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Biblioteca Terra Livre

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agosto de 2016.

A Revista da Biblioteca Terra Livre é uma publicação ampla, tanto em suas


inquietações sociais como no critério que aplica para a seleção de seus textos.
Portanto ela não compartilha necessariamente com as opiniões apresentadas.

É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que


esta nota seja incluída e a autoria seja citada.
Sumário
EDITORIAL 4

DOSSIÊ 80 ANOS DA REVOLUÇÃO ESPANHOLA

Carta aberta a companheira Federica Montseny 9


Camillo Berneri

Mais vale um anarquista do que um capitão! 18


Ramón Casals

A coletivização na Espanha 23
Augustin Souchy

O problema do dinheiro durante a autogestão espanhola (1936-1939) 39


Frank Mintz

80º aniversário da revolução: Mujeres Libres 47


Laura Vicente

Indomáveis 51
Lucía Sanchéz Saornil

ESTUDOS ANARQUISTAS

Indivíduo, comunidade, sociedade 55


Eduardo Colombo

DOCUMENTOS
A revolução social 63
Ricardo Flores Magón
Aos homens de boa vontade 68
Antonio Bernardo Canellas

Prefácio? Não! 70
Maria Lacerda de Moura

EXPRESSÕES LIVRES

O Carnaval 78
Rafael Barrett
Editorial

o pessimismo reina nos dias de hoje. Sobretudo por causa da atual con-
juntura política, com a ascensão dos setores conservadores e sua agenda ultraliberal,
fortalece-se o mito do fim da história. “Precisamos nos conformar de que não há
saída”: há muito escutamos essa ladainha, porém a novidade é que cada vez mais
essas palavras são ditas por quem está do nosso lado. Esse pensamento interfere di-
retamente nos projetos políticos e, por isso, cada vez mais a esquerda se apequena,
se contenta com pouco. Não trabalha mais com a ideia de uma outra sociedade, mas
sim com as “conquistas possíveis”, restrita à lógica do “menos pior”. Assim os sonhos
cabem cada vez mais nas urnas e “revolução” passa a ser uma palavra ultrapassada.
Essa perspectiva “ajustada à realidade” foi um dos fatores que contribuíram para
que a semente do fascismo germinasse calmamente nos mais diversos grupos so-
ciais. Desarmou a crítica radical das ruas pela via brutal da repressão, como em ju-
nho de 2013 ou durante as manifestações contra a realização da Copa do Mundo
em 2014. Desarticulando as organizações sindicais e estudantis pela via da coop-
tação ou, ainda, pelo silenciamento da pauta dos companheiros de luta por meio
da desqualificação e de sua delação pura e simples para as forças policiais, como

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Editorial

nas lutas contra o ajuste fiscal em 2015 às nossas. Tomamos essas lembranças
e em 2016. A atualização do repertório e percebemos que é somente através
de práticas leninistas e stalinistas ao seu da mobilização popular que podemos
dispor, abriu caminho à proliferação da construir uma nova sociedade. Para
intolerância e da falta de imaginação isso, é necessário recolocar a ideia de re-
política, tão próprias às pulsões pela or- volução no horizonte.
dem do autoritarismo de todos os tons. Com essa perspectiva, apresenta-
Com isso, a perspectiva do “ajuste à re- mos a nova edição da Revista da Bi-
alidade” foi quem tomou um banho de blioteca Terra Livre, que traz um dossiê
realidade. Isolada das forças sociais que especial a respeito da Revolução Espa-
nutrem a revolta e gestam ideias de um nhola. Tentamos recobrir criticamente
mundo novo, capitulou vergonhosa e vários aspectos dessa experiência his-
previsivelmente frente aos barões patri- tórica, agrupando artigos escritos no
monialistas, rentistas e midiáticos, que calor do momento e artigos de análi-
em sua arrogância vanguardista julgava se posteriores. Assim, a Carta aber-
ter metido no bolso. ta a companheira Federica Montseny,
Mas a história tem gosto pela iro- de Camillo Berneri, que veio à luz no
nia. É justamente em meio a esse con- periódico Guerra di Classe, e o artigo
texto no qual a esquerda se encontra Mais vale um anarquista do que um ca-
que completam-se 80 anos da Revolu- pitão!, de Ramon Casals, publicado no
ção Espanhola, um dos processos mais Solidaridad Obrera, ambos de 1937,
profundos de transformação social do cumprem o primeiro papel. O segun-
século XX, e também 10 anos da Co- do papel foi reservado aos artigos de
muna de Oaxaca. Essas lembranças vem Augustin Souchy (A coletivização na
para nos chacoalhar e nos tirar do con- Espanha), de Frank Mintz (O problema
formismo e do desânimo que a terra ar- do dinheiro durante a autogestão espa-
rasada do esquerdismo parlamentar nos nhola 1936-1939) e de Laura Vicente
levou. Retomamos o passado não para (80º Aniversário da Revolução: Muje-
contemplá-lo, mas sim para enxergar a res Libres). Os dois artigos escritos no
continuidade que liga as lutas passadas momento da Revolução mantêm uma

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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

perspectiva crítica de personagens se de ideologias. O autor nos brinda com


envolvidos profundamente na trama uma reflexão a respeito da necessidade
dos fatos: Camillo Berneri condena o de blasfemar contra a ordem estabeleci-
colaboracionismo da CNT com o go- da, operação ao mesmo tempo de dessa-
verno republicano, três semanas antes cralização da hierarquia e do poder po-
de ser covardemente assassinado por lítico, um duplo movimento de rebelião
membros do Partido Comunista da contra as instituições que temos diante
Espanha, ao passo que Ramon Casals de nós e daquelas que trazemos inte-
opõe-se ferozmente à militarização riorizadas em nós. Blasfêmia e rebelião
das colunas dos milicianos, enxergan- que são também do domínio da cria-
do nelas o perigo da reintrodução das ção, o que coloca o anarquismo diante
hierarquias nos exércitos populares. Já da necessidade de estabelecer institui-
o artigo de Souchy analisa de manei- ções anárquicas na sociedade, buscando
ra perspicaz o processo de coletiviza- a sua autonomia. A seção Documentos
ção em diversos ramos do comércio e vem recheada: além da continuação da
da indústria, enquanto Mintz aborda tradução da defesa da Revolução Mexi-
as várias soluções originais dos revo- cana por Ricardo Flores Magón, nas pá-
lucionários espanhóis para lidar com ginas do periódico Regeneración, conta
o problema do dinheiro de maneira a com a proposta de Antonio Canellas
garantir a efetiva autogestão econômi- para a fundação, no Brasil de 1919, de
ca - e as dificuldades delas decorrentes. uma escola que seguisse o modelo da La
Finalmente, o artigo de Laura Vicente Ruche (ou A Colmeia) francesa, experi-
situa a singularidade e exemplaridade ência pioneira de educação libertária de
da luta das Mujeres Libres no contexto Sébastien Faure, que teve vigência nos
da Guerra Civil Espanhola. primeiros anos do século XX na cida-
Além desse dossiê, a Revista mante- de de Rambouillet. Também trazemos
ve algumas de suas tradicionais seções. aos leitores um texto inédito de Maria
A seção Estudos Anarquistas apresenta Lacerda de Moura: um prefácio para
uma tradução inédita de um texto Edu- o livro de poesias de Ilka Maia, escrito
ardo Colombo, O anarquismo ante a cri- em 1923. Então uma garota de 16 anos,

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Editorial

Ilka também havia dedicado um sone- lião e de autogestão, desde abaixo e à


to em homenagem a Maria Lacerda de esquerda, que insinuam-se contra o
Moura, nas páginas de Alvoradas, que fascismo, contra o conforto represen-
encontra-se aqui também republicado, tativo, o pessimismo e os ajustes - reais
para acompanhar o prefácio de Maria e nem tão reais assim. Essas palavras,
Lacerda de Moura. Finalmente, a seção de companheiros de antes e de agora,
Expressões livres conta com uma tradu- daqui e de outros lugares, permane-
ção inédita em português de um conto cem como um manancial irredutível
de Rafael Barret, anarquista espanhol e inspirador de novas formas de pro-
que viveu na Argentina e no Uruguai, a dução do mundo novo que trazemos
respeito do carnaval. em nossos corações, para parafrasear
A reunião desses artigos e do dos- Buenaventura Durruti.
siê a respeito da Revolução Espanhola
procuram pôr em discussão as possi- Biblioteca Terra Livre,
bilidades de práticas efetivas de rebe- dezembro de 2016.

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Carta aberta a companheira
Federica Montseny

Camillo Berneri

Q uerida companheira,

Tinha a intenção de me dirigir a todos vocês, companheiros ministros, mas


agora com a caneta em mãos, espontaneamente decidi me dirigir somente a você
e não quero contrariar esse impulso, pois é uma boa regra, nesses assuntos, seguir
o instinto.
O fato que eu não coincida sempre contigo não te maravilha nem te irrita e
você tem se mostrado cordialmente esquecidiça às críticas que geralmente não fo-
ram do seu gosto, por considerá-las injustas e excessivas, o que é tão natural quanto
humano. Não é uma pequena qualidade, aos meus olhos, e demonstra a natureza
anarquista do seu espírito. Delas estou certo e compensam bastante, em nome da
minha amizade, as idiossincrasias ideológicas que você manifesta em seus artigos
de estilo personalíssimo e em seus discursos de eloquência admirável.
Eu não poderia ficar tranquilo ao ver sua comparação entre o anarquismo
bakuninista e o republicanismo federalista de Pi y Margall. E não te perdoo por ter
escrito que “o verdadeiro construtor da Rússia atual não foi Lenin, mas sim Stálin,
espírito realizador, etc., etc.” Eu aplaudi a resposta de Volin publicada em Terre Li-
bre, para sua inexata afirmação sobre o movimento anarquista russo.
Mas não são essas questões que quero tratar. Sobre elas e muitos outros as-
suntos nossos espero um dia ter a ocasião de discutir pessoalmente contigo. Se me

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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

dirijo a você em público é por assuntos Guarda de Assalto aqueles que conser-
infinitamente mais graves, para te re- vam as armas e é aqui na retaguarda
lembrar de enormes responsabilidades que devem controlar os “incontrolá-
das quais talvez você não tenha se dado veis”, desarmando qualquer núcleo re-
conta devido à sua modéstia. volucionário que tenha alguns poucos
No discurso de 3 de janeiro, você fuzis e revólveres. Isso ocorre enquanto
dizia: o front interno não foi liquidado. Isso
ocorre enquanto há uma guerra civil
“Os anarquistas entraram no go- em curso em que qualquer surpresa
verno para impedir que a revolu- é possível e em uma região na qual o
ção se desviasse e para continuá- front está bem próximo, é muito irre-
-la para além da guerra e também gular em seu traçado e não é matema-
para opor-se a qualquer tentati- ticamente seguro. Isso ocorre enquan-
va ditatorial, independente qual to é nítida a distribuição política do
seja.” armamento, que afirma apenas dar o
que é “estritamente necessário” (espe-
Então, companheira, em abril, de- ramos que venha a ser dito claramente
pois de três meses de experiência cola- o que é “estritamente necessário”) para
boracionista, estamos em uma situação a frente de Aragão, a guarda armada
na qual ocorrem fatos graves e se anun- da coletivização agrária em Aragão e
ciam outros piores. o contraforte do Conselho de Aragão e
Ali onde – como em Vasconia, Le- da Catalunha, a Ucrânia Ibérica. Você
vante e Castilla – o nosso movimento está em um governo que ofereceu para
é impotente em forças de base, ou seja, a França e a Inglaterra vantagens no
não criou sindicatos vastos e não tem Marrocos, quando desde julho de 1936
uma preponderante adesão das mas- era necessário oficialmente proclamar
sas, a contrarrevolução avança e ame- a autonomia política marroquina. Ima-
aça esmagar tudo. O governo está em gino o que você pensa, como anarquis-
Valência, e dali é onde partiram guar- ta, sobre esse assunto estúpido e des-
das de assaltos destinados a desarmar prezível, mas chegou a hora de você e
os núcleos revolucionários de defesa.
os demais ministros anarquistas publi-
Recorda-se de Casas Viejas, pensando
cizarem que não concordam com a na-
em Vilanesa1. São da Guarda Civil e da
tureza e o teor dessas propostas.
1 Alusão ao Massacre de Casas Viejas, ocorrido Em 24 de outubro de 1936, eu es-
em 1933, insurreição barbaramente reprimida
e ao massacre ocorrido na vila de Vilanesa, em 1937 (N.T.).

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Carta aberta a companheira Federica Montseny

crevi em Guerra di classe: rantir os interesses dos ingleses e dos


franceses no Marrocos e ao mesmo
“A base das operações do exérci- tempo fazer o trabalho insurrecional.
to fascista é Marrocos. Portanto, Valência continua a política de Madri.
é necessário intensificar a pro- É necessário que isso mude. É neces-
paganda a favor da autonomia sário, para mudar, dizer clara e forte-
marroquina sobretudo na área de mente todo nosso pensamento, porque
influência pan-islâmica. É neces- em Valência atuam forças que tendem
sário exigir ao governo de Ma- a fazer um pacto com Franco.
dri declarações inequívocas da Jean Zyromsky escreve em Le Po-
sua vontade de deixar Marrocos, pulaire de 3 de março:
assim como de proteger a auto-
nomia marroquina. A França vê “Essas manobras são visíveis e ten-
com preocupação a possibilida- dem à conclusão de uma paz que,
de de respostas insurrecionais na na realidade, significaria não so-
África Setentrional e na Síria e a mente deter a revolução espanho-
Inglaterra acredita que será um la como inclusive anular as con-
incentivo para a agitação auto- quistas sociais já realizadas. “Nem
nomista no Egito e dos árabes na Largo Caballero, nem Franco!”
Palestina. É necessário aproveitar tal seria a fórmula que expressa-
tais preocupações, com uma po- ria sinteticamente uma concepção
lítica que ameace desencadear a que existe e eu não estou certo de
revolta no mundo islâmico. Para que ela não tenha a anuência em
tal política, é necessário financiar certos meios políticos, diplomáti-
e enviar agitadores e organizado- cos e inclusive governamentais na
res a todos os centros de emigra- Inglaterra e também na França.”
ção árabe e em todas as zonas de
fronteira do Marrocos francês. Essas forças, essas manobras, ex-
Em todas as frentes de Aragão, plicam vários pontos obscuros: por
do Centro, Astúrias e Andalu- exemplo, a passividade da Marinha na
zia, bastarão alguns marroquinos guerra leal. A concentração das forças
exercendo a função de propagan- provenientes do Marrocos, a pirataria
distas, dispondo de rádio, mate- das Canárias e das Baleares, a tomada
riais impressos etc.” de Málaga, não são senão consequên-
cias. E a guerra não terminou! Se Prie-
É evidente que não é possível ga- to é incapaz e indolente, por que tolerá-

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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

