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L uís Otávio Burnier: nota biográfica

L uís O t á v i o B u r n i e r : n o t a b i o g r á f i ccaa *

C arlota Cafiero

O per curso
percurso se traduzem nas técnicas de representação para
o ator desenvolvidas durante os dez anos em que

L
uís Otávio Burnier (1956-1995) não tri- foi diretor-orientador do Lume, Núcleo Inter-
lhou caminho confortável na arte. Prefe- disciplinar de Pesquisas Teatrais da Universida-
riu a pesquisa em lugar do reconhecimento de Estadual de Campinas, de 1985 a 1995. Na
fácil. De família influente em Campinas, universidade, foi docente e chefe do Departa-
com tradição na medicina, o diretor, mí- mento de Artes Cênicas do Instituto de Artes.
mico e ator campineiro parece ter herdado a Hoje, o Lume é um dos mais férteis ter-
faísca de curiosidade do pai, o médico Rogério renos do teatro de pesquisa brasileiro, conti-
Drummond Pessoa Burnier de Mello, amante nuando, alargando e pavimentando o caminho
da filosofia e dono de vasta biblioteca. Da mãe, iniciado por Burnier.
a assistente social Thaís Maria Sartori Burnier Discípulo do criador da mímica corporal,
de Mello, herdou a audácia. Lembrar as matrizes o francês Etienne Decroux, Burnier julgava que
desse homem de teatro é reconhecer a impor- os gestos e os movimentos transmitem mais do
tância das raízes na função de alimentar o fruto. que a palavra e trabalhou para libertar o ator da
Dez anos se passaram desde sua morte, dependência do texto dramático e da própria
aos 38 anos, vítima de hepatite B, de acordo figura do diretor. Para Burnier, o ator não in-
com laudos médicos. Ficaram as sementes, que terpreta, representa. “Não é o ator que está entre

Carlota Cafiero é jornalista.


* Não conheci Luís Otávio Burnier, fundador do Lume. Lembro-me quando, em 1993, assisti pela pri-
meira vez a um espetáculo do grupo, Mixórdia em Marcha-Ré-Menor, no Teatro de Arena do Centro de
Convivência Cultural. Hoje, nesse mesmo centro, funciona um teatro batizado com o nome do dire-
tor. Fiquei maravilhada com o trabalho corporal dos atores. Dois anos depois, em 1995, Burnier fale-
cia. Em 1996, entrei para a faculdade de jornalismo e assisti a outra montagem do Lume, Cnossos, que
utiliza a técnica da dança pessoal. Estava definido o tema de meu trabalho de conclusão de curso: eu
queria contar as origens daquele grupo. O resultado foi o livro-reportagem: A Arte de Luís Otávio
Burnier – em Busca da Memória, publicado em 2003 pelo Lume. O que se segue não é um artigo
acadêmico, mas um relato feito a partir de meus arquivos sobre Burnier, um pouco de sua vida e sua
obra. Como jornalista, também revelo o diretor por ele mesmo, por meio de carta que, aos 20 anos de
idade, enviou à família da França, na qual faz bonita reflexão acerca do movimento e da natureza.

