você?
– Encantando... – Vitório intrometia-se, beijando uma
das mãos de Pérola.
– O encanto é todo meu! – Pérola acendia um cigarro,
soltando fumaça pelas narinas tal qual os dragões.
– E você, Bernardo... me parece também gostar das
moças.
– Já tentei ser como o Raphael, mas não tenho talento
para a coisa.
Às gargalhadas, continuamos a caminhar pela aveni-
da. Já dentro do bar, ofereci um lanche à Pérola.
– Você acha que sou falida, não é? Tem noção do quan-
to pagam?
– Estou sendo educado...
– Pois então aceito, mas saiba que dinheiro não me falta!
Comemos feito loucos. Eu, um pouco mais calmo e
quase feliz, sentia-me abençoado pelas companhias, pela
noite inesperada de uma segunda feira que marcava aquele
início doloroso de um outono incerto.
Mas, à medida que eu abocanhava o lanche já tão bem

Quando ainda era verão 73


descrito, sentia, pouco a pouco, o coração ir murchando:
a lembrança de Nathanael... o garoto pegara em mim feito
sarna. Situação ridícula, ridícula... a coisa mais ridícula e
estúpida do mundo. Uma noite, uma única noite e toda a
minha vida passara a ganhar nova intensidade a partir da-
quilo tudo. Todas as promessas que eu fizera a mim mes-
mo: comer saudavelmente, meditar, fazer exercícios...
E lá eu permanecia: sentado numa alta banqueta de
plástico enquanto mordia o lanche que, no dia anterior, eu
prometera nunca mais comer.

74
II
Horas nuas

Às vezes a gente tem que levantar e ir lavar a louça


– é um choque de personalidade, entende?

Tia Cacá
5.

Duas semanas e nada de Nathanael – duas semanas


inteiras, as horas como que num fluxo de consciência cla-
riceano: constatações assim dolorosas, o relógio e cada
partícula dos ponteiros a me estapear a alma e o corpo
físico. E eu sentia o estapeamento como se a vida estivesse
a me humilhar – uma ofensa pessoal, um “tirar sarro” de
minha cara; nada acontecia, e como Nathanael era tudo
que me ocorria, o mundo perdera o sentido por si próprio.
Eu perdera o sentido por mim próprio. Os garotos já meio
exaustos de minhas reclamações – eu e minhas perorações;
desabafos intermináveis, lamentações... vez ou outra me
dava vontade de ler alguma coisa. Eu me deitava na cama,
agora sempre arrumada e cheirosa. O colchão amaciado,
os travesseiros cheirando a leves borrifos de alfazema. Mas
as horas, como não passavam, também não pareciam me
dar o sentido da leitura. Eu lia, lia, relia – trelia as palavras
e nada, nada colava. Não havia comunicação entre mim e
o processo da leitura.
Eis que, de súbito, numa tarde de terça-feira – o pior

Quando ainda era verão 79


dia de qualquer semana – resolvi, inquieto e ansioso, to-
mar o ônibus até a casa de Pérola, um pensionato de freiras
(a comicidade comendo pelas beiradas). Ela me passara o
seu endereço em nosso último encontro no bar:
“Olhe, você não fique assim para baixo, por favor. Pode
ir até a minha casa quando quiser... sei que parece absurdo,
e é, mas vivo em um pensionato de freiras – as madrinhas
são uma graça, você vai ver. Sabem do meu trabalho e me
deixam ficar. Não é raríssimo?”
De fato, raríssimo.
Já dentro do ônibus, passei a observar os rostos de to-
dos os pedestres. Pela janela alta, eu tentava prestar aten-
ção nas vidas alheias, na imensidão de possibilidades que
batia os pés, um após o outro, pelas calçadas imundas de
São Paulo. Uma coisa assim muito intensa, muito bonita –
observar a natureza humana sempre me foi a melhor par-
te de estar vivo. Gostar de gente é uma maravilha. Gostar
de saber das histórias, de aprender com os outros. Mas,
naquele momento, eu desenvolvia uma espécie de senso
mediúnico: a tentativa de acerto quanto à vida de cada um
daqueles que eu observava. Talvez, em algum lugar dentro
– bem dentro – houvesse uma certa esperança de me de-
parar, sem mais nem menos, com Nathanael caminhando
pelas ruas, atravessando sobre as faixas de pedestre. Seus
coturnos fazendo ploc em contato com o cimento urbano.

80 Gabriel Biasetto
Seus lábios carnudíssimos e avermelhados – toda a inven-
ção que eu fizera de seu rosto agora que, com a passagem
do tempo, eu começava a esquecê-lo fisicamente.
A dissipação de suas feições, o início do esquecimento
de seu cheiro... tudo isso passara a me soar tão desespera-
dor que eu tentava não pensar a respeito. Em pouco tempo
eu me esqueceria por completo de sua aparência.
Desci num ponto próximo à casa de Pérola. Andei al-
gumas quadras, como ela me aconselhara.
“Aí você vai ver uma igrejinha. Fica atrás, bem atrás.”
Avistei a tal igreja; acendi um cigarro e continuei cami-
nhando. Saber que, dali a pouco, estaria na companhia calo-
rosa de Pérola me dava um certo alívio no peito. Uma ami-
zade imprevisível – eu jamais imaginaria, naquele domingo
quase-madrugada em que Pérola me impedia a caminhada
para oferecer os seus serviços, que nos tornaríamos próxi-
mos e que seu afeto me seria necessário dali a alguns dias.
O pensionato – como ela descrevera: portão verde, an-
jos de gesso protegendo a frente do casarão – se apresen-
tava imponente.
Procurei por campainha ou aldrava, mas não encon-
trei – bati algumas palmas.
Uma freirinha corcunda abriu uma das portas duplas
localizadas no centro do casarão. Com um molho de cha-
ves na mão, desceu as escadas, a passos de cágado, enquan-

Quando ainda era verão 81


to respirava pesadamente. Era possível ouvir a pneumores-
piração, a lentidão das batidas de seu coração. Silenciosa,
veio ao meu encontro e, como se já não tivesse demorado
uma eternidade para descer todos os degraus, demorou
mais alguns anos luz na vã tentativa de encontrar a chave
que abriria o portão.
– A senhora precisa de ajuda?
Encarou-me, então. Os olhos como que vidrados em
mim, a freira parecia aborrecida com a minha pergunta.
– Raphaelzinho!
Lá do último degrau, Pérola vinha descendo as esca-
das. Usava uma camisola verde esmeralda, os cabelos pre-
sos no coque de costume. Segurava uma pequena chave
em uma das mãos.
– Não tente falar com a madre Alzira, ela é surda e
muda. – Disse, sorrindo calorosamente. E depois, para a
freira, meio que fazendo sinais, meio que apontando para
os lábios: – Madre Alzira, pode deixar. Já estou com a cha-
ve certa, está vendo?
Contrariada, a freira voltou para a rotina dos passos
lentos e, aos poucos, subiu as escadas em direção às portas
de entrada.
Pérola me abraçou afetuosamente. Apertou-me contra
os peitos volumosos enquanto, com o outro braço, fechava
o portão atrás de mim.

82 Gabriel Biasetto
– Estou tão feliz que você veio me ver!
– Estou é de cara com a tal irmã Alzira. Você tinha de
ver o olhar que me transmitiu.
– Ela fica furiosa quando tentam falar com ela, acha
que é obrigação de todos saberem de suas incapacidades.
Mas, tudo bem, vamos entrar... quero que você conheça o
meu lar.
– Ainda estou chocado... você vivendo com as freiras.
– Ora, são todas esquerdistas, acredite. Andam furio-
sas com essa coisa toda que acontece aí fora. – Disse, apon-
tando para a rua, além dos portões. – Sabe que, na semana
passada, um primo da irmã Judite foi levado pela polícia?
Ela ficou arrasada. E nós, é claro... nós morremos de medo,
mas o que se há de fazer? Um pessoal conseguiu tirar de lá
de dentro uma carta que ele enviou. Disse que foi torturado.
– Bem, compartilho do seu desassossego... a gente
morre de medo lá na universidade.
Por dentro, a casa era simples e muito, muito limpa.
Um silêncio abissal. Subimos as escadas acarpetadas, os
tapetes todos judiados pelo tempo, as paredes já sujas pela
passagem dos anos. Enquanto avançava pelos degraus, eu
observava os porta-retratos todos presos na parede das es-
cadas: as freiras, ao longo dos anos, envelhecendo naquele
casarão. Identifiquei madre Alzira, mal-humorada, ainda
muito nova.

Quando ainda era verão 83


Pérola abriu uma das dezenas de portas do andar supe-
rior – três beliches, uma bagunça, toalhas úmidas jogadas
por todo o quarto. Cheiro de shampoo, de produtos quí-
micos para cabelos, de banho recém tomado. Uma garota
muita nova – coisa de vinte ou vinte e um anos – dormia
na cama de baixo de um dos beliches.
– É a Maurinha, está drogada, provavelmente... – Pé-
rola comentou. – É filha da Ana Clara, garota de programa
que nem eu. A Ana Clara, não a Maurinha, é claro.
No que, atrás de uma pequena porta, imaginei ser o
banheiro, ouvia-se a ducha ligada.
– Entendo...
– A Ana está no banho. – Acendeu um cigarro e me
ofereceu o maço. – Logo ela deve sair. Quero te apresentar
para as meninas.
Aceitei o cigarro.
Fomos até uma imensa janela – tomava toda a propor-
ção do lado esquerdo da parede do quarto. De lá, se po-
dia avistar todo o bairro. Uma tarde tranquila, ensolarada.
Apoiamo-nos no parapeito.
– E então, docinho... está mais tranquilo com aquela
história do boy?
– Estou fodido, Pérola.
– Vocês bichas exageram tanto... olhe, eu tenho a filo-
sofia da fila indiana.

84 Gabriel Biasetto
– E como é?
– Todos os homens que amo e que ainda amarei ficam
em fila indiana. Quando passam do ponto, parto para o
próximo da fila, entende?
Soltei uma gargalhada. Estar com Pérola era como fa-
zer terapia.
– Pérola, me desculpe a curiosidade, mas como você
veio parar aqui?
– Bem, é uma história de novela... a minha mãe vivia
aqui, era universitária. De família rica, portugueses, com-
preende? Mas, olhe só... essa gente nojenta... acabaram
cortando o contato com ela quando engravidou de mim.
Eu nunca soube do meu pai, minha mãe não contou às
freiras... e ela morreu. Acabou morrendo no meu parto.
Juro, não estou inventando. Aí as freirinhas, coitadinhas...
viu como são bondosas? As freirinhas me deixaram ficar.
Me criaram, me deram tudo, estudo, comida..., mas eu
acabei descobrindo não ter muito talento para as coisas
convencionais, se é que me entende.
– Compreendo.
– Eu gosto daqui, Raphaelzinho... gosto disso tudo, eu
sou louca por São Paulo. Não amo o que faço, é claro...
ninguém ama, é um horror, a gente está correndo riscos...
ainda mais agora, a ditadura... mas você não acha que São
Paulo é a melhor cidade do mundo, Raphael? Eu acho e,

Quando ainda era verão 85


olhe, nunca saí daqui.
– Eu gosto daqui.
– Eu amo! Eu amo, amo, amo! O anonimato... é tudo
gigantescamente gigante. Sabe que um dia desses eu saí
com um policial? Sim, o cara com uns coturnos e a coisa
toda, não vou mentir: me deu um tesão danado. Eu nem
mesmo quis cobrar, mas, é claro, ele pagou... olhe, foi uma
das melhores fodas dessa vida. Eu adoro, tenho uma tara
nessa coisa de homem em posição de poder. Homem de
coturno, meu Deus...
– Eu também gosto de homem de coturno.
– Me diz uma coisa, Raphaelzinho... esse Nathanael...
ele usava coturnos?
Rimos juntos enquanto soltávamos a fumaça do cigar-
ro pela janela do pensionato.
– Você acredita que sim? Juro, Pérola, juro! Não estou
mentindo... não estou falando só para dar liga, para dar
sentido nisso tudo. Juro: coturnos negros, um tesão.
– Você é mais mulher que eu, Raphaelzinho... ah, é!
Você é todo delicado, essa sensibilidade que dá para per-
ceber de longe. Deve sofrer muito, não é?
– É que eu tive um amontoado de problemas quando
estava vivendo lá no interior, entende? Já não ia bem com
as coisas da vida, e os meus pais, uns problemáticos... uma
coisa assim horrível. Todo mundo fazendo de conta que

86 Gabriel Biasetto
eu não passava de uma sujeirinha no vidro do carro. Eu fui
ficando ofendido, a rejeição da minha família me ofendeu
profundamente. Aí eu vim para cá. Eu gosto daqui; eu que-
ria estar mais consciente, só isso. Mais consciente do que
quero, mais focado nos estudos, sei lá. Queria Nathanael.
– Quer nada, bobo! Quer nada... você quer preencher
coisa que não se preenche.
– E aí faço o quê?
– Faz nada. Dança, sei lá... leia seus livrinhos, bata uma
punheta, seja feliz. Você está no melhor lugar do mundo,
meu anjo.
Disse aquilo e deu-me um selinho nos lábios. Agra-
decido, dei-lhe um abraço apertado. Pérola era puro cora-
ção – uma vida difícil, uma realidade pisada como a dela
e eu sofrendo por homem... eu sofrendo pelo fantasma da
festa passada, pela consequência do álcool. Eu sofrendo
por aquilo que não mais existia, pelo garoto desapareci-
do – um mentiroso que me dissera cursar História e, con-
clusão: eu caíra na pegadinha. Um aproveitador: só queria
uns beijos, dar uns beijos, trocar beijos... queria preencher,
também, um vazio que nada preenche. E eu fui a cobaia de
seu experimento.
Mas a paixão...
A frustração – ah...
Aquilo não se dissipava de forma alguma.

Quando ainda era verão 87


E quando se dissipasse – nem que fosse embora toda
a paixão. Ainda assim, inquieto: quem era aquele garoto?
Onde vivia? Quem era, quem era Nathanael?
Era o seu nome?
Nathanael?
E então a coisa toda voltava, intacta, para o meu peito:
a paixão pegando fogo em mim. Um dramalhão, drama-
lhão ruim, pobre. Mas doía, doía tanto que eu ficava, outra
vez, apaixonado pela possibilidade de vê-lo por qualquer
canto. A esperança de que um dia, sem mais nem menos,
aparecia em um dos intervalos entre as aulas e diria algo
como: “olhe, você não me entendeu? Eu faço Ciências So-
ciais, fiquei te esperando todos os dias em meu pátio.” E
riríamos, riríamos tanto... ele também furioso comigo por
não ter ido ao seu encontro.
Mas havia, para aquém ou além de meus desejos, uma
certeza de que não haveria intervalo algum para nos en-
contrarmos.
Nada.
E eu recomeçava: queria tanto entender o mistério do
sofrimento.
Cessara então o barulho da ducha. Podia-se ouvir a
porta de vidro do box deslizando. A tal Ana tinha termina-
do o seu banho. Eu estava inquieto, tinha medo das amigas
de Pérola: de que não gostassem de mim, de que desco-

88 Gabriel Biasetto
brissem se tratar apenas de uma bicha mimada do interior.
Vidas completamente diferentes.
Abriu a porta e saiu de lá com uma toalha na cabeça,
apenas. Os seios nus, uma barriguinha chapada. Cabelos
loiros encaracolados que escapavam da toalha – Ana Clara
era uma mulher especialmente bonita, parecia modelo. Ti-
nha uma pequena pinta preta (que mais tarde suspeitei se
tratar de pinta feita à caneta) logo acima do lábio superior.
Assustei-me com sua nudez. Ela parecia não se inco-
modar. Sorriu, simpática:
– Quem é o seu amigo? – Perguntou para Pérola.
– Querida, você se lembra do tal Raphael? – Estava
feliz, apresentava-me como se eu fosse um prêmio. – Ele
veio me visitar!
Ana Clara se aproximou, os peitos a me encarar, os
mamilos firmes olhando para a frente:
– Prazer, querido. – Apertou a minha mão.
Foi até o beliche, subiu a escadinha para o andar supe-
rior; Maurinha continuava adormecida na cama de baixo.
Ana Clara se deitou, pegou uma revista e começou a folhear.
– Ana Clara, porra! – Entrou no quarto uma outra ga-
rota; negra, usava um vestido de verão, florezinhas na ca-
beça. – Porra, Ana Clara, você pegou o meu óleo essencial?
Ana Clara continuou lendo a revista como se não ti-
vesse ouvido coisa alguma. Eu, estático, observava a situa-

Quando ainda era verão 89


ção – Pérola fumava o seu cigarro, também não parecia se
importar com a gritaria.
– Olhe, vou arrancar você daí de cima e dar-lhe um
tapa bem dado na fuça, está ouvindo? – Subia as escadi-
nhas do beliche.
Antes que a garota chegasse até a cama de cima, Ana
Clara lhe estendeu um pote cor de amendoim.
– Está aqui a sua merda de óleo. Achei uma porcaria!
A garota arrancou o óleo essencial da mão de Ana Cla-
ra e desceu, à ré, a escadinha até o chão. Virou-se, esbafo-
rida, dando-se conta de minha presença.
– Desculpe, querido! Desculpe... que coisa feia, não te
vi aqui. É cliente?
– Cliente? – Perguntei, confuso.
– Não é meu cliente, Rúbia! – Pérola gargalhava. – É o
meu amigo, o Raphaelzinho.
– Ah... você é o Raphael? – Veio ao meu encontro,
dando-me um caloroso abraço.
Percebi, naquele momento, que Pérola já havia falado de
mim para todo o pensionato. Senti-me envaidecido e feliz.
– Eu sou a única que bate bem da cabeça, sabe? Digo,
aqui dentro. – Rúbia pegava um cigarro do maço que Pé-
rola lhe ofereceu. – Estou estudando, entende? É faculda-
de particular, coisa assim meia boca, mas vou me formar
psicóloga. O resto, até mesmo as madrinhas... todo mundo

90 Gabriel Biasetto
aqui não tem coisa alguma na cabeça, umas azeitoninhas.
Eu sorria, concordando constrangido com a cabeça.
– Mas a Pérola... – Disse, olhando para Pérola. – É mi-
nha amiga... é a única que me respeita aqui dentro.
Continuamos conversando, então. O resto da tarde – o
sol se despedia e nós fumávamos, ríamos. Ana Clara, as-
sim como a filha, adormecera na cama.

