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ainda
era
verão
Copyright © Editora Patuá, 2021.
Quando ainda era verão © Gabriel Biasetto, 2021.
Editor
Eduardo Lacerda
Assistentes editoriais
Amanda Vital
Ricardo Escudeiro
Administrativo e comercial
Pricila Gunutzmann
ISBN
Gabriel Biasetto
Às vezes as coisas boiavam. Coisas daquele outro tempo,
de um tempo antes. A vida ainda pouca. A mediocridade
dos dias inócuos, a indiferença de meu corpo em contato
com a cama de meu pequeno quarto de cidade interiorana.
Eu chorava em silêncio e era um choro de dentro – só de
dentro, dentro, cá dentro. Não se podia expor toda essa coisa
que eu sentia falhar-me todo o corpo: dentro de mim, os edi-
fícios iam caindo, emparedando-se e, tal qual o dominó – ou
o que se chama o seu efeito – iam destruindo uns aos outros.
Todas as construções que eu nunca soubera solidificar.
Então, como dizia: as coisas boiavam. Voltavam a me as-
sombrar, vez ou outra, como lembrete para que eu não me
aventurasse tanto assim. Era para eu não correr perigos, para
eu me lembrar de voltar para de baixo da saia de minha mãe.
Não.
Eu não podia viver como os que se aventuravam mundo
afora – meu mundo afora não existia. Sempre para dentro,
dentro, dentro... sempre caminhando lentamente, pisava em
todos os ovos: qualquer coisa que me assustasse era para que
eu percorresse o caminho de volta para a casa. De volta para
o colo de minha mãe. De volta para a triste atmosfera de
uma realidade cinza-chumbo, esquelética.
O que boiava era, assim, sem mais nem menos: a foto-
grafia. O que boiava era todo o tempo: antes. Um tempo cá
estranho, devo dizer. O que boiava era o café que tomáva-
mos, a família inteira ao redor da mesa de madeira. Os avós
– os avozinhos, tão bonitinhos, não Raphaelzinho? Isso, vai
dar um beijo na vozinha, pede benção ao vozinho.
O que boiava era aquela época. O que boiava era o meu
medo, já naquela época, da época futura acabar. O medo
da época futura nunca vir. O medo da mediocridade e da
impotência e da mentira que contei a mim mesmo – medo
disso tudo ter sido – ser – eterno. Boiava também o eu gos-
tar do que gostava. E os meus sonhos, todos amontoados e
todos cacos que, juntando, assim, aos pedaços, todo dia. O
que boiava era eu, que flutuava entre as partículas de água.
A piscina era a minha vida.
São Paulo, 1976
I Corpo de luz������������������������������ 17
II Horas nuas��������������������������������� 77
III Tempo de silêncio������������������� 129
IV Quando ainda era verão��������� 185
Epílogo��������������������������������������������� 205
Para Marlene,
Vó minha.
Acordava. E então? Então era preciso prosseguir
vivendo e de um certo modo recomeçar tudo. De-
pois, as coisas chegavam a melhorar tanto que eu
protelava ao máximo o instante de ir dormir.
Madonna, Masterpiece
1.
20 Gabriel Biasetto
to à Universidade: as assembleias, os grupos de resistência,
as companhias de teatro... para não fazer feio, então, fiz-me
fingidor da diversão questionável das festas universitárias.
Não é como se eu bebesse tanto, ou fumasse tanto, ou
aspirasse tanto lança perfume assim – nesse ponto, eu con-
seguia agir pela metade. Fazia de tudo um pouco, experi-
mentava de tudo um pouco. Havia – ainda há – um medo
imenso dentro de mim: de que um dia, assim, sem mais
nem menos, eu fumaria um baseado e desenvolveria uma
espécie de esquizofrenia – ficaria paranoico para o resto da
vida; um dia, talvez, estando tranquilo e sereno, dançando
ao som de alguma canção, eu aspiraria um pouco de lança
perfume da manga de meu casaco e entraria numa espécie
de reflexão quase-estado-alfa que me faria chegar a algu-
ma conclusão assustadora – irremediável – a meu respeito
ou a respeito de meus colegas de apartamento.
Tudo isso passava pela minha cabeça naquela noite –
desde a tomada do ônibus até a chegada à universidade.
Tudo fazia parte de mim, do meu corpo, dos meus cheiros,
dos fluidos. Às vezes ocorria de eu tomar consciência –
consciência física e presente – de tudo que me acometia
por dentro e pelos arredores. Consciência de minha bunda
com relação ao banco do ônibus; consciência dos meus pés
pisando o chão – consciência do café descendo, quente,
pela minha garganta. Consciência dos sons – as músicas
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comunicar que estamos ali.
Depois, descartando tal ideia absurda, passei a acre-
ditar que morríamos para, de fato, termos ali encerrada a
possibilidade da consciência – quase me tornei ateu con-
victo, descrente de Deus, céu ou qualquer outra coisa.
Mas, com o tempo, vai se aquietando essa sensação bi-
zarríssima de não encontrar razão alguma para acreditar
em qualquer ideia – mesmo na impossibilidade da ideia. E
isso tudo vai fermentando até virar um bolo pronto dentro
de nós; um bolo que não podemos comer; não sabemos
o gosto, não fazemos ideia da receita, mas simplesmente
está lá. E então já não questionamos tanto, nem mesmo
sofremos com a dúvida – simplesmente esperamos como
quem espera por uma encomenda. Esperamos como quem
aguarda, ansiosamente ou não, pela campainha.
Eu ia dizendo que Nathanael estava ligado a mim na-
quela noite – Nathanael estava inteiramente dentro de mim.
É que a festa, há muito, já havia me tirado a possibili-
dade do conforto e da paz. Vez ou outra eu bebericava um
vinho do copo de alguém ou tragava um baseado; às vezes
me ocorria tomar alguma pílula ou coisa assim, mas o meu
medo de jovem principiante do interior me fazia brecar o
desejo tal qual o veículo que, quase-tarde-demais, dá-se
conta do pedestre sobre as faixas brancas.
