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Conselho Editorial,
Projeto Gráfico e Revisão
A coletivização na Espanha 23
Augustin Souchy
Indomáveis 51
Lucía Sanchéz Saornil
ESTUDOS ANARQUISTAS
DOCUMENTOS
A revolução social 63
Ricardo Flores Magón
Aos homens de boa vontade 68
Antonio Bernardo Canellas
Prefácio? Não! 70
Maria Lacerda de Moura
EXPRESSÕES LIVRES
O Carnaval 78
Rafael Barrett
Editorial
o pessimismo reina nos dias de hoje. Sobretudo por causa da atual con-
juntura política, com a ascensão dos setores conservadores e sua agenda ultraliberal,
fortalece-se o mito do fim da história. “Precisamos nos conformar de que não há
saída”: há muito escutamos essa ladainha, porém a novidade é que cada vez mais
essas palavras são ditas por quem está do nosso lado. Esse pensamento interfere di-
retamente nos projetos políticos e, por isso, cada vez mais a esquerda se apequena,
se contenta com pouco. Não trabalha mais com a ideia de uma outra sociedade, mas
sim com as “conquistas possíveis”, restrita à lógica do “menos pior”. Assim os sonhos
cabem cada vez mais nas urnas e “revolução” passa a ser uma palavra ultrapassada.
Essa perspectiva “ajustada à realidade” foi um dos fatores que contribuíram para
que a semente do fascismo germinasse calmamente nos mais diversos grupos so-
ciais. Desarmou a crítica radical das ruas pela via brutal da repressão, como em ju-
nho de 2013 ou durante as manifestações contra a realização da Copa do Mundo
em 2014. Desarticulando as organizações sindicais e estudantis pela via da coop-
tação ou, ainda, pelo silenciamento da pauta dos companheiros de luta por meio
da desqualificação e de sua delação pura e simples para as forças policiais, como
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Editorial
nas lutas contra o ajuste fiscal em 2015 às nossas. Tomamos essas lembranças
e em 2016. A atualização do repertório e percebemos que é somente através
de práticas leninistas e stalinistas ao seu da mobilização popular que podemos
dispor, abriu caminho à proliferação da construir uma nova sociedade. Para
intolerância e da falta de imaginação isso, é necessário recolocar a ideia de re-
política, tão próprias às pulsões pela or- volução no horizonte.
dem do autoritarismo de todos os tons. Com essa perspectiva, apresenta-
Com isso, a perspectiva do “ajuste à re- mos a nova edição da Revista da Bi-
alidade” foi quem tomou um banho de blioteca Terra Livre, que traz um dossiê
realidade. Isolada das forças sociais que especial a respeito da Revolução Espa-
nutrem a revolta e gestam ideias de um nhola. Tentamos recobrir criticamente
mundo novo, capitulou vergonhosa e vários aspectos dessa experiência his-
previsivelmente frente aos barões patri- tórica, agrupando artigos escritos no
monialistas, rentistas e midiáticos, que calor do momento e artigos de análi-
em sua arrogância vanguardista julgava se posteriores. Assim, a Carta aber-
ter metido no bolso. ta a companheira Federica Montseny,
Mas a história tem gosto pela iro- de Camillo Berneri, que veio à luz no
nia. É justamente em meio a esse con- periódico Guerra di Classe, e o artigo
texto no qual a esquerda se encontra Mais vale um anarquista do que um ca-
que completam-se 80 anos da Revolu- pitão!, de Ramon Casals, publicado no
ção Espanhola, um dos processos mais Solidaridad Obrera, ambos de 1937,
profundos de transformação social do cumprem o primeiro papel. O segun-
século XX, e também 10 anos da Co- do papel foi reservado aos artigos de
muna de Oaxaca. Essas lembranças vem Augustin Souchy (A coletivização na
para nos chacoalhar e nos tirar do con- Espanha), de Frank Mintz (O problema
formismo e do desânimo que a terra ar- do dinheiro durante a autogestão espa-
rasada do esquerdismo parlamentar nos nhola 1936-1939) e de Laura Vicente
levou. Retomamos o passado não para (80º Aniversário da Revolução: Muje-
contemplá-lo, mas sim para enxergar a res Libres). Os dois artigos escritos no
continuidade que liga as lutas passadas momento da Revolução mantêm uma
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Editorial
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Carta aberta a companheira
Federica Montseny
Camillo Berneri
Q uerida companheira,
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dirijo a você em público é por assuntos Guarda de Assalto aqueles que conser-
infinitamente mais graves, para te re- vam as armas e é aqui na retaguarda
lembrar de enormes responsabilidades que devem controlar os “incontrolá-
das quais talvez você não tenha se dado veis”, desarmando qualquer núcleo re-
conta devido à sua modéstia. volucionário que tenha alguns poucos
No discurso de 3 de janeiro, você fuzis e revólveres. Isso ocorre enquanto
dizia: o front interno não foi liquidado. Isso
ocorre enquanto há uma guerra civil
“Os anarquistas entraram no go- em curso em que qualquer surpresa
verno para impedir que a revolu- é possível e em uma região na qual o
ção se desviasse e para continuá- front está bem próximo, é muito irre-
-la para além da guerra e também gular em seu traçado e não é matema-
para opor-se a qualquer tentati- ticamente seguro. Isso ocorre enquan-
va ditatorial, independente qual to é nítida a distribuição política do
seja.” armamento, que afirma apenas dar o
que é “estritamente necessário” (espe-
Então, companheira, em abril, de- ramos que venha a ser dito claramente
pois de três meses de experiência cola- o que é “estritamente necessário”) para
boracionista, estamos em uma situação a frente de Aragão, a guarda armada
na qual ocorrem fatos graves e se anun- da coletivização agrária em Aragão e
ciam outros piores. o contraforte do Conselho de Aragão e
Ali onde – como em Vasconia, Le- da Catalunha, a Ucrânia Ibérica. Você
vante e Castilla – o nosso movimento está em um governo que ofereceu para
é impotente em forças de base, ou seja, a França e a Inglaterra vantagens no
não criou sindicatos vastos e não tem Marrocos, quando desde julho de 1936
uma preponderante adesão das mas- era necessário oficialmente proclamar
sas, a contrarrevolução avança e ame- a autonomia política marroquina. Ima-
aça esmagar tudo. O governo está em gino o que você pensa, como anarquis-
Valência, e dali é onde partiram guar- ta, sobre esse assunto estúpido e des-
das de assaltos destinados a desarmar prezível, mas chegou a hora de você e
os núcleos revolucionários de defesa.
os demais ministros anarquistas publi-
Recorda-se de Casas Viejas, pensando
cizarem que não concordam com a na-
em Vilanesa1. São da Guarda Civil e da
tureza e o teor dessas propostas.