Quando ainda era verão 91


6.

Quatro semanas até que a chuva cessasse. Trégua. Um


pouco de sol, de céu azul. Não que eu seja assim, solar.
Odeio isso tudo de felicidade pela claridade. Mas, ainda
assim, às vezes a ausência do sol deprime. E eu já tão de-
primido, tão quebrado e sem esperança. Perdera tantas
vontades desde a coisa toda com Nathanael – começara
a semana de provas e eu, logo de cara, percebia a minha
inaptidão para assinalar questões simples, simplérrimas.
Queria ficar na cama, queria ler um pouco, conversar
com Pérola, comer cachorro quente para morrer com as
veias entupidas – queria que alguém entendesse. Eu sei, eu
sabia. Eu sabia do ridículo, do ridículo de toda aquela situa-
ção. Sabia que aquilo não fazia sentido algum, que eu estava
amando obsessivamente, que a coisa era, assim: patológica.
Disfuncional.
Vitório o tempo todo a repetir: “vai ver analista, vai.”
E eu nada.
Não queria.

92 Gabriel Biasetto
Não quero, porra! Analista da puta-que-o-pariu!
– Por que você acha que analista vai me ajudar?
– Sabe, Raphinha, às vezes eu queria que você fosse
inteligente a ponto de saber que é um pouco burro.
– O que me aconteceu não pode ser solucionado em
divã de terapia, Vitório. Não pode, não dá... é coisa muito
específica, eu não vou nem conseguir explicar.
– Não é para solucionar, não é coisa que se possa sim-
plesmente consertar, resolver. Até porque nada está que-
brado, ora. Você não se quebrou, nem ninguém. Você só
está triste, está frustrado pelo amor que não veio... foi as-
sim comigo, lembra-se? Com aquela garota, a Carina... ah,
Carina...
– O que houve com ela, afinal? – Perguntei, curioso,
tentando me distrair, me distanciar do que ocorria comigo.
– Sumiu.
– Como assim?
– Sumiu, pô. Sumiu... tem gente sumindo, você ainda
não percebeu? Carina andava com um pessoal barra pesa-
da, os guerrilheiros. Comuna, sacou? Sumiu!
– Está me dizendo que foi presa?
– E quem é que pode responder? Pode já estar morta,
não sei... a questão é a seguinte: não vai voltar. Sinto aqui
no peito, sabe, meu chapa? Não volta mais... eu agora estou
partindo para a próxima.

Quando ainda era verão 93


Gargalhei, então, lembrando-me da fila indiana de Pé-
rola. Vitório, confuso, deu-me um abraço desajeitado.
– Coitado, deve estar ardendo em febre. – Tocou mi-
nha testa com as costas da mão. – Ih, nada... enlouqueceu
mesmo, não é?
– Estou rindo da fila indiana de Pérola.
– Ah, Pérola...
Vitório olhou para a cima e ergueu as mãos como se
agradecesse aos céus.
– Você podia descolar uma grana para eu ter uma ses-
são especial com ela, não é?
– À merda, Vitório, nem brinque com isso. – Levan-
tei-me do sofá, furioso. – Pérola é minha amiga, não vou
ficar oferecendo como mercadoria para você se divertir.
Está doido?
– Ei, acalma... estou brincando.

Estava já próximo à estação Liberdade, sentia os tri-


lhos do metrô como que me cutucando os órgãos. Havia
uma certa lentidão, não? Uma coisa anormal, estranha.
Desci.
Lá estava ele – os coturnos batendo no chão, uma bol-
sa transversal, olhões redondos a me encarar.
Mas eu cá, ele lá. Separados pelos trilhos, é claro, é cla-
ro... eu não conseguiria chegar até ele. Na mesma estação,

94 Gabriel Biasetto
mas em sentidos diferentes. Poderia esperar pelo próximo
vagão e cruzar por sobre os trilhos.
Eu acenava, gritava.
Gritava, esperneava. Ele me encarava, estático – um cer-
to olhar de pena e, ao mesmo tempo, nojo. O nojo que sentia
do meu desespero, do meu desejo assim doentio por suas
carícias, por ter novamente os seus lábios colados ao meu.
Eu chegava a bater bem forte os meus pés no chão e,
em meio aos gritos, fazia movimentos com as mãos – a
loucura tomando conta de mim: olhe para mim! Olhe para
mim, Nathanael! Estou bem aqui, estou bem aqui!
Uma falta de ar. O peito pedindo por socorro: sem fô-
lego, sem oxigênio.
Vou morrer.
Despertei febril, a quentura de minha pele derretia
em suores por todo o meu corpo. Os lençóis, o travesseiro,
tudo ensopado e nojento. Levantei-me e senti o peso de
uma bola de boliche no lugar da cabeça. Era a tal gripe mal
curada daquele dia seguinte – do dia pós Nathanael.
Eu tinha certeza.
Mamãe sempre, sempre me alertara: gripe mal cura-
da é coisa que vira em desgraça, fique atento, cure os seus
resfriados.
Fui até o quarto dos meninos – ambos dormiam tran-
quilamente. Na vitrola, um disco já terminado, o lado B

Quando ainda era verão 95


– Elis Regina.
Abri o guarda roupa de Bernardo e busquei por sua
sagrada caixinha de medicamentos. Ele rapara todos os
comprimidos do armário da cozinha, transferindo-os para
sua maletinha clandestina. Peguei o termómetro, uma as-
pirina e algumas gotas de dipirona.
Saí do quarto sem fazer barulho. Primeiro, ao medir a
febre, assustei-me com o resultado. Estava ardendo – era
o inferno. Meus olhos deixavam esparramar lágrimas de
adoecimento. Sentei-me, inquieto, no sofá da sala.
Náusea.
Sentia vontade de vomitar, mas não vinha vômito
algum. Parti a aspirina no meio. Engoli metade do com-
primido e me deitei. Pressionando a almofada do sofá em
meu rosto, adormeci em poucos minutos.
Acordei com o peito leve e a cabeça doendo bem me-
nos – sentia-me completamente drogado, dopado pelos
analgésicos da madrugada. A luz do sol cortava a sala
como um filete dourado. Levantei-me, desajeitado, e fe-
chei as cortinas rasgadas do janelão que dava para a Mar-
tins Fontes – o movimento na rua já se fazia presente. Os
carros, as buzinas. O dia começara há horas, mas eu não
tinha condição alguma de fazer qualquer coisa que não
fosse ficar ali, deitado, esperando até que a dor de cabeça
passasse de vez. Lembrei, então, do sonho com Nathanael.

96 Gabriel Biasetto
Vitório adoraria analisar, tamanha a paixão pela psicanáli-
se – o que será que o metrô significava?
Alguém enfiava a chave no trinco. A maçaneta girou
violentamente, Bernardo entrou na sala, estava esbaforido,
suado.
– Alguém passou por aqui? – Perguntou, assustado.
– Como?
– Alguém... Alguém perguntou por mim? Não toca-
ram o interfone?
– Não... quer dizer, não sei. Estou aqui doente, estive
com febre... vocês não me viram adormecido quando saí-
ram, hoje mais cedo?
Bernardo sentou-se próximo de mim, agarrou um de
meus braços. Estava verdadeiramente nervoso.
– Olhe... você fique esperto. Se alguém ligar, se pergun-
tarem por mim... olhe, você nem diga que vivo aqui. Faça
o sonso, diga algo como: quem é Bernardo? Não conheço.
– Bernardo, que porra...
– Olhe, Raphael, você tem dinheiro?
– O que?
– Dinheiro, porra! Preciso sair daqui...
– O que aconteceu?
Entrou no quarto que dividia com Vitório – levantei-
me com dificuldade e, sentindo a cabeça ainda pesando,
segui os rastros de desespero de Bernardo. Estava arran-

Quando ainda era verão 97


cando todas as roupas dos cabides. Tirou a gaveta de meias
e cuecas do lugar, despejava tudo para dentro de uma mala
que arrastara de baixo da cama.
– Bernardo, você vai me dizer que porra está aconte-
cendo?
– Juro que vou pagar! Preciso de dinheiro para conse-
guir sair de São Paulo. – Fechava a mala com dificuldade.
– Pode se sentar em cima da mala, por favor?
Sentei-me, inquieto. Bernardo passou o zíper.
– Não vou me levantar daqui enquanto não me disser.
– Olhe, eu fiz merda, mas é pelo bem da democracia.
– O que?
– Espalhei uns panfletos, coisa assim... mas é aquilo
que dizem: qualquer ação, açãozinha assim, que vá contra
o momento...
Eu estava começando a entender.
– O que você fez?
– Eu espalhei uns panfletos, só isso. Estão atrás de
mim... não quero acabar em pau de arara, entendeu?
Corri até o meu quarto. Meu peito disparado, a boca
secara completamente. Abri um dos gavetões de minha cô-
moda, removi a camada de camisetas dobradas e peguei o
envelope.
– Você não precisa me devolver. – Entreguei o envelo-
pe para Bernardo. – Mas vai para onde? Sabe para onde ir?

98 Gabriel Biasetto
– Estão atrás de mim, correram atrás de mim... um
fusca branco, sabe. Estavam me seguindo ali atrás, perto
da Roosevelt.
– Tem certeza disso?
– Sim, tenho.
Pegou o envelope e me deu um abraço, um abraço
apertadíssimo. Comecei a chorar desenfreadamente. Eu
era todo desespero – um medo me congelou a espinha. É
que eu andava tão distante da situação do país. A cabeça
em Nathanael, o faz-de-conta romântico de minha cons-
ciência. Não queria ter de lidar com a dura realidade anti-
democrática. Agora aquilo tudo me atingia como um tiro
de canhão. O chumbo grosso escorria feito fel de minha
saliva espessa e amarga.
– Não vá embora. Fique aqui. – Eu dizia, entre soluços,
enquanto agarrava Bernardo pelo pescoço. – Por favor, fi-
que! Vamos dar um jeito, eu...
Desvencilhando-se do meu abraço, puxou a mala de
rodinhas pela alça.
– Não há jeito, Raphael... – Também chorava. – Não há
jeito para isso, acredite.
Acompanhei Bernardo até a porta.
– Fique com a chave. – Ele me entregava a sua chave. –
Fique com ela e tranque.
Tranquei a porta.

Quando ainda era verão 99


7.

De lá de cima, olhando pela janela, o coração dispara-


do, disparadíssimo. Vi o fusca se aproximando aos pouqui-
nhos – vinha chegando próximo à guia; neste momento,
Bernardo saiu para a rua com a mala de rodinhas – foi ime-
diata a brecada do fusca. Desceram dois homens. Chuta-
ram longe a mala de Bernardo, puxando-lhe pelos cabelos.
Meu grito não saiu.
Eu não podia ser visto.
Observei o fusca se afastar até sumir na esquina, vi-
rando à direita. Voltei-me para dentro do apartamento. O
desespero e a angústia de ter testemunhado tudo aquilo. Eu
podia ter feito algo? Eu devia ter feito algo? Não adiantava,
não adiantaria nada. Os homens também me levariam. Os
homens... ah, Deus! O que fariam com o Bernardo? Ma-
tariam? Torturariam assim como fizeram com o primo da
freira do pensionato?
Onde andava Vitório?
O que eu podia fazer?
Desci até a portaria do prédio. Seu Jaime estava agacha-

100 Gabriel Biasetto


do na calçada, juntava os pertences de Bernardo dentro da
mala, tremendo. Virou-se ao ouvir o som dos meus passos.
– Levaram... levaram o seu amigo! – Falava aos gritos.
– Eu sei, eu sei... – Eu tentava acalmar o velhinho. Se-
gurei-o pelos ombros. – Calma, seu Jaime. Vamos dar um
jeito. Calma...
– Que burrice a dele! Que burrice eufórica... vir até o
prédio enquanto era perseguido. Tinha que ter despistado,
entrado no metrô. Que burrice imensa...
Vitório vinha atravessando a rua, sacolas de super-
mercado pendendo nas mãos. Vinha tranquilo.
Corri ao seu encontro. Eu chorava, desesperado.
– Ora, você ainda chora pelo amor não correspondi-
do? – Disse-me, parecendo entediado. Largou as compras
na calçada.
– Vitório, cale a boca! O Bernardo... os homens leva-
ram o Bernardo.
– Homens? – Seus olhos se arregalaram.
– Os homens... o pessoal do DOPS!
– Puta-que-pariu-da-caralha!
Subimos até o apartamento. Vitório, em silêncio, sen-
tou-se no sofá e, pressionando a testa com os dedos aber-
tos, refletiu por alguns minutos. Eu andava de lá para cá. A
dor de cabeça passara por completo.
– Você acha que vão matá-lo?

Quando ainda era verão 101


– Não diga uma merda dessas! – Levantou-se do sofá e
passou a me imitar, andando pelo apartamento sem rumo
algum. – Não vão! Vão interrogá-lo. Imagina... o Bernardo
não é do tipo que faz coisas graves. Deve ter dito alguma
bobagem durante a aula, algo assim...
– Distribuiu panfletos, mas não entendi exatamente.
– Ah, sim... está vendo? Nada demais... matá-lo? Ima-
gina, não vão matá-lo! Não vão...
– Vitório, o que exatamente aconteceu com a sua ami-
ga Carina?
– Não sei, eu não...
Chacoalhei Vitório pelos ombros, mirando os meus
olhos nos seus. Eu era uma águia, estava furioso e muito,
muito amedrontado.
– Fala, porra! O que fizeram?
– Olhe, eu não posso te dizer com certeza, mas você se
lembra do Maurício?
– Maurício?
– Aquele que é como você... o que pinta as unhas e...
– Lembro! Lembro!
– O Maurício nos disse, e não me pergunte como ele
soube... mas o Maurício nos disse que arrancaram os den-
tes dela. Disse que desovaram o corpo numa fazenda, algo
assim... acharam documentos. Acharam os documentos
dela junto ao corpo.

102 Gabriel Biasetto


Soltei um grito.
– Pare! Vamos tomar uma multa de condomínio!
– Você acha que me importo com isso, porra? Acha
que eu estou ligando para multa de condomínio? Não es-
tou nem aí com isso! Não estou nem aí com nada... preci-
samos ajudar o Bernardo... e pensar que o Bernardo não
tem ninguém, coitado... nenhum parente, ninguém que
possamos avisar. A última pessoa que tinha era a avó. Coi-
tado, uma vida tão ruim, os pais mortos num acidente...
era acidente, não era?
– Olhe, não sei o que podemos fazer agora. Não sei...
você compreende que estamos de mãos atadas? – Vitório
tentava me acalmar, massageava-me o peito enquanto ti-
rava o maço de cigarros do bolso. – Entende que não há o
que possamos fazer?
Sentamo-nos, os dois, no sofá. Aceitei o cigarro de Vi-
tório. Tentei pensar um pouco. Não fazíamos parte de gru-
po algum – a bem da verdade, eu participara, lá no início,
de algumas discussões quanto à resistência, mas a minha
inaptidão para a luta acabou por me fazer ausente disso
tudo. Foi ali que eu comecei a sentir os respingos daquilo
tudo. Não que eu diminuísse, não que eu minimizasse...
eu sabia, é claro. Eu sabia que as coisas aconteciam assim,
sabia do que estava acontecendo, mas, ao mesmo tempo,
sentia-me distante, distante... era como se a coisa jamais

Quando ainda era verão 103


fosse me atrapalhar, como se aquilo não pudesse chegar
assim tão perto.
O medo é parte de todos os dias – eu tinha medo, mas
acabei por me desvencilhar dele ao conhecer Nathanael.
Acabei por parar todos os meus dias e as horas – nuas –
acabei por me esquecer de tudo aquilo que era, de fato,
importante, para focar a minha visão assim embaçada em
Nathanael.
Idiota! Tão idiota... o país desmoronando, as pessoas
perdendo os seus direitos e eu lá pensando num garoto
fantasma. Eu pensando em bobagens adolescentes, em
amores infantis, em paixões...
– Vamos ficar parados? – Perguntei a Vitório.
– O que se há de fazer?
Ficamos, então, parados.

104 Gabriel Biasetto


8.

A ociosidade chegava a nos machucar – eu e Vitório


não estávamos frequentando a universidade. Greve. Ficá-
vamos no apartamento, comíamos muito, bebíamos, fu-
mávamos feito chaminés. Já se passara uma semana desde
a prisão de Bernardo, a monotonia de nossas vidas era or-
questrada pela tragédia de termos o nosso amigo ausen-
te em contexto tão triste como aquele. As horas em que
eu não ficava encucado, deitado no sofá e observando o
céu por detrás do imenso janelão, eu me deitava para ler
– Lyginha, Caio, Clarice... lia contos e romances, tentava
distrair a mente, fazer de conta que nada daquilo estava
acontecendo. Tudo em vão, é claro. Vez ou outra uma von-
tade imensa de sair à procura de Nathanael. Mas, onde?
Onde encontraria Nathanael? O que faria para resgatar
Bernardo? Onde iria...? O que fazer naqueles dias brutais?
A vontade que eu sentia de Nathanael voltava, dia após
dia, a me assombrar. Não mais uma vontade de amor, exa-
tamente. Não mais o desejo do romance, do encontro sob
o ipê roxo, mas sim a curiosidade: quem era aquele garoto?
Por que mentira?

Quando ainda era verão 105


Eis que, ao sair do banho e passar a mão sobre o espe-
lhinho da pia, mirei o meu reflexo e fui atingido pela memó-
ria daquela noite. O centro da cidade. Sim, claro: o centro
da cidade. Não era lá que Nathanael vivia? Talvez essa parte
fosse verdade. Talvez ele não fizesse História, talvez nunca
tenha pisado na USP como aluno, mas podia ser verdade
que vivia no centro de São Paulo. Não era possível que ele ti-
vesse mentido tudo – a identidade toda, a moradia, o nome?
Vesti uma calça jeans e uma blusa de frio que eu ganha-
ra de vovó. Calcei minhas botas de escalar montanhas – e
eu jamais escalara montanha alguma. As botas eu calçara
com o intuito de me aventurar pela cidade de São Paulo.
Eu queria entrar e sair dos metrôs, me ver refletido nos
janelões dos vagões – ver as pessoas. Toda a gente falando
de lado, olhando para o chão, sim, claro... mas, tudo bem,
continuemos. Vamos em frente, Raphaelzinho.
Bipolar, talvez.
Talvez eu seja bipolar.
É que me ocorriam coisas assim de forma tão súbita,
tão rapidamente estupendas e, já em ação, eu me sentia
ridículo, quase um impostor. Por que toda a emoção? Por
que tanto drama em cima da banalidade dos dias? A roti-
na já não vinha sendo extraordinária? O colega de aparta-
mento preso, a amizade com uma prostituta – as madres
de seu pensionato. Que coisa louca, que coisa engraçada...