Caminhei, então – caminhei sozinho por longas qua-
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relógio, próximo ao ipê roxo que cobria a grande extensão
da rotatória central da universidade.
Só naquele momento me ocorreu a ideia da possibili-
dade do perigo – onde eu estava com a cabeça, afinal? Me
distanciando tanto assim das pessoas, indo em frente por
entre a velocidade da noite, acompanhado pelo som abis-
sal dos grilos, as ruas de asfalto úmidas da pouca chuva
que caíra naquela tarde. Por que diabos eu havia andado
tanto e tão sozinho?
– Estava na festa? – Perguntou-me o ser misterioso.
Logo que pronunciou tais palavras, meu peito sentiu
uma espécie de certeza quanto à necessidade daquela co-
municação. Por alguns segundos, pensei estar drogado.
Pensei tratar-se, de fato, da miragem provocada pela erva
que fumei.
– Vai voltar para lá? – Perguntou-me outra vez, agora
parecendo impaciente e desconfiado.
– Oi.
– Estava na festa? Lá ao fundo? De que curso você é?
– Letras. – Respondi, agora tranquilo. De fato, não pa-
recia alguém que me faria mal. Talvez ele pensasse o mes-
mo de mim.
– Eu faço História.
– Engraçado... nossos cursos ficam no mesmo campus
e nunca te vi por aqui. – Eu disse aquelas palavras ainda
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Como que lendo a minha mente, Nathanael tirou o
maço vermelho do bolso e me ofereceu. Peguei um cigarro
e agradeci com um movimento de cabeça.
– Você fuma desses? – Ele me perguntou educada-
mente.
– Prefiro os mais fracos, mas está tudo bem.
Coloquei o cigarro entre os lábios e Nathanael sacou o
isqueiro do bolso lateral de seu casaco. Acendeu para mim.
– Obrigado. – Eu disse, soltando uma longa fumaça
de alívio.
– Não quer se sentar um pouco na grama?
Concordei com um novo movimento de cabeça.
Sentamo-nos na grama úmida – as flores roxas do ipê
caíam, aos poucos – logo o outono viria, por isso as ár-
vores todas começavam o seu processo de se despir para
expor a nudez cadavérica de seus galhos.
Alguns segundos após um silêncio quase entrecortado
por várias tentativas – minhas e dele – de tentar soltar al-
guma palavra, resolvi perfurar o som dos grilos:
– Você mora aqui perto? – Perguntei.
– No centro... na parte antiga da cidade.
– Adoro aquele lugar. Você mora em prédio?
– Sim. E você?
– Divido um apartamento na rua Martins Fontes com
dois colegas de curso.
28 Gabriel Biasetto
normal. Os beijos não eram bons. Eram desconfortáveis,
desajustados, acabavam com minha autoestima. Tal cren-
ça já tão cimentada em minha mente pouco desenvolvida
acabara por se quebrar ali – após o beijo que Nathanael me
dera, eu passara a compreender a necessidade daquilo.
– Por que fez isso? – Perguntei, esbaforido, tendo os
lábios já distantes dos seus.
– Porque queríamos.
Abraçamo-nos, então – ficamos ali, por horas, quase
até o dia amanhecer, beijando-nos e observando as estre-
las. Deitados por sobre a grama, as nossas roupas e os ca-
belos já úmidos, e eu já certo de que, dali a pouco, estaria
gripado, pegaria um resfriado daqueles de doer o fio de
cabelo, tamanha a minha sensibilidade para com o tempo
frio e a garoa.
Chegou então o momento em que se podia ouvir os
primeiros cantos dos pássaros – o sol ainda não havia des-
pontado, mas o silêncio que encerrava a madrugada ia se
dissipando e a sensação de que a manhã chegaria a qual-
quer momento tomou conta do ambiente. Era o fim do ve-
rão, mas um verão anormal, uma vez que, tanto eu como
Nathanael, encapuzados e usando roupas de frio, sentía-
mos o congelamento de nossos corpos sensíveis.
– Precisamos ir embora. Alguém vai nos ver aqui. –
Proferiu aquelas palavras de modo preocupado, parecen-
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2.
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da festa. Era ainda muito cedo quando eu decidira cami-
nhar em direção aos portões da universidade – Nathanael
a me encarar, fumando o seu cigarro.
Mas eu havia fumado um baseado, antes, não havia?
Havia bebido um pouco de vodca, talvez?
Não me lembrava.
Nada me ocorria sobre o que precedera meu encontro
com Nathanael. As investidas imediatas, a necessidade que
o meu corpo sentira, naquele momento, quanto à união de
nossos corpos. O beijo, o momento seguinte ao beijo: as
constatações de que aquilo tudo corria como devia correr
– a umidade congelante do fim do verão.
Passei pela sala de estar e me deparei com os garotos
sentados em dois grandes almofadões – ambos de pijama.
Assistiam a alguma coisa na televisão, tomando coca
cola e comendo pipoca de um imenso balde que eu trou-
xera do interior – o balde amarelo com olhos azuis relu-
zentes. O balde no qual minha mãe me servia a pipoca de
minha infância.
– Ressaca? – Bernardo perguntou, soltando um arroto
de coca cola.
– Das bravas.
Enchi um imenso copo de cristal com água e tomei
quarenta gotas de dipirona.
– Você acabou com o estoque de aspirinas. Eu precisa-
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eu tomei um iogurte e o Bernardo tomou outro. Mas va-
mos repor.
– Já devia estar reposto.
Bati a porta da geladeira – estava, enfim, mal-humora-
do e aborrecido.
– Vou sair. Quando voltar, quero o iogurte na geladei-
ra e as outras coisas que vocês comeram.
– Que outras coisas? – Bernardo perguntou, arrega-
lando os olhos.
– Não me lembro, mas eu tinha mais comida ali dentro.
– Se você não se lembra, acho que tomamos apenas o
iogurte.
– Vão à merda!
Fui até o quarto e me agachei para pegar a carteira.