1 Alusão ao Massacre de Casas Viejas, ocorrido Em 24 de outubro de 1936, eu es-
em 1933, insurreição barbaramente reprimida
e ao massacre ocorrido na vila de Vilanesa, em 1937 (N.T.).
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-lo? Se Prieto está ligado a uma política tes. Uma política interna de colabora-
que paralisa a Marinha, por que não cionismo entre classes e de adulação às
denunciar essa política? classes médias conduz inevitavelmen-
Vocês, ministros anarquistas, fa- te à tolerância com elementos políti-
zem discursos eloquentes e escrevem cos equívocos. A “Quinta Coluna” está
brilhantes artigos, porém não é com constituída, não somente por elemen-
discursos e artigos que se vence a guer- tos pertencentes aos quadros fascistas,
ra e se defende a revolução. Tanto uma mas também por todos os desconten-
quanto outra se vence e se defende per- tes que aspiram a uma república mode-
mitindo a passagem da defensiva para rada. São estes últimos os que se apro-
a ofensiva. A estratégia de posições não veitam da tolerância dos caçadores dos
pode se eternizar. O problema não se “incontroláveis”.
resolve lançando palavras de ordem, A eliminação do front interno tem
por condição prévia uma atividade
como “mobilização geral”, “armas ao
ampla e radical dos comitês de defesa
front”, “comando único”, “exército po-
constituídos pela CNT e pela UGT.
pular” etc. O problema se resolve rea-
Nós assistimos à penetração nos
lizando imediatamente o que pode ser
quadros dirigentes do exército popular
feito. Segundo La Dêpeche de Toulouse
de elementos equívocos, sem nenhu-
de 17 de janeiro: “A grande preocupa-
ma relação com organizações políticas
ção do Ministro do Interior é restabele-
ou sindicais. Os comitês e os delega-
cer a autoridade do Estado sobre a dos
dos políticos das milícias exerciam um
grupos e sobre os incontroláveis de to- bom controle. Hoje está debilitado de-
das as tendências.” vido o predomínio de um sistema de
É evidente que, embora houve o nomeação e de promoções centraliza-
empenho durante meses de aniquilar do e estritamente militar. É necessário,
os “incontroláveis”, a “Quinta Coluna” portanto, reestabelecer a elegibilidade
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não foi eliminada. A eliminação do direta e o direito de destituição pela
front interno tem por prévia condição base.
uma atividade de investigação e de re- E poderia continuar tratando des-
pressão que não pode ser cumprida a se tema.
não ser por revolucionários experien- Erro gravíssimo foi aceitar as fór-
2 “Quinta coluna” foi uma expressão criada em mulas autoritárias, não pelo o que elas
meio a Guerra Civil Espanhola para designar um formalmente são, mas sim porque nos
certo grupo social simpatizante ao golpe que atu-
ava no interior das zonas controladas pelos for- levam a enormes erros e a fins políticos
ças antifascistas (N. T.). que nada tem a ver com as necessida-
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Carta aberta a companheira Federica Montseny
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Carta aberta a companheira Federica Montseny
Camillo Berneri
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O texto que você acabou de ler foi publicado no dia 14 de abril de 1937,
três semanas antes do assassinato do autor. Camillo Berneri foi mor-
to em circunstâncias mal explicadas, nos eventos que ficaram conhecidos como
os “acontecimentos de maio”. O pouco que se sabe relaciona a morte do anarquis-
ta italiano às ações da Tcheka naquele fatídico mês, em que a polícia secreta so-
viética executou diversos militantes de esquerda opositores do stalinismo. Como
o próprio Berneri alertou no seu texto, ao citar literalmente o que o Pravda (ór-
gão oficial da URSS), publicou em dezembro de 1936: “Enquanto na Catalunha,
começou a limpeza de elementos trotskistas e anarcossindicalistas, trabalho que
será levado a cabo com a mesma energia com que foi levado na URSS.”
Essa demonstração de olhar atento para a leitura da realidade, visível até na
capacidade macabra de prever sua própria morte, foi uma das marcas de Camillo
Berneri. Nascido em Lodi, em 1897, aproximou-se do anarquismo depois do fim
da Primeira Guerra Mundial, após fazer parte da Juventude Socialista. Desde esse
momento até sua morte, manteve sempre uma postura independente e antidog-
mática, ao preocupar-se com o
diálogo do anarquismo com seu
entorno e não com uma carti-
lha de princípios. Seus escritos
podem ser lidos até hoje como
uma fonte de inspiração para as
pessoas preocupadas com um
anarquismo dinâmico, sempre
adaptando-se às mudanças de
contexto.
Todavia, engana-se quem
pensa que Camillo Berneri era
apenas um intelectual. Foi um
destacado opositor do regime de
Mussolini, exilando-se em 1926.
No exterior, fomentou a organi-
zação do antifascismo no exílio,
destancando-se sobretudo nas
tarefas de contraespionagem,
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Mais vale um anarquista do que um
capitão!
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Mais vale um anarquista do que um capitão!