-lo? Se Prieto está ligado a uma política tes. Uma política interna de colabora-
que paralisa a Marinha, por que não cionismo entre classes e de adulação às
denunciar essa política? classes médias conduz inevitavelmen-
Vocês, ministros anarquistas, fa- te à tolerância com elementos políti-
zem discursos eloquentes e escrevem cos equívocos. A “Quinta Coluna” está
brilhantes artigos, porém não é com constituída, não somente por elemen-
discursos e artigos que se vence a guer- tos pertencentes aos quadros fascistas,
ra e se defende a revolução. Tanto uma mas também por todos os desconten-
quanto outra se vence e se defende per- tes que aspiram a uma república mode-
mitindo a passagem da defensiva para rada. São estes últimos os que se apro-
a ofensiva. A estratégia de posições não veitam da tolerância dos caçadores dos
pode se eternizar. O problema não se “incontroláveis”.
resolve lançando palavras de ordem, A eliminação do front interno tem
por condição prévia uma atividade
como “mobilização geral”, “armas ao
ampla e radical dos comitês de defesa
front”, “comando único”, “exército po-
constituídos pela CNT e pela UGT.
pular” etc. O problema se resolve rea-
Nós assistimos à penetração nos
lizando imediatamente o que pode ser
quadros dirigentes do exército popular
feito. Segundo La Dêpeche de Toulouse
de elementos equívocos, sem nenhu-
de 17 de janeiro: “A grande preocupa-
ma relação com organizações políticas
ção do Ministro do Interior é restabele-
ou sindicais. Os comitês e os delega-
cer a autoridade do Estado sobre a dos
dos políticos das milícias exerciam um
grupos e sobre os incontroláveis de to- bom controle. Hoje está debilitado de-
das as tendências.” vido o predomínio de um sistema de
É evidente que, embora houve o nomeação e de promoções centraliza-
empenho durante meses de aniquilar do e estritamente militar. É necessário,
os “incontroláveis”, a “Quinta Coluna” portanto, reestabelecer a elegibilidade
2
não foi eliminada. A eliminação do direta e o direito de destituição pela
front interno tem por prévia condição base.
uma atividade de investigação e de re- E poderia continuar tratando des-
pressão que não pode ser cumprida a se tema.
não ser por revolucionários experien- Erro gravíssimo foi aceitar as fór-
2 “Quinta coluna” foi uma expressão criada em mulas autoritárias, não pelo o que elas
meio a Guerra Civil Espanhola para designar um formalmente são, mas sim porque nos
certo grupo social simpatizante ao golpe que atu-
ava no interior das zonas controladas pelos for- levam a enormes erros e a fins políticos
ças antifascistas (N. T.). que nada tem a ver com as necessida-

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Carta aberta a companheira Federica Montseny

des da guerra. “A guerra da Espanha despossuí-


Tive a oportunidade de falar com da de toda fé nova, de toda ideia
altos oficiais italianos , franceses e bel- de transformação social, de toda
gas, e constatei que eles mostraram ter grandeza revolucionária, de todo
necessidades reais da disciplina e uma sentido universal, não é mais que
concepção muito mais moderna e ra- uma vulgar guerra de indepen-
cional do que a de certos neo-generais dência nacional, que é necessá-
que se pretendem realistas. ria para evitar o extermínio que
Acredito que é a hora de constituir a plutocracia mundial se propõe.
um exército confederal, como o Parti- Fica a terrível questão de vida ou
do Comunista constitui seu próprio morte, mas não é mais uma guer-
corpo: o Quinto Regimento das milí- ra de afirmação de um novo regi-
cias populares. Acredito que é a hora me ou de uma nova humanidade.
de resolver o problema do comando Dir-se-ia que ainda tudo não está
único, realizando uma efetiva unidade perdido, mas na realidade tudo
que permita passar à ofensiva no front está ameaçado e comprometido,
aragonês. Acredito que é a hora de ter- e os nossos companheiros adotam
minar com o escândalo de milhares de uma linguagem de renunciadores,
guardas civis e guardas de assalto, que o mesmo que tinha o socialismo
não vão ao front porque se dedicam a italiano frente ao avanço do fas-
controlar os “incontroláveis”. Acredito cismo: “Cuidado com as provoca-
que é a hora de criar uma séria indús- ções!”, “Calma e serenidade!”, “Or-
tria de guerra. E acredito que é a hora dem e disciplina!”. Todas as coisas
de terminar com certas excentricida- que praticamente se resumem em:
des estridentes: como aquela a respeito deixe estar. E como na Itália o fas-
do repouso dominical e de certos “di- cismo terminou por triunfar, na
reitos operários” que sabotam a defesa Espanha o antissocialismo, com
da revolução. roupagem republicana, não sairá
É necessário, antes de tudo, man- menos do que vencedor, a menos
ter elevado o espírito dos combatentes. que ocorram acontecimentos que
Luigi Bertoni, sendo intérprete escapam às nossas previsões. É
dos sentimentos expressados por vá- inútil acrescentar que nós cons-
rios companheiros italianos combaten- tatamos, sem entrar em conde-
tes no front de Huesca, escrevia não faz nações aos nossos companheiros,
muito tempo: cuja conduta não sabemos dizer
como poderia ser de forma dife-

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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

rente e eficaz, enquanto a pressão espanhóis tratando-os de sabo-


italiana e alemã cresce no front ao tadores da unidade. Chamar as
mesmo passo que a bolchevização massas também para julgarem a
na retaguarda.” cumplicidade moral e política do
silêncio da imprensa anarquista
Eu não tenho a modéstia de Luigi espanhola sobre os delitos dita-
Bertoni. Tenho a presunção de afirmar toriais de Stálin, das perseguições
que os anarquistas espanhóis poderiam aos anarquistas russos e os mons-
ter uma linha política diferente da que truosos processos contra a oposi-
prevalece e pretendo aconselhar algu- ção leninista e trotskista, silêncio
mas linhas gerais de conduta, atento recompensado e com mérito pe-
às experiências das grandes revoluções las difamações da Izvestia contra
recentes e ao que leio na própria im- Solidaridad Obrera de Barcelona.
prensa libertária espanhola. Chamar as massas para julgarem se
Creio que você deve considerar o certas manobras de sabotagem do
problema de saber aonde defende me- abastecimento não entram no pla-
lhor a revolução, se contribui mais na no anunciado em 17 de dezembro
luta contra o fascismo participando do de 1936, em Pravda: “Enquanto
governo ou se não seria infinitamente na Catalunha, começou a limpeza
mais útil levando a chama da sua mag- de elementos trotskistas e anar-
nífica palavra entre os combatentes e cossindicalistas, trabalho que será
na retaguarda. levado a cabo com a mesma ener-
Chegou a hora inclusive de escla- gia com que foi levado na URSS.”
recer o significado unitário que pode
ter sua participação no governo. É ne- É hora de se dar conta que se os
cessário falar com as massas e chamá- anarquistas estão no governo para se-
-las a julgarem se tinha razão Marcel rem vestais de um fogo quase extinto
Cachin, quando declara (L’Humanité, ou se, então, estão para servir de bar-
23 de março): rete da liberdade3 a politiqueiros que

“Os representantes anarquistas 3 “Barrete da liberdade” ou “barrete frígio” é um


multiplicam seus esforços uni- tipo de carapuça que se tornou símbolo da liber-
dade ao longo do século XIX e XX, sendo rep-
tários e seus chamados são ou- resentada em várias iconografias. Por exemplo,
vidos em forma crescente” ou no famoso quadro de Eugène Delacroix, A liber-
se tem razão Pravda e Izvestia, dade guiando o povo, Marianne, a encarnação da
Revolução Francesa, está utilizando um barrete
quando caluniam os anarquistas da liberdade. (N. T.)

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Carta aberta a companheira Federica Montseny

flertam com o inimigo ou com as for-


ças da restauração da “república de to-
das as classes”. O problema se apresenta
com a evidência de uma crise que ul-
trapassa aos atores representativos que
hoje ocupam o cenário.
O dilema Guerra ou Revolução já
não faz mais sentido. O único dilema é
esse: ou a vitória sobre Franco graças a
guerra revolucionária ou a derrota.
O problema para ti e para os ou-
tros companheiros é de escolher entre
a Versalhes de Thiers ou a Paris da Co-
muna, antes que Thiers e Bismark fa-
çam a união sagrada4.
Cabe a ti responder, porque “és a
luz escondida”5.
Fraternalmente,

Camillo Berneri

4 Alusão ao contexto da Comuna de Paris. Em


meio à guerra entre França e Prússia, trabalha-
dores tomaram o controle da capital francesa,
obrigando o governo francês a exilar-se em Ver-
salhes. Para reprimir a insurreição operária, o
governante francês Thiers e o governante prus-
siano Bismark fizeram um pacto para interromp-
er a guerra (N. T.).
5 Segundo Carlos Rama, trata-se de uma alusão
a uma passagem bíblica, encontrada em Mateus
5: 14,15: “Vós sois a luz do mundo; não se pode
esconder uma cidade edificada sobre um monte;
Nem se acende a candeia e se coloca debaixo do
alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que es-
tão na casa.” (N. T.).

Publicado originalmente no jornal Guerra di Classe, núm. 12, em 14 de abril de 1937.


Tradução de Eduardo Cunha a partir da versão em espanhol.

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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

O texto que você acabou de ler foi publicado no dia 14 de abril de 1937,
três semanas antes do assassinato do autor. Camillo Berneri foi mor-
to em circunstâncias mal explicadas, nos eventos que ficaram conhecidos como
os “acontecimentos de maio”. O pouco que se sabe relaciona a morte do anarquis-
ta italiano às ações da Tcheka naquele fatídico mês, em que a polícia secreta so-
viética executou diversos militantes de esquerda opositores do stalinismo. Como
o próprio Berneri alertou no seu texto, ao citar literalmente o que o Pravda (ór-
gão oficial da URSS), publicou em dezembro de 1936: “Enquanto na Catalunha,
começou a limpeza de elementos trotskistas e anarcossindicalistas, trabalho que
será levado a cabo com a mesma energia com que foi levado na URSS.”
Essa demonstração de olhar atento para a leitura da realidade, visível até na
capacidade macabra de prever sua própria morte, foi uma das marcas de Camillo
Berneri. Nascido em Lodi, em 1897, aproximou-se do anarquismo depois do fim
da Primeira Guerra Mundial, após fazer parte da Juventude Socialista. Desde esse
momento até sua morte, manteve sempre uma postura independente e antidog-
mática, ao preocupar-se com o
diálogo do anarquismo com seu
entorno e não com uma carti-
lha de princípios. Seus escritos
podem ser lidos até hoje como
uma fonte de inspiração para as
pessoas preocupadas com um
anarquismo dinâmico, sempre
adaptando-se às mudanças de
contexto.
Todavia, engana-se quem
pensa que Camillo Berneri era
apenas um intelectual. Foi um
destacado opositor do regime de
Mussolini, exilando-se em 1926.
No exterior, fomentou a organi-
zação do antifascismo no exílio,
destancando-se sobretudo nas
tarefas de contraespionagem,

16
Carta aberta a companheira Federica Montseny

identificando os policiais infiltrados dos artigos publicados neste jornal é


por Mussolini para relatar as ações dos o texto que publicamos aqui, na nossa
antifascistas exilados. Por isso, foi pre- revista.
so na Bélgica, na Holanda, na França Acreditamos que Camillo Berne-
e em Luxemburgo. Com a eclosão da ri, pouquíssimo conhecido no Brasil, é
Revolução Espanhola, Berneri ajuda uma das tantas figuras esquecidas que
a organizar a milícia dos voluntários valem muito a pena recuperarmos.
italianos, associada à Coluna Ascaso, Sobretudo para quem está interessado
sendo eleito por seus pares como dele- em um anarquismo que esteja com os
gado responsável pela milícia de agos- dois pés no chão, atento para a reali-
to a dezembro de 1936. A partir de ou- dade tanto em sua prática quanto na
tubro, passa a publicar o jornal Guerra teoria.
di Classe, no qual escreve diversos ar-
tigos analisando com profundidade os
eventos da Revolução Espanhola. Um Eduardo Cunha

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Mais vale um anarquista do que um
capitão!

Ramón Casals

O ntem: recordamos ainda os dias de luta pré-revolucionária que


mantivemos os anarquistas contra todos os estamentos sociais
que se recriavam às custas do povo trabalhador e que, em franca camaradagem,
gregos e troianos concordavam que nossas ideias tinham que ser pisoteadas e
tinham que ser perseguidos os que as defendiam.
Ainda pesa em nossas organizações as “úlceras” produzidas pelas botas mi-
litares. Porque mais do que ninguém são os militares os que, servindo à igreja
e à burguesia, tinham que lidar com nosso movimento. Se não, recordais: 1909,
Francisco Ferrer; 1917, a greve da Canadense; 1922 e 1923, Anido, Ariegui e Pri-
mo de Rivera; 1928, Berenguer; 1932, movimento anarcossindicalista de Figols;
1933, 8 de janeiro e 8 de dezembro; 1934, 6 de outubro. Astúrias.
Recordais também a Ramón Franco, que esteve em Villa Cisneros para sau-
dar os nossos companheiros deportados. Sua visita foi recebida por nossos com-
panheiros anarquistas e antimilitaristas com verdadeira indiferença. “Recordais
Franco!”, e notareis como vosso coração vos impele a recordar os ensinamentos
de Fermín Salvochea e sentireis mais do que nunca que vossa consciência vos
diz: “Abaixo o militarismo!”.
Hoje: por isso, não podemos, sob nenhum pretexto, tolerar que dentro de
nossos meios se reproduza a praga que mais nos afetou, isto é: o militarismo!
Que pensem e pratiquem esta ideia os antifascistas que não pertencem a nos-

18
Mais vale um anarquista do que um capitão!

sos meios, passa; mas nós, que esta-


mos na coluna “Terra e Liberdade”,
não. Porque tolerá-lo seria humilhar a
nós mesmos e às nossas ideias. E isso,
nunca. EM VEZ DE UM CAPITÃO,
VALE MAIS UM ANARQUISTA!

Publicado originalmente no jornal Solidaridad Obrera, de Barcelona, Ano VIII, Época


VI, Nº 1476, em 05/01/1937. Tradução de Clayton Peron a partir da versão original.