Juntei as moedas e fechei o zíper. Já perto da porta, girei a
chave na fechadura e senti o braço de Vitório me agarran-
do o pescoço.
– Você está triste conosco? Está aborrecido, não é?
Olhe, você desculpe o Bernardo, ele é egoísta demais, eu
sei, mas eu e você vamos encontrar um outro lugar em que
possamos morar só nós dois, sem interferências do idiota.
Me livrei de sua carinhosa chave de pescoço e bati a
porta. No corredor escuro e gelado do prédio, ouvi a sirene
da polícia ao longe; alguém com o rádio ligado no aparta-
mento ao lado; o miado de um gato...
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– Não, seu Jaime... Jamais! Nunca! Que vergonha... não...
eu jamais faria alguém limpar o meu próprio vômito, eu...
– Você paga o condomínio para quê?
– Bem...
– Faça o seguinte, saia... vá tomar um ar, faça o que
tiver que fazer. Quando você voltar, tudo estará limpo.
– Deus abençoe.
– Pensei que você e os porcos dos seus colegas eram
ateus.
– E somos.
– Amém.
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tinuasse em São Paulo. Não me queria fazendo faculdade
para ser professor, não me queria enfiado em discussões
filosóficas. Mamãe me queria no curso de direito da fa-
culdade particular de nossa cidade, como os meus irmãos
– mamãe me queria advogado e heterossexual. Mamãe me
queria tradicional, tradicionalíssimo.
A canção...
A canção era de Rita Lee...
Um belo dia eu resolvi mudar... e fazer tudo que eu que-
ria fazer...
Adentrei, então, o bar.
Me libertei daquela vida vulgar, que eu levava estando
junto a você....
Sentei-me em uma das banquetas altas que permitiam
aos clientes o alcance do balcão encardido. Pedi um ca-
chorro quente com o estúpido e dramático acréscimo de
linguiça calabresa e uma pequena porção de batatas fritas.
O cheiro de fritura extasiava-me.
A prostituta que há pouco tentara me convencer de
sua companhia aparecera, de repente.
– Não vou incomodar, mocinho. – Disse, virulenta,
enquanto escolhia um lugar distante de onde eu estava
para se sentar.
– Não estou incomodado. – Eu disse, rabugento e
exausto.
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durecimento das pálpebras.
Ainda assim, minha garganta inflamada.
Humilhado e vencido por toda a dívida moral, paguei
pelo lanche e caminhei para fora do bar. Caminhei como
que debilitado – eu era um velhinho, eu era encurvado
como o pobre Jaime, o porteiro.
Estava já para cruzar a pequena viela entre uma esqui-
na e outra, gritou-me a prostituta lá de longe:
– O esquentadinho brocha esqueceu a carteira!
Vire-me, irritadiço. Vi a mulher segurando a carteira,
como quem ganha um prêmio após um duro período de
vida. Vitoriosa, encarava-me, contente.
– Vem buscar?
Fui até a moça alta e orgulhosa. Um pavão que exibia
as penas, arrogante.
– Obrigado. – Eu disse, agarrando a carteira de suas
mãos impecavelmente manicuradas de um escarlate me-
tafórico.
– Não recebo recompensa?
Tirei umas moedas do bolsinho zipado e dei-lhe, ne-
gando-me a permanecer por muito mais tempo em meio à
irritante atmosfera daquele momento.
– Está com medo de mim?
– Medo? Não estou com medo, não, senhora! Vou aca-
bar com a sua graça revelando-lhe que meu pau não sobe
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chorro quente gigantesco que eu guardaria para seu Jaime
– guardaria dentro do guarda roupa, senão os palermões
devorariam sem o meu consentimento.
O elevador agora vinha ao meu encontro. As coisas es-
tavam melhorando – a azia ainda presente a queimar-me a
garganta. Eu espirrava vez ou outra.
Apertei o botão do oitavo e cantarolei o que restara da
canção de Rita Lee.
Girei a maçaneta e os palermas, agora motivados por
sabe lá qual droga, limpavam o apartamento como se fos-
sem contratados para tal. Bernardo lustrando os móveis
com um produto esbranquiçado que mais parecia esperma
e Vitório varrendo a cozinha, já com o balde d’água e um
pano próximo ao rodo que ele passaria depois.
– O senhor ressaca está de volta. – Gritou Bernardo,
irônico.
Vitório, atrapalhado, deixou cair a vassoura e virou-se
para me encarar.
– Você está comido agora?
Sorri, satisfeito.
– Então vocês resolveram dar uma ajeitada no am-
biente?
– Estamos apenas garantindo a nossa vaga, uma vez
que o seu paizinho é o fiador da espelunca e não queremos
viver na rua, sabe, Raphaelzinho. Você entende que está-
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lino da Universidade.
– E ainda dizem que os gays são mais limpos e cheiro-
sos. Uma barbaridade... – Vitório agora torcia o pano até
deixar apenas úmido.
Dentro do quarto, abri a imensa janela que cobria qua-
se toda a extensão da parede e, sem pensar muito – para
que eu não desistisse – comecei a arrumação.
Cacarecos das mais diferentes ordens, montes de pa-
péis de bala que eu ia largando por ali. Encontrei negativos
que eu pretendera revelar no início daquele ano. Copos,
três ou quatro pontas de baseados. Uma revista detonada
pela umidade da parede exibindo o triste sorriso de Mary-
lin e um cartão de aniversário – aquele da mamãe. Dizia
assim: Feliz vida!
Encontrei também o perfume que eu perdera há duas
semanas e que viera junto do cartão. Um perfume delicio-
samente amadeirado. Espirrei no ar, esperançoso de que o
odor que impregnava o ambiente começasse a se dissipar.
O resultado esperado começava a se efetivar: o odor hor-
roroso já não estava mais lá como há alguns minutos.
Juntei tralhas e papeis e roupas que deviam estar na
máquina de lavar já há muito tempo. O meu humor melho-
rava à medida que eu conseguia enxergar o chão de tacos.