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A coletivização na Espanha*
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fascismo. Dessa forma foi realizada dança foi um arranjo mais justo que o
a transferência da administração na existente até então, porque os traba-
maioria das empresas. O emprega- lhadores agora cobravam efetivamen-
dor era excluído se ele se opusesse ao te os frutos do seu trabalho. Mas esse
novo curso dos acontecimentos. Era sistema não era nem socialista, nem
contratado, se aceitasse a mudança. comunista. Em vez de um capitalista
Seguia trabalhando como um líder houve uma espécie de capitalismo co-
técnico ou comercial, às vezes como letivo.
operário, e recebia salário como os Enquanto antes havia um único
operários ou técnicos do escritório. proprietário de uma fábrica ou de um
Este processo e essa mudança eram café, os trabalhadores das fábricas ou
relativamente simples.
os funcionários do café passaram a ser
As dificuldades surgiram mais
agora os seus proprietários coletivos.
tarde. Rapidamente acabaram as
Os funcionários de um café próspe-
matérias-primas. Nos primeiros dias
ro tinham rendimentos mais elevados
após a revolução foram apreendidas.
do que aqueles de um estabelecimen-
Logo teriam que ser pagas ou abona-
to menos afortunado1. A coletiviza-
das.
Do exterior chegavam algumas 1 Nesta fase também parou a coletivização russa.
André Gide descreve isso em seu livro “De vol-
matérias-primas. Começaram a au- ta da URSS” da seguinte forma: “Nós visitamos
mentar os preços desses materiais e, um kolkhoz [fazenda coletiva] modelo perto de
Sukhum. Existe há seis anos. No primeiro mo-
portanto, também dos produtos. Os mento, teve que lutar muito, mas hoje é um das
salários foram aumentados. Mas essa melhores ... Chamam-no o milionário. Tudo
medida não foi geral. Em alguns se- respira bem-estar. Esse kolkhoz se estende por
uma vasta área. Favorecida pelo clima, a vegeta-
tores o aumento foi considerável. Na ção é abundante. Cada casa, construída de ma-
primeira fase da coletivização, os salá- deira, eleva-se sobre uma base de pedra, pitor-
esca, encantadora. Está cercada por um espaçoso
rios dos operários e empregados eram
pomar com árvores frutíferas, verduras e flores.
diferentes mesmo dentro da mesma Esse kolkhoz conseguiu produzir um lucro sig-
indústria. nificativo, o que lhe permitiu acumular reservas
consideráveis. Pôde aumentar os salários para
Ao limitar a coletivização à aboli- quinze rublos por dia. Como foi calculado esse
ção dos privilégios de alguns patrões, aumento? Da mesma forma como se fixam os di-
videndos dos acionistas, como se o kolkhoz fosse
ou à eliminação do lucro patronal em
uma empresa capitalista. Subsiste esta previsão:
uma sociedade anônima, os trabalha- na URSS não existe mais a exploração da grande
dores passaram a ser os beneficiários massa para o proveito de poucos. Os próprios
trabalhadores, ou seja, os do kolkhoz, repartem
efetivos, simplesmente substituindo o ganho entre si, sem dar nada ao Estado. (As-
os anteriores proprietários. Essa mu- sim pelo menos me explicaram várias vezes.) Sob
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A coletivização na Espanha
ção na Espanha não podia parar nessa tem que cobrir todas as comissões
fase. Esse era o sentimento de todos. econômicas de todos os sindicatos; os
Os sindicatos decidiram encarregar- fundos têm de se concentrar em um
-se do controle das empresas; os sin- único lugar, uma única caixa de com-
dicatos da indústria transformaram- pensação deve procurar uma distri-
-se em empresas industriais. buição equitativa. Em alguns setores
O sindicato da indústria da cons- há estes comitês de ligação e fundos
trução de Barcelona encarregou-se de compensação desde o início. A
dos trabalhos em todos os canteiros Companhia de Ônibus de Barcelo-
de obras da cidade. O ramo de ca- na, administrada pelos trabalhado-
beleireiros foi coletivizado. Em cada res, prospera e obtém excedente. Par-
salão de cabeleireiro há um delegado te dele vai para um fundo de reserva
sindical, que entrega semanalmente para comprar matérias-primas no ex-
todos os rendimentos ao Comitê Eco- terior, e o resto é usado para auxiliar a
nômico do sindicato. As despesas de Companhia de Bondes, que não fun-
todos os salões de cabeleireiros são ciona com tanto superávit. Empresas
pagas pelo sindicato, incluindo os sa- completamente não lucrativas, como
lários. Os sindicatos de trabalhadores o funicular Montjuic-Porto de Barce-
substituiu o sindicato dos patrões. A lona, serão suspensas, por razões eco-
justiça social foi alcançada em alguns nômicas, durante o inverno.
ramos. Mas algumas indústrias são Quando a benzina começou a
melhores que outras. Há ramos mais se tornar escassa, quatro mil taxistas
ricos e mais pobres, salários maiores e ficaram desempregados; o sindica-
menores. Também não se pode parar to teve que pagar seus salários. Foi
o processo de coletivização nesta fase. um fardo pesado para o sindicato de
Na Federação Local dos Sindica- Transportes. Ele foi forçado a procu-
tos de Barcelona (CNT) se discute a rar a ajuda de outros sindicatos e da
criação de um comitê de ligação: este prefeitura de Barcelona. A indústria
têxtil tinha poucas matérias-primas.
todos esses aspectos, não se pode dizer nada se
não existirem também kolkhozes, mais pobres, O trabalho foi limitado; em algumas
que não podem manter-se bem. Se bem entendi, fábricas só se trabalhava três dias por
cada kolkhoz tem a sua autonomia, e nenhum
semana. Mas era preciso pagar os tra-
vestígio de assistência mútua. Talvez eu esteja er-
rado? Gostaria de estar errado”. A coletivização balhadores. Como os trabalhadores
agrícola parece estar ainda na sua fase inicial na do setor fabril e têxtil não dispunham
Rússia. Eles ainda não chegaram a socialização.