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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

R amon Casals Orriols nasceu em 06 de novembro de 1908 na cidade


de Berga (Catalunha) em uma família humilde composta por um pai
operário e uma mãe doméstica e crente fervorosa. Teve uma educação religiosa
na escola local que abandonou aos onze anos de idade, após a morte da mãe,
dedicando-se desde então ao trabalho na indústria têxtil. Na fábrica estabeleceu
contato com Juan Bonilla, operário libertário andaluz, e filiou-se à Confederação
Nacional do Trabalho (CNT). Logo passou a se dedicar à luta sindical e conheceu
o pensamento de mestres como Tolstoi, Ferrer y Guardia e Fermin Salvochea.
Durante a ditadura de Primo de Rivera participou da greve do setor em Ber-
guedà e acabou demitido. Teve possibilidade de readmissão, mas recusou-se a
voltar ao trabalho sem a readmissão dos demais companheiros. Por sua solidarie-
dade e coerência viu-se obrigado a trabalhar temporariamente em estradas e nas
linhas elétricas. Em pouco tempo tornou-se secretário do Sindicato dos Têxteis e
voltou aos teares.
Ramon foi
preso e recolhido
ao Cárcel Mo-
delo por partici-
par da tentativa
de proclamar o
comunismo li-
bertário durante
a IIª República.
Ao ser solto par-
ticipou da cria-
ção das Juventu-
des Libertárias
de Berga. Após
o golpe fascista
de 18 de julho de
1936 Casals ime-
diatamente se en-
volveu com a re-
sistência e aderiu

20
Mais vale um anarquista do que um capitão!

à Revolução, logo em suas primeiras últimos anos atuava junto ao Centro


horas. Tornou-se presidente do Comi- de Estudos Josep Ester Borràs em Ber-
tê de Milícias Antifascistas e membro ga .
do Comitê Revolucionário de Berga. Ramon Casals usava o pseudôni-
Algumas atitudes polêmicas levaram- mo de Ramonet Xic, nome pelo qual
-no a ser acusado de fascista: Ramon era mais conhecido. Assinou diver-
impediu a destruição de igrejas e obras sos artigos em periódicos anarquistas
sacras com o apoio de um grupo de ar- como El Luchador e La Revista Blanca,
tistas locais e não aceitou fuzilamentos em que era correspondente da região
sumários e irracionais em sua cidade. de Berguedà. Sempre foi conhecido
Durante a Revolução foi para o fronte, por suas atitudes pacíficas e racionais,
integrando a Coluna Terra e Liberda- assim como por sua coerência ideoló-
de, uma das mais importantes, onde gica e bondade extrema até o fim da
atuou como responsável da saúde e lu- vida. Seus últimos anos passou em Err
tou na defesa de Madri e na batalha de (França)(Catalunha), próximo à fron-
Teruel. teira com a Catalunha. Morreu em 24
Ao fim da guerra civil na Espanha de abril de 2001.
foi levado para a França, onde pas-
sou por vários campos de concentra-
ção, escapando ao se alistar em com- A resistência à militarização durante
panhias de trabalho até ser detido no a Revolução Espanhola
campo de disciplinamento de Cher-
bourg. Ficou sob custódia dos alemães Em outubro de 1936 o Governo
e só foi libertado em 1944. Após o tér- da Generalitat emitiu um decreto, a
mino da Segunda Guerra decidiu viver ser cumprido a partir de 1° de novem-
na França e trabalhar como lenhador, bro, que instaurava a militarização das
profissão que aprendeu nos batalhões milícias. Tal ação fazia com que, na
de castigo. Manteve-se como militante prática, as milícias operárias de volun-
anarquista mesmo no exílio. Foi res- tários revolucionários fossem subme-
ponsável pela propaganda libertária, tidas a um código militar único sob
foi representante cenetista regional, comando centralizado da Generalitat.
participou de vários atos, comícios e O resultado seria a transformação das
congressos do Movimento Libertário colunas populares em um exército re-
Espanhol (MLE) na França, além de gular clássico, muito semelhante aos
sempre apoiar as publicações e organi- exércitos nacionais e burgueses de ou-
zações de exilados espanhóis. Nos seus trora. Após certa resistência por par-

21
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

te dos milicianos, em março de 1937, periódico Solidaridad Obrera, justa-


a Coluna Terra e Liberdade aceitou a mente do período em que é proposto
militarização durante um congresso a militarização das colunas e comitês
em Valência. Ramon Casals não con- de defesa autônomos. O texto reflete
cordou com a posição das milícias em o sentimento e o pensamento de um
colaborar com o governo republicano importante militante anarquista que
e decidiu abandonar a Coluna, como mesmo em plena guerra civil se negou
milhares de outros homens e mulhe- a participar de um processo que pre-
res. Ramon voltou para casa. tendia restaurar as hierarquias e abo-
Mais vale um anarquista do que minações que o militarismo causou
um capitão! escreveu ele meses antes e ainda causa no mundo inteiro. Essa
e manteve sua coerência política. Ao posição teve grande repercussão du-
retornar à Berga, assumiu o posto de rante os anos de 1936 e, em especial,
vice-prefeito, foi conselheiro de pro- 1937, levando a grandes debates e ci-
vimentos, membro da Comissão Mu- sões dentro do movimento cenetistas
nicipal de Refugiados e chegou a ser e anarquista. Com a vitória da obriga-
conselheiro da Generalitat até meados toriedade da militarização das colunas
de 1938, quando foi convocado para e exércitos populares o movimento re-
integrar a 153° Coluna (antiga Terra volucionário sofreu um duro golpe.
e Liberdade) como soldado e voltou a Dedicamos essas poucas linhas à
frente de batalha. memória dos milhões de mortos ao re-
O pequeno mas simbólico artigo dor do mundo pelas mãos sedentas de
de Ramon Casals, que apresentamos sangue dos militares...
ao público pela primeira vez em por-
tuguês, foi extraído das páginas do Biblioteca Terra Livre

22
A coletivização na Espanha*

Augustin Souchy

A quartelada de 19 de julho de 1936 teve consequências de longo


alcance para a vida econômica da Espanha. A defesa contra os
militaristas e o clero só foi possível com a ajuda do proletariado. A burguesia
republicana sozinha teria sucumbido. Teve que ficar ao lado do proletariado.
Porque em 1934, quando as esquerdas catalãs quiseram opor-se a Madri sem os
trabalhadores, e contra anarquistas e sindicalistas, Madri venceu. Os defensores
da autonomia catalã foram derrotados. Após esta derrota vingou-se Madri. Os
governantes catalães, começando por Companys, foram condenados a anos de
prisão.
Dessa vez, se a pequena burguesia não desejava se expor ao mesmo perigo,
tinha que se juntar aos anarquistas e sindicalistas.
Esse ato não poderia limitar-se à arena política. Sindicalistas e anarquistas
tinham experiências ruins com a república burguesa. Não era de se supor que
iriam contentar-se em servir de muralha ao golpe clerical-militarista. Era evi-
dente que realizariam uma transformação do sistema econômico. Não queriam
que perdurasse a exploração econômica, que viam como a causa da opressão
política.

*: Este é o primeiro capítulo do livro Coletivizações - O trabalho construtivo da Revolução Espanhola,


de autoria de Augustin Souchy e Paul Folgare. A íntegra do livro, em versão em espanhol, está dis-
ponível em: http://colectivizaciones.blogspot.com.br/2009/05/colectivizaciones-la-obra-constructiva.
html. (N.T.).

23
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

O clero, a camarilha militar e os donadas por seus dirigentes. Os di-


grandes capitalistas a eles aliados co- retores das ferrovias, das empresas
nheciam esse estado de coisas. Sabiam de transportes municipais, das com-
muito bem o que estava em jogo. O panhias de navegação, das grandes
triunfo dos militares teria por con- fábricas têxteis e de metalurgia, os
sequência o estabelecimento de uma dirigentes e representantes das asso-
ditadura militar, reedição agravada ciações patronais tinha desaparecido.
da ditadura de Primo de Rivera. Se A greve geral dos trabalhadores, uma
as coisas tivessem tomado esse rumo, medida de defesa contra o golpe mi-
não somente se salvariam as classes litar, paralisou completamente a vida
privilegiadas, como teriam dado a econômica por oito dias.
elas a oportunidade de explorar ainda Tendo aniquilado a resistência
mais os trabalhadores no futuro. Por dos militares sublevados, as organi-
esse motivo, colocaram-se ao lado dos zações proletárias decidiram acabar
conspiradores militares. com a greve. Os sindicatos da CNT
Os generais eram os atores, os logo se convenceram de que não se
grandes capitalistas moviam os fios poderia retomar o trabalho sob as
em segredo. Não abandonaram sua mesmas condições de antes. A greve
discrição. Em parte, sequer estavam geral não tinha sido uma luta por sa-
no lugar dos acontecimentos. Juan lários. Não houve negociações sobre
March, Francisco Cambo e outros de salários maiores ou melhores condi-
sua espécie não estavam na Espanha ções de trabalho. Não havia patrões.
no início da quartelada. Esperavam Os trabalhadores tinham não só que
o desenrolar dos acontecimentos no retomar o trabalho em tornos, lo-
exterior. Se os militares triunfassem, comotivas, bondes e escritórios; ti-
seus empregadores voltariam. Mas na nham também que ser responsáveis
Catalunha, e em mais da metade de pela gestão das fábricas, das oficinas
Espanha, o golpe de Estado falhou. e das empresas de transporte. Em ou-
Os empresários financiadores perma- tras palavras, a direção da indústria e
neceram no exterior. toda a vida econômica foi tomada pe-
Também os capitães da indús- los trabalhadores e empregados nelas
tria, dirigentes e líderes das grandes ocupados.
empresas preferiram esperar o fim Mas não se pode falar de socia-
da luta armada no exterior. Em 19 de lização ou coletivização premeditada.
Julho, e nos dias seguintes, todas as Na verdade, não havia nada prepara-
grandes empresas tinham sido aban- do, tudo tinha que ser improvisado.

24
A coletivização na Espanha

Como em todas as revoluções, a prá- que a socialização deve começar pe-


tica precedeu a teoria. As teorias eram los trabalhadores, nas oficinas, nas fá-
esmagadas e alteradas pela realidade. bricas, em todas as atividades da vida
Os defensores da ideia de que se pode econômica. Este caminho conduz de
realizar o progresso social por meio baixo para cima, da periferia para o
da transformação pacífica estavam centro; o marxista, pelo contrário, de
tão equivocados quanto aqueles que cima para baixo, do Estado ao povo.
pensavam que poderiam criar no ato Na Espanha, especialmente na
e por um golpe de força todo um novo Catalunha, o processo de socialização
sistema social e econômico instanta- começou sob a segunda forma, como
neamente, só com o poder político coletivização. Essa coletivização não
nas mãos dos trabalhadores. A reali- deve ser entendida como a realização
dade demonstrou que ambas as hipó- de um programa preconcebido. Acon-
teses eram igualmente falsas. Provou teceu espontaneamente. No entanto,
que era acertado foi ter que quebrar o não se pode esconder a influência dos
poder militar e policial oficial do Es- ensinamentos anarquistas nesse pro-
tado capitalista para abrir o caminho cesso. Durante décadas os anarquistas
para as novas formas de vida social. e sindicalistas da Espanha considera-
Mostrou que também era correto que ram a transformação social da socie-
os criadores dessas novas formas de dade como o seu objetivo principal.
vida tem que se preparar para a sua Nas assembleias dos seus sindicatos e
missão na teoria e na prática, no pro- grupos, nos jornais, panfletos e livros,
grama e na organização. Em cada teo- discutia-se continuamente e de uma
ria social há uma boa parte da utopia. maneira sistemática o problema da
E é bom que seja assim; caso contrá- revolução social.
rio, não haveria criação. São necessá- O que deve ser feito no dia seguin-
rios ideias, conceitos e entendimentos te à vitória do proletariado? Deve-se
concretos sobre o caminho a seguir. derrubar o aparato do poder estatal.
Os anarquistas e sindicalistas da Os trabalhadores devem encarregar-
Espanha tinham uma doutrina bem -se da gestão das empresas, admi-
definida, enquanto os marxistas, em nistrá-las eles mesmos; os sindicatos
termos de socialização, defendem o têm de controlar a vida econômica.
conceito de que o Estado tem de as- As federações locais tem que regular
sumir o comando da economia, as o consumo. Estas eram as ideias anar-
indústrias têm de ser estatizadas. Os cossindicalistas. Essas ideias também
anarquistas, no entanto, acreditam foram aceitas pela FAI. Em suas pa-

25
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

lestras e congressos sempre defendeu encarregado sozinhos do poder pú-


a tese de que a vida econômica deve blico. Não o fizeram; renunciaram a
ser regida pelos sindicatos. isso. O governo catalão levava somen-
Quando se compara o curso dos te uma existência aparente. O Parla-
acontecimentos em Barcelona e em mento não reuniu-se novamente.
muitas outras cidades da Catalunha Dois meses e meio depois, o governo
e Espanha, verifica-se que a prática desapareceu completamente. Em 28
foi orientada segundo essas teorias. O de setembro reuniu-se um novo Con-
poder público executivo passou aos selho, composto por todas as organi-
sindicatos anarcossindicalistas e aos zações antifascistas que haviam repri-
partidos políticos do proletariado e mido o golpe de estado militar.
da pequena burguesia. Estas foram as mudanças na are-
O Comitê das Milícias Antifas- na política. Na área econômica, os
cistas era o órgão superior, no qual sindicatos agiram sozinhos. Depois
estavam unidas a Esquerda Republi- de 19 de julho de 1936, os sindicatos
cana de Catalunha, os autonomistas da CNT foram responsáveis pela pro-
catalães, a União das Rabassaires, dução e distribuição de alimentos. Os
a CNT e a FAI, os partidos socialis- sindicatos preocuparam-se, acima de
tas unificados (PSUC) e o Partido de tudo, em resolver o problema mais
Unificação Marxista. Os anarquistas e premente, que era a oferta de alimen-
sindicalistas poderiam, nas primeiras tos para a população. Restaurantes
semanas após o 19 de julho, terem se populares foram abertos em todos

Bônus de pagamento, emitido em janeiro de 1937, em plena Revolução Espanhola.