– Vitório, me empresta esse rodo com o pano úmido
que preciso tirar o melado do chão.
46 Gabriel Biasetto
– Ora, Raphael, cada um faz a sua parte. Nós tivemos o
trabalho de ligar para o mercadinho e pedir a mercadoria.
– Vou começar a anotar... se eu tivesse começado des-
de o início do ano, vocês teriam, a essa altura, de me dar
um carro zero.
– Um carro zero... – Vitório agarrara o rodo de minha
mão e agora passeava pelo apartamento, segurando-se ao
cabo como se estivesse em uma escola de samba. – Já pen-
sou? Iríamos atravessar a Universidade em nosso carrão e
as garotas da psicologia finalmente nos dariam bola.
A Universidade...
Eu era invadido outra vez pela lembrança de Nathanael.
Aquilo me atingia como se eu fosse uma fotografia a ser
batida em flashes cujo disparo se dava em longos intervalos
de tempo. Mas, quando eu era fotografado, sentia o êxtase
daquela noite me preenchendo por inteiro, dos pés à cabeça.
Ainda veria Nathanael. Beijaria, outra vez, os seus lá-
bios. Faria tanto, tanto... Bastava me lembrar de pequenos
detalhes daquela noite e a minha vida recomeçava d’um
ponto em que a alegria era uma coisa a ser sentida pela
primeira vez. Bastava o pensamento da ideia que eu fazia
de sua concepção: Nathanael. Garoto. Beijou-me a boca.
Pronto – eu estava feliz, eu era alguém outra vez. O verão
viria novamente.
Corri para a porta, já com a carteira na mão – eu paga-
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em contato com a cama de meu pequeno quarto de cida-
de interiorana. Eu chorava em silêncio e era um choro de
dentro – só de dentro, dentro, cá dentro. Não se podia ex-
por toda essa coisa que eu sentia falhar-me todo o corpo:
dentro de mim, os edifícios iam caindo, emparedando-se
e, tal qual o dominó – ou o que se chama o seu efeito – iam
destruindo uns aos outros. Todas as construções que eu
nunca soubera solidificar.
Então, como dizia: as coisas boiavam. Voltavam a me
assombrar, vez ou outra, como lembrete para que eu não
me aventurasse tanto assim. Era para eu não correr peri-
gos, para eu me lembrar de voltar para de baixo da saia de
minha mãe.
Não.
Eu não podia viver como os que se aventuravam mun-
do afora – meu mundo afora não existia. Sempre para
dentro, dentro, dentro... sempre caminhando lentamente,
pisava em todos os ovos: qualquer coisa que me assustasse
era para que eu percorresse o caminho de volta para a casa.
De volta para o colo de minha mãe. De volta para a triste
atmosfera de uma realidade cinza-chumbo, esquelética.
O que boiava era, assim, sem mais nem menos: a fo-
tografia. O que boiava era todo o tempo: antes. Um tempo
cá estranho, devo dizer. O que boiava era o café que tomá-
vamos, a família inteira ao redor da mesa de madeira. Os
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3.
52 Gabriel Biasetto
Agora, eu mesmo me preocupava com o peso de meu
corpo e com o meu sustento. Eu mesmo tinha de admi-
nistrar o pouco dinheiro que os meus pais enviavam; eu
mesmo tinha de continuar a procurar por um emprego
ou coisa assim, senão ficaria para trás em meio aos vultos
coléricos e velozes da cidade grande. Eu mesmo tinha de
segurar as minhas rédeas e aguardar pelo som do sinal que
demarcava o fim da primeira aula.
E então, já que o intervalo chegava apenas após as três
primeiras aulas, esperar na biblioteca, fingindo ler alguma
coisa, puxando papo com a bibliotecária fumante cuja voz
de pré-câncer se colocaria a anunciar qualquer tragédia a
qualquer momento.
Tragédia como a possibilidade de Nathanael não ter
ido à aula naquele dia.
Tragédia como a possibilidade de o intervalo nunca
chegar.
54 Gabriel Biasetto
cravo da família atrasada. Sonho que tive com o sebo de
livros, porque sempre fui apaixonado pelos sebos e pela
velhice carcomida das almas que habitavam milhares e mi-
lhares de páginas perfuradas pelo cupim. Mesmo a minha
rinite reagia ao livro de sebo com um certo constrangi-
mento por espirrar.
Mas, o sonho...
Os pingos batiam leves – e quentes – sobre o asfalto.
Carros, muitos carros e, consequentemente, buzinas, mui-
tas buzinas – eu e quem... quem era? Era um garoto, era.
Nathanael?
Já naquela época?
O guarda-chuva completamente torto, quase quebra-
do, que ele segurava por cima de nossas cabeças. Eu ria
um pouco, ria de nervoso porque o sinal ia fechar e a gente
deixou cair um pacote de balas de goma que compramos
na bomboniere. Eu queria tanto aquelas balas de goma
que talvez valesse a pena ser quase atropelado para recu-
perá-las da queda em solo molhado, da queda em meio ao
trânsito do centro da cidade de São Paulo. E ele agarrou o
pacote para mim, o guarda-chuva voando longe, fugindo
de suas mãos. E ríamos – ríamos tanto que o nervoso co-
meçava, ali, a se dissipar.
Atravessamos a rua, então; os carros, furiosos, cruza-
vam a extensão que antes preenchíamos, e nós adentramos
56 Gabriel Biasetto
samento do tipo: nunca, nunca conseguirei explicar para
ninguém essa coisa gigantescamente simples e profunda
que sinto no peito. Nunca conseguirei compartilhar com
ninguém – e talvez nem mesmo com ele, a sensação que
me caiu nas veias, coisa gelada feito anestésico geral, quan-
do ele me dava balas enfiando-as em minha língua, com
suas mãos de luvas com corte no dedo – e eu sorria, sorria
quase a ponto de chorar, e eu não consigo e nem mesmo
conseguirei explicar.
E ele me silenciava, colocando-me balas e mais balas
na boca.