(Veja André Gide: “De volta da URSS”). (Nota de meios suficientes, a Generalitat
do Autor). teve que ajudar. O processo de cole-
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O problema do dinheiro durante a
autogestão espanhola (1936-1939)
Frank Mintz
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zas, assim como o rechaço de todas as sidentes antes das eleições de 1936) e
diferenças salariais. A segunda, mantém também as do PC4, os comitês criaram
a moeda ao mesmo tempo que os bônus bônus para que a população pudesse
de consumo, com o objetivo de suprimir abastecer-se; bônus que os comercian-
o caráter especulativo da poupança, do tes aceitavam.
empréstimo etc. Pierre Besnard foi quem Essas duas experiências foram
melhor elaborou essa teoria, pensan- amplamente comentadas em toda a Es-
do em um sistema de salário nacional, panha. E os próprios socialistas e co-
a partir dos bônus e dos intercâmbios munistas do BOC e do PC se anima-
internacionais, eventualmente baseados ram (apesar de Marx e de Lenin-Stálin)
no ouro. diante da capacidade dos trabalhadores
A prática revolucionária de 1933 e asturianos em matéria monetária. Des-
1934 clarificou os conceitos. Por exem- se modo, do lado anarquista, a visão de
plo, quando da tentativa insurrecional Besnard (e Leval) de um salário e uma
do comunismo libertário, em Aragão, moeda sem seus aspectos especulativos
em dezembro de 1933, o dinheiro foi assemelhava-se à de Kropotkin e Isa-
abolido, o que pode relacionar-se tanto ac Puente, que implicava a supressão
aos artigos de Isaac Puente em torno do do dinheiro. O Congresso da CNT de
comunismo libertário, como à influên- maio de 1936 não tomou postura, ao
cia de Kropotkin (muito lido na Espa- adotar uma proposta sobre o comunis-
nha): isto é, a uma tradição comunal e mo libertário, pronunciando-se de uma
um rechaço visceral à política burguesa forma ambígua5 baseada no “carnê do
(que, sem dúvida, liga-se com a tradi- produtor”. Por outro lado, as demais re-
ção religiosa do dinheiro como fonte de soluções citadas por Antonio Elorza no
perversão). 4 O PC se utilizou do POUM como aríete con-
Em 1934, quando a insurreição, tra Trotsky, até o disparate de assimilar fascismo
ao trotskismo, e portanto também ao POUM. O
voluntariamente limitada a Astúrias paradoxo é que Trotsky nunca aceitou o POUM
devido a obscuras manobras políticas, porque lhes queria impor que ingressassem no
PSOE e na UGT para dar uma orientação revolu-
como aquelas de socialistas e comu-
cionária. Ou seja, o POUM nunca teve nenhum
nistas do Bloco Operário-Camponês apoio, e desde a CNT-FAI tampouco (por causa
(posteriormente, agrupado no POUM, da intolerância e da desconfiança mútua), apesar
de alguns grupos como Los Amigos de Durruti
aglomerado de grupos marxistas dis- terem se mantido muito próximos dos poumis-
tas. Nota de 2011.
na Espanha a partir da obra a Conquista do Pão,
de Piotr Kropotkin. Este termo designava a ex- 5 Não sei porque pus uma opinião tão negativa:
propriação dos bens produzidos em abundância. Isaac Puente sustentava e derivava sua proposta
(N. T.) de Pierre Besnard. Nota de 2011.
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desde os primeiros dias da revolução e Generalitat não tinha nenhum poder so-
enquanto ela dure não tenha um só ho- bre o Banco da Espanha.
mem no território insurrecto que não A segunda tendência era a de apli-
tenha pão.”7. car o salário único (como nos transpor-
Durante os primeiros dias de fe- tes), supondo que, globalmente, não po-
bre, não houve realmente reivindicações deria gerar inflação nem mercado negro
globais: cada coletivo fez o inventário de e foi imediatamente o que ocorreu, não
seus recursos e, ao mesmo tempo, pen- somente na Catalunha, mas em toda a
sou em que medida poderia contribuir Espanha republicana. Evidentemente, o
para a revolução. Penso que pode-se salário único não estava fixado com ri-
distinguir duas tendências, partindo de gidez e também pensou-se que os pre-
uma atitude idêntica de reorganização ços se manteriam fixos. Essa tendência
do leque de salários (os altos salários de foi a que adotaram os coletivos agrários,
diretores, subdiretores e empregos ho- a partir do anúncio da vitória em Bar-
noríficos foram suprimidos, os salários celona, no que se designa normalmente
de engenheiros e dos quadros se man- como a Espanha republicana. Também
tiveram e o dos trabalhadores manuais aqui se deram duas tendências: o recha-
aumentaram8). A primeira tendência foi ço do dinheiro (inclusive queimado em
a de trabalhar menos e ganhar mais, a alguns casos) e a instauração da toma
que foi apoiada pela Generalitat e seu del montón e o estabelecimento de uma
decreto de 24 de julho de 1936: sintomá- moeda local. As variações locais e as dis-
tico que, reduzidos ao estado de fantas- cussões em assembleias gerais para mo-
ma jurídico, os catalanistas decretaram a dificar o sistema são resumidas por um
semana de 40 horas e o aumento de 15% testemunho da época: “Tudo o que foi
nos salários, apesar de que as necessi- feito, se fez imediatamente e como foi
dades revolucionárias eram grandes e a ensaiado. Durante os primeiros dias se
deram bônus para poder adquirir o que
7 Kropotkin, A Conquista do Pão, 2005, Libros se necessitava. Depois, foi feito o papel
de Anarres, Buenos Aires, p. 65.
moeda e agora temos adotado o sistema
8 Os salários superiores ainda representam so-
mas injustificáveis; por exemplo, quando a ocu-
da fórmula do carnê de produtor. Até
pação da fábrica Lip em Besançon em 1973 soube agora, isso é o melhor do que temos pos-
que um ministro, atual homem forte de Giscard to em prática”9.
(presidente da França), Poniatowsky, recibia um
salário como “ajuda para os conselhos de gestão”.