106 Gabriel Biasetto


As madres, claro! As freirinhas, não Bernardo... não
havia graça alguma quanto ao que acontecera com Ber-
nardo. Nunca, em tempo algum, eu acharia graça naqui-
lo. Procurava não pensar, não pensar... quase acreditei em
Deus naquelas semanas, naqueles dias tortuosos em que
me vinha à mente a possibilidade de Bernardo estar já des-
pedaçado em algum lugar bem longe de São Paulo.
Ah, quanto sofrimento!
Ah...

Já na rua, tomei um ônibus. Desembarquei na Praça


da Sé, o dia lotado, a correria das vidas em contraste com o
meu silêncio interno, com o meu desespero interno. Cam-
bistas, vendedores de balas e bugigangas. Pessoas com ma-
las, revistas e livros debaixo dos braços.
Que livros aquela gente lia, afinal de contas?
Que coisa se podia consumir naqueles dias?
O centro de São Paulo é imenso – sim, claro. O centro
de São Paulo era maior que a minha cidade lá do interior.
Só o centro.
Que bobagem, Raphaelzinho! Que burrice pensar que
encontraria Nathanael com a vaga informação que ele dera.
Mas as coisas já eram todas tão vagas. Talvez eu nunca
mais visse Bernardo – talvez fosse eu o próximo depois

Quando ainda era verão 107


dele. Ou Vitório. Ou Nathanael. Me veio um pensamento
de quando eu era criança: eu no banho, debaixo do chuvei-
ro: aí começava a pensar no telhado da minha casa, e então
no que havia acima dele, que era a cidade, e o país, e o
continente, e o planeta... eu pensava nisso ao me aventurar
pela Praça da Sé. A praça, a cidade, o país, o continente, o
planeta... no meio disso tudo estava Nathanael. Em algum
lugar nisso tudo vivia Nathanael – em algum lugar nisso
tudo estava Bernardo, provavelmente sofrendo. Em algum
lugar nisso tudo eu estava.
O que faria dali em diante? Então me ocorreu a maior
de todas as loucuras: o sebo.
A coisa que eu sonhara...
Sim, o sebo existia. Eu o visitara quando pequeno... há
tanto, tanto tempo. Estive lá com uma tia querida, uma tia
do interior que, vez ou outra, levava-me consigo passear
por São Paulo. O sebo de meu sonho – do sonho com Na-
thanael. Eu conhecia Nathanael já em meu sonho antes de
conhecê-lo na noite da festa. Ou talvez não fosse Natha-
nael. Fato é que o sebo estava bem próximo dali.
Bastava continuar caminhando – Norte, sempre o
Norte... para a frente, para a frente. Pensei na possibilida-
de de o sebo não mais existir: se as traças destruíam, com
uma rapidez impressionante, as páginas dos livros, o que
não fariam com os casarões cheios deles?

108 Gabriel Biasetto


É que, desde que eu fora morar em São Paulo, não ha-
via, ainda – até aquele dia – me aventurado pelas ruas do
centro da cidade. Não me havia surgido a necessidade de
averiguar a existência do sebo – o sebo de minha infância –
o sebo do meu sonho. O sebo no qual estive, um dia, entre
aqui e ali, entre os espaços oníricos e reais, com Nathanael.
Tinha de continuar caminhando pelos arredores da
Catedral da Sé – os velhos, mendigos, as pessoas famintas.
A tristeza já tão banalizada do centro da cidade. A esma-
gadora maioria dos seres viventes naquele pedaço estava
passando fome sobre as calçadas de tijolinhos brancos
e pretos. Estendiam a mão, assim, sem mais nem menos:
dê-me um trocado. Que tempos...
Que abuso é ter de lidar com isso.
Não para mim, é claro. Eu estava, de certa forma,
protegido pelo conforto financeiro: à sombra das asas de
meus pais.
E os que não tinham coisa alguma para mordiscar? E
eu, tolo: só eu me importava com tal fato? Todo o restante
do mundo continuava a viver. Ninguém parava a vida, nin-
guém se decepcionava com Deus ou com a humanidade ao
se deparar com os pobres famintos que, ajoelhados – joga-
dos, largados e esquecidos nas calçadas imundas, pediam
trocados para comer ou fumar os seus cigarrinhos.
Que canseira isso tudo dá.

Quando ainda era verão 109


Já próximo de terminar o contorno da igreja, fui toma-
do por uma descarga de adrenalina. Lá estava o sebo.
Mas, antes: Nathanael.
O garoto caminhava com os coturnos – ia em direção
ao sebo. Vestido como em meu sonho no metrô. Caminha-
va, certeiro. Adentrou o sebo e sumiu por entre as estantes.
E eu ainda tinha de esperar para poder atravessar a rua – o
sinal fechado para nós, os pedestres.
Nathanael estava dentro do sebo do meu sonho.
Era isso mesmo?
Tudo parecia se conectar. Era algo assim incompreen-
sível, claro.
Quase de verdade.
Ou quase de mentira.
Sonho?
Morte?
Miragem?
Abriu o sinal e eu corri feito lebre. O coração a me so-
car o peito vinha em direção à boca. As palavras todas em-
baralhadas em minha mente: sonho, livros, traças, sebo...
Nathanael. Era mesmo aquilo? Era mesmo ele? Era?
Já próximo da entrada do sebo, diminui os passos e
soltei a respiração. A sensação onírica tomava conta de
tudo. Tudo era o sonho: a chuva, o guarda-chuva que-
brado, as balas de goma. Nada mudara, afinal de contas.

110 Gabriel Biasetto


Nem Bernardo tinha ido – nem Nathanael. Nem eu ti-
nha mudado coisa alguma. Eu era, ainda, aquela coisa
pequena e indefesa da cidade do interior. Eu era aquela
coisa que sentia medo, muito medo, que sentia medo de
dizer a verdade quanto aos desejos do coração – eu sen-
tia medo.
Foi então dada a largada: a procura...
Eu comecei a procura, buscava por todas as pratelei-
ras, por entre os livros, as fitas, os ácaros. O sebo intocável
– era o meu sonho! E caminhava pelos corredores, subia
e descia as escadas de ferro. A estrutura da casa parecia
prestes a cair: um cupim que soltasse a mão do outro e
aquilo iria ao chão.
Os poucos funcionários do sebo permaneciam cala-
dos, quietos – quase em estado de transe. Desempenha-
vam as suas funções como se estivessem em um desafio
– um retiro de silêncio. O silêncio dentro do ambiente era
tão grande, que se podia ouvir o barulho das páginas in-
tocadas se desdobrando lentamente por influência dos as-
pectos climáticos.
– Desculpe, será que pode me ajudar? – Aproximei-me
de uma funcionária. A moça era baixa, os cabelos lisos e
longos caiam por sobre a camiseta amarela com o logotipo
do sebo.
A mulher olhou para mim, parecia confusa. Enca-

Quando ainda era verão 111


rou-me por mais alguns segundos e, como se eu já não
estivesse mais lá, voltou para o trabalho de espanar livros.
– Moça... – Dirigi novamente a palavra à funcionária.
– Pode me dizer se entrou aqui um garoto mais ou menos
da minha idade? Estava de preto, com coturnos...
A mulher voltou a me encarar e, como há pouco, nada
respondeu.
Senti um mal-estar repentino. Tudo parecia lento, len-
to... era como se eu tivesse tomado drogas.
– Desculpe incomodar. – Eu disse, arrependido de ter
dirigido a palavra à vendedora.
A cabeça começava a pesar. Uma coisa esquisita assim
no peito... uma demora, uma lentidão.
Nathanael não estava lá.
Senti, então, uma espécie de exaustão que me doía a
batata da perna. Comecei a caminhar em direção à saída
– estava exausto, muito, muito cansado. Frustrado, sentin-
do-me esquisito, as lágrimas a me provocar os cantos dos
olhos. Passei pela porta de acesso às ruas e fui deixando o
sebo atrás de mim.
Olhei para a movimentação da rua. Era como seu esti-
vesse, aos poucos, voltando ao normal.
Quando estava já próximo à igreja e olhei para trás,
soltei um berro, horrorizado. O prédio em que, um dia,
fora o sebo, estava caindo aos pedaços. As janelas todas

112 Gabriel Biasetto


quebradas e as paredes descascadas. O que fora o telhado
era apenas uma estrutura de madeira enegrecida.

Sentindo a boca amarga e o coração disparado, fui ca-


minhando em direção ao ponto de ônibus.
Como aquilo era possível, afinal de contas? O que es-
tava acontecendo? O que estava acontecendo comigo?
Era loucura?
Eu enlouquecia, aos poucos, após ter provado do vene-
no – o veneno da existência de Nathanael. O nosso beijo,
os nossos lábios colados sob o ipê roxo da última noite do
verão. Naquele momento, Nathanael deixara em mim uma
marca, uma marca invisível. A marca que nos conectava,
que me fazia buscar por sua presença, que me fazia desejar,
querer... Mas o querer já não era suficiente, a impotência
me consumia e tomava conta de todo o meu ser. O sebo
destruído, o sebo no qual, segundos antes, eu procurava
por Nathanael – destruído, abandonado.
Já próximo de meu edifício, notei a silhueta de uma
moça alta e muito bem produzida; estava sentada com as
pernas cruzadas sobre a guia da calçada. Era Pérola. Linda
como sempre, fumava um cigarro – não notara a minha
aproximação. Tomou um susto ao sentir o meu dedo lhe
cutucando o ombro.

Quando ainda era verão 113


– Ah, Raphael, nossa! – Virou-se e, num salto, levan-
tou-se do chão. – Querido, onde você esteve? O seu portei-
ro interfonou, interfonou...
– Longa história. Fui até o centro da cidade.
Abri o portão do prédio e, enquanto atravessávamos o
corredor de entrada, contei a Pérola sobre a minha busca
por Nathanael.
– No centro, Raphaelzinho? – Dizia, rindo. – Está doi-
do? O centro é tão gigantesco. Por Deus... você precisa de-
sistir. Está louco, doido, doidinho...
Vai me achar verdadeiramente louco se souber o que
me aconteceu, pensei. Mas resolvi não contar nada a ela.
Não contaria nada daquilo para ninguém – não acredita-
riam em mim, é claro. Eu mesmo não acreditaria numa
história como aquela.
– Eu já estava indo embora. Esqueceu-se de nosso en-
contro? – Disse-me, magoada.
É claro!
Eu combinara com Pérola de recebê-la em meu apar-
tamento, tínhamos trocado algumas palavras por telefo-
ne alguns dias atrás e ela disse que gostaria de me visitar,
que eu conhecia a sua casa, mas que ela não conhecia a
minha. Estava tão doido, tão perdido pelo acontecimento
com Bernardo, pela busca por Nathanael... esquecera-me
completamente da visita de Pérola.

114 Gabriel Biasetto


– Olhe, tantas coisas acontecendo... – Eu dizia enquan-
to abria a porta. – Me desculpe, mas estou completamente
louco, tão perdido... você ainda nem sabe da coisa com o
Bernardo, não é?
– Ele morreu? – Perguntou, sobressaltada. Os olhos
arregalados e a mão por sobre o peito. – O que houve?
– Bem... não sabemos. Eu e Vitório... nós estamos de-
sesperados, mas não há muito o que possamos fazer. Ber-
nardo foi levado pelo pessoal do DOPS.
– Ah, não! – Pérola chorava. – Não, não... não acredito.
Não...
– Ele não tem parentes, ninguém próximo... eu não ha-
via me dado conta até então: eu e Vitório somos as únicas
pessoas que Bernardo tem. Digo, as únicas pessoas próxi-
mas do que se possa chamar família.
– Meu Deus, Raphael... – Pérola parecia desesperada.
– Por que não me contou antes? Por que não falou comigo?
Não que eu possa ajudar, mas...
– Eis a questão. – Eu disse, cabisbaixo. Sentamo-nos
no sofá.
– Acho que posso ajudar, sim.
– Como?
– Lembra-se de que saí com um policial há pouco tem-
po? Aquele dos coturnos...
Uma luz!

Quando ainda era verão 115


– Sim... estou me lembrando.
– Quero dizer, é claro, trata-se de um policial... talvez
esteja envolvido nisso tudo até o pescoço. Talvez faça par-
te de todo o show de horrores, mas... ele realmente gos-
tou de mim. Vez ou outra me liga. Tenho o telefone dele
também... podemos tentar alguma coisa. Pode ser que ele
conheça alguém, pode ser que nos ajude com o Bernardo.
– Pérola, você faria isso por mim?
– É claro, seu imbecil! – Disse, sorrindo. – É claro...
preciso voltar para a casa, então. A listinha em que ano-
tei o telefone do policial não está aqui comigo, está lá na
pensão. Preciso ir até lá. Vou ligar agora mesmo para ele.
Vamos encontrar o Bernardo! Vamos libertá-lo, você verá!
– Pérola... meu Deus, nem sei como te agradecer! Meu
Deus... estou tão, tão grato. Muito obrigado.
Abraçamo-nos sob os últimos raios de sol – o pou-
quíssimo sol do outono gelado – que entravam pelas fres-
tas da cortina da sala. Pérola olhou ao redor.
– Você tem um delicioso apartamento, aliás.
– Posso te levar para um tour.
– Não... estamos com pressa. Vamos encontrar o Ber-
nardo.
Pegou a bolsa e saiu.

116 Gabriel Biasetto


9.

Eu andava para lá e para cá, a inquietude do momen-


to se espalhava pela atmosfera do fim de tarde. A sala do
apartamento ia escurecendo aos poucos – não acendi a luz.
Deitei-me no sofá, as pernas em movimento constante, a
ansiedade pela espera de alguma notícia. Seria Pérola a sal-
vadora da pátria? Ajudaria Bernardo?
Ele estava vivo, afinal de contas?
Será que tinha sido torturado? O que estava aconte-
cendo com ele naquele exato momento? O pensamento me
levava à exaustão mental. Pensar em cada detalhe do que
fariam com ele – do que estavam fazendo com ele naquele
exato momento. À loucura, à loucura...
Perguntava-me, então, inquieto: enquanto estou aqui,
deitado, e o sol vai se pondo e a cidade escurece, o que está
acontecendo com Bernardo? Enquanto estou aqui, seguro,
o que estão fazendo com o meu amigo?
Aquilo me enchia de desespero – a impotência me ma-
chucava. As horas iam passando – cochilei, acordei, depois
cochilei de novo. Perto das dez da noite, o telefone tocou.

Quando ainda era verão 117


Levantei-me de sobressalto e, apressadamente, arranquei o
fone do gancho colado à parede da cozinha.
– Alô?
– Raphaelzinho, tudo bem? Só consegui falar agora
com o policial. Não atendia... acabamos de conversar e,
olhe só que burrice, eu tinha que ter perguntado. Preciso
que você me passe o nome completo do Bernardo.
– Não faço ideia. – Eu disse, surpreso.
– Você só pode estar brincando.
– Por que eu estaria?
– Raphael, me desculpe, mas, você vive com o cara! Ele
está dentro da sua casa diariamente e você não faz ideia do
nome completo dele.
Nunca me ocorrera, oras. Nunca me passara pela ca-
beça que Bernardo tinha sobrenome. Nem mesmo o de
Vitório eu sabia. Não era necessário saber – não era algo
importante.
– Ei, está aí? – Pérola parecia impaciente.
– Sim... estou! Desculpe, eu...
Tive, então, uma ideia. Era uma possibilidade.
– Olhe, espere um pouco, não desligue. Vou ver se
encontro algum documento dele, algo assim... Bernardo
guarda algumas pastas no guarda-roupa. Espere aí.
Deixei o fone pendurado e fui até o quarto dos me-
ninos. Abri o guarda-roupa – que eu tantas vezes abrira

118 Gabriel Biasetto


para assaltar medicamentos – e encontrei o que procurava.
Uma pasta de plástico que eu vira, algumas vezes, na posse
de Bernardo. Era uma pasta amarela e fina.
Abrindo a pasta, comecei a procurar por algum docu-
mento no qual houvesse o seu nome e sobrenome. A maior
parte dos papeis eram panfletos – peças de teatro, lança-
mentos de livros, impressões da faculdade. E então, após
tirar todos os papeis de dentro da pasta, encontrei a luz no
fim do túnel: era a certidão de nascimento de Bernardo.
Os nomes dos pais, os avós paternos e maternos – to-
dos já falecidos.
Senti um aperto no peito ao me lembrar do fato de que
Bernardo estava completamente sozinho no mundo.
Encontrei, então, o seu nome completo. Bernardo de
Oliveira Rangel.
– Bernardo de Oliveira Rangel. – Eu disse, esbaforido,
para Pérola, que aguardava do outro lado da linha.
– Certo... estou anotando. – Dizia, enquanto eu ouvia
o barulho da caneta rabiscar o papel. – Ran-gel... certo,
certo. Bernardo de Oliveira Rangel. Bem, vou entrar em
contato com o policial. Ele é gente boa, foi bastante resu-
mido quanto ao tema da nossa conversa. Não sei se é um
apreciador do momento presente, mas, de alguma forma,
se mostrou disposto a ajudar.
– Pérola... olhe, não sei como agradecer, eu...

Quando ainda era verão 119


– Ora, Raphael, não temos tempo para isso. Depois
nos falamos. Tchau.
Desligou.

– Pérola está tentando nos ajudar com o Bernardo.


– Eu disse para Vitório, que acabava de chegar. Parecia
exausto.
– Ajudar como?
– É uma longa história, mas ela conhece um policial e...
– Certo.
– Por que você está tão resumido?
Em silêncio, foi até o quarto e se sentou na ponta da
cama. Tirou os tênis e me encarou, mal-humorado.
– Olhe, Raphael, acho que o Bernardo está morto.
– Não diga bobagens! Não foi você mesmo quem me
disse que ele...
– Eu descobri exatamente o que aconteceu com a Ca-
rina. Eles a torturaram durante semanas e depois a mata-
ram. Eu estive com os pais dela hoje à tarde.
Estático, sentei-me ao seu lado. Sentia os meus lábios
tremendo.
– Por que foi visitar os pais dela?
– Porque eu queria saber!
– Saber de quê?