26
A coletivização na Espanha

os bairros, nas instalações dos sindi- sentiam profundamente suas próprias


catos. Os comitês de abastecimento, necessidades e compreendiam as de-
criados para esse fim, retiraram ali- mandas do momento. O problema
mentos dos depósitos de atacados da dos salários, dos preços, dos produ-
cidade e do campo. tos; a relação desses fatores entre si
O pagamento era feito por meio nunca havia sido investigada cientifi-
de bônus, avalizados pelos sindicatos. camente por eles.
Todos os membros do sindicato, as Não eram marxistas ou proudho-
mulheres e crianças dos milicianos e nistas. Mas entendiam seu ofício, co-
também a população em geral rece- nheciam o processo de produção da
beram comida gratuitamente. Duran- sua indústria e souberam arranjar-se.
te os dias da greve, os trabalhadores Se não havia ordens, ajudava a sua in-
não cobraram. O Comitê das Milícias teligência.
Antifascistas concordou em pagar os Em algumas fábricas têxteis fa-
salários dos dias de greve aos traba- bricaram lenços de seda rubro-negros
lhadores e empregados. A economia com inscrições antifascistas estampa-
sem dinheiro dos antifascistas durou das e os lançaram ao comércio.
cerca de duas semanas. Quando, em “Como eles calcularam o preço?
seguida, retomou-se o trabalho e a Como eles definir a margem de lu-
vida econômica reiniciou o seu curso, cro?”, perguntou um jornalista mar-
voltou-se à economia com dinheiro. xista estrangeiro.
Depois de algumas semanas, mesmo “De margem de lucro não enten-
a gasolina para os carros teve que ser do nada - disse que o operário. Nós
paga novamente. Mas os sindicatos olhamos os livros para ver o quanto
continuaram a controlar o consumo valia a matéria-prima, calculamos as
de gasolina como antes. despesas correntes, adicionamos um
A primeira fase da coletivização custo adicional como reserva, soma-
começou ao encarregarem-se os tra- mos os salários e outra sobretaxa de
balhadores das empresas. Em cada dez por cento para as Milícias Anti-
oficina, em cada fábrica, nos escritó- fascistas, e esse foi o preço”.
rios, armazéns e lojas nomearam-se Os lenços foram lançados no
delegados sindicais que foram des- mercado a um preço menor do que
tinados à gestão. Muitas vezes, esses poderia ter sido feito antes; os salá-
diretores não tinham preparação te- rios dos trabalhadores foram maio-
órica e apenas um pouco de conhe- res; a margem de lucro capitalista foi
cimento da economia nacional. Mas convertida a favor da luta contra o

27
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

fascismo. Dessa forma foi realizada dança foi um arranjo mais justo que o
a transferência da administração na existente até então, porque os traba-
maioria das empresas. O emprega- lhadores agora cobravam efetivamen-
dor era excluído se ele se opusesse ao te os frutos do seu trabalho. Mas esse
novo curso dos acontecimentos. Era sistema não era nem socialista, nem
contratado, se aceitasse a mudança. comunista. Em vez de um capitalista
Seguia trabalhando como um líder houve uma espécie de capitalismo co-
técnico ou comercial, às vezes como letivo.
operário, e recebia salário como os Enquanto antes havia um único
operários ou técnicos do escritório. proprietário de uma fábrica ou de um
Este processo e essa mudança eram café, os trabalhadores das fábricas ou
relativamente simples.
os funcionários do café passaram a ser
As dificuldades surgiram mais
agora os seus proprietários coletivos.
tarde. Rapidamente acabaram as
Os funcionários de um café próspe-
matérias-primas. Nos primeiros dias
ro tinham rendimentos mais elevados
após a revolução foram apreendidas.
do que aqueles de um estabelecimen-
Logo teriam que ser pagas ou abona-
to menos afortunado1. A coletiviza-
das.
Do exterior chegavam algumas 1 Nesta fase também parou a coletivização russa.
André Gide descreve isso em seu livro “De vol-
matérias-primas. Começaram a au- ta da URSS” da seguinte forma: “Nós visitamos
mentar os preços desses materiais e, um kolkhoz [fazenda coletiva] modelo perto de
Sukhum. Existe há seis anos. No primeiro mo-
portanto, também dos produtos. Os mento, teve que lutar muito, mas hoje é um das
salários foram aumentados. Mas essa melhores ... Chamam-no o milionário. Tudo
medida não foi geral. Em alguns se- respira bem-estar. Esse kolkhoz se estende por
uma vasta área. Favorecida pelo clima, a vegeta-
tores o aumento foi considerável. Na ção é abundante. Cada casa, construída de ma-
primeira fase da coletivização, os salá- deira, eleva-se sobre uma base de pedra, pitor-
esca, encantadora. Está cercada por um espaçoso
rios dos operários e empregados eram
pomar com árvores frutíferas, verduras e flores.
diferentes mesmo dentro da mesma Esse kolkhoz conseguiu produzir um lucro sig-
indústria. nificativo, o que lhe permitiu acumular reservas
consideráveis. Pôde aumentar os salários para
Ao limitar a coletivização à aboli- quinze rublos por dia. Como foi calculado esse
ção dos privilégios de alguns patrões, aumento? Da mesma forma como se fixam os di-
videndos dos acionistas, como se o kolkhoz fosse
ou à eliminação do lucro patronal em
uma empresa capitalista. Subsiste esta previsão:
uma sociedade anônima, os trabalha- na URSS não existe mais a exploração da grande
dores passaram a ser os beneficiários massa para o proveito de poucos. Os próprios
trabalhadores, ou seja, os do kolkhoz, repartem
efetivos, simplesmente substituindo o ganho entre si, sem dar nada ao Estado. (As-
os anteriores proprietários. Essa mu- sim pelo menos me explicaram várias vezes.) Sob

28
A coletivização na Espanha

ção na Espanha não podia parar nessa tem que cobrir todas as comissões
fase. Esse era o sentimento de todos. econômicas de todos os sindicatos; os
Os sindicatos decidiram encarregar- fundos têm de se concentrar em um
-se do controle das empresas; os sin- único lugar, uma única caixa de com-
dicatos da indústria transformaram- pensação deve procurar uma distri-
-se em empresas industriais. buição equitativa. Em alguns setores
O sindicato da indústria da cons- há estes comitês de ligação e fundos
trução de Barcelona encarregou-se de compensação desde o início. A
dos trabalhos em todos os canteiros Companhia de Ônibus de Barcelo-
de obras da cidade. O ramo de ca- na, administrada pelos trabalhado-
beleireiros foi coletivizado. Em cada res, prospera e obtém excedente. Par-
salão de cabeleireiro há um delegado te dele vai para um fundo de reserva
sindical, que entrega semanalmente para comprar matérias-primas no ex-
todos os rendimentos ao Comitê Eco- terior, e o resto é usado para auxiliar a
nômico do sindicato. As despesas de Companhia de Bondes, que não fun-
todos os salões de cabeleireiros são ciona com tanto superávit. Empresas
pagas pelo sindicato, incluindo os sa- completamente não lucrativas, como
lários. Os sindicatos de trabalhadores o funicular Montjuic-Porto de Barce-
substituiu o sindicato dos patrões. A lona, serão suspensas, por razões eco-
justiça social foi alcançada em alguns nômicas, durante o inverno.
ramos. Mas algumas indústrias são Quando a benzina começou a
melhores que outras. Há ramos mais se tornar escassa, quatro mil taxistas
ricos e mais pobres, salários maiores e ficaram desempregados; o sindica-
menores. Também não se pode parar to teve que pagar seus salários. Foi
o processo de coletivização nesta fase. um fardo pesado para o sindicato de
Na Federação Local dos Sindica- Transportes. Ele foi forçado a procu-
tos de Barcelona (CNT) se discute a rar a ajuda de outros sindicatos e da
criação de um comitê de ligação: este prefeitura de Barcelona. A indústria
têxtil tinha poucas matérias-primas.
todos esses aspectos, não se pode dizer nada se
não existirem também kolkhozes, mais pobres, O trabalho foi limitado; em algumas
que não podem manter-se bem. Se bem entendi, fábricas só se trabalhava três dias por
cada kolkhoz tem a sua autonomia, e nenhum
semana. Mas era preciso pagar os tra-
vestígio de assistência mútua. Talvez eu esteja er-
rado? Gostaria de estar errado”. A coletivização balhadores. Como os trabalhadores
agrícola parece estar ainda na sua fase inicial na do setor fabril e têxtil não dispunham
Rússia. Eles ainda não chegaram a socialização.
(Veja André Gide: “De volta da URSS”). (Nota de meios suficientes, a Generalitat
do Autor). teve que ajudar. O processo de cole-

29
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

tivização não pode ser parado nes- no direito de propriedade privada da


te estágio. Os sindicalistas exigem a terra do que no usufruto dos produ-
socialização. A socialização para eles tos da terra. Esta forma subsistia em
não significa nacionalização, a trans- parte até a eclosão da revolução. Sob
ferência da economia para o estado. o sistema arrendatário da rabassa na
A socialização deve ser uma genera- Catalunha, os camponeses tinham de
lização da coletivização. A reunião pagar o arrendamento sob a forma de
dos fundos de todos os sindicatos em produtos agrícolas.
uma caixa central, uma concentração O valor do arrendamento que
na federação local, que se tornaria seria pago aos proprietários levou no
uma espécie de empresa coletiva. Se- ano de 1934 a um grave conflito entre
ria uma socialização a partir de baixo, a Catalunha e Madri. Madrid reivindi-
ou seja, de empresas de trabalhadores cou o direito de nomear os juízes que
para toda a comunidade inteira. Sem deveriam decidir sobre as demandas
organizações de trabalhadores não há dos proprietários de terras. Os peque-
socialização. nos agricultores refugiaram-se nos
anseios de autonomia da Catalunha.
II A luta pela independência po-
lítica da Catalunha tem um aspecto
Pouco se falou de expropriação. econômico. Os grandes proprietários
Entendia-se que este é um conceito simpatizavam com Madri. Mas não
negativo que expressa a abolição de somente na Catalunha; em todas as
uma forma de propriedade, mas não regiões de Espanha subsistem as tra-
diz nada sobre a forma da nova or- dições do coletivismo. Depois de der-
ganização. A formulação marxista: rubar a força dos generais, sentia-se
expropriação dos expropriadores, é por todo o campo o anseio de cole-
pouco conhecido na Espanha. O co- tivizar grandes propriedades exis-
letivismo, no entanto, tem tradições tentes. As organizações sindicais e os
enraizadas; existia em sua forma an- grupos anarquistas encabeçavam es-
tiga já antes do movimento proletário ses esforços de coletivização. Foram
moderno. fiéis às suas tradições. No congresso
Ressuscitou na Primeira Inter- da CNT em Madri em junho de 1931,
nacional. Ao contrário do que vários a coletivização da terra foi designada
países com tradições de direito ro- como um dos fins mais importantes
mano, a forma de exploração do feu- dos trabalhadores rurais. As resolu-
dalismo na Espanha consistia menos ções aprovadas pelo congresso mar-

30
A coletivização na Espanha

cam claramente o caminho que foi se- cação.


guido pelos trabalhadores do campo A preparação construtiva dos
em julho e agosto 1936. A resolução agricultores de acordo com nossos
apela: princípios é a missão mais importan-
“a) A expropriação sem indeni- te e mais difícil do sindicalismo no
zação de todas os latifúndios, pasta- campo. A mais importante porque,
gens, áreas de caça e extensões ará- sem ela, não pode ser viável ou con-
veis, declarando propriedade social. sequente o desenvolvimento da revo-
Cancelamento dos atuais contratos de lução social.
tributação ao proprietário, por outros A mais difícil, por ser muito nu-
que os sindicatos definirão em har- merosos os obstáculos tradicionais
monia com as necessidades de cada e subjetivos, atraso cultural, instinto
localidade. de propriedade e individualismo ego-
b) Confisco dos gados de reser- cêntrico, o que dificulta a absorção
va, sementes, ferramentas agrícolas e das massas camponesas para fins co-
máquinas que está nas mãos de pro- letivistas.
prietários expropriados. O movimento sindical camponês
c) Entrega proporcional e gratui- pode e deve superar esses obstácu-
ta em usufruto de tais terras e efeitos los mediante uma propaganda clara,
aos sindicatos de camponeses para abrangente e tenaz de seus fins ide-
exploração e gestão direta e coletiva. ológicos e um trabalho educacional
d) Abolição de contribuições, e sindical que desenvolva nos traba-
impostos sobre a propriedade, dívi- lhadores do campo hábitos de solida-
das e encargos de hipoteca que pe- riedade coletiva e os predisponha e
sam sobre as propriedades que são capacite para colaborar sem reservas
o sustento de seu proprietário e são e em interesse próprio na implemen-
cultivadas diretamente por eles, sem tação do regime coletivista ou comu-
intervenção continuada e nem explo- nista libertário.
ração de outros trabalhadores. O Congresso declara que a socia-
e) Eliminação de renda em di- lização da terra e todos os meios e ins-
nheiro ou em espécie que os peque- trumentos que cooperam na produ-
nos arrendatários (rabassaires, colo- ção agrícola, assim como seu cultivo,
nos, arrendatários regionais etc.) são uso e gestão por sindicatos agrícolas
atualmente forçados para satisfazer de produtores federados, é condição
os grandes proprietários de terras e essencial para a organização de uma
os intermediários dedicados à sublo- economia que assegure à coletividade

31
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

trabalhadora o gozo do produto inte- o último2.


gral de seu trabalho”. A vida dos trabalhadores rurais
A coletivização da terra tomou melhorou com a coletivização do tra-
outros rumos na Espanha do que balho e a nova regulação do consumo
na Rússia. Todas as propriedades de no sentido econômico; politicamente
grandes proprietários de terras fo- é livre agora. O agricultor tem sido
ram coletivizadas em uma comuna. capaz de manter seus costumes, as
Estes últimos eram partidários dos suas liberdades individuais não sofre-
militaristas clericais e lutavam contra ram redução. Nada de viver em gran-
o povo. Os proprietários que aceita- des edifícios; nada de cozinhas cole-
ram a transformação econômica con- tivas. Mas o espírito da propriedade,
tinuaram trabalhando no sindicato. a “possessão demoníaca”, que precisa-
Puseram-se à frente da coletivização. mente no campo chegou a extremos
Os exportadores também se junta- de egoísmo crasso, foi destruído3.
ram ao sindicato: em muitos lugares O sindicato dos agricultores é
também os pequenos proprietários. agora uma empresa econômica. Ele
A terra é trabalhada pelos campone- lida com a limpeza e a embalagem de
ses coletivamente; todos os produtos frutas destinadas à serem emitidas. O
sindicato paga aos trabalhadores. Em
são entregues ao sindicato. Este paga
algumas comunas quase toda a vida
os salários e vende os produtos. Os
pequenos proprietários que não que- 2 Tive a oportunidade de participar de uma re-
união de uma união agrícola na província de
riam fazer parte da comunidade per- Valência. Pequenos produtores foram igualmente
maneceram fora do sindicato. representados. Eles reclamaram que faltou isto e
aquilo. Um plano de comissão realizou melho-
Estes, então, tem que lutar duro rias na agricultura. Foi muito instrutivo observar
por sua existência. Eles não são for- como os agricultores completaram as propostas
da Comissão com as suas experiências. (Nota do
çados a nada, mas tampouco podem Autor).
desfrutar das facilidades econômicas. 3 Um pouco de aventura. Durante uma viagem
Em contrapartida, no sindicato orga- através dos laranjais, um companheiro de via-
niza-se o trabalho de uma forma ra- gem, estrangeiro, quis comprar algumas laran-
jas. “Nós não vendemos”, disseram os campone-
cional. Ali se aplica o princípio: todos ses, ocupados na colheita de laranjas. “Mas não
por um, um por todos. é possível obter laranjas aqui?” “Tantas quantas
quiser, mas não com dinheiro”. E os camponeses
Mas o pequeno proprietário per- nos trouxeram gratuitamente um saco com 50
manece fora da comuna. Na distribui- quilos de laranjas. Todas as tentativas, oferecen-
do o equivalente delas, eram inúteis. “Quando
ção das ferramentas agrícolas, dos ali- formos para Barcelona, vocês podem nos dar o
mentos etc., o pequeno proprietário é seu excedente ...” (Nota do Autor).