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o personagem e o espectador, mas o persona- alegria estampadas nos seus corpos. O resulta-
gem que está entre o ator e o espectador. O in- do da pesquisa pôde ser visto no espetáculo
térprete, neste caso, é o espectador.”1 Taucoauaa Panhé Mondo Pé , título emprestado
Baseado nesses princípios, sua meta de do dialeto indígena, que quer dizer “histórias
vida e maior legado foram a criação e a codifi- gerais de um povo” e que lido rapidamente soa
cação de técnicas de representação baseadas na “Tal Qual Panhemo do Pé”.
história pessoal e na fisicidade de cada ator, as- A preocupação em não poluir essa fonte
sim como na corporeidade do povo brasileiro, viva de pesquisa levou Burnier a registrar:
posteriormente trabalhadas no Lume e experi- “Como estudar respeitando? Como penetrar
mentadas no palco, em espetáculos de grande uma cultura sem feri-la? Como evitar o sacrilé-
rigor técnico, ético e estético. gio? Estas são questões muito importantes que
Entidade abstrata neste País de dimensões justificam minha prudência, meus cuidados. Eu
continentais, o povo que Burnier quis buscar não quero roubar, mas beber dessa fonte precio-
estava associado a um Brasil profundo e a uma sa. Eu não posso ser agente da morte, quando
autenticidade gestual não maculada pelos vá- estou em busca da vida”.3
rios papéis sociais que assumimos nas grandes O trabalho de observação e codificação da
cidades. corporeidade, das ações físicas e vocais e da
O desejo de ir ao encontro dessa nascen- fisicidade de personagens reais como o caboclo
te corporal pura e límpida fez com que Burnier do sertão levou o Lume a criar e a desenvolver
dissesse aos seus atores, formandos em artes cê- uma de suas linhas mestras de pesquisa, a mí-
nicas pela Unicamp, alguns futuros integrantes mesis corpórea. Através dela, os atores incorpo-
do Lume: “Vocês querem falar do Brasil? Que- ram outras fisicidades, tendo seus corpos a fun-
rem ‘cantar’ através do trabalho de ator a melo- ção de arquivos vivos. O resultado dessa técnica
dia deste povo? Pois bem, vocês conhecem este está em montagens como Café com Queijo.
povo? Já o viram? Já o ouviram? Já sentiram seu Burnier percebeu, desde muito cedo, a
aroma? Já conviveram com ele? Por exemplo, já necessidade de fundar um grupo com vistas à
compartilharam uma janta composta de farinha pesquisa do movimento, a partir de nossa cul-
de mandioca e água na floresta amazônica? Ou tura. Para chegar à criação e à codificação de
uma sopa de osso no Paranã (Tocantins), ou uma metodologia brasileira para a arte de ator,
uma sopa de chuchu em Urucuia (sertão de partiu de conceitos levantados por outros pes-
Minas Gerais)? Já sentiram fome? Se a resposta quisadores, referências internacionais como o
for não, vocês não têm propriedade para repre- encenador russo Constantin Stanislavski e suas
sentar este povo. Não terão condições de realizar pesquisas sobre a “ação física”, o francês Antonin
um retrato fiel deste povo, ou pelo menos parte Artaud e “as energias potenciais do ator”, o po-
dele. Para este fim, vocês têm de conhecê-lo”.2 lonês Jerzy Grotowski e seu “teatro pobre”, o
Os atores viajaram a lugares como Rio italiano Eugênio Barba e seu “teatro antropoló-
Grande do Norte, Tocantins, Manaus, sertão de gico”. Mas o grande mestre seria mesmo Etien-
Minas Gerais. Passaram fome, dormiram ao re- ne Decroux, com quem estudou durante três
lento, experimentaram da pouca comida deste anos, em sua escola de mímica na França. Ao
povo, ouviram suas histórias e viram a dor e a retornar pela primeira vez, em 1976, o ator

1 Burnier, 2002, p. 22.


2 Cafiero, 2003, p. 66.
3 Burnier, 2002, p. 252.

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confidencia a um amigo, o crítico teatral Edgar extinção foi condenada por artistas e intelectu-
Rizzo: “Concluindo os estudos, pretendo voltar ais da cidade e de fora dela, que definiram a der-
ao Brasil definitivamente e fundar uma compa- rubada do teatro como um “crime cultural”.
nhia de movimento”. Nove anos depois, funda A essa época, o movimento teatral cam-
o Lume, inicialmente a sigla para Laboratório pineiro era conduzido, sobretudo, pela advo-
Unicamp de Movimento e Expressão, com a gada e diretora Teresa Aguiar, fundadora do po-
musicista Denise Garcia, sua futura mulher, e o litizado Teatro do Estudante de Campinas
ator Carlos Roberto Simioni. O Lume seria o (TEC), em 1948, e do primeiro curso profissio-
ponto de partida para que Burnier mostrasse nalizante de teatro do interior paulista, o Curso
toda a bagagem técnica e teórica que trazia con- Livre de Teatro, em 1972, que passou a funcio-
sigo da França e, mais do que isso, trilhasse no- nar no Conservatório Carlos Gomes, onde está
vos caminhos dentro da realidade brasileira. até hoje.
“Comecei por trabalhar com atores brasileiros e Foi nesse ambiente que se deu a entrada
estudar nossa cultura na tentativa de compre- de Luís Otávio Burnier no teatro, aos 15 anos
ender o que havia nela que nos distinguia dos de idade, em 1971. Com o TEC, Burnier atua
europeus, que emanava tanta vitalidade.”4 pela primeira vez na montagem Via Sacra Hoje,
Do estudo aprofundado sobre a arte de posteriormente chamada de O Calvário do Zé
ator, Burnier erigiu uma metodologia que pode da Esquina, resultado de uma novidade que Te-
ser consultada e utilizada por atores de todo o resa introduzia na cidade, o teatro laboratório,
mundo. Como a prática veio antes da teoria, o baseada nas pesquisas de Jerzy Grotowski, que
resultado das experiências de dez anos junto ao pretendia desenvolver todas as potencialidades
Lume está registrado no essencial A Arte de Ator físicas do ator.
– Da Técnica à Representação, publicação de sua Mas Burnier preferia a mímica. Desde os
tese de doutorado em semiótica, pela PUC de 13 anos se lançou de maneira obstinada no seu
São Paulo, defendida em 1994. No livro, aprendizado. No quarto, sozinho, imitava por
Burnier homenageia seu mestre: “Etienne horas os gestos do mímico francês Marcel
Decroux foi meu mestre. Não porque eu o diga Marceau, que conhecia por meio dos vídeos que
ou porque tenha sido seu aluno, mas porque ele emprestava da Aliança Francesa. Ao mesmo
plantou em mim uma semente que ainda hoje tempo, freqüentava o Curso Livre de Teatro.
germina, cresce e dá frutos”.5 Suas primeiras mestras foram a diretora Teresa
Aguiar, Milene Pacheco, professora de dicção, e
Yolanda Amadei, de expressão corporal, ambas
O começo docentes da Escola de Arte Dramática e da Es-
cola de Comunicações e Artes da USP.
Campinas entra na década de 1970 com tradi- Em sua tese de doutorado, Burnier agra-
ção no teatro amador e infantil e sem o mais dece: “À Teresa Aguiar, Milene Pacheco e
importante palco, Teatro Municipal Carlos Go- Yolanda Amadei, por criarem minha impressão
mes, demolido em 1965, após 30 anos de fun- digital profissional. Teresinha, por me trazer ao
cionamento, por conta de problemas no madei- teatro, onde construí minha morada; Milene,
ramento do palco que, de acordo com laudos por me ensinar que a voz é modelável; e à que-
técnicos, corria riscos de desabamento. Sua rida Yolanda, que, com seu silêncio sorridente,