Esse político foi condenado por corrupção e 9 Bujalance, província de Córdoba, reportagem
continua sendo processado em 2011. A situação de Solidaridad Obrera, 25/09/1936, Autogestión y
global de corrupção é ainda mais acentuado hoje anarcosindicalismo en la España revolucionaria,
em dia. Nota de 2011 Buenos Aires, 2009, p. 78
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O problema do dinheiro durante a autogestão espanhola (1936-1939)
Não ocorreu uma evolução de re- a escala dos salários era diferente para os
cursos que permitiu mudar o comunis- homens casados ou solteiros, as mulhe-
mo pela abundância, já que o raciona- res solteiras, as crianças e os idosos (às
mento alcançou a todos. Também houve vezes separados).
a permanência da hierarquia machista. Outro aspecto em comum em
Em uma economia não racionada, a ambas as coletividades era o problema
igualdade se instaura, de fato, entre as da troca, aquisição de bens fora dos co-
pessoas e os sexos. Ao estabelecer o car- letivos. Em todos os casos, a base das es-
nê de produtor, os coletivos rebaixaram timativas se fazia em pesetas, e o acordo
a mulher, que sempre ganhou menos era feito tanto em dinheiro da coletivida-
que os homens. Gastón Leval disse na de quanto a trocar direta entre coletivi-
edição italiana do seu livro: “Em quase dades, quando era possível. Nesse ponto
na metade das coletividades agrárias, o nos deparamos com a falta de dados es-
salário que se pagava [à mulher] era in- tatísticos sobre os produtos disponíveis
ferior ao do homem, em outra metade tanto no mercado (certamente desorde-
era equivalente; estas diferenças podem nado) como nas coletividades da região
explicar-se tendo em conta que a mulher e nas próprios ramos da autogestão.
solteira poucas vezes vive sozinha”10. E chegamos, naturalmente, ao ter-
Apesar de não ter a documentação de ceiro aspecto: o sistema bancário, que se
todos os salários das coletividades, não manteve nas mãos dos burgueses repu-
vi nenhuma coletividade agrária aplicar blicanos, apesar do desejo de tomá-lo e
a igualdade de salários entre homens e o exemplo do Banco de Oviedo de 1934
mulheres. (o que Federica Montseny sublinhou ao
Esses dados permitem reagru- mostrar a grande consciência revolu-
par as duas situações – coletividades do cionária em relação à Comuna de Paris,
campo e da cidade – por meio da adoção em La revolución de octubre. Quince dias
em ambos do salário familiar (segundo de comunismo libertario, de Solano Pa-
o número de membros da família), o que lacio). Pode-se acrescentar os desejos, e
se subentende o clã familiar, cuja evolu- até as tentativas, dos anarcossindicalis-
ção está sancionada pelo matrimônio e tas de se apropriarem do ouro do Ban-
pela criação de filhos... E, naturalmente, co da Espanha em Madri (ver Santillán,
García Oliver e o livro Durruti de Abel
10 Né Franco, né Stalin: le collettivittà archiche
spagnole nella lotta contro Franco e la reazione Paz), mas a colaboração política impos-
staliana, 1952, pp. 314-315. Ver o texto inteiro ta pelos dirigentes sindicalistas da CNT-
em Principios y enseñanzas de la Revolución Es-
-UGT fez com que essa operação falhas-
pañola (disponível em: http://www.fondation-
besnard.org/article.php3?id_article=1182). se.
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estavam menos protegidos, sem que me obscuro segue sendo o modelo padrão,
seja possível poder precisar alguma por- a estimativa a partir da peseta, necessa-
centagem. riamente sujeita à inflação e dependente
Pode-se assinalar que os negó- do sistema bancário; eu não tenho co-
cios baseados na troca direta seguiram nhecimento de tentativas de estabelecer
em vigor (países do Oriente – países do negócios a partir de uma outra forma de
Ocidente, na maioria dos casos), e que cálculo (a hora de trabalho de uma cole-
se os anarcossindicalistas tivessem podi- tividade agrária de tal região; os artigos
do colocar em prática seu sistema (por fixos: pão, leite ou carne). O assunto ain-
exemplo o projeto monetário), poderia da está por ser explorado.
ter funcionado. Pelo contrário, o ponto
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Lucía Sanchéz Saornil foi uma militante anarquista, uma das fundadoras da re-
vista e do grupo Mujeres Libres. Texto publicado originalmente no jornal SIA (ór-
gão da Solidariedade Internacional Antifascista) núm. 17, de Paris, em 09/03/1939.
Traduzido para o português por Thiago Lemos.
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Indivíduo, comunidade, sociedade *
Eduardo Colombo
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que é levado à morte ou até o fim. O sa- ditada de uma vez para sempre, e os
grado é a essência da religião, mas tam- homens em seu tempo histórico não
bém, e isso é importante, é o elemento fazem mais que obedecer a uma mino-
base do Poder Político, da dominação, ria dominante, que é a representante na
está oculto no Estado, está oculto nas terra desse elemento sagrado posto há
instituições de domínio. Se buscarmos tempos, no altar do social.
na etimologia a palavra hierarquia, O sagrado significa um desapos-
por exemplo, vemos que vem do gre- samento originário e fundamental da
go hieros (hierarchie em francês, jerar- capacidade instituinte do homem. E
quía em espanhol). Hieros: sagrado; agora entraremos mais claramente na
arquia, todo o mundo conhece a pala- definição de Poder. Nós utilizamos fre-
vra anarquia, a saber – a: privativo de quentemente a palavra poder com uma
arkhé, que tem a ver com a ordenação eficácia simbólica enorme e ao mesmo
política da sociedade. O elemento que tempo com uma imprecisão pratica-
está diretamente incrustado no Poder, mente total. Mas não porque nossa lin-
o elemento sagrado, está no centro da guagem seja imprecisa, e sim porque a
relação entre indivíduo e sociedade, palavra poder contém, por um estra-
porque as sociedades são, desde sua tégia milenar do próprio Poder, uma
origem até hoje, sociedades heterô- contradição, ou talvez, poder-se-ia
nomas, isto é, não existem sociedades dizer, mais que uma contradição, ele-
autônomas, como não existem indiví- mentos díspares que funcionam jun-
duos totalmente autônomos, porque a tos e que são utilizados em função das
relação entre sociedade e individuo é necessidades da causa para dizer uma
uma relação de interação permanente. coisa ou seu contrário.