120 Gabriel Biasetto


– De tudo, porra! De como as coisas tinham aconte-
cido... sabe, Raphael, eu disfarcei por muito tempo, mas o
sumiço de Carina acabou comigo. Meu pai sempre odiou
me ver chorando, então reprimi essa coisa toda por muito
tempo, mas...
Desabou, então.
Vitório encostou o rosto em meu ombro e, a partir
dali, passou a lavar a minha camiseta com suas lágrimas.
Seu peito dava socos em meio ao choro desesperado e des-
controlado. Aquilo tudo era triste demais. Aquela situação
toda... aquele ano! Aquela vida!
– Eu sinto muito. – Eu dizia, em meio aos suspiros do
choro afogado de Vitório. – Sinto muito, Vitório... sinto
muito por tudo isso.
– Quando isso tudo vai acabar, porra? – Agora Vitó-
rio dava socos em meu peito. Eu permitia, permitia tudo...
que viesse a maré que há tanto habitava o seu peito. – As
pessoas... as pessoas não estão conscientes, Raphael! As
pessoas, muitas delas... muitas pessoas não fazem ideia
do que está acontecendo, compreende? Os meus pais,
eles... eles acham que tudo isso, que toda essa história de
torturas e repressão... acham isso normal ou acham que,
no fim das contas, nada acontece. Eles ainda não percebe-
ram que o seu filho, que nós, estudantes de Letras, também
podemos ser calados?

Quando ainda era verão 121


– Muitos só se dão conta quando são atingidos por
isso tudo, Vitório.
– Sim, quando é tarde... – Ele agora chorava em so-
luços. – Quando já não resta mais nada a fazer. E alguns,
mesmo quando atingidos, insistem em negar a realidade.
Não me sentindo mais disposto a dizer coisa alguma,
fui para o meu quarto e me deitei. Observei o céu por cima
de mim – a janela toda quebrada do apartamento, as ma-
ritacas fazendo uma baderna sobre os fios elétricos. Tentei
ler um pouco, mas não consegui. Tudo me remetia ao pen-
samento obsessivo das imagens que me traziam detalhe
por detalhe do que ocorrera naquela tarde em que vieram
buscar Bernardo.
A sensação que me acometia era algo como a ausência
já tão distante de alguém que, com certeza, não voltaria. Um
silêncio tão silencioso que, vez ou outra, era possível ouvir
a voz de Bernardo como que dentro de mim: Raphaelzinho.
E eu, já tão exausto das crises e dos choros – pensava,
inclusive, se não deveria voltar para o interior. O que havia
para mim ali, afinal de contas? Talvez o risco, apenas o ris-
co. O risco de acabar como Bernardo.
A universidade em greve.
Nathanael...
Tudo tão profundamente esquisito – o verão acabara...
o verão acabara.

122 Gabriel Biasetto


O verão acabara.
E eu já nem conseguia me lembrar exatamente do ve-
rão. Não conseguia colocar pensamento algum na cabeça
que reordenasse todos os meus passos, todos aqueles dias
que antecederam o meu encontro com Nathanael. A partir
daí, após aquela noite, após o fim do verão, tudo come-
çara a perder a forma. Tiraram os meus óculos, aqueles
que me permitiam observar a realidade. E então: sonhos,
Nathanael, o sebo abandonado no qual, segundos antes, eu
estivera. A busca por um indivíduo misterioso...
A coisa com Bernardo.
A coisa.
Que coisa?
O que estava acontecendo, afinal de contas?
Era a falta de notícias atrelada ao desespero já estabi-
lizado pela atmosfera daqueles dias: tudo ia enlouquecen-
do, enlouquecendo... era o ponto final, a última estação. A
estação na qual eu vira Nathanael – ele do outro lado dos
trilhos – consciente do meu desespero, mas ignorante da
minha necessidade.
Raphaelzinho...
E lá estava eu outra vez. Sim. Outra vez – como no
tempo antes de tudo aquilo, como na fase em que eu tatea-
va, suado e doente, buscando o interruptor.
Pijama, calmante e travesseiro... copo d’água sobre o

Quando ainda era verão 123


criado mudo, abajur e porta fechada, as luzes apagadas.
A minha cabeça borbulhando assuntos antigos, temas já
ultrapassados; nas narinas, o odor enjoativo de uma época
que pensei – e como fui tolo – d’uma época que pensei ter
deixado para trás. Dormia sonos assim ocos e profundos,
sonos de suspiros longos, febris. Dormia o sono da insatis-
fação. Sentia um êxtase de impotência; nada me agradava
na televisão; eu estava esperando, esperando... e nem sabia
ao certo o que aguardava.
Como que respondendo aos meus pensamentos, dois
dias após a triste conversa com Vitório, o telefone tocou,
estridente, na cozinha.
Era Pérola.

124 Gabriel Biasetto


10.

A greve acabara.
Dentro do ônibus, eu e Vitório seguíamos em meio à
manhã silenciosa em direção à universidade. Eu segurava
os meus cadernos e, como de costume, observava, pela ja-
nela, os pedestres vivendo suas vidas.
Vidas.
Aquela bizarrice toda era, ainda, chamada vida. Eu,
Vitório... tudo ainda era vida. As vidas dos universitários,
dos trabalhadores, dos motoristas de ônibus, dos cobrado-
res, dos maquinistas, dos vendedores... quem não estives-
se tão próximo assim da realidade brutal que se escondia,
ainda que pronta para arreganhar os dentes para qualquer
um que se dispusesse a observá-la com mais calma, nem
mesmo notava o que havia nas entrelinhas. Um desespero
quase cômico, uma sensação já próxima da derrota – ou já
estávamos todos derrotados, afinal de contas.
Vitório perdera o hábito da graça e do humor. Falava
muito pouco comigo e, nas vezes em que me dirigia a pa-
lavra, era para tratar de coisas muito pequenas ou quase

Quando ainda era verão 125


inúteis. No fim das contas, não tínhamos muito o que falar
– não havia mais conclusão alguma a respeito de coisa al-
guma. Lugar algum para se chegar; lugar algum para fora...
Descemos no Butantã e começamos a caminhada. A
manhã despontava e, aos poucos, eu me sentia tomando
forma. A falta de sentido já não mais me preocupava – per-
der-se um pouco mais no que já está perdido. Por que não?
A forma que eu tomava era aquela descrita há um tem-
po atrás, forma por meio da qual eu acessava todas as sen-
sações físicas do peso do meu corpo. A luz do sol batendo
em minha pele, o gosto do café preto e puro recém tomado
– a língua áspera, o peito oco, o coração oco, a vida oca.
Os passos, um atrás do outro, a sensação dos meus pés,
por dentro dos tênis, batendo no chão de asfalto. Vitório
silencioso, quieto, calado, para dentro.
Passando pelo portão de entrada, observei o grama-
do por sobre o qual eu me deitara com Nathanael naquela
noite – na última noite antes do fim do verão. O ipê, tão
florescido naquele dia, era agora quase um esqueleto de
galhos úmidos.
Mais algumas quadras e demos de cara com Maurício,
a bicha de unhas pintadas. Veio ao nosso encontro, cabis-
baixo. Um olhar triste, tristíssimo. Nos cumprimentou com
um breve abraço. As unhas estavam sem esmalte algum.
– Sinto muito pelo Bernardo.

126
III
Tempo de silêncio

Beijo-a forte uma última vez. Em seguida,


seguro as duas pontas do lençol enroscado
ao pé da cama e puxo-o para cima de você,
cobrindo-a inteiramente, fosse um sudário.

Tatiana Salem Levy, A Chave de Casa


11.

Pérola chorava muito, eu logo entendera a conclusão


daquilo tudo: Bernardo estava morto, é claro. Ela não me
dizia, não deixava as palavras saírem. Chorava copiosa-
mente, vez ou outra um “sinto muito” ou coisa do tipo.
Eu estava seco. Não mais choraria, não mais me engana-
ria pelo falso alívio das lágrimas, do desacúmulo de ondas
marítimas – tantos mares eu vinha tirando de dentro de
mim, tantas enchentes, alagamentos... estava agora com-
pletamente árido. O deserto era a minha alma.
Assim, no momento em que Pérola conseguiu cessar
o choro paradoxalmente infinito, soltei a respiração e lhe
perguntei, de forma calma e quase robótica:
– Morto?
Vitório veio correndo do quarto. Eu não devia ter dito
aquela palavra, não podia ter feito aquilo com ele, não da-
quele jeito. A notícia fora dada da maneira mais estúpida
e leviana possível; Vitório ouvira a palavra sair, assim, sem
mais nem menos, de meus lábios secos e cansados: morte.

Quando ainda era verão 131


Morto.
Começou a me cutucar as costas. “É Pérola? O que
aconteceu? Morreu? Bernardo morreu?”.
Vitório gritava – naquele momento, sim, eu temia uma
multa de condomínio.
Não estava mais presente – não fazia mais parte de
coisa concreta. Do mundo, das cores, da cidade... ia me
desligando.
Pérola relatou a conversa com o policial. Encontraram-
se num hotel, conversaram por horas a fio. Ela já tinha dado
a ele, anteriormente, o nome completo de Bernardo. O po-
licial pedira para encontrá-la. “Vou pagar”, Pérola repetiu as
palavras dele. “Vou pagar como no último encontro.” E, de
fato, pagou. Tiveram uma noite tranquila, pouco se agarra-
ram – o homem vivia meio que em cima do muro e estava
apenas carente dos afetos de uma moça. Defendia o golpe,
mas não estava muito de acordo com o que vinha ocorrendo
a partir dali. Pérola, cansada de toda a encenação, pedira,
enfim, para que ele abrisse o jogo: que porra acontecera com
o tal Bernardo? Ele tinha, de fato, alguma informação?
Revelou-lhe, então, algo perigosíssimo de ser divulga-
do. Fez-lhe prometer que não compartilharia nada daquilo
com ninguém – para tanto, Pérola fingiu ser Bernardo um
de seus ex-clientes devedores, por isso a sua procura deses-
perada pelo garoto, de modo que não havia outro alguém

132 Gabriel Biasetto


envolvido em nada daquilo. O policial, sentindo-se mais à
vontade para compartilhar o que sabia, contou à Pérola uma
das artimanhas dos militares – faziam com que os médicos
assinassem documentos que comprovassem o falso suicídio
de alguns presos. Estavam tão arrebentados e com os cor-
pos tão tristemente modificados pela tortura, que era mais
proveitoso divulgar as mortes como suicídios, isso quando
não acontecia de simplesmente sumirem com os corpos.
O caso de Bernardo era esse. Fato é que o garoto não
tinha família e por isso ninguém ficara sabendo que ele
“dera cabo da própria vida”.
– Fiz um esforço desgraçado, Raphaelzinho... – Re-
começou a chorar do outro lado da linha. – Um esforço
absurdo para não começar a gritar, a soltar berros de de-
sespero. Senti um gelo por todo o corpo, percebi que, mais
um pouco, e o policial ficaria violento. Ia notar que eu es-
tava mentindo, que talvez eu estivesse metida num desses
grupos de resistência. Podia pensar que eu era comunista.
Então, pedi licença, tranquei-me no banheiro e deixei as
lágrimas caírem silenciosamente pelo meu rosto.
– Pérola...
Ela chorava mais e mais. Vitório, então exausto dos
próprios gritos de desespero, fechara uma das mãos em
torno de meu braço, do braço desocupado, já que com o
outro eu segurava o telefone. Seus dedos iam me pressio-

Quando ainda era verão 133


nando, as minhas mãos já ficando roxas. Tive a sensação
de que Vitório apertava-me daquele jeito pois, a seu modo,
queria, assim como Pérola, chorar em silêncio.
– Pérola, você é uma amiga muito especial. Obrigado
por tudo. Me desculpe por ter te colocado numa situação
de tamanho risco. Eu amo você.
– Também amo você, Raphaelzinho.
Desligamos, enfim.
Me desvencilhei de Vitório e, olhando bem em seus
olhos, disse:
– Quero que você se conforme. Temos que nos con-
formar.
Tranquei-me em meu quarto. Não era tristeza, nem
desespero, nem angústia... o que eu sentia, no fim das con-
tas, era raiva.
Silêncio.

Eu nunca havia feito nada parecido com aquilo. Nunca,


em toda a minha vida, eu tomara a decisão de passar por
cima de uma situação como eu vinha passando por cima
de toda a coisa com Bernardo. Irredutível, eu era um trator
que derrubava tudo o que via pela frente sem olhar para os
lados. Ia à faculdade, sentava-me na última carteira – as-
sistia às aulas como que suspenso, flutuando sobre uma ca-

134 Gabriel Biasetto


mada de algodões mergulhados em anestésicos. Estava, eu
mesmo, anestesiado. Ocupava-me de tarefas domésticas,
tentava não pensar muito. Lavava roupa com uma concen-
tração zen budista. Estudava, lia assiduamente os romances
de ficção que eu começara a emprestar, aos montes, da bi-
blioteca da universidade. Arrumava a casa, faxinava, lim-
pava os cômodos como se tivessem me contratado para tal.
O apartamento nunca estivera tão limpo e tão silencioso.
Vitório pouco falava.
Eu pouco falava.
Vivíamos em constante silêncio. Comíamos em silên-
cio, ouvíamos o rádio, vez ou outra caminhávamos até o
fim da rua. A televisão, que era uma caixa desligada desde
que Bernardo fora levado, parecia nos encarar, questio-
nando o nosso silêncio.
O café nos salvava. Sim. Todo o processo de despejar
o pó para dentro do filtro, ferver a água e passar o café – a
gentileza dos movimentos nos trazia um certo conforto.
A sensação de leveza que, muito raramente, nos sustenta-
va enquanto caminhávamos descalços pelo chão de tacos.
A caneca fumegante na mão, o cheiro amargo-doce espa-
lhando-se pelo ar. Era essa a nossa única conquista quanto
à possibilidade da alegria.
Viver a rotina, de certa forma, enganava-nos da reali-
dade.

Quando ainda era verão 135


Era uma tarde de quinta-feira, eu andava em direção
ao consultório do doutor Pedro Malasca, psicanalista re-
comendado por Vitório. Estava convencido, afinal, de que
me deitar sobre o divã e deixar tudo desabar para fora de
mim seria, de alguma forma, uma coisa boa. Cruzara toda
a extensão da Rua Augusta e, já próximo do fim, notei o
pequeno prédio envidraçado. Passei pela portaria vazia e
tomei o elevador. “Fica no terceiro andar, Raphaelzinho.
Você nem olhe tanto nos olhos dele, ouviu? É uma coisa
estranha ficar encarando psicanalista, não se deve...” Vitó-
rio me aconselhara.
A sala era escura, a única luz vinha de um pequeno
abajur – uma luz amarelada que transformava aquele local
no útero de uma mãe. O doutor Pedro Malasca era um
homem bonito – embora eu não tenha olhado muito para
ele, já que seguia o conselho de Vitório. Tinha cabelos gri-
salhos nas têmporas. Era cheirosíssimo. Ao entrar em sua
sala, senti um delicioso perfume amadeirado. Ele era alto,
usava sapatos de couro marrom, tinha um lindo relógio de
prata que, meio que pendurado no pulso esquerdo, pendia
fazendo barulhinhos de metal.
– Boa tarde. – Disse-me, com uma voz grossa e potente.
– Boa tarde. – Eu respondi, de cabeça baixa.
Era mesmo necessário todo aquele teatro?
Vitório devia estar exagerando.

136 Gabriel Biasetto


– Pode se sentar ali, naquela poltrona.
– Ué, não vou para o divã? – Eu perguntei, observando
o lindo divã aveludado, cor de vinho.
– Ah, não... isso acontecerá em breve, caso você goste
da nossa conversa.
Ele era simpático, simpaticíssimo, afinal de contas.
– O meu amigo me disse para não olhar para você.
– O que? – Ele ria.
– Disse-me que psicanalista não pode ser encarado.
Ele ria mais.
– O seu amigo deve ter chegado a tal conclusão porque
normalmente os pacientes e os psicanalistas não se enca-
ram. Vocês ficam no divã e nós, sentados ouvindo. Mas,
não há problema algum em nos olharmos.
Eu me sentara na poltrona. Olhava para aquele homem
– um imenso guarda-roupa, isso sim. Podia um paciente
gostar fisicamente do psicanalista? Podia um paciente de-
sejar sexualmente o terapeuta?
– E então... – Ele disse, juntando as mãos.
– Olhe, eu... – Eu não estava preparado para aquilo.
Pensei que ele falaria. Que me analisaria. – Eu estou numa
fase danada.
– Fase danada?
– É... uma fase assim infernal, o senhor compreende?
– O que está acontecendo?

Quando ainda era verão 137


– Olhe, o senhor não vai me denunciar?
– Denunciar?
– Um amigo meu foi morto pelos militares.
Ele concordava com a cabeça. Parecia não saber muito
bem o que dizer. Estava espantado, tenho certeza, embora
fizesse um imenso esforço para fazer de conta que a minha
fala não lhe provocara coisa alguma.
– Ele foi levado há algum tempo. Vieram num fusca, o
senhor compreende?
– Compreendo.
– Devem ter feito horrores. Sabe que as pessoas dizem
que essa história de tortura é imaginação dos comunistas?
Dizem que é tudo coisa inventada pelo pessoal da esquer-
da, que isso não existe. Mas, existe, doutor. Existe. A na-
morada do Vitório foi assassinada.
Ele continuava me olhando. Não dizia nada. Agora
nem mesmo concordava com a cabeça.
– O Vitório, é claro. O senhor deve estar se pergun-
tando: quem é Vitório? Pois eu lhe digo: o Vitório é o meu
colega de apartamento. E tem também o Bernardo, quer
dizer... o Bernardo é o colega que morreu.
– O que foi morto?
– Isso. O Bernardo foi levado na minha frente, o se-
nhor acredita? Quer dizer, eu olhei tudo de lá de cima, nós
moramos no oitavo andar. Eu vi da janela do apartamento.