4 Burnier, 2002, p. 250.


5 Id., ibid., p. 249.

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mostrou-me (e a tantos outros atores!) que o grande, mas ainda queria conhecer pessoalmen-
corpo é o verdadeiro veículo de nossa arte. Essa te Marcel Marceau. O primeiro mestre que co-
foi a semente. O que fiz foi regá-la...”.6 nhece é Jean-Louis Barrault, que o convence a
Em 1973, aos 17 anos, acontece a primei- procurar o criador da mímica corporal moder-
ra experiência no exterior: Burnier vai estudar na, Etienne Decroux. Burnier se surpreende ao
por seis meses na Fitzgerald High School, na saber que Decroux ainda estava vivo.
cidade de Warren, em Michigan. Entre outras Com 75 anos na época, o grande mímico
disciplinas, matricula-se em mímica. De volta estava mergulhado em rigoroso processo de de-
ao Brasil, no começo de 1974, continua o Cur- senvolvimento de técnicas que trabalhavam in-
so Livre de Teatro e estréia como mímico no tegralmente o ator, nas dimensões física, emo-
espetáculo-solo Burna, inspirado em Marceau, cional e espiritual. O mestre francês criou a
com figurino e maquiagem feitos por sua mãe. mímica corporal em torno de 1930, com o ob-
Na noite de estréia, estava presente na platéia a jetivo de fazer com que o ator se expressasse com
única referência em mímica no Brasil, Ricardo todo o corpo e não somente com o rosto. Em
Bandeira, que, no final da apresentação, subiu suas aulas, era comum que Decroux escondesse
ao palco para “dar seu coração” a Burnier, num o rosto de seus alunos com um pano para que a
gesto de pantomima. expressividade corporal se intensificasse.
Nessa época, em entrevista a jornais de É Barrault quem escreve a carta recomen-
Campinas, o jovem mímico já demonstrava dando Burnier a Decroux, que o aceita depois
preocupação com a técnica: “O importante, no de muita insistência. Todas as manhãs, durante
momento, é adquirir o máximo de conheci- três anos, comparece pontualmente às aulas da
mento teórico, prático, exercícios e diversas téc- École de Mime Etienne Decroux, ao mesmo
nicas e tipos, para depois então partir para o tempo que estuda na École du Language du
processo de criação”.7 Corps Yves Lebreton, e é admitido em teatro
No final de 1974, Burnier passa nos exa- na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris
mes da EAD. Pelos ótimos resultados nos tes- III , que freqüenta de 1975 a 1983.
tes, ganha bolsa de estudos para um estágio in- Nos primeiros meses de aulas na École de
tensivo de verão em Paris, com Jacques Lecoq. Mime, Burnier era obrigado a cobrir o rosto
Antes de partir, apresenta Burna pela última vez. com um pano branco. Decroux dizia: “Quero
No dia da viagem, diz a sua mãe: “Se eu passar que o corpo fale aquilo que o rosto estaria fa-
na Sorbonne, eu não volto tão cedo”. Thais pro- lando”. Além de usar essa técnica, comum ao
voca: “Claro, se passar na Sorbonne não volte teatro oriental, Decroux ficava incomodado
mesmo”. com os olhos de Burnier. Confessaria, mais tar-
de, à mãe do jovem ator, que evitava olhá-lo nos
olhos durante o treinamento. “São olhos de
Em Paris fogo”.8 Thaís viajou quatro vezes a Paris, sem o
marido, para ver o filho.
Durante a difícil fase de adaptação em Paris, Em Paris, Burnier também conheceu
Burnier cursa o Mime Mouvement Théâtre, o ator e diretor italiano Eugenio Barba, do
com Lecoq. O desejo de voltar ao Brasil era Odin Teatre, radicado na Dinamarca. No livro