“Você leu esse aqui? Olha, é um livro bem merda. Mas
você leu, né?”
Ele perguntava meio com deboche, meio com hones-
tidade – os seus olhos redondos e gigantes, aqueles olhos
que ninguém no mundo tinha igual.
“Eu não li isso aí, não. Eu jamais leria isso.”
Eu respondia, meio bobo – uma tontura gostosa –
pela primeira vez na vida (no sonho) eu sentia essa ton-
tura gostosa.
A chuva lá fora batia nas janelas do sebo, meio avisan-
do que logo eu teria de ir.
Ele teria de ir.
O sonho ia acabar.
O dia nem existiu.
58 Gabriel Biasetto
rando pessoa alguma.
Peguei o livro de Lyginha e, sem perceber que o
exemplar estava de ponta cabeça, folheei algumas pági-
nas, patético, atuando enquanto leitor assíduo. Eis que o
tal Maurício, bicha de unhas pintadas e brincos de argola,
aproximou-se, inconveniente.
– Raphael...
Não.
Não estou!
Tive que sair, não estou em casa!
Não estou, não estou, não estou...
– Raphael, faz tempo que não converso contigo. Você
tem um cigarro?
– Tenho.
– Pode me dar?
– Posso.
Com toda a má vontade, ofereci-lhe o maço.
– O que faz aqui? Por que está sozinho aqui parado?
– Estou lendo... peguei este livro na biblioteca e me
apaixonei. Lygia Fagundes Telles, um romance famosérri-
mo, sabe...
Como se eu já não estivesse incomodado o suficiente
com a sua presença inesperada, Maurício soltou uma gar-
galhada dos infernos, um som de hiena prestes a dar à luz.
– Por que ri, Maurício? – Perguntei, tentando deixar
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chão cimentado e colocou a mochila nas costas.
– Bom, obrigado pelo cigarro. Depois você me conta
se viu o tal Nathanael.
Nem mesmo respondi – estava apreensivo, ansioso e
irritado com a possibilidade de Nathanael não aparecer,
como se eu fosse um tolo, um sonhador apaixonado que
levara consigo um afeto não existente – uma profundidade
sentida só por mim.
Mas, não...
Não...
Não era possível que o sentimento inteiro daquela noi-
te fosse só meu – não caberia em mim; nada, naquele mo-
mento, fora inteiramente meu. Assim como o sonho que
tive com o passeio no sebo.
Tudo era nosso.
O beijo, o som dos grilos... o cheiro, as sensações – o
fim do verão.
62 Gabriel Biasetto
fosse coisa que a psicanálise me explica – eu cunhando
ideias e revelações num divã de psicanálise. E a ideia final,
após o pai, a mãe e a infância... a ideia final seria algo as-
sim: você criou esse Nathanael para lidar com tal vazio e...
É que Maurício, de fato, conhecia a todos os estudan-
tes do curso de História – Maurício era como a vizinha
fofoqueira, como a senhora que fica na barraquinha do
pastel em quermesse de igreja: sabia de tudo e de todos;
sabia os nomes, os detalhes – quem casou, quem descasou,
quem engravidou, quem abortou...
Se Nathanael fosse aluno do curso de História, Mau-
rício saberia...
Se Nathanael fosse aluno do curso de História, estaria
ali, comigo, tomando café e fumando cigarros...
Quem era Nathanael, afinal de contas?
64 Gabriel Biasetto
Ao menos era o que eu desejava.
Então ouvi a porta da frente – os garotos chegaram. Es-
tavam ensopados, pisando com os tênis, deixando pegadas
pelo taco da sala e rindo alto. Ocorreu-me, então, que eu
deveria reagir de modo oposto: como um choque de perso-
nalidade, faria exatamente o oposto; se, naquele momento,
sentia vontade de gritar com eles, dando-lhes as mais pro-
fundas lições de moral, expondo toda a estupidez e rancor
que me pesava o peito, resolvi me juntar às risadas.
– Tomaram chuva? – Perguntei.
– Pois não é que o Bernardo mergulhou o tênis numa
poça que mais parecia o lago do Ibirapuera? Afundou o pé,
sabe... – Ria, divertindo-se. – E aí eu resolvi me juntar a ele.
– Viraram crianças outra vez. – Eu disse, sorrindo.
– Está de bom humor conosco, Raphinha... – Vitório
parecia surpreso.
– O que quer dizer com isso?
– É que você anda nos hostilizando... – Bernardo ago-
ra desabava no sofá. – Sabe, Raphinha, tem de pegar mais
leve porque não somos de ferro...
– Hostilizando? Eu não hostilizo vocês.
– Ah, sim... hostiliza! – Vitório enchia um copo com
coca cola. – Hostiliza, Raphaelzinho... você nos ofende
porque somos diferentes de você.
– Eu não ofendo vocês, só perco a paciência com a
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4.
68 Gabriel Biasetto
nutos... uma sensação de todos os acontecimentos pas-
sados... toda a rejeição que senti antes de chegar em São
Paulo... ter saído da cidade pequena foi a melhor coisa que
fiz em toda a vida e, ainda assim, estou aqui me sentindo
desse jeito. Sentindo essa coisa estupidamente gigantesca
que me atinge inteiro, que me preenche o peito tal qual a
fumaça tóxica da cidade.
– Você fuma muito, Raphaelzinho.
– Seu idiota, ele está sendo metafórico. – Vitório esta-
peou, levemente, a testa de Bernardo.
– Sinto uma espécie de banalidade brutal me cobrir
de desesperança. É como se tudo fosse areia, entendem?
Compreendem o que quero dizer?
Ficaram, ambos, em silêncio... um silêncio calmo,
preenchido por uma óbvia compreensão. Tudo aquilo
que me ocorria era tão intenso que chegava a se espalhar
pelo ambiente físico que nos compreendia: o apartamento
pesava com a intensidade de minha lamentação por não
ter me encontrado com Nathanael – é que o fato de estar,
outra vez, apaixonado e perdido... o fato de estar, então,
idiota: um amor que não viria – um amor que era apenas o
movimento dos lábios sob o ipê roxo e nada mais que isso.