138 Gabriel Biasetto


Pegaram o Bernardo de um jeito brusco, fizeram voar a
mala de rodinhas, pegaram pelo cabelo e jogaram dentro
do carro. A partir daí, só Deus sabe...
E o doutor não dizia coisa alguma.
– O senhor não quer dizer nada?
– Você acha que devo dizer algo?
– Bem... eu...
– Por que não me conta um pouco de você? Quem é
você... – Ele pegou uma prancheta e observou o papel pre-
gado. – Raphael... quem é você, Raphael?
– Olhe, eu sou o Raphael Mendes Campos. – Eu disse,
começando a achar graça naquilo tudo. – Tenho vinte e
três anos, sou de uma cidadezinha do interior, estou aqui
fazendo Letras na USP. Eu gosto de literatura, gosto da
Clarice Lispector. O senhor conhece a Clarice Lispector?
– Conheço.
– Eu gosto muito de São Paulo. Eu estou aqui para es-
tudar, mas pretendo continuar para sempre aqui. É que
aconteceram umas coisas na última noite do verão. Eu es-
tava numa festa da universidade. Olhe, o senhor não pense
que sou baderneiro, eu não gosto de drogas, mas às vezes
uso porque todo mundo está usando, então não posso ficar
boiando, não posso ficar de fora. Eu gosto de lança perfu-
me, confesso. Mas é leve, não é? Não sei o que penso de
maconha, às vezes fumo, é bom, mas... nem sei se faz tanto

Quando ainda era verão 139


efeito ou se é aquilo que chamam placebo. Mas, a verdade:
o senhor, por favor, tente entender que não é desvio de ca-
ráter. Eu às vezes aprecio estar na companhia dos garotos.
Ele pareceu não compreender muito bem.
– Ficar na companhia dos garotos?
– Beijar...
– Ah, certo.
Paralisei por alguns segundos. O que será que ele pen-
sava daquilo?
– O que o senhor pensa disso?
– O que penso do quê?
– De eu gostar de meninos?
– Olhe, eu quero que você me diga o que pensa. Estou
aqui para te ouvir e quero saber o que você pensa de tudo.
– De tudo?
– De tudo que acontece com você, de tudo que passa
pela sua cabeça.
– Eu penso que não há problema em gostar de garotos,
pelo menos não para mim, mas é para os outros.
– Bem, o importante é não ser problema para você.
Você é quem está aqui, não é?
– Sim. O senhor tem razão.
Olhei ao redor. A sala era tão confortável, tão segura.
A luz do abajur era algo como uma calma imensa no peito.
Penso que, se ficássemos os dois num silêncio absoluto,

140 Gabriel Biasetto


seria possível ouvir o som do oceano. As ondas batendo
contra as pedras.
– Bem, eu conheci um garoto na última noite do verão.
Nathanael. Não sei o sobrenome. Não sei quem ele é, mas
nós nos beijamos. E então ele desapareceu completamente.
Nunca mais consegui encontrá-lo e isso se tornou um pro-
blema para mim. Um problema imenso. Eu às vezes penso
tê-lo visto em algum lugar, mas é mais um sonho, uma coi-
sa meio dormir estando acordado, o senhor compreende?
Eu fico procurando por ele nas placas, nas ruas, nos rostos
das pessoas. Eu queria encontrá-lo, mas não encontro. Isso
tem me feito mal, junto com a morte do Bernardo, e aí to-
das as outras coisas boiam.
– Boiam?
– Ah, sim... como se todos os meus problemas do pas-
sado, toda a coisa que eu sofri estando ainda lá no inte-
rior... tudo isso volta à superfície, o senhor compreende?
– Compreendo. É uma boa metáfora.
– Obrigado.
– Raphael, você gostaria de fazer análise?
– Como vai ser?
– Bem, você pode vir aqui até... deixe-me ver. – Abriu
uma gaveta de uma pequena peça ao lado de sua poltrona.
Pegou uma agenda e começou a folhear. – Pode vir até duas
vezes por semana, se quiser. E aí conversamos sobre valo-

Quando ainda era verão 141


res... ou pode vir uma vez por semana. E me contar tudo que
quiser, e aí conversaremos sobre tudo, absolutamente tudo.
– Acho que vou querer, mas não tenho dinheiro assim
para duas vezes. Prefiro vir uma vez só.
– Tudo bem. Você é quem sabe.
Combinamos sessões semanais, então. Toda quinta-fei-
ra, às quatro e vinte.

142 Gabriel Biasetto


12.

Pérola me recebeu por de baixo de um roupão de ba-


nho. Os cabelos estavam úmidos, a testa ainda molhada.
Veio meio apressada, pois o frio havia, enfim, se estabili-
zado. Abriu o portão do pensionato. Algumas freirinhas
trabalhavam no jardim, plantando e replantando, revol-
vendo a terra, regando... Abracei Pérola com toda a força
que pude. Era a primeira vez que nos víamos desde o que
acontecera com Bernardo. Ela me parecia diferente, como
se, de alguma forma, eu estivesse vendo o avesso de um
bordado: sem o coque no cabelo, sem a maquiagem, sem
as roupas estonteantemente bonitas. Apenas uma moça
que saíra do banho e, sob o roupão felpudo, vinha abrir a
porta para o amigo enlutado.
Subimos as escadas em direção ao quarto. Suas colegas
não estavam – éramos só nós dois. Como da outra vez,
ficamos fumando na janela e observando o bairro. A pai-
sagem acalmava os nossos corações.
– No fim das contas, você me fez uma visita pela me-
tade. – Eu dizia, enquanto tragava. – Naquela tarde... lem-

Quando ainda era verão 143


bra-se? Estou te devendo um café.
– Está mesmo, Raphaelzinho... a verdade é que ainda
não pude te dizer o que eu ia dizer naquele dia. Não queria
ter que dizer assim, em meio a tudo o que aconteceu, mas
não devo ficar enrolando.
– Enrolando? Do que está falando? – Eu perguntei, já
ansioso.
– Estou doente, Raphaelzinho.
– Doente? Como assim doente?
Era demais para mim. Não. Não depois do Bernardo
– não depois de Nathanael, não depois do verão, não de-
pois de tudo que acontecera antes. Era a vida um show
de horrores? Era a vida uma espécie de aquário? A cobaia
de Deus – os serezinhos todos apertados, lutando para so-
breviver. Não.
– Estou com um câncer de pulmão, Raphaelzinho.
– E fumando, porra? – Eu disse, descontrolado.
– Não vou viver.
– Claro que vai! É claro que você vai viver, Pérola! Está
maluca? As pessoas vivem, elas passam por isso... é só você
parar de fumar! Pare! Jogue a merda do cigarro longe. Vou
apagar o meu também. Você está louca? Está completa-
mente louca!
– Raphael. – Ela parecia tranquila. Tragara mais uma
vez e soltara a fumaça como que debochando de tudo aqui-

144 Gabriel Biasetto


lo. – Eu vou morrer. Não sei quando, mas em breve. Não
há o que fazer. Você acha que eu não me consultei? Acha
que não fui ao médico? Não posso fazer nada. Estou apro-
veitando o que me resta. Vou queimar até a última ponta,
você me entendeu?
– Pérola, eu...
– Está tudo bem. Entenda, Raphael, está tudo bem. Eu
não tenho esse apego à vida, as coisas são todas instáveis,
mesmo, você bem sabe. Uma hora estamos, e depois, não
é bem que não estamos mais, é só que estaremos de outra
forma e eu não estou ligando muito para isso. Não tenho
pai e mãe, não tenho muita coisa na qual possa me prender.
– Prenda-se a mim! – Os meus olhos úmidos.
Apenas úmidos. O choro fora todo embora após a
morte de Bernardo.
– Você é tão jovem, Raphael. Sabe quantos anos eu te-
nho?
– Trinta.
Soltou uma gargalhada. A gostosa gargalhada de Pérola.
Como podia haver graça naquilo tudo?
– Tenho quarenta e nove anos, Raphael.
– Não...
– Sim. Estou linda, não estou? Não vou ficar velha.
– Vai! Vai ficar velha, porra! Você vai ver, isso vai pas-
sar e...

Quando ainda era verão 145


E então Pérola pressionara as mãos em torno de mi-
nhas bochechas.
– Raphael, me escute e olhe bem para mim. – Pela pri-
meira vez na vida, Pérola estava falando sério, bem sério.
– Você é jovem, você vai ter tantas experiências. Esta mer-
da toda, o país... vai passar. Você vai superar. Mas, eu... eu
estou cansada!
Então chorei.
Eu que pensei que nunca mais choraria – chorei, cho-
rei copiosamente.
– Aliás, o meu nome... você nunca me perguntou.
– Como assim? Você se chama Pérola.
– Não, Raphaelzinho. Para alguém com vinte e poucos
anos você é realmente inocente.
– ... olhe, por favor, você tem que fazer um tratamen-
to! Você tem que se ajudar. Por que não procura fazer um
tratamento?
– Porque não quero. Estou fodida, toda fodida, enten-
deu? Não vou me humilhar. Juro. Não vou!
– Você não pode estar fazendo isso comigo, você...
– Com você? Ora, Raphael, cresça! Não estou fazendo
coisa nenhuma, porra nenhuma com você! O mundo não
gira em torno de você. As pessoas têm o direito de decidir
o que farão com as suas próprias vidas!
Pérola jogou a guimba do cigarro pela janela. Olhou-me

146 Gabriel Biasetto


firme nos olhos e disse:
– Vá. Vá embora.
– O que?
– Vá! Eu quero ficar sozinha.
Ainda com lágrimas nos olhos, fui me distanciando,
havia em mim a esperança de que ela me pedisse para ficar.
Não pediu.
Não fiquei.
Também não quis ouvir o seu verdadeiro nome. Péro-
la era Pérola e nada daquilo mudaria. Não se dependesse
de mim.

Eu e Vitório tomávamos café enquanto assistíamos a


um filme com Marilyn. Havia um cenário, Marilyn vesti-
da inteiramente de rosa, os brincos de diamantes penden-
do nas orelhas. Os cabelos tão maravilhosamente loiros.
Cercada por homens engravatados em meio a um cenário
todo vermelho – era como a sala do doutor Pedro Malas-
ca. Eu tinha acabado de voltar de minha segunda consulta
com ele, aliás. Vitório me pedia para contar tudo – queria
saber se eu levava sonhos para a terapia. “Os sonhos, Ra-
phael... os sonhos são a coisa da qual os psicanalistas mais
gostam, pois é através deles que se pode identificar todo o
problema, compreende? São os sonhos que tornam possí-

Quando ainda era verão 147


vel resolver a porra toda, entender o que está acontecendo.”
– Por um acaso você é formado em psicologia? – Eu
perguntava, irônico.
– Não, mas eu leio para um cacete, você entende, meu
caro?
Vitório estava, aos poucos, voltando ao seu normal.
Com suas piadas pouquíssimo engraçadas, as tais “saca-
das” que muitos consideravam geniais e eu pensava se tra-
tarem de uma urgência em ser amado – sim, Vitório tinha
urgência, uma certa carência e, através do humor, tentava
mascarar a sua necessidade de afeto.
– Você acha que, lendo, pode compreender do que se
trata a coisa toda?
– Bem, Raphael, me diga: o que você sonhou na noite
passada?
– Não me lembro.
– Pois comece a me contar os seus sonhos e eu adivi-
nho tudo que tem por trás. Aí você leva para o doutor e ele
vai te dizer que estou certo. Combinado?
– Não vou te contar os meus sonhos, Vitório. E cale a
boca porque quero prestar atenção no filme!
– Essa Marilyn se fodeu a vida toda, você sabia? Coita-
da... era uma drogada rejeitada por todos. Só tinha beleza.
Acabou se matando, você sabia?
– Não se sabe se ela se matou!

148 Gabriel Biasetto


– Ah, sim, se matou! É óbvio que se matou, Raphi-
nha! Ela não tinha muito o jeito para a coisa, para a vida,
entende?
Seu comentário me lembrou a fala de Pérola naquela
última vez em que estive no pensionato. Desde então, eu
tentava não pensar muito naquilo, embora a lembrança que,
às vezes, tomava conta de mim, fizesse com que eu me sen-
tisse inteiramente triste e ansioso. Já se passara uma semana
desde que Pérola me mandara embora de sua casa. Parecia
estar num certo estado de negação, essa era a minha conclu-
são. Não era possível que ela estivesse tão tranquila assim
com uma doença tão grave. Não era possível que ela estives-
se tão desapegada da vida como tentava fazer parecer.
Fui ficando mal-humorado com os comentários de Vi-
tório. Ele não me deixava ver o filme, também os meus
pensamentos iam me atormentando. Desliguei a tevê e fui
para o quarto.
Sonhei com Nathanael.

Quando ainda era verão 149


13.

Primeiro, Maurício desabotoou os botões de meus


jeans. Deixei que ele fizesse tudo aquilo. Tirou minha ca-
miseta, começou lambendo e beijando-me a barriga, ia su-
bindo até que, com os dedos, apertava os meus mamilos
duros. Eu estava estranhamente excitado. Precisava daqui-
lo. Imprevisivelmente, acabei topando fazer com ele mes-
mo. Com Maurício. As unhas outra vez pintadas, um preto
fosco e muito bem pincelado. Eu nunca sentira atração por
ele, achava-o, inclusive, irritante por sua insistência em es-
tar em todos os lugares ao mesmo tempo, sabendo de tudo,
querendo espalhar notícias, fofocas, criar intrigas.
Maurício não era o que se podia entender por boa pes-
soa, mas as coisas já estavam num nível em que nada mais
me preocupava. Por bem ou por mal, eu estava tentando
fazer com que a minha vida continuasse. Enquanto ele me
penetrava, eu fechava os olhos e imaginava Nathanael.
Sim, o pau não era de Maurício – era o pau de Nathanael
que me fodia gostosamente.

150 Gabriel Biasetto


Quando terminamos tudo, jogamo-nos, nus, por so-
bre a minha cama. Anoitecia. Vitório não estava em casa,
tinha ido visitar os pais naquele fim de semana.
– Fiquei surpreso com a sua visita. – Eu disse, esbafo-
rido e cansado.
– Eu vim para ver como vocês estavam... não sabia que o
Vitório não estava aqui. Sinto muito mesmo pelo Bernardo.
– Está surpreso comigo?
– Surpreso?
Acendi um cigarro, ofereci o maço para Maurício.
– Está surpreso por eu ter lhe convidado para se deitar
comigo?
– Não... – Maurício soltava a fumaça. – Sempre achei
que você tivesse uma quedinha por mim.
Imbecil.
– Pois é... – Decidi não contrariar. Eu nunca mais bei-
jaria a sua boca ou faria qualquer coisa com ele. Não me
importava muito com o que ele pensasse.
É que eu estava precisando daquilo. Exausto das des-
graças recentes, da espécie de rompimento que tive com
Pérola, da morte de Bernardo. E Nathanael...
– Você acredita que nunca mais encontrei aquele garo-
to? – Eu dizia a Maurício.
– Que garoto?
– O Nathanael.

Quando ainda era verão 151


– Ah, sei... eu te disse que ele não fazia História. Co-
nheço todo mundo, Raphael. Todo mundo!
– Você é como uma tia velha do interior.
Ele riu.
Pensei que ficaria ofendido. No fim das contas, Mau-
rício era tão autocentrado, que não percebera o meu tom
jocoso.
– Ando procurando por ele.
– Numa cidade como São Paulo?
– Sou um sonhador, Maurício. Eu dificilmente de-
sisto... e, mesmo que não consiga encontrá-lo, acabo me
aventurando por aí. Você faz o que o dia todo? Trabalha?
– Não, não trabalho. Estudo.
– Estou fazendo análise, sabia?
– Que furada...
Maurício estava começando a me irritar.
– Furada?
– Sim. Análise é a maior furada. É um saco! Não se
chega a lugar algum.
– Você já fez análise, querido? – Eu me levantava da
cama e caminhava em direção ao banheiro. Abri a torneira
e comecei a lavar o rosto.
– Nunca fiz, mas sei que é furada. Leio muito, entende?
– Ele também se levantava, estava agora vestindo as roupas.
Voltei do banheiro e, entediado, olhei para Maurício

152 Gabriel Biasetto


colocando a camisa do avesso. Não disse nada e nem mes-
mo ele percebeu.
– Você é muito prepotente. – Eu estava com vontade
de fomentar uma discussão.
Quem ele pensava que era, afinal de contas? Estava em
meu apartamento, acabara de me penetrar. Eu lhe deixara
entrar, literalmente, dentro de mim. E agora ele me vinha
com suas visões porcamente impostas.
– Não sou prepotente, só sei do que falo.
– Bem, então se apresse e suma daqui. Sei muito bem
o motivo da sua visita. Veio até aqui porque quer saber de-
talhes da morte do Bernardo. Veio até aqui porque quer in-
formações para fermentar o bolo de fofocas durante as aulas
de amanhã. Você é um entediado, Maurício. E transa mal!
– Bem, olhe só. – Ele dizia, fingindo-se equilibrado. –
É por isso que acho que análise não serve para nada. Você
está falando bobagens em cima de bobagens porque não
consegue lidar com os fatos da vida. Com licença.
Pegou suas chaves e a carteira. Calçou os tênis e saiu.

Mais tarde naquele dia, contei a Vitório sobre a visita


de Maurício.
– Por que você deixou ele entrar? – Vitório estava irri-
tado, a visita aos pais não havia sido boa.

Quando ainda era verão 153


– Ah, sei lá. Eu estava excitado e precisava daquilo.
– E foi bom?
– Não.
– Sabe, Raphael, às vezes eu acho que você devia tentar
com as garotas.
– Já tentei.
Vitório esbugalhou os olhos e soltou uma gargalhada.
– Bem... de fato, nem mesmo consigo te imaginar com
alguma garota na cama.
– Aconteceu lá na minha cidade, foi horrível. O meu
pau não subiu.
Terminamos aquele dia rindo – era como se, depois de
tanto tempo, algumas coisas estivessem, enfim, voltando ao
lugar. Não havia muito o que pudéssemos fazer quanto ao
que ocorrera com Bernardo, a não ser guardar conosco a
convivência que tivemos com ele. Eu estava me tornando
um clichê ambulante. Queria ser simples, simples: tão can-
sado de tudo aquilo, de todas as tentativas infrutíferas quan-
to à busca por Nathanael – ou ao menos pelo entendimen-
to de quem ele era. Isso ainda me aborrecia e, quando não
pensava nisso, minha mente circulava em torno de Pérola
e de nosso afastamento após aquele terrível momento que
tivemos no pensionato. Tudo o que eu queria era tê-la por
perto, abraçá-la, dizer que ficaria tudo bem, que eu estaria lá
por ela. Mas eu estava, de alguma forma, aprendendo a ficar

154 Gabriel Biasetto


sozinho, a conviver comigo mesmo, a segurar, eu mesmo,
as minhas próprias rédeas. Pérola não me queria por perto,
talvez não estivesse conseguindo lidar com a própria situa-
ção e não quisesse se ver comprometida com os meus afetos,
com o meu desejo de que ela permanecesse viva e saudável.
Falei sobre isso em minha terceira sessão com o doutor
Pedro – eu finalmente me deitara no divã. A sensação era
maravilhosa. Afinal de contas, eu podia falar sobre tudo e
não me sentia repreendido ou com medo dos julgamentos
de meu terapeuta. Era uma sensação boa poder, de alguma
forma, desabrochar. E eu falava sem parar – a faculdade,
a decisão de ter me mudado para São Paulo, Nathanael,
Bernardo, Vitório, Maurício... tudo aquilo era um acúmu-
lo de questões – a vida inteira ia, assim, feito correnteza de
rio em curso, fluindo por entre as chaves de minha mente:
eu abria portas e mais portas à medida que me deixava
ser lido – analisado – pelo doutor Pedro Malasca. E aquilo
me fazia, de alguma forma, chegar bem próximo do cerne
das questões.
– O que você espera de Nathanael? – Ele me pergun-
tara.
– Poder tê-lo próximo a mim. Beijá-lo, estar novamen-
te com ele... da mesma forma que estivemos juntos naque-
la noite, na última noite antes do fim do verão.
– O fim do verão... você fala muito sobre o fim do verão.