6 Burnier, 2002, p. 7.
7 Léa Ziggiatti Monteiro, “Mímica”, Correio Popular, Campinas, 11/11/1973.
8 Entrevista de Thaís Maria Sartori Burnier de Mello à autora, em 14/7/1999.

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A Canoa de Papel, Barba registra o fato de Bur- o teatro essa técnica capaz de provocar a pos-
nier ser tão entusiasmado com os ensinamentos sessão, ou esse tornado passional, mas não
de Decroux que era comum que fizesse demons- para efeito de vidência, mas de liberação de
trações com o corpo em lugares públicos, até energias para uso do ator. A idéia que ele ti-
mesmo em aeroportos.9 Além de estudar mui- nha era a seguinte, a de que cada tipo de per-
to, Burnier tinha de fazer alguns “bicos” para sonagem, cada situação com determinado
pagar sua estada na França, pois sua família não caráter e emotividade, seria dinamizada e es-
podia mandar-lhe muito dinheiro. Trabalhava, timulada naquele caso pelo dinamismo pas-
então, como intérprete para artistas brasileiros sional de tal orixá. Não é alma de outro mun-
em turnê na França, além de vender perfumes do, é simplesmente transpor aquele tipo de
do famoso estilista Paco Rabanne. explosão passional para o teatro.10
Foram-se oito anos na França, tempo em
que Burnier montou e trouxe para o Brasil os
espetáculos Curriculum – Mímica Corporal Carta de Luís Otávio Bur nier escrita de
Burnier
(1978), criado com o ator israelense Giora Seeli- Thiezac, França, em 22 de julho de 1977
ger, e o solo Macário, de 1983, sobre texto do
mexicano Juan. Entre 1974 e 1992, cria e atua “Enfim o tempo passou um pouco para que
em quatorze espetáculos, e entre 1983 e 1993, pudesse fazer aquilo que realmente gosto.
dirige oito. Uma cidadezinha pequenina no meio das
Antes de voltar definitivamente ao Bra- montanhas, um ar puro, uma água natural.
sil, uma frase de Decroux o marcaria profunda- Thiezac, um local santo (por mera coinci-
mente: “Conserve sua juventude, mesmo após dência, penso eu) devido a um eremita que
a eternidade”. viveu em suas proximidades numa caverna
escondida nas montanhas. Às vezes, chego até
a entender os santos. Dizem que ele fez vá-
Últimas pesquisas rios milagres, entre eles o nascimento de Luiz
XIV. Thiezac! Que mais poderia acrescentar
Em entrevista realizada com Rogério Drum- sobre esta cidadezinha? Nada. Uma simples
mond Pessoa Burnier de Mello, pai de Luís Otá- cidade de poucos habitantes no meio das
vio, no dia 25 de setembro de 1999, soube das montanhas. Fui a Thiezac para fazer um es-
últimas pesquisas do diretor acerca da transpo- tágio de 18 dias de dança moderna e movi-
sição energética do candomblé para o teatro. mento. Pena que o tempo passa depressa.
Rogério revelou que o filho freqüentava terrei- Além do método adaptado sobre o movimen-
ros para pesquisar as transformações corporais to pela professora do estágio, não sei o que
pelas quais passam os pais-de-santo quando “re- me atirou com tanta força para que, em uma
cebem” os orixás. semana, eu decidisse e me encontrasse em
Thiezac. Talvez o fato de saber que estudaria
O meu filho percebeu que a descida do orixá o movimento em um local afastado de Paris.
manifestava-se num dinamismo passional Não sei. Mas o que importa é que lá estive
diferente. Então teve a idéia de transpor para durante 18 dias.