32
A coletivização na Espanha

econômica está nas mãos do sindica- um remédio. Puseram seus vendedo-


to. O sindicato nomeou vários comitês res, que ofereciam suas mercadorias
para a organização do trabalho, para na rua. O sindicato dos vendedores
o consumo, a distribuição, a defesa ambulantes adquiriu tamanho gigan-
contra o fascismo. Cafés e cinemas, se tesco.
existirem, estão sob o sindicato. Alguns centenas tornaram-se
Nos pequenos povoados não muitos milhares. À venda ambulante
há diferenças entre os vários ofícios só podia se devotar quem possuía a
e sindicatos. Todos estão unidos na licença de seu sindicato.
federação local. Este é o verdadeiro O sindicato da CNT teve res-
nervo da vida econômica e, ao mes- ponsabilidade. Concordou em não
mo tempo, o centro político e cultural admitir mais membros. Em seguida,
do povoado. os vendedores ambulantes formaram
um sindicato da UGT. Neste, pode-
III riam ingressar todos os que não fo-
ram admitidos no sindicato da CNT.
Em Barcelona, a vitória sobre o Ao excesso do comércio ambulante
fascismo teve o efeito de uma libera- foi adicionada a concorrência de duas
ção de um jugo pesado. Todos se ale- organizações.
graram com a liberdade recuperada. O assunto foi levado perante a
Mas muitos acreditavam que, Federação Local da CNT. Esta deci-
para eles, começava uma época de diu limitar o aumento no comércio
laissez faire, em que poderiam fazer de rua.
o que quisessem; fábricas, oficinas e Apenas um número limitado de
armazéns cujos proprietários eram vendedores ambulantes foi admitido,
fascistas estavam abandonados. Os atribuindo-lhes determinados luga-
desempregados acorreram ao comér- res da cidade para este fim. O acordo
cio ambulante. Isso se espalhou como sindical teve o efeito de um decreto.
uma epidemia. Todas as ruas da capi- Milhares de vendedores ambulantes
tal foram inundadas por mercadorias, desapareceram em um dia das ruas de
que eram vendidas nas calçadas e até Barcelona.
mesmo no meio da estrada. Esta foi uma fase de desenvolvi-
Toda a cidade tinha uma nova mento que teve alguma importância
fisionomia. Para os donos de lojas, o para a aparência da capital da Catalu-
comércio de rua significou uma gran- nha. A intervenção dos sindicatos foi
de competição. Mas logo encontraram decisiva. Definiu o rumo e o ritmo do

33
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

processo, regula a vida econômica da nominais, dinheiro. A apreensão de


cidade; não só controla os trabalha- contas bancárias teria possibilitado
dores nas fábricas, mas até mesmo os uma centralização e distribuição dos
vendedores ambulantes. meios financeiros existentes, e com
isso uma economia dirigida. Um cen-
IV tro ordenador teria intervido no pro-
Em um ramo a coletivização não cesso.
foi feita: no sistema bancário. Por ra- Com a colaboração de represen-
zões óbvias. A coletivização não é fei- tantes dos sindicatos industriais, os
ta por decreto a partir do alto, mas bancários teriam sido capazes de de-
pela intervenção dos trabalhadores e senvolver um programa de assistência
empregados em cada empresa. financeira a empresas vitais.
Por que os bancos não foram As instituições financeiras pode-
coletivizados? Os bancários estavam riam ter imediatamente se posto ao
mal organizados. Havia dois sindica- serviço da coletivização.
tos bancários, um da CNT e outro da A coletivização não teria para-
UGT; o último, majoritário, opunha- do, teria abrangido toda a vida eco-
-se à coletivização e defendia a nacio- nômica. O processo de coletivização é
nalização. comparável com a construção de uma
A socialização deve ser feita, de obra; pedras são trazidas de muitos
acordo com a sua doutrina, por decre- lados, pequenos edifícios são cons-
tos governamentais. O governo não truídos cada um por si mesmo. Ao
decretou a coletivização dos bancos. acoplarem-se os bancos, a realização
Assim, os bancários, em sua maioria, do programa planejado teria sido fei-
não sabiam o que fazer. A coletiviza- ta de uma maneira arquitetônica. Não
ção não foi realizada. foi assim, perdeu-se tempo.
A minoria da CNT não conse- Mas a perda de um dos lados foi
guiu que fossem aceitas as ideias de um ganho no outro. Não foram pos-
mudanças econômicas e financeiras tos limites à iniciativa privada.
da sociedade. Depois de sete meses de experi-
Uma coletivização ou socializa- ências, os sindicatos convenceram-se
ção dos bancos teria dado, sem dúvi- de que era necessário coordenar os
da, um rumo diferente ao desenvol- esforços das empresas coletivizadas
vimento. A riqueza dos bancos não em diversos setores. Eles basearam-
consiste em máquinas e ferramentas, -se em experiências realizadas. As di-
mas em meios de circulação, valores reções centrais que estão sendo cria-

34
A coletivização na Espanha

das agora já não precisam nomear os e fornecimento de alimentos, eles não


órgãos inferiores; eles já existem. A queriam monopolizá-los. O sindica-
cúpula da coletivização funda-se so- to do setor alimentício encarregou-se
bre uma base sólida, profundamente pelas padarias (não há grandes fábri-
enraizada nos sindicatos industriais, cas de pão em Barcelona). Há também
nas seções profissionais, nas empresas pequenos fornos. Estes continuam
e nas mesmas oficinas. Nisso se baseia a trabalhar por conta própria, como
a força da coletivização na Espanha. antes. O transporte do leite do campo
para as cidades está nas mãos dos sin-
V dicatos. Estes provêm a maioria das
fábricas de lacticínios. Os sindicatos
No desenvolvimento de coleti- do setor alimentício controlam as
vização encontramos a mesma ca- propriedades rurais e colaboram com
racterística que no desenvolvimento as fazendas coletivizadas e as coope-
político. Recusa de todos os esforços rativas agrícolas.
totalitários. Embora os sindicatos exi- A restrição de importação de lei-
gissem sua influência na distribuição te condensado resultou na escassez de

Cartaz da Indústria automotiva, coletivada durante a Revolução Espanhola.

35
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

leite. O sindicato do setor alimentício (ala de Moscou). Doménech, repre-


comprou leite condensado no exterior sentante da CNT, recebeu outro car-
e resolveu esse problema em Barcelo- go. Comorera removeu o monopólio
na. Na Rússia, as lojas foram fechadas de Abastos. Reintroduziu o livre co-
durante o primeiro período da revo- mércio. Com isso se deu passe livre
lução. Isso não aconteceu na Espa- ao aumento de preços. O processo de
nha. O comércio por atacado passou coletivização foi interrompido neste
para as mãos dos sindicatos. O varejo campo. Uma espécie de pequena NEP.
adquire seus produtos por meio do Na Catalunha, o desenvolvimen-
sindicato. Os preços de varejo foram to acontece mais rapidamente do que
definidos para os comerciantes. O co- na Rússia. Para o que lá necessitavam
mércio interior foi unificado e con- anos, aqui se realiza em meses. Mas
trolado. Liderando o “monopólio” es- com a novo rumo da NEP catalã não
tava o Ministério de Abastecimento. foi concluído o desenvolvimento. A
O objetivo era organizar de ma- população trabalhadora não quer pa-
neira uniforme todo o abastecimento rar nem recuar. O coletivismo não
com comida da Catalunha, para su- pode ser exterminado na Espanha.
prir todas as populações. Foram fixa- O desenvolvimento da sociedade vai
dos preços unificados nas comunas por esse caminho. Nem a guerra pode
coletivizadas, nos sindicatos de pes- obstruir este processo.
cadores e em outras indústrias de ali-
mentos, de acordo com o órgão dis- VI
tribuidor. O objetivo prosseguido por
esta política econômica era evitar o Descrevemos neste livro, siste-
aumento do preço dos alimentos. Ela maticamente, o curso da coletivização
acabaria com a especulação e a usura. em cada uma das suas fases e indús-
Mas, em meados de dezembro, trias. Demonstramos, com documen-
essa política foi bruscamente inter- tos em mãos, como os trabalhadores
rompida. Em 16 de dezembro acon- tomaram as empresas sob sua respon-
teceu uma transformação no Con- sabilidade e as levaram adiante. Tam-
selho da Generalitat. Os comunistas bém tentamos verificar os resultados
conseguiram a separação do POUM da coletivização. Será que a coletivi-
(Partido de Unificação Marxista) do zação tem uma influência favorável
Conselho. No novo Conselho, Como- ou desfavorável sobre a produção?
rera se encarregou de Abastos. É fi- Não é preciso hoje responder teorica-
liado ao Partido Socialista Unificado mente essa questão. Temos à vista os

36
A coletivização na Espanha

resultados de muitas empresas. Tam- Não foram encontrados novos


bém consultamos a opinião subjetiva mercados. Isso levou à crise na indús-
de muitos trabalhadores. Se estão fe- tria têxtil4. A coletivização da agricul-
lizes, trabalham mais. tura e da indústria abre uma nova fase
Se eles se sentem como parceiros no movimento proletário: leva à mu-
responsáveis, têm mais interesse pela dança estrutural da sociedade. Ain-
produção. No domínio dos transpor- da é cedo para julgar definitivamente
tes, as vantagens da coletivização são este desenvolvimento, que é um dos
óbvias. Apesar do aumento geral dos fenômenos mais interessantes dos
preços, as tarifas dos meios de trans- nossos dias. A coletivização ensina
porte não aumentaram em Barcelona. novas perspectivas, leva-nos por no-
E, no entanto, os salários dos traba- vos caminhos. Na Rússia, a revolução
lhadores das empresas de transporte tomou o caminho da estatização. Na
não são mais baixos. Não são negli- Itália e na Alemanha, o fascismo co-
genciadas a higiene e a estética dos loca suas esperanças na ideia do Esta-
veículos: bondes pintados de novo, do Corporativo.
novos ônibus elétricos estão nas ruas. Nos países democráticos tam-
Todos os táxis foram reformados. Não bém acreditam encontrar a solução
é tão bom para a indústria têxtil. para a atual crise econômica em uma
A escassez de matérias-primas nova estruturação das bases políticas
faz com que em muitas fábricas se e econômicas da sociedade. Nos Esta-
possa trabalhar apenas dois ou três dos Unidos, Roosevelt vai por novos
dias por semana; mas os salários de caminhos; na Bélgica, De Man pro-
quatro dias são pagos. A extensão põe um socialismo parcial.
desse estado de coisas enfraquece as Na França, existem teóricos da
empresas. Quatro salários semanais democracia, que se apoiam na ideia
são insuficientes. Isso não é o resul- corporativa. Recomenda-se a adoção
tado de coletivização, mas da guerra. de um sistema eleitoral coletivo, a ser
A indústria têxtil catalã perdeu adicionado ao sistema eleitoral indi-
seus principais mercados de vendas. 4 Durante o primeiro mês de 1937, a situação
Parte da Andaluzia, Extremadura, melhorou um pouco. Trabalha-se para material
Castilla la Vieja, todo o Norte da Es- de guerra. Em Sabadell, um centro da indústria
têxtil, com 60.000 habitantes, trabalha-se nor-
panha com os seus distritos indus- malmente, enquanto que em Barcelona trab-
triais densamente povoados, Asturias, alha-se com restrições em algumas fábricas de
funcionando normalmente agora em Barcelona
estão fora do alcance ou nas mãos dos
a trabalhar mesmo com restrições em algumas
fascistas. fábricas de fiações. (Nota do Autor)

37
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

vidual; introdução de um Parlamen- vas teorias; o mesmo povo, os campo-


to econômico ao lado do Parlamento neses, os trabalhadores nas cidades,
político. tomaram em suas mãos a terra e os
O cidadão não só deve ter a sua meios de produção.
representação como um consumidor: Com grande esforço, tentando e
o trabalhador deve ter também sua às vezes errando, mas sempre à frente,
representação como um produtor, a esforçam-se para construir um siste-
representação da sua profissão no Es- ma mais justo de sociedade, em que
tado e na organização nacional do seu os frutos do seu trabalho são recolhi-
país. Nestas inovações veem a saída dos pelos próprios trabalhadores.
da crise política, econômica e espiri- Este é o significado da coletiviza-
tual, a reabilitação da vida social. Na ção na Espanha. Isto se deve ter em
Espanha, não se desenvolveram no- mente ao ler este livro.

Augustin Souchy (1892 - 1984) foi um jornalista e militante anarcossindicalista


alemão. Viajou até a Espanha não só para cobrir os eventos da Revolução, mas tam-
bém para participar ativamente do processo, organizando o recebimento de dinheiro
e de armamento do exterior.
Tradução de Clayton Peron a partir da versão transcrita pelo coletivo Pluma de Indio.

38
O problema do dinheiro durante a
autogestão espanhola (1936-1939)

Frank Mintz

I mersos, como estamos, na sociedade do consumo e em suas múltiplas fa-


cetas, tanto no mundo ocidental, como no mundo oriental e nos países em
desenvolvimento, é para nós difícil entender, e até mesmo compreender, o sistema
organizativo monetário durante a Guerra Civil Espanhola.
É importante, para começar, conhecer ao menos brevemente as ideias propos-
tas por militantes anarcossindicalistas e de outras ideologias antes do 19 de julho de
1936. No que se refere à ala marxista não há nenhum problema: da mesma forma que
a desaparição do Estado aparece em uma data imprecisa, o problema do dinheiro e as
diferenças salariais se mantém tanto em Marx1 como nos marxistas leninistas: “Não
se pode conceber que um maquinista de trem possa receber o mesmo salário que um
copista. Marx e Lenin dizem que a diferença entre o trabalho qualificado e não quali-
ficado existirá ainda sob o sistema socialista e inclusive após a supressão das classes”2.
Do lado libertário há duas posições distintas. A primeira é de Kropotkin na
Conquista do Pão, na qual preconiza a toma del montón3 e a socialização das rique-
1 Indiretamente em “a produção da mais valia absoluta, capítulo sobre o trabalho e o valor”, ao final
do mesmo na tradução integral de O Capital: “Essa força de trabalho que se materializa, durante os
mesmos períodos de tempo, em valores relativamente mais elevados, o de valor superior ao normal se
traduz, logicamente, a um trabalho superior”. Tomo I, pág. 158, La Habana, 1965.
2 Stálin, 1931, em Questões do leninismo, Moscou, 1947, pp. 420-421, texto original; citado em Zemliak,
(pseudônimo de Frank Mintz) traduzido do francês, em Kropotkin, Obras, Editora Anagrama, p. 120.
3 Mantivemos a expressão no original, tal como fez o autor, para enfatizar o termo que se popularizou

39
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

zas, assim como o rechaço de todas as sidentes antes das eleições de 1936) e
diferenças salariais. A segunda, mantém também as do PC4, os comitês criaram
a moeda ao mesmo tempo que os bônus bônus para que a população pudesse
de consumo, com o objetivo de suprimir abastecer-se; bônus que os comercian-
o caráter especulativo da poupança, do tes aceitavam.
empréstimo etc. Pierre Besnard foi quem Essas duas experiências foram
melhor elaborou essa teoria, pensan- amplamente comentadas em toda a Es-
do em um sistema de salário nacional, panha. E os próprios socialistas e co-
a partir dos bônus e dos intercâmbios munistas do BOC e do PC se anima-
internacionais, eventualmente baseados ram (apesar de Marx e de Lenin-Stálin)
no ouro. diante da capacidade dos trabalhadores
A prática revolucionária de 1933 e asturianos em matéria monetária. Des-
1934 clarificou os conceitos. Por exem- se modo, do lado anarquista, a visão de
plo, quando da tentativa insurrecional Besnard (e Leval) de um salário e uma
do comunismo libertário, em Aragão, moeda sem seus aspectos especulativos
em dezembro de 1933, o dinheiro foi assemelhava-se à de Kropotkin e Isa-
abolido, o que pode relacionar-se tanto ac Puente, que implicava a supressão
aos artigos de Isaac Puente em torno do do dinheiro. O Congresso da CNT de
comunismo libertário, como à influên- maio de 1936 não tomou postura, ao
cia de Kropotkin (muito lido na Espa- adotar uma proposta sobre o comunis-
nha): isto é, a uma tradição comunal e mo libertário, pronunciando-se de uma
um rechaço visceral à política burguesa forma ambígua5 baseada no “carnê do
(que, sem dúvida, liga-se com a tradi- produtor”. Por outro lado, as demais re-
ção religiosa do dinheiro como fonte de soluções citadas por Antonio Elorza no
perversão). 4 O PC se utilizou do POUM como aríete con-
Em 1934, quando a insurreição, tra Trotsky, até o disparate de assimilar fascismo
ao trotskismo, e portanto também ao POUM. O
voluntariamente limitada a Astúrias paradoxo é que Trotsky nunca aceitou o POUM
devido a obscuras manobras políticas, porque lhes queria impor que ingressassem no
PSOE e na UGT para dar uma orientação revolu-
como aquelas de socialistas e comu-
cionária. Ou seja, o POUM nunca teve nenhum
nistas do Bloco Operário-Camponês apoio, e desde a CNT-FAI tampouco (por causa
(posteriormente, agrupado no POUM, da intolerância e da desconfiança mútua), apesar
de alguns grupos como Los Amigos de Durruti
aglomerado de grupos marxistas dis- terem se mantido muito próximos dos poumis-
tas. Nota de 2011.
na Espanha a partir da obra a Conquista do Pão,
de Piotr Kropotkin. Este termo designava a ex- 5 Não sei porque pus uma opinião tão negativa:
propriação dos bens produzidos em abundância. Isaac Puente sustentava e derivava sua proposta
(N. T.) de Pierre Besnard. Nota de 2011.