Quando ainda era verão 155


– Tudo coube naquele verão...
– Tudo coube?
– Bernardo ainda conosco, eu estava tão animado...
tinha chegado há pouco tempo em São Paulo. E Natha-
nael, e uma esperança de que a minha vida deixaria de ser
medíocre.
– Você acha a sua vida medíocre?
– Não tanto como antes, mas acho.
– Por que?
– Porque não chego a lugar algum. Estando aqui ou lá
no interior. Nada acontece, a minha sensação é como se
eu vivesse dentro de um aquário, sou como um peixe pre-
so dentro do aquário. Não tenho ninguém. Estou sozinho,
sempre desacompanhado. E sou eu mesmo o meu próprio
problema, disso tenho consciência. Sinto-me profunda-
mente magoado pelo que Pérola fez comigo.
– Utilizando um termo do qual você gosta, quando
tudo isso começou a... boiar?
– No início do outono. Quando Nathanael se tornou
invisível e inexistente.
– Quando as coisas foram melhores?
– Quando ainda era verão.

156 Gabriel Biasetto


14.

Os verões sempre me foram longos demais. Houve


um verão, não muito tempo antes do último verão – não
muito tempo antes do verão com Nathanael – no qual es-
tive deprimido e ansioso, doente – eu cozinhava dentro de
minha própria redoma de aflição. Um verão interminável,
um calor infernal. O verão em que meu cachorro morrera
eletrocutado num fio que se soltara de um dos postes da
rua. O verão no qual eu decidira falar sobre aquilo que
vinha me acompanhando, o tal sentimento que me dife-
renciava tanto de tantos outros garotos. O verão no qual a
minha avó morrera após uma queda na escada do quintal.
Um verão de perdas. De pedras. De rochas quentíssimas
que iam pesando, assim, por sobre as minhas costas. Uma
dor constante na lombar, no pescoço – sentia sempre uma
presença, algo assim como uma mão no ombro. E a mão
estando ali à disposição como se pudessem me puxar ou
me empurrar. As mãos a me ameaçar, o medo que me cola-

Quando ainda era verão 157


va a língua no céu da boca, que me fazia tremer os dentes:
aquele verão fora interminavelmente terrível.
Foi quando comecei a enxergar – e a pensar – na possi-
bilidade da morte. Não como os suicidas, mas como quem
deseja e sente a morte se apresentar, como quem quer tê-la
perto e, por contexto ou eventualidade, quer que ela ocor-
ra, simplesmente. Quase uma morte de pré e pós consciên-
cia, de saber que se morre e, após: saber que se está morto.
Para ver reações, para estar consigo mesmo na eterna soli-
dão do não mais estar. Sensações assim tão paradoxais. A
morte de tanta gente e, após aquele verão – e após o último
verão – as coisas começavam a se repetir. Só mudavam as
casas, as paisagens, os locais físicos e sensoriais. Ainda as-
sim, as coisas se repetindo, repetindo... um fluxo eterno de
frustrações pela perda. Eu vivia lutos interminavelmente
entediantes. Comecei, então, a temer a morte, a não mais
ver nela uma esperança de finalizar todos aqueles proces-
sos. Passei, de certa forma, a enxergar na morte uma espé-
cie de punição final para tudo aquilo.
Depois?
Depois...
Eis a questão: inquietava-me o questionamento do de-
pois.
Deus não é tão fácil assim.
Eu mesmo nunca havia sido um homem de fé, mas

158 Gabriel Biasetto


estive nas missas – intermináveis, tal qual o verão – por in-
sistência dos convites coercitivos de minha mãe. Fiz a pri-
meira comunhão. Era coisa assim idiota, eu sentia como
uma idiotice, uma burrice por estar ali, tão imensamen-
te inocente do que me aguardava pela frente – o sexo, os
desejos, a felicidade plena e significativa: não se pode ter
coisa alguma. E eu gostava dos palavrões. Eu gostava de
dizer coisas assim “erradas”, de me expor, sem culpa ou
vergonha: sou uma pinhata.
Mas as dívidas foram todas chegando, vinham ende-
reçadas diretamente a mim: eu que ainda não tinha ca-
dastro algum em órgãos governamentais. Eu que ainda era
um pré-adolescente, um garoto com a cara assim por
encher-se de espinhas e cravos. Masturbava-me com a
mesma frequência que as senhorinhas inocentes subiam
as escadas de acesso à igreja – masturbava-me como que
desesperado, como se, a qualquer momento, eu não mais
pudesse fazer aquilo. Lembro-me, inclusive, que nas pri-
meiras vezes em que me toquei, não me passava pela ca-
beça pensamento ou imaginação de homem algum. Não
havia cenário, pornografia, erotismo qualquer. Era instin-
tivo o ato de me tocar. Mais tarde, quando senti o fino fio –
a pequena gota grudenta do sêmen carimbar um mínimo
redondo em minha cueca, pensei estar sofrendo alguma
represália. Estava doente? O que era aquela coisa viscosa e

Quando ainda era verão 159


com cheiro de banheiro público, afinal de contas?
Chegaram, então, os dias em que tive certeza de mim:
de mim. Quase inteiro, quase completo, quase feito: mu-
dei-me. Saí de lá, daquele lugarejo estranho e cheio de
gente incomodada. Eu não seria como eles. Eu não me in-
comodaria, pois recusava-me completamente a me confor-
mar com a virulência medíocre dos almoços de domingo
cujo tema a ser discutido girava em torno das feituras do
bispo. Todos estavam incomodados, nem mesmo os mais
velhos, a vó, o vô e as senhoras caducas que se sentavam
nos primeiros bancos da igreja localizada na praça central:
ninguém estava, de fato, satisfeito com aquilo que se vivia.
Mas os conformados sentam-se à mesa e compartilham
das banalidades como se aceitassem, por fim, viver em um
pesadelo do qual não tentariam acordar.
Eu, não. Desfiz-me do pesadelo e, ainda que estivesse
vivendo um pesadelo diferente – as perdas e a repressão –
sentia-me mais seguro à medida que me distanciava cada
vez mais de minha infância e de minha adolescência torta
e esmagada pela brutal incapacidade intelectual daqueles
que me cercavam quando eu ainda não tinha defesas. As
minhas defesas vieram depois: eram ideias que eu retirava
dos livros, pensamentos assim meio oníricos, coisas que
eu ia concluindo, junções que eu fazia com a certeza final
de que eu me bastava.

160 Gabriel Biasetto


Mas, Nathanael – Bernardo morto. Pérola...
Ninguém se basta.
Compartilhamos tudo.

Outro sonho.
Estava deitado em seu peito, minha cabeça descansan-
do sob o queixo quadrado de Nathanael. Sentia o seu chei-
ro, a sala ao redor também me trazia outros odores: an-
tisséptico, um cheiro branco e limpo. Minha visão estava
completamente embaçada – eu me sentia como drogado.
Algo letal. Sabia se tratar de algo letal e tinha uma certa
consciência do meu fim. Sabia disso. Estava tão tonto, mas
não me sentia exatamente mal – era uma calma imensa
aquela que me preenchia o peito. Ele me acariciava as ore-
lhas, eu sentia todas as frustrações se esvaírem. Eu o amava
tanto, tanto, tanto. Aquele era Nathanael, sim – Nathanael!
É sobre o seu colo que me deito e está tudo bem: eu já
fui tão feliz e tão triste. Mas acabaria ali, acabaria com ele.
Ele me segurava os pulsos, esmagando-os com seus dedos.
Eu não compreendia exatamente o motivo para aquilo
tudo, mas aceitava – talvez até mesmo concordasse. Estava
cansado, tão cansado. Tudo bem. Tudo bem. É como disse:
havia sido tão feliz e tão triste. Poderia até mesmo dizer
que lutei em duas guerras, mas isso não aconteceu. Vivi

Quando ainda era verão 161


minhas dúvidas diárias, porque, no fim das contas, viver
é simplesmente uma dúvida: apenas isso, uma dúvida. En-
carei tantas frustrações e esperei, esperei tanto. Mas falta-
va pouco, enfim: ele estava com uma seringa em uma das
mãos. Nathanael segurava uma seringa, pressionava a am-
pola e deixava chuviscar um líquido prateado. A agulhava
começava a perfuração da veia que Nathanael encontrara
na dobra de meu braço esquerdo – senti a picada de uma
formiga e um líquido gelado a penetrar por de baixo da
pele pele. Estava tão livre. Ele me dizia alguma coisa nos
ouvidos, ele repetia mantras para que eu ficasse tranquilo e
confiasse nele. Não havia necessidade alguma, eu dizia: eu
confio em você. E então, como se eu estivesse voando, senti
o corpo leve como uma pena – a janela estava ali, bem pró-
xima. Eu podia sair voando por ela. Estava em seus braços
e morreria em seus braços. Era o meu desejo, afinal: que
ele legitimasse a minha morte.
Era loucura?
Não.
Eu estava apenas sendo honesto. Eu sempre quis ser
honesto – apenas honesto. Podia ir embora, então? É que a
coisa estava começando a me doer de alguma forma. Não!
A agulha não me machucava. Estava doendo a minha parti-
da daquele lugar, estava doendo o ar seco do quarto escuro,
os meus lábios descascados pelo desespero – eu ia acordar?

162 Gabriel Biasetto


Queria um céu, uma coisa acima, uma outra possibi-
lidade daquilo novamente. Queria viver de novo em outro
estado, talvez um pedaço de pão que é devorado por uma
garota feliz, por uma criança inocente – um bebê. Sou um
bebê... uma lontra brincalhona, derramo-me por entre as
partículas de água da banheira da casa de meus pais. Sen-
tia a vida ir se esvaindo. Ele também ia embora, ouvi o
som do silêncio a invadir-me os ouvidos. Tudo tão duro.
Tão triste. Nathanael passou os dedos por sobre as minhas
pálpebras, fechando-as.
Abri os olhos.
Era manhã.

Quando ainda era verão 163


15.

Ambos os braços estendidos ao lado do corpo, bus-


quei pelos óculos no criado-mudo ao lado. Estava sempre
assim, não é? Acordava sempre assim: tateando. Buscando
por algo. A minha busca incessantemente cansativa: Na-
thanael. Outro sonho. Outro dia. Alguém alguma vez ha-
via, de fato, me amado?
Coloquei os óculos e a visão há pouco embaçada soli-
dificou-se: já havia passado um tempo considerável desde
o início da manhã. Eu estava atrasado para a aula – Vitó-
rio deixara um bilhetinho colado à porta: tentei te acordar,
mas você me mandou tomar no cu de barquinho.
Escovei os dentes com uma certa pressa e, enquanto
calçava os tênis já no corredor, estendi o corpo até o botão
do elevador.
Dentro do ônibus, soprei o meu bafo quente nas mãos
em concha. Estava muito frio. Cobri os olhos com o capuz
da blusa e tirei um cochilo. Acordei num ponto distante da
universidade, eu havia perdido o meu ponto e agora não

164 Gabriel Biasetto


sabia muito bem onde estava. Era, então, um dia perdido:
eu não iria à aula. Podia caminhar por aquele bairro, por
aquele lugar desconhecido e distante – caminharia sem
rumo, sem pretensões, apenas caminharia em busca de...
E então: Nathanael. Estava do outro lado da avenida
movimentada. A bolsa transversal, os óculos escuros que
lhe davam um ar de seriedade, uma coisa assim adulta e
muito importante. Os mesmos coturnos negros nos pés.
Ele caminhava com precisão e certeza, não me via. Eu era
o seu único espectador. Ninguém parecia notá-lo, quase
como se ele, um fantasma, passasse desapercebido ou pu-
desse simplesmente atravessar as pessoas.
Sentindo o coração disparar, tentei colocar-me à par
daquela realidade pouquíssimo convincente: era mesmo
ele? Assim como no sebo, no sebo que caíra aos pedaços
logo após a minha visita – no sebo que estava aos pedaços
já há muitos anos.
Era enlouquecimento, então?
Atravessei a avenida, os carros iam todos brecando,
como nos filmes. Não me preocupei com nada, simples-
mente continuei caminhando, desorientado, em sua dire-
ção. Ele seguia em frente, era como um trator. Eis que, de
súbito, uma senhora me cutucou nos ombros:
– O senhor deixou cair a carteira.
Virei-me, confuso: ela segurava a minha carteira de

Quando ainda era verão 165


couro em uma das mãos e, na outra, carregava um saco
cheio de pequeninos pacotes de amendoim.
– Obrigado.
Eu agarrei a carteira de suas mãos. Quando me virei
para a direção na qual seguia, não mais enxerguei Natha-
nael. Não havia nada. Pessoa alguma. Coisa alguma.
– Não quer comprar um amendoim?
– Ah, sim... – Abri a carteira e tirei algumas notas.
– Olhe, pode ficar. Não quero o amendoim. Faça bom pro-
veito.
Ela sorriu. Pegou as notas e me entregou o saquinho
de amendoins:
– Faço questão... – Disse-me, ainda sorridente.
– Obrigado.
Parado na calçada, abri o pacotinho e comecei a comer
como um louco. Fui pegando, com os dedos médio e indi-
cador, os pequenos amendoinzinhos que eu ia quebrando
com os dentes enquanto encarava, frustrado, o caminho
que Nathanael fizera ainda há pouco. Eu não queria voltar
para a casa, não queria pegar o ônibus novamente. Não
queria ter de sair dali ou fazer qualquer outra coisa – ocor-
rera-me, então, ao notar a placa de um pequeno hotel de
esquina: vou alugar um quarto e passar o dia no hotel.
Sim – era uma espécie de distância que eu criava de
todo o resto do mundo: o apartamento, Nathanael, Ber-

166 Gabriel Biasetto


nardo, Vitório, Pérola... a universidade, a cidade. Aquele
era, afinal de contas, um bairro no qual nunca estivera, um
lugar esquisito, ainda que me trouxesse uma certa sensa-
ção de segurança.
Terminei de atravessar a rua e entrei no hotel. Um
lugar paupérrimo, deveras humilde. Uma senhora com a
expressão resistente no mais extremo mau-humor me en-
carava por detrás de um balcão lotado de cinzeiros e guim-
bas de cigarro. O lugar fedia à tabaco e nicotina.
– Quer quarto? – Ela perguntou, a voz rouca de fu-
mante nata a ressoar.
– Quero.
– Já aviso que o chuveiro não está funcionando. Não en-
tre na banheira, vai rachar. Aqui é só um lugar para dormir.
– Vou ficar até o fim do dia.
– Então fica mais barato.
Paguei o valor ridiculamente baixo do custo de mi-
nha pobre estadia e subi as escadas acarpetadas. Aquilo
me parecia os vestígios do que um dia fora um casarão de
alguma família abastada.
Girei a chave na porta. O quarto, ainda que ainda que
apresentasse um aspecto meio mofado – um lugar parado
no tempo – era limpo e até mesmo cheiroso. Uma imensa
cama de casal, coberta com uma colcha velha e desbotada,
parecia ter sido transferida de uns dois séculos atrás. Ha-

Quando ainda era verão 167


via, também, uma poltrona verde cheia de pequenos furos,
aparentava ter sofrido um fuzilamento. Sentei-me na pol-
trona e tirei os tênis, encarei o quarto ao meu redor: por
que mesmo estou aqui? Por que? Por que estava ali, afinal
de contas? O que eu buscava?
Buscava estar distante de tudo, da realidade da vida...
e aquilo ainda era a vida. Sim. Não se podia – não se pode
– fugir de nada. A vida nos persegue, o tempo nos obriga.
Deitei-me na cama velha e fui tomado por uma lembran-
ça de infância – o meu pai trabalhando nas prateleiras do
quintal, o meu irmão ouvindo música na antiga vitrola, a
minha mãe cozinhando macarrão enquanto dava ordens à
empregada. Eu, que acabara de acordar – eram as férias de
verão – sentia-me meio que incomodado com todo aquele
movimento, com a vida já acontecendo e eu ainda ligando
os meus motores. Era a depressão infantil ou coisa do tipo:
eu me sentia vazio, oco. Não me via confortável nos mo-
mentos em que, de forma coercitiva, minha mãe me em-
purrava para dentro das caixas de areia do parque e me fa-
zia brincar com os outros garotos. Tampouco me senti bem
quando fui obrigado a participar das aulas de educação fí-
sica – aos doze ou treze anos, comecei a adquirir o hábito
incontrolável de vomitar, era um passar mal desesperador.
Uma coisa esquisita que me ocorria, assim, numa espécie
de enjoo pelo movimento da vida. Estava sempre assim,

168 Gabriel Biasetto


a little sick. Era uma náusea potente, um desconforto de
mal-estar profundo e duradouro. Lembrei-me, então, de
uma ocasião. Estava sentado no banco de trás do carro de
minha mãe. Ela dirigia pela cidade, era uma tarde qualquer
do fim de agosto e íamos, talvez, para a casa de minha avó
ou de algum parente. Comecei a me lembrar e imediata-
mente senti vir na boca o gosto amargo que começara a se
espalhar pelo meu paladar naquele momento pré-desastre.
Minha mãe resolvera circular uma rotatória e a tal náusea, o
meu mal-estar de vida aparecera: vomitei na extensão exata
e nos segundos exatos que duraram enquanto minha mãe
circulava com o veículo na rotatória. O vômito saiu, assim,
artisticamente, em jatos amarelos e terminou no momen-
to em que minha mãe finalizou o círculo. Lembrei-me do
cheiro, de meu horror por aquele momento, do horror de
minha mãe que, preocupada e, talvez, enojada, parou o
carro num posto de gasolina e me abraçou. Lembrei-me,
também, do ódio que tomou conta de todo o meu ser: por
que diabos eu havia vomitado? Por que eu tinha vomita-
do tanto? E então, em meio à lembrança, deitado sobre a
cama do hotel e recebendo as visitas mentais de um pas-
sado inglorioso, senti a necessidade profunda de ser, outra
vez, abraçado por minha mãe. De poder receber o seu colo,
o abrigo de seu abraço e a sensação doce de seus olhos a se
derramar, com preocupação e ansiedade, pela vida.