9 Barba, 1994, p. 96-7.


10 Entrevista de Rogério Drummond Pessoa Burnier de Mello à autora, em 25/9/1999.

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Parecia sonho. Poder fazer aquilo que Descíamos as montanhas do Walefic Cen-
temos de mais natural, o nosso movimento. tral e a paisagem me embriagava. Tão bela,
Trabalhar com a única coisa que realmente tão simples. E pensar que procuramos a bele-
nos pertence, nosso corpo. É incrível como za ao nos vestirmos, ao pintarmos nossas fa-
não temos consciência daquilo que temos, que ces. Durante toda a viagem, embora cansa-
podemos e que realmente nos pertence. ‘Não do, não conseguia dormir, tão belo era aqui-
habitamos nosso corpo’, como alguém disse. lo que me rodeava. Não idealizava que a cada
Não habitamos aquilo que nos pertence, vi- minuto, Paris se aproximava mais.
vemos à procura do nosso ‘eu’ sem nem mes- E o céu azul aos poucos começou a en-
mo morar em nós. cher-se de nuvens, a ficar cinzento, de uma
O movimento das águas de um rio, das indiferença e menosprezo incríveis. Como se
árvores, das flores, dos pássaros, dos animais. nós homens não significássemos nada para
Movimento da natureza. Poder descobrir ele, pois aqueles que pensam dominar, são na
nossos movimentos, senti-los, vivê-los, com- verdade dominados.
pará-los aos da natureza. Fazer com o meu Cheguei em Paris, e até então nada de
corpo aquilo que gostaria de fazer. Comparar novo se produzira em mim. Sentia a alegria
meus movimentos aos das águas de um rio, de voltar para casa, e só isto me bastava. Mas
imitar aquilo que ela, a natureza, nos mostra não demorou para que os efeitos desta civili-
sem medo. Me sentir um animal, sentir meus zação chegassem até mim. O barulho agressi-
músculos, me comunicar com as árvores, com vo, o ar impuro, a troca de agressividade en-
o sol. Uma comunicação bela, singela e silen- tre aqueles que deveriam se amar. Por força
ciosa. Sentida com a alma e com o corpo. do destino fui obrigado a pegar o metrô.
Como tudo isto é belo. Como tudo isto é Túnel preto, trem sujo, milhares de pessoas
natural. E pensar que o homem vive à procu- que como formigas mecanizadas lutavam
ra de algo que talvez nem ele mesmo saiba o agressivamente para entrar neste monstro
que é. Mas pouco importa, ele vive à procura mecânico inumano, frio, sem sentimentos. O
disto que ele chama ‘a verdade’, quando ela desprezo e a angústia vieram sentar ao meu
se encontra aos nossos pés, nos nossos vizi- lado. Não fazia nada, observava aquelas pes-
nhos, em nós mesmos. soas que se estendiam como postes de gelo ao
Dezoito dias em Thiezac! Dezoito dias em meu lado, não sorriam, nem choravam, eram
comunhão com o meu próprio corpo, e des- neutras, sem vida. O que mais me desespe-
te com a natureza. Dezoito dias de alegria, rou foi pensar que de tanto vivermos neste
paz, realização, encontro. Uma apoteose. meio, nos acostumamos, nos transformamos
No décimo nono dia pela manhã, entrava e, aos poucos, penetramos nesta civilização
no carro para voltar a Paris. Talvez não tives- assassina e nos tornamos nós também está-
se consciência do que isto significasse. Talvez tuas de gelo conduzidas e alimentadas por
não tivesse consciência do bem que Thiezac não sei o quê. Thiezac! Agora mora em mim
me fez, e talvez nem mesmo do que lá vivi. uma vontade de voltar a esta cidadezinha.
Mas a viagem em nada me afetou. Thiezac.”

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Referências bibliográficas

AGUIAR, Teresa. O teatro no interior paulista – do TEC ao Rotunda, um ato de amor. São Paulo:
T. A. Queiroz, 1992.
BARBA E O TEATRO ANTROPOLÓGICO. Boletim Informativo. MinC (Ministério da Cultu-
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São Paulo: Hucitec, 1994.
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da Unicamp,
2002.
BURNIER, Luís Otávio. “A presença e a ação no tempo ou introdução à pesquisa teatral”. Revista
Trilhas, ano 1, n. 1, Campinas: IA/Unicamp, Jan/Abr 1987.
CAFIERO, Carlota. A arte de Luís Otávio Burnier – Em busca da memória. Campinas: Editora da
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REVISTA DO LUME, n. 1, outubro de 1998, Campinas: Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pes-
quisas Teatrais da Unicamp.

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