40
O problema do dinheiro durante a autogestão espanhola (1936-1939)

Cooperativa popular em Barcelona

número 32 da Revista del Trabajo, vão A aplicação na prática


do rechaço declarado ao rechaço vela-
do. Pode, portanto, pensar-se que a ma- A guerra apresentou três tipos de
turidade na reflexão pré-revolucionária reações sobre o problema do dinheiro.
em relação ao projeto de “reforma mo- A primeira, cronologicamente, é a que
netária e esquema de circulação fiduci- teve lugar em Barcelona desde o princí-
ária em uma economia social” que cito pio dos combates, já que os serviços pú-
em meu livro6, segundo Valerio. Mas blicos (água, gás, eletricidade etc.) conti-
(que foi que me fez conhecer) não co- nuaram funcionando e o abastecimento
meçou até o início de 1936, em Granol- primário (pão, leite, etc.) continuou sen-
lers. do feito, o que implica a preparação dos
6 Referência ao livro Autogestión y anarcosindi-
anarcossindicalistas e a previsão de ne-
calismo en la España revolucionaria (disponível cessidades. “Pão, a revolução necessita
na íntegra: http://www.fondation-besnard.org/
IMG/pdf/Mintz_Autogestion_y_anarcosindi-
de pão! [...] Nossa tarefa específica con-
calismo_libro_PDF.pdf sistirá em trabalhar de tal maneira que

41
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

desde os primeiros dias da revolução e Generalitat não tinha nenhum poder so-
enquanto ela dure não tenha um só ho- bre o Banco da Espanha.
mem no território insurrecto que não A segunda tendência era a de apli-
tenha pão.”7. car o salário único (como nos transpor-
Durante os primeiros dias de fe- tes), supondo que, globalmente, não po-
bre, não houve realmente reivindicações deria gerar inflação nem mercado negro
globais: cada coletivo fez o inventário de e foi imediatamente o que ocorreu, não
seus recursos e, ao mesmo tempo, pen- somente na Catalunha, mas em toda a
sou em que medida poderia contribuir Espanha republicana. Evidentemente, o
para a revolução. Penso que pode-se salário único não estava fixado com ri-
distinguir duas tendências, partindo de gidez e também pensou-se que os pre-
uma atitude idêntica de reorganização ços se manteriam fixos. Essa tendência
do leque de salários (os altos salários de foi a que adotaram os coletivos agrários,
diretores, subdiretores e empregos ho- a partir do anúncio da vitória em Bar-
noríficos foram suprimidos, os salários celona, no que se designa normalmente
de engenheiros e dos quadros se man- como a Espanha republicana. Também
tiveram e o dos trabalhadores manuais aqui se deram duas tendências: o recha-
aumentaram8). A primeira tendência foi ço do dinheiro (inclusive queimado em
a de trabalhar menos e ganhar mais, a alguns casos) e a instauração da toma
que foi apoiada pela Generalitat e seu del montón e o estabelecimento de uma
decreto de 24 de julho de 1936: sintomá- moeda local. As variações locais e as dis-
tico que, reduzidos ao estado de fantas- cussões em assembleias gerais para mo-
ma jurídico, os catalanistas decretaram a dificar o sistema são resumidas por um
semana de 40 horas e o aumento de 15% testemunho da época: “Tudo o que foi
nos salários, apesar de que as necessi- feito, se fez imediatamente e como foi
dades revolucionárias eram grandes e a ensaiado. Durante os primeiros dias se
deram bônus para poder adquirir o que
7 Kropotkin, A Conquista do Pão, 2005, Libros se necessitava. Depois, foi feito o papel
de Anarres, Buenos Aires, p. 65.
moeda e agora temos adotado o sistema
8 Os salários superiores ainda representam so-
mas injustificáveis; por exemplo, quando a ocu-
da fórmula do carnê de produtor. Até
pação da fábrica Lip em Besançon em 1973 soube agora, isso é o melhor do que temos pos-
que um ministro, atual homem forte de Giscard to em prática”9.
(presidente da França), Poniatowsky, recibia um
salário como “ajuda para os conselhos de gestão”.
Esse político foi condenado por corrupção e 9 Bujalance, província de Córdoba, reportagem
continua sendo processado em 2011. A situação de Solidaridad Obrera, 25/09/1936, Autogestión y
global de corrupção é ainda mais acentuado hoje anarcosindicalismo en la España revolucionaria,
em dia. Nota de 2011 Buenos Aires, 2009, p. 78

42
O problema do dinheiro durante a autogestão espanhola (1936-1939)

Não ocorreu uma evolução de re- a escala dos salários era diferente para os
cursos que permitiu mudar o comunis- homens casados ou solteiros, as mulhe-
mo pela abundância, já que o raciona- res solteiras, as crianças e os idosos (às
mento alcançou a todos. Também houve vezes separados).
a permanência da hierarquia machista. Outro aspecto em comum em
Em uma economia não racionada, a ambas as coletividades era o problema
igualdade se instaura, de fato, entre as da troca, aquisição de bens fora dos co-
pessoas e os sexos. Ao estabelecer o car- letivos. Em todos os casos, a base das es-
nê de produtor, os coletivos rebaixaram timativas se fazia em pesetas, e o acordo
a mulher, que sempre ganhou menos era feito tanto em dinheiro da coletivida-
que os homens. Gastón Leval disse na de quanto a trocar direta entre coletivi-
edição italiana do seu livro: “Em quase dades, quando era possível. Nesse ponto
na metade das coletividades agrárias, o nos deparamos com a falta de dados es-
salário que se pagava [à mulher] era in- tatísticos sobre os produtos disponíveis
ferior ao do homem, em outra metade tanto no mercado (certamente desorde-
era equivalente; estas diferenças podem nado) como nas coletividades da região
explicar-se tendo em conta que a mulher e nas próprios ramos da autogestão.
solteira poucas vezes vive sozinha”10. E chegamos, naturalmente, ao ter-
Apesar de não ter a documentação de ceiro aspecto: o sistema bancário, que se
todos os salários das coletividades, não manteve nas mãos dos burgueses repu-
vi nenhuma coletividade agrária aplicar blicanos, apesar do desejo de tomá-lo e
a igualdade de salários entre homens e o exemplo do Banco de Oviedo de 1934
mulheres. (o que Federica Montseny sublinhou ao
Esses dados permitem reagru- mostrar a grande consciência revolu-
par as duas situações – coletividades do cionária em relação à Comuna de Paris,
campo e da cidade – por meio da adoção em La revolución de octubre. Quince dias
em ambos do salário familiar (segundo de comunismo libertario, de Solano Pa-
o número de membros da família), o que lacio). Pode-se acrescentar os desejos, e
se subentende o clã familiar, cuja evolu- até as tentativas, dos anarcossindicalis-
ção está sancionada pelo matrimônio e tas de se apropriarem do ouro do Ban-
pela criação de filhos... E, naturalmente, co da Espanha em Madri (ver Santillán,
García Oliver e o livro Durruti de Abel
10 Né Franco, né Stalin: le collettivittà archiche
spagnole nella lotta contro Franco e la reazione Paz), mas a colaboração política impos-
staliana, 1952, pp. 314-315. Ver o texto inteiro ta pelos dirigentes sindicalistas da CNT-
em Principios y enseñanzas de la Revolución Es-
-UGT fez com que essa operação falhas-
pañola (disponível em: http://www.fondation-
besnard.org/article.php3?id_article=1182). se.

43
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

Rumo à autogestão organização dos cítricos, sabotando a da


CNT-UGT e chegando a posições irre-
Essa situação de duplo poder, dutíveis: o rechaço do comércio entre
mortal e assassino para a autogestão, as coletividades e os que dependiam do
como já haviam demonstrado os exem- PC.
plos precedentes (Alemanha e Itália nos Para amenizar a inércia causada
anos 1918-1920 e a URSS dos anos 1917- pelos oponentes e inimigos armados
1921), aconteceu, na verdade, uma acen- contra a autogestão, estabeleceram-se
tuação no processo autogestionário. Na relações econômicas baseadas na polí-
Catalunha, uma lei de outubro de 1936 tica e não na rentabilidade: Ascó (pro-
destruiu completamente a experiência víncia de Tarragona) recebeu uma ajuda
industrial, ao criar a dependência das financeira do sindicato dos cabeleireiros
coletividades em relação aos créditos go- de Barcelona, porque um membro deste
vernamentais que se outorgavam segun- sindicato estava convalescendo na cole-
do a tendência política dos ministros e tividade, para comprar uma bomba elé-
dos responsáveis das coletividades11. Em trica para água; e a mesma coletividade
Aragão, uma estatística regional dos es- empregou companheiros do sindicato
toques e das necessidades funcionou, dos tijoleiros de Granollers, para a co-
mas no que se refere às trocas fora da lheita de azeitona. Compreende-se que
região e com o estrangeiro houve certa em uma atmosfera de falta de confian-
competição entre o organismo respon- ça, as relações pessoais não ofereciam a
sável pelas compras no exterior e algu- garantia necessária, mas poderia haver
mas coletividades suficientemente ricas um mínimo de coordenação na mesma
para comerciar diretamente, apesar de província, como no caso de Ascó. Acre-
que existia uma caixa de compensação ditamos que este caso pode ter se repe-
para as coletividades pobres. Na provín- tido, já que as relações federativas entre
cia de Valência, as coletivizações foram as coletividades ainda não estavam sufi-
travadas “graças” ao PC, que propôs uma cientemente claras.
A CNT, que tinha optado não au-
11 No Ocidente ainda ocorre, e no Oriente tam-
bém, mas sob a forma de relações de corrupção
togestionar o sistema bancário, se encon-
– “o tolkach, que tem por missão sentar-se nos trou na necessidade de financiar os orga-
ministérios ou nas antesalas de empresários até nismo econômicos anarcossindicalistas.
obter os créditos, os bônus de compra, os mate-
riais ou a infraestrutura necessária”. Panorama Ainda reconhecendo que “o ideal […] a
da URSS, fevereiro/março de 1979, em Correo de supressão do dinheiro [é] indiscutível”,
los países del Este, pág. 155 e seguintes, citando o
se propôs um banco com três funções:
Pravda, 25/2/1972, pág.3 e a Izvestia, 18/01/1978,
pág. 6 banco para os sindicatos; bancos para

44
O problema do dinheiro durante a autogestão espanhola (1936-1939)

os produtores (análogo às cadernetas de autogestão em Aragão no momento da


poupança de hoje em dia); banco para colheita do trigo) quanto indiretamente
o comércio exterior12. O projeto final- (sabotagem da campanha de cultivo dos
mente se realizou quando o plano eco- cítricos de 1937-1938) são difíceis de es-
nômico ampliado de janeiro de 193813, e timar. Mas será necessário fazê-lo para
certamente na prática não foi efetivo. ter uma visão financeira global da auto-
Quanto às coletividades, tanto gestão.
industriais quanto agrícolas, minha im- Esse assentamento, essa continui-
pressão é que a situação cotidiana do sa- dade da vida econômica com ou sem
lário interno pelo carnê de produtor e a moeda, ou com uma moeda esvaziada
mudança do emprego da peseta para as do seu poder especulativo, é a caracte-
compras exteriores (peseta que sofreu rística mais importante da experiência.
a alta de preços de toda a zona republi- Mas também há outros aspectos impor-
cana, enquanto os salários agrícolas se tantes para estudar: a transformação de
mantiveram, mais ou menos, no mesmo ricos em pobres – por exemplo, nas cole-
patamar de fim de 1936), não cresceu tivizações de Aragão onde a moeda local
sensivelmente entre 1937 e 1938 (para ou o carnê do produtor obrigavam os ri-
Aragão e Catalunha) e 1939 (para o resto cos a escolher entre entrar na coletivida-
das regiões). Era uma situação bancária de ou ficar vegetando; o entesouramento
estacionária, que se movia no alto, mas eventual (resquício da especulação) em
nunca na base. As coletividades geriam certas coletividades e a que nível (os di-
sua produção e participavam no esfor- rigentes eram um embrião de uma nova
ço de guerra, enviando uma parte da sua classe?). Penso que, se nas coletividades
produção gratuitamente ao front, e às agrárias os ricos sofreram uma mudan-
vezes acolhendo refugiados. Este esforço ça de condição, foi nos casos em que a
não era uma inversão, no sentido econô- CNT e a UGT estavam unidas; pois, nos
mico do termo. Era necessário ganhar a demais casos, o PC criava uma seção da
guerra para reforçar a revolução e para UGT (para seu próprio benefício), que
os comunistas era ganhar a guerra para, protegia os ricos e os opunha à auto-
eventualmente, começar a revolução e, gestão. Nas cidades, os ricos apenas fo-
de fato, as perdas econômicas geradas ram incomodados. Também penso que
pelo PC, tanto diretamente (ataques à nas coletividades agrárias os dirigentes
eram, em sua maioria, conscientes dos
12 Segundo Amezcua em Soli, 16/02/1937, pág.
possíveis desvios e tomavam precau-
2
ções; e, pelo contrário, nas coletividades
13 Proposta reproduzida em La CNT en la revo-
lución española, de Peirats, tomo 3, cap. 1. industriais, tenho a impressão de que

45
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

estavam menos protegidos, sem que me obscuro segue sendo o modelo padrão,
seja possível poder precisar alguma por- a estimativa a partir da peseta, necessa-
centagem. riamente sujeita à inflação e dependente
Pode-se assinalar que os negó- do sistema bancário; eu não tenho co-
cios baseados na troca direta seguiram nhecimento de tentativas de estabelecer
em vigor (países do Oriente – países do negócios a partir de uma outra forma de
Ocidente, na maioria dos casos), e que cálculo (a hora de trabalho de uma cole-
se os anarcossindicalistas tivessem podi- tividade agrária de tal região; os artigos
do colocar em prática seu sistema (por fixos: pão, leite ou carne). O assunto ain-
exemplo o projeto monetário), poderia da está por ser explorado.
ter funcionado. Pelo contrário, o ponto

Frank Mintz, é um militante anarquista búlgaro radicado na França. Artigo publicado em


1979 na revista Bicicleta, nº 20, pp. 29-31, revisado em 2011 pelo autor. Traduzido por Panclasta.