Quando ainda era verão 169


Bastava que eu me lembrasse daquela história para es-
tar, novamente, no banco de trás do carro de minha mãe.
Queria vomitar, mas ela não me ajudaria a limpar o
vômito.
Adormeci e, mais uma vez, sonhei com Nathanael.
Agora ele me guiava por um imenso museu, ia me mos-
trando as peças antigas, as obras... eu apenas o admirava:
os seus grandes olhos redondos, os gestos de suas mãos.
Em algum momento, tomei consciência de que sonhava –
um sonho lúcido. Esforcei-me para aproveitar aquele mo-
mento. Que eu pudesse, ao menos, tê-lo em sonho.
– Quero te encontrar, Nathanael. Por onde você anda?
– Estou sempre do outro lado da rua. Do outro lado do
espelho. Do outro lado dos trilhos, compreende?
Acordei.
Era o fim da tarde. Eu dormira o dia todo, como se
tivesse sido transportado para um mundo febril de sono
e sonhos naquele bairro estranho daquele pedaço de São
Paulo no qual eu nunca antes havia estado.
O oceano desbravava-se outra vez dentro de mim. Co-
mecei a chorar copiosamente, o peito dando soquinhos e
a garganta a soltar breves soluços. Eu estava sozinho, sozi-
nho... que lugar era aquele mesmo? E as roupas de cama ve-
lhas? O quarto escurecido em um bairro qualquer da imen-
sa cidade... levantei-me, fui até a janela e, ainda sentindo

170 Gabriel Biasetto


as lágrimas escorrerem como roupas úmidas que secam
no varal, observei o pequeno movimento da rua à minha
frente. Eu estava no terceiro andar. Lá em baixo, as pessoas
continuavam com suas vidas. Trabalhadores voltavam para
a casa. Os ônibus passavam, apressados. O fim do dia dava
às pessoas uma certa esperança, como se não tivessem que
recomeçar os mesmos processos no dia seguinte.
Ia ficando exausto daquilo, de todo aquele processo
lento e doloroso que parecia ter tomado conta de minha
vida desde o meu encontro com Nathanael.
Aproximei-me da poltrona verde, calcei os tênis e dei-
xei o quarto.
Passando pela senhora fumante da entrada do hotel,
despejei a chave por cima do balcão.
– Não gostou da simplicidade da casa? – Perguntou-
me, sarcástica.
– Apenas fiz o que tinha vindo fazer.
Sem se importar, ela virou os olhos e pendurou a chave
ao lado das outras.
Sentei-me no ponto de ônibus e tomei a condução de
volta para a casa.

Vitório dormia no sofá da sala. O telefone tocava com


uma estranha urgência, quase como se alguém, do outro

Quando ainda era verão 171


lado da linha, gritasse por mim. O sono pesado de Vitório
impedira que o barulho o acordasse. Corri até a cozinha
e, puxando o fone do gancho, senti uma certa ansiedade
preencher-me o peito.
– Raphael?
– Sim?
– Aqui é Ana Clara, a colega de quarto de Pérola.
– Ah... sim. Certo. Oi.
–Ela está muito, muito doente.
– Onde ela está?
– No Hospital São Pedro, está no quarto 102. Eu e as
meninas pensamos que ela adoraria receber uma visita sua.
– Obrigado. Estarei lá em alguns minutos.

Tomei o elevador até o quarto em que Pérola estava in-


ternada. Sentia-me estranho, quase como se invadisse um
momento, um espaço de sua vida que ela não gostaria que
eu adentrasse. Ainda assim, precisava vê-la, tinha de estar
com ela naqueles momentos, talvez os últimos. A brevida-
de da vida começava a me irritar completamente.
Bati na porta.
– Entre.
Pérola estava completamente destroçada pela doença.
Os cabelos, sempre tão bem cuidados, eram agora alguns

172 Gabriel Biasetto


pequenos tufos amarelados. A testa suava em cascatas,
suas olheiras davam a impressão de ter os olhos afundados
no rosto, quase como se tivessem lhe furado as órbitas. Os
braços, cheios de picadas de agulhas, eram como um ni-
nho de vespas furiosas.
– Pérola...
– Ah, Raphaelzinho... – sorriu, exausta.
– Desculpe, eu não queria invadir o seu espaço, mas...
– Fui eu quem pedi para a Ana Clara te ligar, seu bobo.
Ou você acha que ela tinha o seu número? Estou muito
triste por ter te tratado daquela maneira naquele dia. Fui
muito injusta, me desculpe, querido.
– Fique quieta. Você precisa descansar.
– Estou começando a, de fato, descansar. Nunca des-
cansei durante toda a minha vida, mas agora estou me pre-
parando para um longuíssimo descanso.
Disse aquilo e sorriu, calma.
– Que bobagem! Não diga bobagens...
– Estou apenas falando a verdade, Raphaelzinho.
– Não quero que você vá. – Os meus olhos úmidos, a
garganta começando a tremer.
– Todos iremos, querido.
– Não quero que você vá agora.
– Raphael, você não me deixou contar o meu verda-
deiro nome.

Quando ainda era verão 173


– O que?
– Quero te contar o meu nome.
– Já sei o seu nome. Você deve estar com muita febre e...
– Me chamo Eugênia.
– Eugênia.
– Sim. Eugênia Vila Lobos.
– Você tem um nome chiquetérrimo.
– Somos todos muito chiquetérrimos, não é? Come-
dores de cachorro-quente.
Agarrei uma de suas mãos e, com todo o afeto do
mundo, beijei-lhe os dedos.
– Não morra.
– Não vou morrer, Raphaelzinho. Vou me transformar.

174 Gabriel Biasetto


16.

O velório de Pérola foi rápido e muito, muito triste.


Apenas as suas companheiras de quarto, eu, Vitório e algu-
mas freiras do pensionato. As madrinhas choravam, pare-
ciam devastadas. Eu e Vitório ficamos completamente ca-
lados durante a pequena cerimônia. Um padre, amigo das
freiras, fez uma breve oração e então enterramos o corpo.
Vitório se despediu de mim e seguiu do cemitério
de volta para o apartamento. Eu havia decidido visitar os
meus pais naquele fim de semana. Já se passara quase um
ano desde que eu os vira pela última vez. Tomei o ônibus
na rodoviária. A viagem levaria coisa de uma ou duas horas
dependendo do trânsito. Dividi o assento com uma senho-
ra gorda e asmática que, vez ou outra, abria uma mochila
velha e tirava de dentro dela uma sacola cheia de doces e
porcarias comestíveis. Balas, chicletes, chocolates e outras
bobagens açucaradas. Aceitei uma barrinha de chocolate
caramelizado que ela me oferecera.

Quando ainda era verão 175


– Vai fazer o que no interior? – Perguntou-me, inte-
ressada.
– Vou ver os meus pais. Estudo na USP.
– Ah, você deve ser muito inteligente. O meu filho es-
tudava na USP. Ele também é muito inteligente. Eu não
estudei, meus pais não deixaram. Me casei e fiquei viúva.
Não sei ler.
– Sinto muito. – Eu disse, sem saber muito bem como
dar continuidade ao que ela dizia.
– Pois é! A vida toda só tive uma função: lavar as cue-
cas dos outros. Mas, agora... agora os meus filhos foram
embora... você é casado?
– Não.
– Não case! É uma grande besteira, se quer saber...
– Posso imaginar.
– O meu marido bebia. Você já deve ter ouvido esse
tipo de coisa, esse tipo de história... mas, bem, o meu mari-
do não era exatamente violento. Bebia e ficava na sua, não
enchia o saco, mas também não ajudava em nada. Criei
os meus dois filhos sozinha. Um deles foi preso faz pou-
co tempo, mas já saiu. Fiquei tão desesperada, pensei que
iam matá-lo, mas acabou que um grupo de amigos dele
sequestrou um diplomata. E aí trocaram o diplomata pela
libertação de alguns presos...
– Por que ele foi preso? – Subitamente, fiquei interes-

176 Gabriel Biasetto


sadíssimo no que ela estava contando.
– Ah, porque ele acha que está errado... que tudo isso
que está acontecendo no país está muito errado, entende?
Eu não acho nada. Nunca pude achar nada, não é agora
que vou achar. Mas o meu filho se meteu com uma gente
doida que sai por aí armada e faz passeata.
– Quando isso aconteceu?
– Faz alguns meses, uns dois ou três talvez. Acho que
uns três meses.
Fiz as contas e cheguei à conclusão de que seu filho
fora preso mais ou menos na mesma época em que leva-
ram Bernardo.
– Como foi que aconteceu isso que a senhora estava
contando... essa coisa de diplomata?
– Olhe, não sei te explicar direito, mas acontece que
sequestraram um homem importante para os militares e aí
disseram que só iriam libertá-lo e deixá-lo viver caso sol-
tassem alguns presos de uma certa lista. Um deles, graças
a Deus, era o meu filho.
– Entendo...
Refleti sobre aquilo por alguns segundos.
Mas, não. Mesmo que não tivéssemos visto o corpo,
mesmo que não tivéssemos tido notícia alguma – o poli-
cial dissera para Pérola que Bernardo estava morto. Não.
Bernardo não fazia parte daquela lista. Saberíamos disso.

Quando ainda era verão 177


Cheguei no fim da tarde e meu pai me esperava na
rodoviária. Silencioso como sempre, cumprimentou-me
com um aceno de cabeça e, gentilmente, pegou a minha
mala do bagageiro do ônibus. Mamãe estava no carro, fu-
mava um cigarro enquanto folheava uma revista de moda.
– Raphael, querido. – Disse-me, sorrindo.
Parecia desanimada.
– Está com fome? – Perguntou-me.
– Um pouco.
– Fiz um pudim para você. Seus irmãos estão vindo
para te ver. Um pouco tristes, se quer saber a verdade, pois
você não dá as caras desde que foi para a faculdade. Pen-
samos que apareceria no seu aniversário, mas não tivemos
nem notícia. Sabe que isso nos entristece, Raphael?
– Desculpe. – Eu disse, já desanimado e começando a
me arrepender de ter ido visitá-los.
Algo dizia que a conversa iria, mesmo, por aquele
caminho. Eu havia suspeitado que minha mãe estivesse
aborrecida. Quanto aos meus irmãos: duvido que tenham,
de fato, se preocupado comigo.
– Espero que você não seja como os baderneiros da
sua faculdade. – Meu pai disse aquilo encarando-me pelo
reflexo do espelhinho do carro.
– O que? – Respondi, irritado.
– Bem, os baderneiros que fazem faculdade onde você

178 Gabriel Biasetto


faz. Vagabundos. Protestam por coisa alguma. Inventam
histórias.
– De que histórias o senhor está falando? – Logo que
fiz a pergunta mal-humorada, minha mãe virou o rosto
em minha direção transmitindo-me um olhar de censura.
– De tortura... de mortes. Uma mentira dos comunistas!
Bufei, irritado. Mamãe continuou a me encarar – o seu
olhar me dizia algo como “não responda, fique quieto”.
Mordi os lábios tamanho o ódio que sentia. Permaneci
em silêncio para evitar rompantes desnecessários. Meu pai
era calmo por fora, mas uma panela de pressão por dentro.
Qualquer que fosse a discordância na qual entrássemos, e
ele explodiria.
Meus dois irmãos já estavam em casa, cada um com
sua esposa – mulheres que eles tinham como bibelôs, en-
feites para mostrar aos amigos. Aquilo me deprimia.
Sentamo-nos ao redor da linda mesa que mamãe pre-
parara. Muita comida havia sido feita, e algo em meu co-
ração quebrava o meu mau-humor e a irritação à medida
que eu notava o esforço de minha mãe para me agradar. A
comida fora feita para mim, uma vez que os pratos eram
os meus favoritos. Meus irmãos, silenciosos e sorrateiros,
observavam-me como se eu fosse um experimento e eles
os cientistas. Sim. Eu era uma cobaia de experimento cien-
tífico daquela família que, de certa forma, me abominava.

Quando ainda era verão 179


Eu não havia feito o curso de direito, afinal; não era
como os meus irmãos – não tinha uma esposa, não dirigia
um carro, tampouco trabalhava no fórum da cidade. Eu
não usava ternos e gravatas, nem sapatos de couro. Eu era
um estudante de Letras gay e, para o meu pai, subversivo.
Eu era o filho “que não dera certo.”
– O que anda fazendo por São Paulo? – Perguntou-me
Paulo, o mais velho.
– Estudando, apenas.
– Não está na hora de pensar em trabalho?
– Não estamos exigindo isso dele. Que ele ao menos
estude, embora eu não ache que fazer Letras seja uma boa
ideia. – Disse meu pai, virulento.
– Vai virar professor? – Vinícius, o do meio, dizia, de
forma irônica. – Você costumava brincar de escolinha.
– Ora, deixem o garoto em paz. – Interviera, por fim,
minha mãe.
Jantamos num silêncio sepulcral. Até aquele momen-
to, eu não ouvira nem mesmo a respiração das esposas de
meus irmãos. Era assustador, para dizer o mínimo.
Mamãe serviu o pudim de leite do qual eu tanto gosta-
va e então, ela e suas noras foram à pia para lavar a louça.
Juntei-me a elas num ato imbecil, obviamente que sofreria
repreensões de meu pai e de meus irmãos.
– Melhor você ficar com eles. – Minha mãe disse num

180 Gabriel Biasetto


tom de ordem.
Passei o resto da noite na sala de televisão ouvindo o
meu pai falar bobagens e os meus irmãos concordarem.
Pensei em Vitório e Bernardo – nos meus irmãos de ver-
dade. Pessoas que eu amava e queria perto de mim. Aquilo
tudo era um faz-de-conta convencional: pai, mãe, os ir-
mãos e suas esposas mudas, como se tivessem cortado suas
línguas. A sala acarpetada, cheia de porta-retratos que ho-
menageavam a família unida e feliz. As cortinas que minha
mãe costurara, a comida já dentro dos potes na geladeira.
As mulheres lavando a louça.

Dormi muito mal. Minha antiga cama já não me era


mais familiar. Peguei alguns livros de minha estante e co-
loquei na mala, transportaria para São Paulo, para a minha
verdadeira casa. Naquela madrugada, enquanto rolava para
lá e para cá, em minha cama, refleti sobre o que minha fa-
mília significava para mim e concluí, muito tristemente,
que não havia espaço ali, naquela casa, para que eu fosse
feliz. Eu jamais seria eu, jamais seria legítimo, jamais viveria
tranquilo sob o olhar feroz e julgador de meu pai. Jamais
conseguiria conviver com pessoas que ensaiavam uma vida
perfeita, mas que, no mais profundo de seus íntimos cora-
ções, estavam completamente insatisfeitos. Minha mãe e a

Quando ainda era verão 181


mediocridade dos bordados que, tenho certeza, ela odiava
fazer – e as comidas que, embora deliciosas, ela detestava ter
de cozinhar. A minha família estava bem, bem longe dali.
Já na rodoviária, dei um beijo em minha mãe e, quan-
do me aproximei de meu pai na tentativa de lhe dar um
abraço, seu braço estendido cortou o meu movimento: ele
queria apenas um aperto de mão. Naquele momento, tive
uma certeza muito grande de que só veria meu pai dali a
muito, muito tempo.
Tomei o ônibus de volta para São Paulo. Estava triste,
triste. Minha autoestima fora toda para o ralo após aque-
la visita estranha e incômoda. O tal bichinho no vidro do
carro – eu era um bichinho e meus pais tentavam, com
um panfleto de supermercado, acertar-me de uma vez por
todas.
Desembarquei em São Paulo. A cabeça pesadíssima,
muito sono e uma vontade imensa de me jogar em minha
cama, em minha cama de verdade, em meu apartamento.
Paulo tinha razão, aliás: estava na hora de arranjar um em-
prego. Eu não queria mais ter que depender de meus pais.
Aquela viagem ao interior era uma espécie de ponto final
do qual eu estava precisando há muito tempo. Eu queria
me ver livre, livre de minha família, de meus irmãos... so-
fria apenas por minha mãe e por sua nítida infelicidade,
mas não havia muito o que eu pudesse fazer.

182 Gabriel Biasetto


Deslizando a mala de rodinhas pelo terminal rodoviá-
rio, parei para tomar um café e fumar um cigarro. Eu não
fumara durante a minha estadia com meus pais, não que-
ria dar-lhes motivo para falarem mais.
Estava terminando o café quando o vi – era a terceira
vez que eu via Nathanael. Estava caminhando em direção
a um ponto de ônibus. Ele andava velozmente, mas eu não
permitiria que ele se perdesse de minha vista.
Largando o dinheiro por cima do balcão do café, corri
como nunca. Deixei a mala esparramada no chão com os
meus pertences ao deus-dará. O ônibus chegara, Natha-
nael estava prestes a entrar nele quando, dando-lhe um
susto imenso, puxei-o pelo braço.

Quando ainda era verão 183


IV
Quando ainda era verão
17.

Seu rosto, visto assim tão de perto, era diferente da


lembrança que eu tinha. Da lembrança da última noite
antes do fim do verão. Os olhos, ainda assim: grandes e
redondos. E então eu percebi que Nathanael não se assus-
tara, mas fingira estar assustado.
– Você está me seguindo? – Perguntei, esbaforido. O
meu coração martelava o peito. Minha boca secara com-
pletamente. Era a realidade mais onírica do que todos os
sonhos que tive com ele.
Sim.
Eu estava finalmente falando com ele, com Nathanael.
– Vamos! Fale! – Eu gritava. O motorista do ônibus,
impaciente, apertava a buzina.
– Não vou subir. – Nathanael disse ao motorista, vol-
tando-se para mim.
Sua voz.