Um amor que não era amor.
Isso tudo fazia com que todo o resto – aquilo que eu
pensara ter deixado para trás – boiasse. Todos os casacos e
70 Gabriel Biasetto
E então o pior: podiam ter mesmo me enxotado, con-
tinuado a dizer todas aquelas coisas horríveis e me empur-
rado para longe de suas vidas; podiam ter simplesmente
me deixado na sarjeta, faminto e pobre. Mas, pior, fingi-
ram estar tudo muito bem esclarecido: o filho bicha era
uma decepção e nós jamais aceitaríamos coisa do tipo –
por isso, um silêncio infinito.
Não falar sobre.
Jamais falar sobre isso e tudo corre muito bem.
É claro que nós te amamos, Raphaelzinho, imagina...
apesar dessa escolha.
A sua escolha é ferimento para toda a família, mas te
amamos.
Isso!
Vá para São Paulo.
Irremediável.
Estava, agora, na companhia dos garotos e de...
Sim!
Pérola – a prostituta.
Estávamos sentados por sobre as banquetas altas do bar-
zinho. Comíamos cachorro quente – os garotos tão engra-
çados, assim, tão engraçados... como bebês imbecis, como
crianças ignorantes e inocentes, perguntavam tudo à Pérola.
72 Gabriel Biasetto
do aquela a segunda vez que eu cruzava com Pérola, havia
uma conclusão quanto à simpatia que eu sentia por aquela
personagem.
– Quem são os rapazes?
– Meus colegas de apartamento... Bernardo e Vitório.
– Desfrutam do mesmo que você?
– Encantando... – Vitório intrometia-se, beijando uma
das mãos de Pérola.
– O encanto é todo meu! – Pérola acendia um cigarro,
soltando fumaça pelas narinas tal qual os dragões.
– E você, Bernardo... me parece também gostar das
moças.
– Já tentei ser como o Raphael, mas não tenho talento
para a coisa.
Às gargalhadas, continuamos a caminhar pela aveni-
da. Já dentro do bar, ofereci um lanche à Pérola.
– Você acha que sou falida, não é? Tem noção do quan-
to pagam?
– Estou sendo educado...
– Pois então aceito, mas saiba que dinheiro não me falta!
Comemos feito loucos. Eu, um pouco mais calmo e
quase feliz, sentia-me abençoado pelas companhias, pela
noite inesperada de uma segunda feira que marcava aquele
início doloroso de um outono incerto.
Mas, à medida que eu abocanhava o lanche já tão bem
74
II
Horas nuas
Tia Cacá
5.
80 Gabriel Biasetto
Seus lábios carnudíssimos e avermelhados – toda a inven-
ção que eu fizera de seu rosto agora que, com a passagem
do tempo, eu começava a esquecê-lo fisicamente.
A dissipação de suas feições, o início do esquecimento
de seu cheiro... tudo isso passara a me soar tão desespera-
dor que eu tentava não pensar a respeito. Em pouco tempo
eu me esqueceria por completo de sua aparência.
Desci num ponto próximo à casa de Pérola. Andei al-
gumas quadras, como ela me aconselhara.
“Aí você vai ver uma igrejinha. Fica atrás, bem atrás.”
Avistei a tal igreja; acendi um cigarro e continuei cami-
nhando. Saber que, dali a pouco, estaria na companhia calo-
rosa de Pérola me dava um certo alívio no peito. Uma ami-
zade imprevisível – eu jamais imaginaria, naquele domingo
quase-madrugada em que Pérola me impedia a caminhada
para oferecer os seus serviços, que nos tornaríamos próxi-
mos e que seu afeto me seria necessário dali a alguns dias.
O pensionato – como ela descrevera: portão verde, an-
jos de gesso protegendo a frente do casarão – se apresen-
tava imponente.
Procurei por campainha ou aldrava, mas não encon-
trei – bati algumas palmas.
Uma freirinha corcunda abriu uma das portas duplas
localizadas no centro do casarão. Com um molho de cha-
ves na mão, desceu as escadas, a passos de cágado, enquan-
82 Gabriel Biasetto
– Estou tão feliz que você veio me ver!
– Estou é de cara com a tal irmã Alzira. Você tinha de
ver o olhar que me transmitiu.
– Ela fica furiosa quando tentam falar com ela, acha
que é obrigação de todos saberem de suas incapacidades.
Mas, tudo bem, vamos entrar... quero que você conheça o
meu lar.
– Ainda estou chocado... você vivendo com as freiras.
– Ora, são todas esquerdistas, acredite. Andam furio-
sas com essa coisa toda que acontece aí fora. – Disse, apon-
tando para a rua, além dos portões. – Sabe que, na semana
passada, um primo da irmã Judite foi levado pela polícia?
Ela ficou arrasada. E nós, é claro... nós morremos de medo,
mas o que se há de fazer? Um pessoal conseguiu tirar de lá
de dentro uma carta que ele enviou. Disse que foi torturado.
– Bem, compartilho do seu desassossego... a gente
morre de medo lá na universidade.
Por dentro, a casa era simples e muito, muito limpa.
Um silêncio abissal. Subimos as escadas acarpetadas, os
tapetes todos judiados pelo tempo, as paredes já sujas pela
passagem dos anos. Enquanto avançava pelos degraus, eu
observava os porta-retratos todos presos na parede das es-
cadas: as freiras, ao longo dos anos, envelhecendo naquele
casarão. Identifiquei madre Alzira, mal-humorada, ainda
muito nova.
84 Gabriel Biasetto
– E como é?
– Todos os homens que amo e que ainda amarei ficam
em fila indiana. Quando passam do ponto, parto para o
próximo da fila, entende?
Soltei uma gargalhada. Estar com Pérola era como fa-
zer terapia.
– Pérola, me desculpe a curiosidade, mas como você
veio parar aqui?