46
80º aniversário da revolução:
Mujeres Libres
Laura Vicente

A Guerra Civil Espanhola, e a revolução social, que eclodiu em ju-


lho de 1936 teve muitos componentes: social, político, cultural,
militar, etc. Neste “etc” encontra-se o componente de gênero que esteve presente
na guerra e no processo revolucionário que o anarquismo pôs em marcha na Espa-
nha. As mulheres, que tinham melhorado lentamente a sua situação de marginali-
zação e subordinação sistemática (melhoria acelerada no aspecto jurídico durante
a Segunda República), apostaram no processo de guerra-revolução e lançaram-se
determinadas a não permitir o retrocesso que seria a vitória do grupo insurrecto.
Mujeres Libres, tanto a revista em maio, como a organização entre julho e se-
tembro de 1936, nasceu em guerra, nasceu em revolução. As mulheres que fizeram
parte desta rede de cordialidade (Lucía Sánchez Saornil, Mercedes Comaposada,
Amparo Poch, Soledad Estorach, Pepita Carpena, Concha Liaño, Pilar Granjel,
Nicolasa Gutierrez (Nic), Apollonia e Felisa de Castro, Maria Cerdan, Elodia Pou,
Áurea Cuadrado e muitas outras), como a chamou Lucía Sánchez, lançaram-se
para contribuir para o sucesso da emancipação social e de gênero. A partir dos dois
primeiros grupos, os de Madrid e Barcelona, a organização se espalhou e chegou
a ter cerca de 20.000 afiliadas e 147 grupos, com especial destaque para o Centro
(15 grupos de mais de 13 distritos de Madri) e Catalunha (40 grupos ao longo dos
6 distritos de Barcelona), seguidos de Aragão (14 grupos, dos quais apenas cinco
foram localizados), Valência (28 grupos) e Andaluzia (dois grupos: em Granada e

47
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

em Almería). áreas em que a revolução acompanhou


“Mujeres Libres”, que se expressou a guerra. As mulheres ganharam aces-
por meio da revista de mesmo nome, so ao espaço e às responsabilidades pú-
foi a única organização que na década blicas e houve uma inversão dos papéis
de 1930 se propôs a lutar pela liberta- tradicionais.
ção das mulheres com a autonomia de A guerra foi uma experiência de
seu próprio ambiente libertário e com liberdade e responsabilidade sem pre-
objetivos de gênero próprios, aos quais cedentes para as mulheres. A maioria
não renunciou para ganhar a guerra ou das trabalhadoras se tornou conscien-
vencer a revolução, consciente de que, te das suas capacidades e valorizou sua
sem a libertação do gênero, não have- nova independência econômica. Sabe-
ria vitória possível. mos pouco sobre a natureza íntima da
Logo ficou claro que a guerra não guerra, mas nós sabemos que houve
seria curta, e que exigiria o apoio de re- um crescimento nas taxas de ilegiti-
taguarda e a cooperação das mulheres, midade durante o conflito. E a gran-
ninguém duvidou da necessidade de de novidade foi que a mulher tinha de
serem mobilizadas, especialmente nas viver sozinha, sair sozinha e assumir

48
80º Aniversário da Revolução: Mujeres Libres

responsabilidades familiares sozinha, com o cabelo curto, calças e gravata,


algo que sempre tinha sido considera- mas não é o único caso. Em Barcelona,
do impossível e perigoso. As mulheres as mulheres dos ateneus, antes da guer-
conquistaram a liberdade de circulação ra, eram tachadas de prostitutas por se
e de ação na solidão e no exercício das atrever a usar calças - até mesmo shorts
responsabilidades: livres do espartilho, - e cortar seus cabelos.
dos vestidos longos e apertados, dos O seu grau de consciência fe-
chapéus irritantes e, às vezes, dos la- minista levou essas mulheres a ques-
ços e tranças, apareceram os penteados tionar o sistema patriarcal e a vincu-
das mulheres masculinizadas, o uso de lar a emancipação das mulheres com
calças com as quais o corpo feminino a transformação revolucionária. Com
poderia mover, podiam sair sozinhas, uma abordagem inovadora, estabelece-
explorar a sexualidade e, por vezes, ram a liberdade das mulheres a partir
decidir a própria vida. Lucía Sánchez do desenvolvimento da independência
é o exemplo mais claro dessa ruptura psicológica e da autoestima, somente
de estereótipos nessa imagem em que viável valorizando, além da luta social,
caminha ao lado de Emma Goldman a luta individual, a “emancipação inter-

Lucía Sanchéz Saornil (esq.), ao lado de Emma Goldman

49
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

na” da qual falava a anarquista Emma de gênero de grandes dimensões, uni-


Goldman. Assim, as mulheres torna- da à derrota política, social, econômica
ram-se sujeitos de sua libertação, não e cultural. O novo regime foi um duro
só com base na independência econô- castigo para essas mulheres que, ou fo-
mica, como no empoderamento e na ram para um longo exílio, ou viveram
afirmação da personalidade feminina. um verdadeiro exílio interior, tentando
Liquidada a revolução e perdida a manter uma luta constante para negar
guerra, o triunfo do grupo insurrecto a submissão feminina imposta pelo re-
levou a uma ditadura com caracterís- gime franquista.
ticas fascistas que levou a uma derrota

Laura Vicente é historiadora, especialista em anarquismo na Espanha, sobretudo


Mujeres Libres. Texto originalmente publicado em: http://pensarenelmargen.blogs-
pot.com.br/2016/07/80-aniversario-de-la-revolucion-mujeres.html. Traduzido para
o português por Clayton Peron.

50
Indomáveis

Lucía Sanchéz Saornil

C om um profundo sofrimento interior, comprovamos a perda ma-


terial da guerra espanhola. Somente nós que vivemos dia após
dia, hora após hora a edificação daquele mundo assombroso, nascido no 19 de
julho, sabemos bem tudo o que se perde ao perdê-la.
Quantas vezes acreditamos que avançávamos devagar, que caíamos em
erros contumazes, que retrocedíamos...! E que terrível empurrão para frente
demos, entretanto! É verdade que houve erros e titubeios, é verdade que o im-
pulso inicial não se consumou; mas que grande porta se abriu para a liberdade
do mundo! E o constatamos agora ao respirar novamente o ar mefítico de um
Estado capitalista.
Criamos novas interpretações do direito, mais próximas, mais de acordo
com o direito natural. Em plena guerra, acossados por forças numéricas muito
superiores, no lógico desassossego de uma resistência improvisada a cada dia,
contra um inimigo ferozmente sábio e assistido por todos os meios de ataques
imagináveis iam-se esboçando ensaios sociais que, seguindo o curso natural da
evolução, no jogo pacifico das reações sociais, precisaram, talvez, de cem anos
para produzir-se. Assim o foi com as coletividades camponesas de Aragão e
Andaluzia, algumas coletividades operárias da Catalunha e a obra, menos co-
nhecida, do campesinato da nova Castilha.
Disse-se, alguma vez, por meio da boca dos doutores em suficiência de

51
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

todos os climas, que nossos ensaios eram demasiados custosos em san-


eram balbucios ingênuos e primiti- gue e dor. Mas, então eles esqueceram
vos. Não queremos lhes tirar toda a que a humanidade não fez mais que
razão, porque, ao fim e ao cabo, todo ensaios através dos séculos e que se
o movimento espanhol, toda guerra fôssemos pensar nos rios de dor que
espanhola não foi senão a reação do cada ensaio trouxe consigo, estes, os
homem, em seu sentido mais exato de nossos, apareceriam como uma ino-
ser consciente, contra as interpreta- cente espetacularidade. Ensaios que
ções jurídicas que convertiam a vida duraram séculos e cujas vitimas não
social em uma serie de movimentos se podem calcular; ensaios que con-
mecânicos, sem outro objetivo que sumiram de fome e miséria gerações
não servir os interesses de uns poucos e gerações; ensaios que rebaixaram a
privilegiados, e, para vencer, era for- condição humana de milhões de seres
çoso que voltássemos os olhos para as e que não abriram, em troca, nenhum
raízes primitivas das coisas. Para isto caminho novo para a humanidade.
precisava-se de certa fé ingênua, que Hoje, toda crítica inflamada de
limpasse nossa falsa e velha sabedo- outros dias que arranhava nossos cal-
ria, sem a qual estávamos expostos a canhares quando ultrapassávamos em
continuar cultivando com distintos muitos o seu nível, late desaforada-
nomes os erros e as torpezas que abo- mente adornando com injúrias seus
minávamos. latidos. A justiça que fizemos fartos
Sem esta fé ingênua, sem este de injustiças legalizadas, chamaram
cândido primitivismo de que nos de “crime”; os nossos esforços para
acusam os economistas experts da ajustar o direito às necessidades de
burguesia não teríamos conseguido equilíbrio da convivência chamaram
realizar a série de magníficos ensaios de “roubo”; ao instinto de defesa de
que levaram a cabo a revolução espa- um povo atacado com brutal feroci-
nhola, e que, mesmo perdida a guer- dade chamaram de “terror organiza-
ra, ficarão gravados na história para do”.
aproveitamento desses mesmos eco- Injúria após injúria, pretende-
nomistas. -se nos enterrar em um aluvial de
Ao falar de nossos ensaios, lodo que retrata com perfeição a es-
pensamos em outro tipo de detrato- tatura moral de nossos detratores.
res de nosso movimento, os “huma- Não nos abateremos. Com todos seus
nitaristas”, os quais ouvimos dizer erros, estamos satisfeitos com o que
uma multidão de vezes que “ensaios” fizemos, e o proclamamos a todos os

52
Indomáveis

ventos; aos da França e aos de todos o seu casco e focinho de porco.


mundo. Por mais derrotados que es- Não nos importamos. O anti-
tejamos não nos consideramos venci- fascismo espanhol sente a dignida-
dos; e a partir de nossa miséria física de de sua missão; sabe que realizou
ainda podemos olhar com desprezo a uma obra; que escreveu na história,
miséria moral de um ultra-direitismo para exemplo do mundo, uma página
que nem sequer conhece a elegância cuja profunda e luminosa marca não
do gesto e pretende fazer de nossa podem apagar os imundos cuspes da
derrota o chiqueiro onde regozijar chusma fascista.

Lucía Sanchéz Saornil foi uma militante anarquista, uma das fundadoras da re-
vista e do grupo Mujeres Libres. Texto publicado originalmente no jornal SIA (ór-
gão da Solidariedade Internacional Antifascista) núm. 17, de Paris, em 09/03/1939.
Traduzido para o português por Thiago Lemos.

53
Indivíduo, comunidade, sociedade *

Eduardo Colombo

V ou começar esse debate com uma pequena consideração antes de


entrar em cheio no problema. O tema geral de nossos debates,
nestes dois dias e meio, é “o anarquismo ante a crise das ideologias”; e para come-
çar, um esclarecimento (talvez, se alguém quiser, poderemos discutir isso depois).
Creio que a fórmula que se tem difundido depois dos anos 60, quando Daniel Bell,
sociólogo norte-americano, escreveu seu livro sobre “O Fim das Ideologias”, é que
as ideologias estão cada vez mais em crise, o que é absolutamente falso, se pensar-
mos em qual é o conceito genérico de ideologia. Pode-se dizer que está em crise,
ou melhor, que se tem esgotado a força expansiva das utopias, ou das contra-ideo-
logias revolucionárias, o que tem deixado de pé somente uma ideologia reinante: a
ideologia dominante, a ideologia em que vivemos todos os dias; de onde se resulta
o problema fundamental de nossa época, que é a passividade geral dos indivíduos
frente ao reino absoluto da ideologia dominante.
Pode-se crer em certos momentos passados que frente ao capitalismo não
havia nada mais que o capitalismo de Estado, e que nessa luta entre duas facções o
anarquismo se encontrava em um terceiro campo, tratando de abrir um caminho
diferente. Hoje se afirma que há uma só ideologia reinante e que nós sequer temos
*: Esse texto é a transcrição da intervenção de Eduardo Colombo na mesa “Individuo, Comunidad,
Sociedad” no Seminário “El anarquismo ante la crisis de las ideologias”, realizada em Barcelona no dia
1º de outubro de 1993. Como o texto originalmente não tem título, decidimos intitulá-lo com o nome
da mesa. (Nota dos Editores)

55
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

a possibilidade de abrir um caminho mínio em que vivemos. Esse elemento


entre duas, mas que estamos de novo oculto, por estar geralmente deslocado
na base de uma luta frontal com uma e concentrado na aparência formal do
única ideologia dominante. religioso, é o elemento sacral, do sagra-
Frente a essa situação e tendo definido do. O sagrado envolve de uma manei-
a passividade individual como traço ra direta, ou de origem com a ideia de
dominante de nossa sociedade, eu di- pós-morte, de Deus, à palavra que vem
ria que para combater essa passividade de fora, do mandamento que nos foi
se haveria que reivindicar, pôr de novo imposto. O sagrado, se buscamos algu-
em primeiro plano, um direito inalie- ma definição reconhecida, pode ser en-
nável do indivíduo, que é o direito à tendido segundo Mircea Eliade, como
blasfêmia. Blasfemar é talvez o primei- uma definição positiva e violentada de
ro ponto de partida da rebelião contra Deus. Mircea Eliade diz que para um
a ordem estabelecida. E digo por duas crente o Deus vivente não é o Deus dos
razões que vocês verão depois. A pri- filósofos, o Deus de um Erasmo, por
meira dessas razões é a própria defini- exemplo, não é uma ideia, não é uma
ção de blasfêmia. Se buscarmos em um abstração, não é uma simples alegoria
dicionário a palavra blasfêmia, lemos: moral. É uma potência terrível, uma
expressão injuriosa contra Deus, ou a força que se manifesta na cólera divi-
coisas sagradas. Evidentemente os di- na, experiência aterrorizante e irracio-
cionários amam citar autores mais ou nal. Todos os epítetos que seguem logo
menos clássicos e o dicionário que eu definindo o sagrado têm a ver com
consultei põe como exemplo, “os ho- isso, com esse sentimento profundo do
mens hereges que depreciam toda do- homem frente ao inexplicado, o sen-
minação blasfemam a majestade”. timento de espanto frente ao sagrado,
O que é a majestade? A majesta- frente a esse misterium tremendum,
de é o atributo inerente à realeza, pela frente a essa Majestade de que se emana
qual se impõe respeito, admiração e uma superioridade esmagadora. Como
submissão. A majestade se atribui aos vocês veem, todas essas definições nos
reis ou soberanos e a Deus. Eu digo que despertam, como anarquistas, porque
frente a isso blasfememos. o sagrado é a força fundamental que
Porque a possibilidade de blasfe- esmaga o homem, esmaga-o porque o
mar nos levará diretamente a tomar em deixa submetido a uma potência exte-
consideração o elemento fundamental rior sobre a qual não se tem controle
da situação humana que, em geral, se algum, pelo que é determinado, pelo
oculta dentro das instituições de do- que é criado, pelo que é definido, pelo