A problemática a que quero che- Quando dizemos poder, se o di-
gar é que essa heteronomia da socieda- zemos em uma assembleia anarquis-
de é, pela própria definição, a consequ- ta, a primeira imagem que aparece é
ência do sagrado, ou seja, as sociedades o Poder Político e sua dominação, o
são heterônomas porque a lei, a norma, Estado, mas a palavra poder não quer
o costume, não estão organizados de dizer somente isso. Fundamentalmen-
dentro, pelos indivíduos que vivem em te, quer dizer capacidade, capacidade
uma sociedade, mas sim estão organi- de fazer; pode-se fazer algo, nós juntos
zadas desde o tempo mais remoto pe- podemos fazer mais coisas, nós pode-
los antepassados mortos, pelos heróis, mos fazer uma infinidade de coisas e
pelos Deuses, pelos que constituem uma das coisas que podemos fazer, e
um tempo primordial em que a lei foi não somente podemos fazer, mas fa-
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pelo qual o Poder Político deixa de ser ele deseja, mas esse sentimento é sub-
a capacidade global, do grupo huma- jetivo e alheio a uma compreensão real
no, para converter-se na capacidade de das relações entre os homens. Vou me
uma minoria de impor aos outros – à basear nisso, apesar de haver uma larga
maioria – sua decisão. Ou seja, que a bibliografia sociológica, sociopolítica,
capacidade de manusear o mundo, as que poderia ser utilizada para expli-
relações com os outros, a criação só- car esse tema, e já que estamos entre
cio-histórica, se transforma na capaci- anarquistas vou utilizar a definição que
dade de uns, de alguns, de poucos, de Bakunin faz sobre a liberdade. Bakunin
uma oligarquia, para impor aos outros diz que há três momentos essenciais da
a obediência. liberdade do homem.
Na medida em que essa transfor- Esses três momentos são: primei-
mação aparece na sociedade, constitui- ro, o feito enorme e positivo da criação
-se o que chamamos de Poder Político; social; o homem vive em sociedade, o
nós o reproduzimos, como eu dizia há homem adquire humanidade com os
pouco, na palavra poder, porque, por outros, sem sua relação com os outros
exemplo, se alguém diz a uma crian- o homem não teria chegado à sua ho-
ça: – Não pode subir na mesa! – bem, minização; ou se preferirem, antes que
ela me perguntará – Como não posso o homem, o australopithecus, o homo
se eu já subi? Não, não pode subir sig- habilis, ou o homo erectus, não tivesse
nifica que não deve subir na mesa, que chegado a construir um útil, um ins-
o dever está incluído na concepção de trumento, a utilizar a palavra, a criar
poder. Por quê? Porque essa mesma um código ou instruções, não estives-
heteronomia do social incrusta na de- se fazendo algo com o outro, não es-
finição de poder esse elemento de exte- tivesse em relação com o outro; esse
rioridade, do dever de obediência. aspecto sociológico da interação, a so-
E como não tenho muito tem- ciedade como tal, é um elemento cen-
po, sobre esse aspecto me contentarei tral e positivo da liberdade humana. É
em mostrar de que maneira o dever de um absurdo, diz Bakunin, crer que o
obediência é um dos aspectos centrais homem é livre antes de entrar na so-
da dominação política, ou das socie- ciedade, como mantém o credo liberal,
dades hierárquicas. A sociedade não é, segundo o qual cada indivíduo renun-
como ingenuamente costuma-se dizer, cia a uma parte de sua liberdade para
algo que se opõe ao indivíduo. O in- pactuar com os outros um Contrato
divíduo pode sentir a sociedade como Social, posição que vai necessariamen-
que lhe opondo uma resistência ao que te à dominação política. O homem não
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é livre antes de entrar na sociedade, é a do que existe, para alcançar algo que
sociedade que o faz livre, o elo em re- não existe, mas que pode vir a ser.
lação com os outros, a autonomia do E o terceiro momento, o mais
indivíduo na sociedade que permite a difícil, é o de rebelar-se não contra a
aparição da liberdade. Por outro lado, sociedade que está fora, não contra a
é a sociedade que permite também a instituição que temos diante de nós e
aparição do Poder. Antes da vida em que nos oprime, mas de nos rebelar-
sociedade não havia nem bem nem mos contra a instituição que temos in-
mal, não há nem Poder nem Liberda- ternalizada, que temos dentro de nós.
de, são as construções do homem na Essa necessidade que temos contra a
sociedade que fazem que a liberdade sociedade que levamos dentro é, ao
tenha um valor positivo. mesmo tempo a confirmação de que o
Mas esse momento não basta, indivíduo é o que é em relação com os
diz Bakunin. Para que a sociedade evo- outros e também o fator que o impe-
lua, para que a sociedade se transfor- de de pensar, ou dar-se conta, ou com-
me, para que esse feito fundamental do preender até que ponto está alienado,
homem que é sua humanização em so- até que ponto está dominado, até que
ciedade não se estanque, não fique ali ponto responde a uma sociedade que
amarrado ao seu primeiro momento, se lhe apresenta como externa, como
necessita-se da rebelião, a rebelião do se fosse o natural, o dado; enquanto a
indivíduo, que é o segundo e funda- sociedade não é o natural, nem é nada
mental momento da liberdade. Mas a senão uma construção humana. A au-
rebelião é ao mesmo tempo o momen- tonomia do homem, como a liberdade
to mais difícil do ponto de vista pesso- do homem, nasce nesse processo de
al, e também o mais fácil de conceber, autoconstrução.