– Bem, é uma história de novela... a minha mãe vivia
aqui, era universitária. De família rica, portugueses, com-
preende? Mas, olhe só... essa gente nojenta... acabaram
cortando o contato com ela quando engravidou de mim.
Eu nunca soube do meu pai, minha mãe não contou às
freiras... e ela morreu. Acabou morrendo no meu parto.
Juro, não estou inventando. Aí as freirinhas, coitadinhas...
viu como são bondosas? As freirinhas me deixaram ficar.
Me criaram, me deram tudo, estudo, comida..., mas eu
acabei descobrindo não ter muito talento para as coisas
convencionais, se é que me entende.
– Compreendo.
– Eu gosto daqui, Raphaelzinho... gosto disso tudo, eu
sou louca por São Paulo. Não amo o que faço, é claro...
ninguém ama, é um horror, a gente está correndo riscos...
ainda mais agora, a ditadura... mas você não acha que São
Paulo é a melhor cidade do mundo, Raphael? Eu acho e,
86 Gabriel Biasetto
eu não passava de uma sujeirinha no vidro do carro. Eu fui
ficando ofendido, a rejeição da minha família me ofendeu
profundamente. Aí eu vim para cá. Eu gosto daqui; eu que-
ria estar mais consciente, só isso. Mais consciente do que
quero, mais focado nos estudos, sei lá. Queria Nathanael.
– Quer nada, bobo! Quer nada... você quer preencher
coisa que não se preenche.
– E aí faço o quê?
– Faz nada. Dança, sei lá... leia seus livrinhos, bata uma
punheta, seja feliz. Você está no melhor lugar do mundo,
meu anjo.
Disse aquilo e deu-me um selinho nos lábios. Agra-
decido, dei-lhe um abraço apertado. Pérola era puro cora-
ção – uma vida difícil, uma realidade pisada como a dela
e eu sofrendo por homem... eu sofrendo pelo fantasma da
festa passada, pela consequência do álcool. Eu sofrendo
por aquilo que não mais existia, pelo garoto desapareci-
do – um mentiroso que me dissera cursar História e, con-
clusão: eu caíra na pegadinha. Um aproveitador: só queria
uns beijos, dar uns beijos, trocar beijos... queria preencher,
também, um vazio que nada preenche. E eu fui a cobaia de
seu experimento.
Mas a paixão...
A frustração – ah...
Aquilo não se dissipava de forma alguma.
88 Gabriel Biasetto
brissem se tratar apenas de uma bicha mimada do interior.
Vidas completamente diferentes.
Abriu a porta e saiu de lá com uma toalha na cabeça,
apenas. Os seios nus, uma barriguinha chapada. Cabelos
loiros encaracolados que escapavam da toalha – Ana Clara
era uma mulher especialmente bonita, parecia modelo. Ti-
nha uma pequena pinta preta (que mais tarde suspeitei se
tratar de pinta feita à caneta) logo acima do lábio superior.
Assustei-me com sua nudez. Ela parecia não se inco-
modar. Sorriu, simpática:
– Quem é o seu amigo? – Perguntou para Pérola.
– Querida, você se lembra do tal Raphael? – Estava
feliz, apresentava-me como se eu fosse um prêmio. – Ele
veio me visitar!
Ana Clara se aproximou, os peitos a me encarar, os
mamilos firmes olhando para a frente:
– Prazer, querido. – Apertou a minha mão.
Foi até o beliche, subiu a escadinha para o andar supe-
rior; Maurinha continuava adormecida na cama de baixo.
Ana Clara se deitou, pegou uma revista e começou a folhear.
– Ana Clara, porra! – Entrou no quarto uma outra ga-
rota; negra, usava um vestido de verão, florezinhas na ca-
beça. – Porra, Ana Clara, você pegou o meu óleo essencial?
Ana Clara continuou lendo a revista como se não ti-
vesse ouvido coisa alguma. Eu, estático, observava a situa-
90 Gabriel Biasetto
aqui não tem coisa alguma na cabeça, umas azeitoninhas.
Eu sorria, concordando constrangido com a cabeça.
– Mas a Pérola... – Disse, olhando para Pérola. – É mi-
nha amiga... é a única que me respeita aqui dentro.
Continuamos conversando, então. O resto da tarde – o
sol se despedia e nós fumávamos, ríamos. Ana Clara, as-
sim como a filha, adormecera na cama.
92 Gabriel Biasetto
Não quero, porra! Analista da puta-que-o-pariu!
– Por que você acha que analista vai me ajudar?
– Sabe, Raphinha, às vezes eu queria que você fosse
inteligente a ponto de saber que é um pouco burro.
– O que me aconteceu não pode ser solucionado em
divã de terapia, Vitório. Não pode, não dá... é coisa muito
específica, eu não vou nem conseguir explicar.
– Não é para solucionar, não é coisa que se possa sim-
plesmente consertar, resolver. Até porque nada está que-
brado, ora. Você não se quebrou, nem ninguém. Você só
está triste, está frustrado pelo amor que não veio... foi as-
sim comigo, lembra-se? Com aquela garota, a Carina... ah,
Carina...
– O que houve com ela, afinal? – Perguntei, curioso,
tentando me distrair, me distanciar do que ocorria comigo.
– Sumiu.
– Como assim?
– Sumiu, pô. Sumiu... tem gente sumindo, você ainda
não percebeu? Carina andava com um pessoal barra pesa-
da, os guerrilheiros. Comuna, sacou? Sumiu!
– Está me dizendo que foi presa?
– E quem é que pode responder? Pode já estar morta,
não sei... a questão é a seguinte: não vai voltar. Sinto aqui
no peito, sabe, meu chapa? Não volta mais... eu agora estou
partindo para a próxima.
94 Gabriel Biasetto
mas em sentidos diferentes. Poderia esperar pelo próximo
vagão e cruzar por sobre os trilhos.
Eu acenava, gritava.
Gritava, esperneava. Ele me encarava, estático – um cer-
to olhar de pena e, ao mesmo tempo, nojo. O nojo que sentia
do meu desespero, do meu desejo assim doentio por suas
carícias, por ter novamente os seus lábios colados ao meu.