Quando ainda era verão 187


Eu ouvia a sua voz pela primeira vez depois de todo
aquele tempo.
O ônibus partiu, então. Ficamos, eu e Nathanael, nos
encarando por alguns segundos em meio àquela rua pou-
co movimentada de um fim de domingo.
– Podemos conversar em outro lugar?
Eu queria socá-lo, dar-lhe um soco bem dado no meio
da cara. Sua expressão demonstrava uma certa apreensão.
Ele tinha consciência do que me fizera passar, sem dúvida
alguma.
– Podemos. – Eu estava estático.
– Vamos. Você deixou sua mala caída.
Caminhamos em silêncio até o pequeno barzinho do
terminal rodoviário. Ele pediu um café para nós dois e eu
recolhi os meus pertences que deixara espalhados pelo
chão. Nathanael me estendeu o copo de café. Eu recusei
com a cabeça – não queria tomar café, não queria comer
coisa alguma. Queria entender, entender! Queria que ele se
justificasse, que ele me dissesse quem era, afinal de contas.
– Por favor, eu insisto. – Disse-me, enquanto acendia
um cigarro. – Tome o café. E, peça alguma coisa para co-
mer. Eu pago.
– Quem é você? – Perguntei-lhe. A mágoa evidente
em minha voz. – Como é possível que numa cidade tão
imensa você esteja tão fisicamente próximo em mais de

188 Gabriel Biasetto


uma ocasião?
– Sou Nathanael. Não menti sobre isso. Não menti so-
bre nada, aliás. E, sim, tenho te rondado.
– Não mentiu sobre nada? – Eu estava realmente fu-
rioso. – Você inventou a sua vida para mim, porra! Nin-
guém sabe quem você é no curso de História! Ninguém
nunca te viu...
– Ninguém?
– Sim, eu perguntei ao Maurício, que é...
Maurício.
Sim. Claro.
Eu perguntara apenas ao Maurício e a mais ninguém.
Notando a minha interrupção, Nathanael concordou
com a cabeça, dando um sorriso.
– Acho que isso explica muita coisa, não?
– Quem é você?
– Sou Nathanael. Faço história na USP, ou fazia... tive
um curto relacionamento com o Maurício. Mas eu não
o quis mais, estava cansado do seu jeito enxerido de ser.
Muitas fofocas, uma certa falsidade... foi uma coisa rápida,
nós tivemos um romance veloz. Nem mesmo costumáva-
mos andar juntos na faculdade. E então ele começou a me
chantagear.
– Chantagear com o quê?
– Eu faço parte de uma guerrilha. É um grupo de re-

Quando ainda era verão 189


sistência, o mesmo grupo no qual o seu amigo Bernardo
acabou entrando, depois.
– O que você sabe sobre o Bernardo?
Ignorando minha pergunta, Nathanael continuou:
– Maurício sabia disso. Sabia de tudo. Eu tinha feito
algumas coisas, corri certos riscos não muito tempo an-
tes de me encontrar com você na noite da festa. Maurí-
cio, sabendo de tudo, começou a me ameaçar. Ele não se
conformava com o fato de que eu não o queria mais. Me
ameaçava de todas as formas, dizia que ia me denunciar,
que o DOPS apareceria quando eu menos esperasse. Me
obrigou a trancar o curso, ficou furioso quando soube que
eu e você nos beijamos.
– Como ele soube disso?
– Naquela noite, depois que me despedi de você, de-
pois que você entrou no taxi, Maurício apareceu. Estava
escondido, vira tudo. Ficara a madrugada toda nos ob-
servando. Me disse para sumir de uma vez por todas. E
me garantiu que, se eu aparecesse na faculdade na segun-
da-feira seguinte, me denunciaria. Não só a mim, mas a
muitos outros do grupo.
Bernardo.
– Você não apareceu e, mesmo assim, ele denunciou
todos vocês.
– Sim. E aí foi uma questão de tempo até que começas-

190 Gabriel Biasetto


sem a nos buscar. Bernardo foi o primeiro. Foi aí que tive
a ideia de sequestrar o diplomata.
– O que?
– Sim, um sequestro, nós...
– Espera, espera aí! O seu pai já é falecido?
– Sim. – Ele parecia não compreender.
– Você tem um irmão?
– Tenho. Mas o que isso...
– Estive com sua mãe em um ônibus indo para o inte-
rior há dois dias atrás.
– Bem, ela tinha vindo me visitar. A única coincidên-
cia em tudo isso, aliás, foi que, quando eu estava me des-
pedindo dela, vi você subindo no mesmo ônibus. Tenho
vindo aqui diariamente desde que você se foi. Pensei que
você voltaria hoje mesmo, sei que você tem de ir para a
aula amanhã cedo. Fiquei o dia todo por aqui e, quando
notei você descendo do ônibus, resolvi ir embora.
– Por que você anda me seguindo? Por que ficou me
esperando voltar?
– Porque tenho medo que você também seja preso.
Tenho medo que algo aconteça. Gostei tanto de você, Ra-
phael, mas temo pelo perigo que possamos correr caso fi-
quemos juntos. E então, após levarem o Bernardo e...
– Mas, espere aí. Por que você foi solto e o Bernardo,
não?

Quando ainda era verão 191


– Não sabemos disso.
– Eu soube que ele morreu.
– Como soube?
Contei a ele sobre o policial e sobre Pérola.
– Talvez ele estivesse errado... sabe, nós não consegui-
mos nos comunicar com todos da lista. Alguns foram em-
bora para outros países, alguns se esconderam.
– Por que você me beijou naquela noite?
– Porque gostei de você. Eu realmente gostei de você.
– Você podia ter aparecido.
– Não valia à pena correr o risco. E, mesmo eu fazendo
o que Maurício me pedira, acabei rodando.
– Você pode me pedir outro café? – Eu disse. – Esfriou.
Ele riu.
– E agora? – Perguntei, confuso.
– Agora...?
– O que faremos?
– Vou embora do Brasil, Raphael.
Tomei o café em um único gole. Olhei para ele. Natha-
nael era, de fato, muito, muito bonito.
– Para onde vai?
– Vou viver na Argélia.
– Argélia?
– Não posso ficar, Raphael. Corro muitos riscos.
– Não há futuro para nós?

192 Gabriel Biasetto


Nathanael sorriu. Era um sorriso triste, algo assim
conformado.
– Você é tão melhor que eu.
– Vou matar o Maurício.
– Não vai. Você é uma pessoa decente, Raphael. Só es-
pero que fique bem. Por favor, me prometa que você não
vai dizer nada a ele. Siga a sua vida, fique seguro. Não se
envolva com essa coisa toda.
– Quando você volta?
– E quem é que sabe? Quem é que sabe se essa coisa vai
acabar? Não aguento ficar aqui, Raphael.
Segurou uma de minhas mãos. Pouco importava que
as pessoas vissem. Aquele momento era nosso. Como se
ainda fosse o verão.
Passamos o resto daquele fim de tarde juntos. Passea-
mos. Conversamos por horas a fio. Contei a ele sobre a
minha família e sobre a minha procura incessante por seu
paradeiro. Contei a ele sobre a tarde em que Maurício apa-
recera no apartamento, com exceção do que fizemos.
– Quando você parte?
– Amanhã.
– Espero poder vê-lo novamente.
– Quero que você conheça um lugar...
– Lugar?
– Sim. Vamos pegar um táxi.

Quando ainda era verão 193


O salão era imenso – estava, evidentemente, abando-
nado. Cadeiras e mesas, pichações, a umidade das pare-
des tornava o ambiente inóspito. Um grupo de pessoas se
reunia em volta de uma mesa improvisada, cada um dos
indivíduos sentados em caixotes e banquetas. Era o grupo
secreto de Nathanael.
– Gente. – Todos se viraram para nós. Reconheci al-
guns rostos, eram pessoas do curso de Letras e de outros
cursos da universidade. – Este aqui é o Raphael. Alguns já
devem conhecê-lo.
Desconfiados, cumprimentaram-me com um aceno
de cabeça.
– Fiquem tranquilos, ele não vai dizer nada sobre nós.
Um de seus amigos, Bernardo, foi levado há alguns meses.
Assim que Nathanael proferiu o nome de Bernardo, um
garoto magricela e alto levantou-se e, encarando-me, disse:
– Eu estive preso com ele.
– O que?
– Sim. Dividimos cela. Um dia, acordei, e ele não es-
tava mais lá.
– Você sabe o que fizeram com ele? – Perguntei, ansioso.
– Não. Acredito que mataram.
Dissera aquilo de maneira fria. O tom me irritou com-
pletamente. Era de meu amigo, era de Bernardo que ele
estava falando.

194 Gabriel Biasetto


– Olhe, você precisa entender que ele morreu lutando
por uma causa justa e...
– Ora, cale a boca! – Disse aquilo e Nathanael me pu-
xou pelo braço, tentando me acalmar. – Você não faz ideia
do que diz. É fácil, não é? Você foi preso, provavelmente
torturado... mas, veja bem, você está aqui para contar a
história. Teve sorte, não é mesmo? Já o Bernardo, não. Ele
morreu. Não vejo beleza alguma na morte do meu amigo.
– De fato, foi um erro de Nathanael tê-lo trazido até
aqui. Você não aguentaria viver para a luta.
– Você tem razão. Eu não aguentaria. Não estou aqui
para fazer parte do seu grupo, estou apenas querendo in-
formações sobre o Bernardo.
– Informações? Quer que eu detalhe as coisas para
você? Posso te contar tudo, tim-tim por tim-tim. Posso te
contar sobre os choques elétricos, os afogamentos, os es-
pancamentos, as unhas arrancadas...
– Cale a boca! – Gritei.
– Melhor irmos embora. – Nathanael me arrastava
para perto de si. – De fato, você não vai encontrar muita
coisa aqui. Eu só queria que você soubesse, que você en-
tendesse.
– Já está bem claro para mim. – Eu disse. A mágoa
visível em minha voz.
Dentro do táxi, eu e Nathanael ora nos encarávamos

Quando ainda era verão 195


ora distanciávamos os nossos olhares. Seguíamos em di-
reção ao meu prédio, ele me deixaria em casa e, depois,
partiria. O táxi encostou na guia. Abracei Nathanael com
toda a força e olhei bem para os seus olhos.
– Sinto muito que não possamos nos conhecer mais.
– Eu disse.
– Muita coisa ainda vai acontecer, Raphael.
Abri a porta do táxi e, antes mesmo de descer, me de-
parei com Maurício saindo do prédio. Nathanael colocou
a cabeça para fora da janela. Estava surpreso.
Voltei-me para o interior do automóvel.
– O que ele está fazendo aqui? – Nathanael perguntou,
parecia nervoso.
– Não sei. Deve ter vindo visitar o Vitório.
– Não estou gostando disso.
– Já chega. – Eu disse, exausto daquilo tudo.
Desci do táxi e o chamei pelo nome. Maurício virou-se
em minha direção. Parecia aborrecido. Algo acontecera. E
então, o inevitável: Maurício identificou Nathanael, senta-
do no banco de trás do táxi.
– Mas que porra...
– Seu imbecil! Eu sei de tudo. – Gritava no meio da
rua. – Você é um idiota, Maurício. Eu sei de tudo. Sei que
Bernardo morreu por sua causa. Eu sei de tudo, sua bicha
enxerida e infeliz! E agora você vem até o meu prédio... o

196 Gabriel Biasetto


que você estava fazendo aqui, hein? Pode me explicar? Sei
o que você fez, seu merda!
Maurício me encarou, enfurecido. Depois, desceu os
olhos, velozmente, para Nathanael, que vinha para fora
do táxi.
– Não te devo explicações, Raphael! E quanto a você,
Nathanael... pensei que tivesse tido a inteligência de sair
do país.
– Estou indo embora, sim, Maurício. – Nathanael
avançava em sua direção. – Mas não por sua culpa. Vou
embora porque não suporto viver aqui. E você é, de fato,
um idiota.
Disse aquilo e acertou o rosto de Maurício com um
soco que o derrubou. Seu Jaime, percebendo a confusão,
deixou seu posto de porteiro e veio correndo ao encontro
da discussão.
– Meninos... chega! Parem já com isso. Vou chamar a
polícia!
– O senhor devia... – Maurício levantara-se, um fio de
sangue escorria do canto de seus lábios. – Devia mesmo
chamar a polícia para que levem esses delinquentes.
– Saia daqui! – Seu Jaime gritava com Maurício. Algo
cômico se estabelecia ali. – Saia daqui ou chamo a polícia
para você, mocinho!
Maurício, rancoroso e contrariado, foi se distanciando

Quando ainda era verão 197


aos poucos. Até que virou a esquina e despareceu.
– Acho que você devia subir. – Seu Jaime me disse.
O início de um sorriso nos lábios. – Leve o seu amigo,
também.
No elevador, ficamos em silêncio. A atmosfera ainda
pesava com o último evento daquele dia maluco.
Abri a porta e senti uma descarga de adrenalina. O
susto quase me fez desmaiar.
O rosto todo machucado, as profundas olheiras de
quem apanhara muito.
Ainda assim, era Bernardo sentado no sofá.
– Desculpe, Raphael, mas eu tomei o seu iogurte.

198 Gabriel Biasetto


18.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Bernardo pa-


recia bem, ainda que trouxesse consigo tantas marcas dos
dias em que ficara preso. Eu só conseguia pensar em Pé-
rola e no fato de que ela, infelizmente, não estava conosco
naquele momento. Seria maravilhoso se ela soubesse que
Bernardo, ao contrário do que o policial lhe dissera, não
morrera. Nathanael permanecia quieto. Tímido, sentou-se
na outra extremidade do sofá. Abracei Bernardo com toda
a força que pude.
– Por que o Maurício estava aqui? – Perguntei.
– Aquele idiota... – Bernardo respondeu. – Estava me
ameaçando. Me chantageando... disse-me que eu não de-
via contar a você que fui preso por culpa dele. Mandei-o
embora daqui. Não tenho mais muita coisa a perder.
– Não me surpreende que ele tenha vindo até aqui. –
Agora era Nathanael quem falava.
– Pensaram que eu estava morto. Mandaram-me sair

Quando ainda era verão 199


do país ou me matariam. Deram baixa no meu nome. Ain-
da assim, eu não tinha condições de sair daqui. Então fiquei
escondido na chácara de uma amiga, no interior. Senti mui-
to a falta de vocês, foi terrível. Eu não podia me comunicar,
tudo era muito arriscado. E então o Maurício descobriu so-
bre o meu paradeiro. Não sei como, mas alguém contou a
ele. Quando eu soube disso, acabei desistindo de me escon-
der. Corri para cá, seu Jaime quase chorou ao me ver. Mas,
é claro que Maurício estava me seguindo. Fato é que, dessa
vez, pude me defender. Eu disse a ele que, se ele continuas-
se com as ameaças, eu chamaria a imprensa e falaria sobre
tudo que aconteceu comigo enquanto estive preso. Não só
isso, mas eu também divulgaria o seu nome, e penso que
não pegaria nada bem se soubessem, lá na universidade,
que um garoto homossexual e estudante do curso de His-
tória, fosse na verdade um grande traidor e dedo-duro, um
apoiador do golpe, da censura e da tortura. Parece que isso,
de alguma forma, fez com que ele se convencesse de que,
enfim, estava na hora de me deixar em paz.
Respirei, aliviado. Ainda assim, aquilo não era o bas-
tante para mim. Eu queria muito, muito que ele pagasse
pelo que fez. Nathanael se levantara.
– Preciso ir embora.
– Fique. – Eu disse. – Você devia ficar. Devia ficar de
verdade. Não há motivo para ir embora.

200 Gabriel Biasetto


– Não posso ficar, Raphael. Não quero ficar, não depois
de tudo que aconteceu. Preciso me distanciar disso tudo
por um tempo.
Ele estava decidido. Para mim, era esquisito perceber
que busquei tanto por respostas e agora tinha Nathanael
como uma visita em minha casa. Ele era um garoto nor-
mal, afinal de contas. Não um espectro, um espírito, um
ser distante e inatingível. No fim das contas, as coisas esta-
vam esclarecidas.
Despedimo-nos na porta do elevador.
– Cuide-se, Raphael. E fique longe de confusões. Você
já teve um ano cheio delas.
– Aposto que você também ficará. – Eu disse, rindo. –
Espero te reencontrar em breve.
– Nos reencontraremos, sem dúvida. Mas, quando isso
acontecer, quero que seja em meio a um cenário democrá-
tico. Vou voltar.
– Dei-lhe um beijo nos lábios e, sutilmente, empurrei
seu corpo para dentro do elevador. Voltei-me para o corre-
dor do prédio e, enquanto as portas deslizavam, observei o
rosto de Nathanael pela última vez em muito tempo.

Sentei-me com Bernardo no sofá. Juntos, observamos


o céu do fim da tarde. Logo Vitório chegaria.

Quando ainda era verão 201


São Paulo, 1990
Epílogo

Fui o mediador do debate que aconteceu após a pa-


lestra. Era sobre a ditadura militar – alguns, corajosos,
estavam ali para falar da censura e de tudo aquilo que
sofreram. Bernardo foi o último. Eu, que agora ministro
Teoria Literária para a turma em questão, agradeci a sua
presença. Estávamos em círculo, os meus alunos e alguns
convidados discutiam os anos de chumbo. Falei um pouco
sobre a minha experiência, também. Sobre o fato de ter
testemunhado tudo aquilo, sobre as pessoas que desapare-
ceram, sobre os grupos de resistência.
Finalizamos o evento; despedi-me de meus alunos e
segui com Bernardo, caminhando pelo campus. Era como
um déja vú. Tempo é tudo o que tínhamos, e agora refletía-
mos sobre o que devíamos fazer com ele. Chegamos até a
rotatória central. A grama fora cortada pela manhã.
Pensei em Nathanael e naquela noite – acontecera há
tantos anos que eu já não sabia mais distinguir a realidade
do sonho. Senti o sol queimar a minha pele e observei os
graus no imenso relógio. O suor descia em cascatas pela
minha nuca. Era verão outra vez.

Quando ainda era verão 205


Quando ainda era verão 207
Esta obra foi composta em Minion Pro

em junho de 2021 para a Editora Patuá

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