porque todos sentimos a opressão e Vou extrair somente duas con-
tendemos espontaneamente a nos re- sequências do que acabo de dizer, a
belarmos contra tudo que nos oprime. primeira: é um absurdo pensar que a
O desejo é uma força inerente ao ho- liberdade, qualquer tipo de liberdade,
mem que vai encontrar um limite, não a liberdade filosófica como a liberda-
no outro, mas na dominação do outro, de política, pode ser concebida como
no Poder Político que o outro pode se um desejo ilimitado; a liberdade sem
atribuir para impedi-lo de construir limites, sem obrigações, sem a relação
seu desejo com os demais, com os ou- com os outros, é a liberdade do tirano:
tros. O segundo momento da liberdade o único que pode fazer o que quer e
é essencialmente a rebelião, a negação quando lhe convém é o tirano. Os ho-
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mens respeitam ao outros porque vi- como formas das relações entre os ho-
vem com os outros, porque necessitam mens, que podemos modificar na in-
dos outros para serem, eles mesmos, li- ter-relação com os outros e aprofundar
vres; a liberdade de cada um se estende no sentido da liberdade humana, mas
ao infinito com a liberdade dos outros. as sentimos como algo que nos é im-
Mas exige obrigações sociais. A obri- posto. Na sociedade civil, as normas
gação social é o elemento que está na são vividas como a obrigatoriedade da
própria base da norma social; não há obediência. O Poder Político, seja tota-
sociedade sem instituição, não existe litário ou representativo, impõe a todos
uma sociedade sem norma, não existe nós uma norma, uma série de normas,
uma sociedade sem linguagem. Uma de leis, de regras, sobre as quais não
criança que aprende a falar o aprende temos decidido nada e sabemos pro-
em uma instituição funcionante da so- fundamente que nunca participamos
ciedade. em seu estabelecimento. É a existência
Essa condição de obrigação so- do poder político ou dominação que
cial está totalmente difundida ou dis- transforma a obrigação social em de-
torcida nas sociedades hierárquicas, ver de obediência, transformação que
com o Estado, ou seja, em sociedades constitui a própria essência das socie-
que todos conhecemos (até o momen- dades hierárquicas.
to não existiram praticamente outras), Se pensamos em criar uma uto-
que são as sociedades de dominação pia para o futuro, para o próximo sé-
política ou construídas sobre a domi- culo, e pensamos em construir o pro-
nação política. O que ocorre em todas jeto de uma sociedade livre, temos que
essas sociedades é que, como a norma entender que a anarquia não é falta de
ou a lei está ditada por uma minoria normas – a falta de normas é a anomia
que expropriou a capacidade simbólica ou o caos. A anarquia é uma institucio-
da totalidade do social, a obrigação so- nalização anárquica da sociedade, ou
cial deixa de ser tal para se transformar seja, o estabelecimento de instituições
no dever de obediência. anarquistas em que os homens possam
Nós sentimos as normas ou as viver e criar a igualdade, a justiça e sua
regras sociais em que vivemos não própria liberdade.
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A revolução social
Uma polêmica em torno da Revolução Mexicana (continuação)
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alguma coisa, ainda que seja bastante A imprensa de todas as cores ad-
distante do comunismo, não se chegará mite que não se trata de uma revolução
nunca a nada, como na Rússia”. política, mas de um movimento eco-
Nossa obra de agitação por meio nômico, de uma guerra de classes que,
da ideia, e a agitação por meio da ideia se os libertários a fomentarem, termi-
e da ação de nossos bravos companhei- nará com o comunismo. E temos vis-
ros que sustentam a Bandeira Vermelha to, igualmente, que, por instinto, por
nos campos mexicanos, estão dando herança, o povo mexicano, povo não
seus frutos: a prolongação do movi- corrompido com os hábitos do arro-
mento, para que não volte a haver um cho, povo modesto, é apto para o co-
governo estável no México, pois desde munismo, comunismo que, em parte,
o princípio temos acreditado, como tem praticado por milhares de anos.
nosso velho camarada Kropotkin, que Ademais, é sabido que o povo mexica-
quanto maior duração tenha um movi- no, odeia cordialmente a Autoridade e
mento revolucionário, mais se radica- o Capital, apesar das prédicas do clero
lizarão as tendências; mais amplas são embusteiro.
as aspirações populares e mais fácil é El Imparcial, do dia 22 de março,
chegar ao comunismo. ao falar do movimento revolucionário
Outro dos frutos de nossa in- no estado de Oaxaca, disse: “As prin-
cessante propaganda é a expropriação cipais plantas de mudas de algodão de
da terra e da maquinaria de produção. Jamiltepec foram destruídas pelos re-
Há muitos números, Regeneración tem volucionários. Para se salvar do ataque
nos mostrado os atos de expropria- dos rebeldes em curso, algumas pessoas
ção da terra levados a cabo por multi- permaneceram nos bosques de Playa,
dões de proletários que se tem posto a escondidas vários dias, alimentando-se
trabalhá-la com um fuzil atravessado. somente de cocos e tartarugas. Os po-
Os leitores de Regeneración terão visto voados ao redor da propriedade de San
que quando os proletários não podem José Ejutla desejam repartir suas terras
sustentar a expropriação da terra, por e, de fato, dispõem-se a atacá-la”.
falta de armas, arrasam as fazendas e O mesmo periódico disse em 29
os povoados para que, se eles tiverem de março, ao falar do movimento re-
que sofrer, que sofram igualmente os volucionário no Distrito de Tlapa, Es-
seus carrascos. Terão visto também os tado de Guerrero: “A propriedade de
múltiplos casos de sabotagem, de gre- Jicayán, propriedade do senhor Daniel
ves revolucionarias, de consciência de Pérez Ruiz, foi esvaziada por completo.
classe dos proletários mexicanos. Os indígenas repartiram os terrenos e
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A revolução social - Uma polêmica em torno da Revolução Mexicana (cont.)