Eu chegava a bater bem forte os meus pés no chão e,
em meio aos gritos, fazia movimentos com as mãos – a
loucura tomando conta de mim: olhe para mim! Olhe para
mim, Nathanael! Estou bem aqui, estou bem aqui!
Uma falta de ar. O peito pedindo por socorro: sem fô-
lego, sem oxigênio.
Vou morrer.
Despertei febril, a quentura de minha pele derretia
em suores por todo o meu corpo. Os lençóis, o travesseiro,
tudo ensopado e nojento. Levantei-me e senti o peso de
uma bola de boliche no lugar da cabeça. Era a tal gripe mal
curada daquele dia seguinte – do dia pós Nathanael.
Eu tinha certeza.
Mamãe sempre, sempre me alertara: gripe mal cura-
da é coisa que vira em desgraça, fique atento, cure os seus
resfriados.
Fui até o quarto dos meninos – ambos dormiam tran-
quilamente. Na vitrola, um disco já terminado, o lado B
96 Gabriel Biasetto
Vitório adoraria analisar, tamanha a paixão pela psicanáli-
se – o que será que o metrô significava?
Alguém enfiava a chave no trinco. A maçaneta girou
violentamente, Bernardo entrou na sala, estava esbaforido,
suado.
– Alguém passou por aqui? – Perguntou, assustado.
– Como?
– Alguém... Alguém perguntou por mim? Não toca-
ram o interfone?
– Não... quer dizer, não sei. Estou aqui doente, estive
com febre... vocês não me viram adormecido quando saí-
ram, hoje mais cedo?
Bernardo sentou-se próximo de mim, agarrou um de
meus braços. Estava verdadeiramente nervoso.
– Olhe... você fique esperto. Se alguém ligar, se pergun-
tarem por mim... olhe, você nem diga que vivo aqui. Faça
o sonso, diga algo como: quem é Bernardo? Não conheço.
– Bernardo, que porra...
– Olhe, Raphael, você tem dinheiro?
– O que?
– Dinheiro, porra! Preciso sair daqui...
– O que aconteceu?
Entrou no quarto que dividia com Vitório – levantei-
me com dificuldade e, sentindo a cabeça ainda pesando,
segui os rastros de desespero de Bernardo. Estava arran-
98 Gabriel Biasetto
– Estão atrás de mim, correram atrás de mim... um
fusca branco, sabe. Estavam me seguindo ali atrás, perto
da Roosevelt.
– Tem certeza disso?
– Sim, tenho.
Pegou o envelope e me deu um abraço, um abraço
apertadíssimo. Comecei a chorar desenfreadamente. Eu
era todo desespero – um medo me congelou a espinha. É
que eu andava tão distante da situação do país. A cabeça
em Nathanael, o faz-de-conta romântico de minha cons-
ciência. Não queria ter de lidar com a dura realidade anti-
democrática. Agora aquilo tudo me atingia como um tiro
de canhão. O chumbo grosso escorria feito fel de minha
saliva espessa e amarga.
– Não vá embora. Fique aqui. – Eu dizia, entre soluços,
enquanto agarrava Bernardo pelo pescoço. – Por favor, fi-
que! Vamos dar um jeito, eu...
Desvencilhando-se do meu abraço, puxou a mala de
rodinhas pela alça.
– Não há jeito, Raphael... – Também chorava. – Não há
jeito para isso, acredite.
Acompanhei Bernardo até a porta.
– Fique com a chave. – Ele me entregava a sua chave. –
Fique com ela e tranque.
Tranquei a porta.
A greve acabara.
Dentro do ônibus, eu e Vitório seguíamos em meio à
manhã silenciosa em direção à universidade. Eu segurava
os meus cadernos e, como de costume, observava, pela ja-
nela, os pedestres vivendo suas vidas.
Vidas.
Aquela bizarrice toda era, ainda, chamada vida. Eu,
Vitório... tudo ainda era vida. As vidas dos universitários,
dos trabalhadores, dos motoristas de ônibus, dos cobrado-
res, dos maquinistas, dos vendedores... quem não estives-
se tão próximo assim da realidade brutal que se escondia,
ainda que pronta para arreganhar os dentes para qualquer
um que se dispusesse a observá-la com mais calma, nem
mesmo notava o que havia nas entrelinhas. Um desespero
quase cômico, uma sensação já próxima da derrota – ou já
estávamos todos derrotados, afinal de contas.
Vitório perdera o hábito da graça e do humor. Falava
muito pouco comigo e, nas vezes em que me dirigia a pa-
lavra, era para tratar de coisas muito pequenas ou quase
126
III
Tempo de silêncio
Outro sonho.
Estava deitado em seu peito, minha cabeça descansan-
do sob o queixo quadrado de Nathanael. Sentia o seu chei-
ro, a sala ao redor também me trazia outros odores: an-
tisséptico, um cheiro branco e limpo. Minha visão estava
completamente embaçada – eu me sentia como drogado.
Algo letal. Sabia se tratar de algo letal e tinha uma certa
consciência do meu fim. Sabia disso. Estava tão tonto, mas
não me sentia exatamente mal – era uma calma imensa
aquela que me preenchia o peito. Ele me acariciava as ore-
lhas, eu sentia todas as frustrações se esvaírem. Eu o amava
tanto, tanto, tanto. Aquele era Nathanael, sim – Nathanael!
É sobre o seu colo que me deito e está tudo bem: eu já
fui tão feliz e tão triste. Mas acabaria ali, acabaria com ele.
Ele me segurava os pulsos, esmagando-os com seus dedos.
Eu não compreendia exatamente o motivo para aquilo
tudo, mas aceitava – talvez até mesmo concordasse. Estava
cansado, tão cansado. Tudo bem. Tudo bem. É como disse:
havia sido tão feliz e tão triste. Poderia até mesmo dizer
que lutei em duas guerras, mas isso não aconteceu. Vivi