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A revolução social - Uma polêmica em torno da Revolução Mexicana (cont.)
pois os magníficos resultados que dizer que não é bom que os cama-
que deu aos peões seu levante radas peões dividam a terra, porque no
na fazenda dos senhores Le- futuro ficará outra vez em poucas mãos
gorreta despertou o desejo de e a miséria e a tirania serão o fruto do
imitá-los. ato heroico da expropriação. Imitem os
Alguns fazendeiros do mes- peões de outras regiões que tomaram a
mo Estado de Querétaro op- terra em comum.
taram por dar milho e lugar A terra deve ser trabalhada em
aos seus peões para semear, comum e os produtos consumidos em
livrando-se de perder suas comum.
terras ou de recorrer às forças Que dirão agora os senhores Jean
das armas”. Grave e Luigi Galleani e tantos outros
que se ufanaram de libertários e são os
A conduta destes dignos prole- piores inimigos da revolução do prole-
tários está sendo imitada em muitas tariado mexicano?
fazendas da República. Somente temos
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Aos homens de boa vontade
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Aos homens de boa vontade
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Prefácio? Não!
Prefácio ao livro Alvoradas, de Ilka Maia
A lei daquele país proibia aos amos de escravos que vendessem as crias de
seus negros e que se livrassem de seus serviçais sob o pretexto de velhice. Ao com-
prar um escravo, o amo se via obrigado a conservá-lo até que morresse. O domínio
de cada colono formava desse modo um pequeno Estado.
Resgatamos aqui um texto obscuro e até então esquecido de Maria Lacerda
de Moura. Tentamos fazer com que ganhe mais projeção através das páginas da
Revista da Biblioteca Terra Livre, em especial pelo seu teor fortemente pessoal e
rebelde.
“Prefácio? Não!” foi escrito em 1923 e publicado como apresentação ao livro
Alvoradas (1924) da poetisa Ilka Maia, uma garota que na época tinha apenas 16
anos e já demonstrava um enorme talento para as letras.
Mas quem foi Ilka? Nascida em 27 de abril de 1906 na cidade de São Pau-
lo, Ilka de Freitas Maia era filha do advogado Luiz Oscar de Almeida Maia e de
Maria da Glória de Freitas Maia, professora. Começou a escrever desde pequena.
Posteriormente, formou-se em Psicologia e trabalhou como funcionária pública
na prefeitura da capital por vários anos, atuando como Psicotécnica e na área da
Psiquiatria, contribuindo com descobertas importantes em relação a testes em Psi-
canálise. Aposentada, viveu em várias cidades do interior do estado até seu faleci-
mento em 1988, na cidade de Bananal/SP.
Ilka Maia foi autora de outros livros de poesias ao longo da vida, mas apa-
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S
das!
São almas sem abrigo – as almas
foragidas
Que Deus deixou sem lar no gelo ou inimiga dos prefácios por-
das calçadas!... que não concordo com a insti-
tuição dos padrinhos. Padrinho e Ma-
São crianças sem pão, famintas, drinha constituem assim uma espécie
atiradas… de tutela para a vida. E o meu tempe-
Aos turbilhões da rua, em trapos ramento combativo, rebelde, revolta-se
envolvidas!... contra toda e qualquer coação à minha
São os cegos sem luz de pupilas liberdade. Na acepção literária o prefá-
cansadas cio é o segundo batizado ou melhor: o
Que procuram a paz das campas crisma. Se o autor é mal sucedido, se é
esquecidas!... medíocre, diz o padrinho “Ora, pediu-
-me o prefácio, como negar? Quis au-
São mudos a que a mão de ferro xiliar a um principiante, eu sabia que
do Destino, não tinha talento, mas...” E deixa no ar a
Estrangulou o som das portas da afirmação da sua grande generosidade
garganta!... no gesto amplo da mão de protetor. De-
- E as mais tristes, mais sós, des- testo a proteção, sob qualquer forma.
prezadas de Deus, Se o autor vence, se afirma uma
individualidade, até morrer o padrinho
Que não servem sequer de encos- compartilha dos lucros “Não fora eu...
to ao peregrino, Era desconhecido... Corrigi, melhorei,
Essas são corações que numa an- retoquei, ensinei, dei-lhe um pouco do
gústia santa meu grande cabedal...” Detestável tudo
Amaram como o meu, uns olhos isso.
como os teus!... Quando publiquei o meu pri-
meiro livro o fiz sozinha, consciente,
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Prefácio? Não!
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Maria Lacerda de Moura foi uma das mais notórias anarquistas brasileiras, uma
das primeiras mulheres a discutir a emancipação feminina no país.
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O Carnaval
Rafael Barrett
“
U ma máscara, sobre outra” disse Shakespeare. É necessária
uma dupla proteção para arriscar-se a ser sincero. O Carnaval é, principalmente,
a festa da sinceridade. Durante alguns dias somos todos somos o mais franco que
conseguimos, a ponto de cair no descaramento; falamos quase tudo o que pen-
samos; atrevemo-nos a parecer loucos, isto é, a parecer que somos; aliviamo-nos
de doze meses de hipocrisia. Privilégio admirável! É-nos permitido correr, cantar,
gritar e rir à vontade, e a vestir-se como quiser. Suprime-se a rotina, a convenção
correta, a metade das farsas sociais; cura-nos do terror mais vil, o terror do ridícu-
lo, congratulamo-nos com o grotesco, abre-se o ferrolho da fantasia, tornamo-nos
espontâneos, improvisamos uma espécie de segunda inocência. É um momento de
liberdade, um ensaio de uma vida melhor e futura; um relâmpago. Logo se retorna
ao fundo cinza do velho costume. A alegria não é desse mundo. Somos bestas as-
tutas; somos novamente hipócritas: defendamo-nos! Rejeitemos o júbilo: sejamos
cautelosos em implementar as soluções de nossa razão. Ordem! Ordem! Não há
nada tão anarquista como o bom senso.
“O ano todo é Carnaval”; um Carnaval triste e sórdido. Perante o mestre, o
chefe, o juiz ou o instrumento de nossa ambição, fazemos a comédia da servidão e
da intriga. Os mais fortes a fizeram: Bonaparte, o soberano vindouro de uma corte
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O Carnaval
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