56
Indivíduo, comunidade, sociedade

que é levado à morte ou até o fim. O sa- ditada de uma vez para sempre, e os
grado é a essência da religião, mas tam- homens em seu tempo histórico não
bém, e isso é importante, é o elemento fazem mais que obedecer a uma mino-
base do Poder Político, da dominação, ria dominante, que é a representante na
está oculto no Estado, está oculto nas terra desse elemento sagrado posto há
instituições de domínio. Se buscarmos tempos, no altar do social.
na etimologia a palavra hierarquia, O sagrado significa um desapos-
por exemplo, vemos que vem do gre- samento originário e fundamental da
go hieros (hierarchie em francês, jerar- capacidade instituinte do homem. E
quía em espanhol). Hieros: sagrado; agora entraremos mais claramente na
arquia, todo o mundo conhece a pala- definição de Poder. Nós utilizamos fre-
vra anarquia, a saber – a: privativo de quentemente a palavra poder com uma
arkhé, que tem a ver com a ordenação eficácia simbólica enorme e ao mesmo
política da sociedade. O elemento que tempo com uma imprecisão pratica-
está diretamente incrustado no Poder, mente total. Mas não porque nossa lin-
o elemento sagrado, está no centro da guagem seja imprecisa, e sim porque a
relação entre indivíduo e sociedade, palavra poder contém, por um estra-
porque as sociedades são, desde sua tégia milenar do próprio Poder, uma
origem até hoje, sociedades heterô- contradição, ou talvez, poder-se-ia
nomas, isto é, não existem sociedades dizer, mais que uma contradição, ele-
autônomas, como não existem indiví- mentos díspares que funcionam jun-
duos totalmente autônomos, porque a tos e que são utilizados em função das
relação entre sociedade e individuo é necessidades da causa para dizer uma
uma relação de interação permanente. coisa ou seu contrário.
A problemática a que quero che- Quando dizemos poder, se o di-
gar é que essa heteronomia da socieda- zemos em uma assembleia anarquis-
de é, pela própria definição, a consequ- ta, a primeira imagem que aparece é
ência do sagrado, ou seja, as sociedades o Poder Político e sua dominação, o
são heterônomas porque a lei, a norma, Estado, mas a palavra poder não quer
o costume, não estão organizados de dizer somente isso. Fundamentalmen-
dentro, pelos indivíduos que vivem em te, quer dizer capacidade, capacidade
uma sociedade, mas sim estão organi- de fazer; pode-se fazer algo, nós juntos
zadas desde o tempo mais remoto pe- podemos fazer mais coisas, nós pode-
los antepassados mortos, pelos heróis, mos fazer uma infinidade de coisas e
pelos Deuses, pelos que constituem uma das coisas que podemos fazer, e
um tempo primordial em que a lei foi não somente podemos fazer, mas fa-

57
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

zemos necessariamente, é nos darmos ligado à exploração, poder-se-ia dizer,


as normas e as leis com que vivemos. ao desapossamento do homem de sua
É a própria sociedade e os homens que capacidade simbólico-instituinte. Eu
vivem nela que determinam quais são chamarei de simbólico-instituinte essa
as formas institucionais e políticas de capacidade de organizar a própria so-
sua representação social, de sua intera- ciedade.
ção social. É isso, não há outro Poder, As sociedades se organizam em
Deus não existe. A partir desse ponto função de uma série de atribuições, de
de vista, a heteronomia do social é o significados, de símbolos, de signos, de
primeiro desapossamento, que faz crer utilização de códigos que nós criamos.
aos homens que não são eles que or- A linguagem é a primeira instituição da
ganizam sua sociedade, os que ditam a sociedade, o primeiro código com que
lei, mas que há uma força exterior que organizamos nossa interação mútua,
os determina. Não importa como se nossa intercompreensão a nível simbó-
chame essa força, não importa que seja lico ou significativo. Essa instituição da
o Deus das sociedades “primitivas”, ou linguagem foi criada pelos homens. Se
algum antepassado nosso, não importa tivesse sido dada de fora, eles estariam
que seja o Deus das religiões positivas despossuídos dela. Essa definição da
como o cristianismo ou o islamismo capacidade humana, social, instituinte,
ou o judaísmo, não importa que seja o criadora da sociedade, é a essência do
Estado, não importa que seja a lei da religioso que forma parte da domina-
história, não importa que seja a crença ção política.
que nos leva necessariamente a um fim E forma parte da dominação
predeterminado, a uma escatologia. política pelo seguinte: porque o po-
Ocorre o mesmo quando o marxismo der, quando é transmitido a partir
em sua posição escatológica coloca o do lado político, quando se constitui
proletariado como o redentor da hu- como Poder Político, é a dominação
manidade, e postula um fim que deve política; em uma sociedade heterôno-
chegar necessariamente, e ao fazê-lo ma, será fundamentalmente a explo-
está desapossando do homem sua ca- ração de uma minoria, da capacidade
pacidade de dizer não, sim, para esse simbólico-instituinte que corresponde
lado, para esse outro, para onde o que- ao total, ao coletivo global dessa socie-
ro, porque somos nós que organizamos dade. Enquanto aparecem nas socie-
nossa vida, os que organizam nossa dades humanas grupos especializados
sociedade. Esse elemento heterônomo que detêm a possibilidade de ditar a
que constitui o social está diretamente lei, aparece um elemento particular

58
Indivíduo, comunidade, sociedade

pelo qual o Poder Político deixa de ser ele deseja, mas esse sentimento é sub-
a capacidade global, do grupo huma- jetivo e alheio a uma compreensão real
no, para converter-se na capacidade de das relações entre os homens. Vou me
uma minoria de impor aos outros – à basear nisso, apesar de haver uma larga
maioria – sua decisão. Ou seja, que a bibliografia sociológica, sociopolítica,
capacidade de manusear o mundo, as que poderia ser utilizada para expli-
relações com os outros, a criação só- car esse tema, e já que estamos entre
cio-histórica, se transforma na capaci- anarquistas vou utilizar a definição que
dade de uns, de alguns, de poucos, de Bakunin faz sobre a liberdade. Bakunin
uma oligarquia, para impor aos outros diz que há três momentos essenciais da
a obediência. liberdade do homem.
Na medida em que essa transfor- Esses três momentos são: primei-
mação aparece na sociedade, constitui- ro, o feito enorme e positivo da criação
-se o que chamamos de Poder Político; social; o homem vive em sociedade, o
nós o reproduzimos, como eu dizia há homem adquire humanidade com os
pouco, na palavra poder, porque, por outros, sem sua relação com os outros
exemplo, se alguém diz a uma crian- o homem não teria chegado à sua ho-
ça: – Não pode subir na mesa! – bem, minização; ou se preferirem, antes que
ela me perguntará – Como não posso o homem, o australopithecus, o homo
se eu já subi? Não, não pode subir sig- habilis, ou o homo erectus, não tivesse
nifica que não deve subir na mesa, que chegado a construir um útil, um ins-
o dever está incluído na concepção de trumento, a utilizar a palavra, a criar
poder. Por quê? Porque essa mesma um código ou instruções, não estives-
heteronomia do social incrusta na de- se fazendo algo com o outro, não es-
finição de poder esse elemento de exte- tivesse em relação com o outro; esse
rioridade, do dever de obediência. aspecto sociológico da interação, a so-
E como não tenho muito tem- ciedade como tal, é um elemento cen-
po, sobre esse aspecto me contentarei tral e positivo da liberdade humana. É
em mostrar de que maneira o dever de um absurdo, diz Bakunin, crer que o
obediência é um dos aspectos centrais homem é livre antes de entrar na so-
da dominação política, ou das socie- ciedade, como mantém o credo liberal,
dades hierárquicas. A sociedade não é, segundo o qual cada indivíduo renun-
como ingenuamente costuma-se dizer, cia a uma parte de sua liberdade para
algo que se opõe ao indivíduo. O in- pactuar com os outros um Contrato
divíduo pode sentir a sociedade como Social, posição que vai necessariamen-
que lhe opondo uma resistência ao que te à dominação política. O homem não

59
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

é livre antes de entrar na sociedade, é a do que existe, para alcançar algo que
sociedade que o faz livre, o elo em re- não existe, mas que pode vir a ser.
lação com os outros, a autonomia do E o terceiro momento, o mais
indivíduo na sociedade que permite a difícil, é o de rebelar-se não contra a
aparição da liberdade. Por outro lado, sociedade que está fora, não contra a
é a sociedade que permite também a instituição que temos diante de nós e
aparição do Poder. Antes da vida em que nos oprime, mas de nos rebelar-
sociedade não havia nem bem nem mos contra a instituição que temos in-
mal, não há nem Poder nem Liberda- ternalizada, que temos dentro de nós.
de, são as construções do homem na Essa necessidade que temos contra a
sociedade que fazem que a liberdade sociedade que levamos dentro é, ao
tenha um valor positivo. mesmo tempo a confirmação de que o
Mas esse momento não basta, indivíduo é o que é em relação com os
diz Bakunin. Para que a sociedade evo- outros e também o fator que o impe-
lua, para que a sociedade se transfor- de de pensar, ou dar-se conta, ou com-
me, para que esse feito fundamental do preender até que ponto está alienado,
homem que é sua humanização em so- até que ponto está dominado, até que
ciedade não se estanque, não fique ali ponto responde a uma sociedade que
amarrado ao seu primeiro momento, se lhe apresenta como externa, como
necessita-se da rebelião, a rebelião do se fosse o natural, o dado; enquanto a
indivíduo, que é o segundo e funda- sociedade não é o natural, nem é nada
mental momento da liberdade. Mas a senão uma construção humana. A au-
rebelião é ao mesmo tempo o momen- tonomia do homem, como a liberdade
to mais difícil do ponto de vista pesso- do homem, nasce nesse processo de
al, e também o mais fácil de conceber, autoconstrução.
porque todos sentimos a opressão e Vou extrair somente duas con-
tendemos espontaneamente a nos re- sequências do que acabo de dizer, a
belarmos contra tudo que nos oprime. primeira: é um absurdo pensar que a
O desejo é uma força inerente ao ho- liberdade, qualquer tipo de liberdade,
mem que vai encontrar um limite, não a liberdade filosófica como a liberda-
no outro, mas na dominação do outro, de política, pode ser concebida como
no Poder Político que o outro pode se um desejo ilimitado; a liberdade sem
atribuir para impedi-lo de construir limites, sem obrigações, sem a relação
seu desejo com os demais, com os ou- com os outros, é a liberdade do tirano:
tros. O segundo momento da liberdade o único que pode fazer o que quer e
é essencialmente a rebelião, a negação quando lhe convém é o tirano. Os ho-

60
Indivíduo, comunidade, sociedade

mens respeitam ao outros porque vi- como formas das relações entre os ho-
vem com os outros, porque necessitam mens, que podemos modificar na in-
dos outros para serem, eles mesmos, li- ter-relação com os outros e aprofundar
vres; a liberdade de cada um se estende no sentido da liberdade humana, mas
ao infinito com a liberdade dos outros. as sentimos como algo que nos é im-
Mas exige obrigações sociais. A obri- posto. Na sociedade civil, as normas
gação social é o elemento que está na são vividas como a obrigatoriedade da
própria base da norma social; não há obediência. O Poder Político, seja tota-
sociedade sem instituição, não existe litário ou representativo, impõe a todos
uma sociedade sem norma, não existe nós uma norma, uma série de normas,
uma sociedade sem linguagem. Uma de leis, de regras, sobre as quais não
criança que aprende a falar o aprende temos decidido nada e sabemos pro-
em uma instituição funcionante da so- fundamente que nunca participamos
ciedade. em seu estabelecimento. É a existência
Essa condição de obrigação so- do poder político ou dominação que
cial está totalmente difundida ou dis- transforma a obrigação social em de-
torcida nas sociedades hierárquicas, ver de obediência, transformação que
com o Estado, ou seja, em sociedades constitui a própria essência das socie-
que todos conhecemos (até o momen- dades hierárquicas.
to não existiram praticamente outras), Se pensamos em criar uma uto-
que são as sociedades de dominação pia para o futuro, para o próximo sé-
política ou construídas sobre a domi- culo, e pensamos em construir o pro-
nação política. O que ocorre em todas jeto de uma sociedade livre, temos que
essas sociedades é que, como a norma entender que a anarquia não é falta de
ou a lei está ditada por uma minoria normas – a falta de normas é a anomia
que expropriou a capacidade simbólica ou o caos. A anarquia é uma institucio-
da totalidade do social, a obrigação so- nalização anárquica da sociedade, ou
cial deixa de ser tal para se transformar seja, o estabelecimento de instituições
no dever de obediência. anarquistas em que os homens possam
Nós sentimos as normas ou as viver e criar a igualdade, a justiça e sua
regras sociais em que vivemos não própria liberdade.

Eduardo Colombo é médico, psicanalista e ex-professor de Psicologia Social da


Universidad de Buenos Aires (UBA). Faz parte do comitê redator da revista Re-
fráctions. Texto originalmente publicado no livro Anarquisme: Exposició Interna-
cional, traduzido para o português por Pablo Pamplona.

61
A revolução social
Uma polêmica em torno da Revolução Mexicana (continuação)

Ricardo Flores Magón

D igam o que quiserem os inimigos da Revolução Mexicana, esta


é de caráter marcadamente econômico. Desde o início afirmamos que o proleta-
riado mexicano não pegou em armas pelo simples gosto de ter um novo carrasco.
Desde o início dissemos que o povo mexicano pegou em armas porque tinha fome
de pão e de justiça.
Os feitos, não as palavras, têm demonstrado que estávamos na posição justa,
e, ainda mais, que temos trabalhado como verdadeiros revolucionários, buscando
que o grande movimento tome um orientação decidida para o comunismo. Esse é
nosso dever de revolucionário sincero.
Alguns sociólogos de púlpito têm criticado o movimento mexicano porque
não começou sendo claramente comunista desde o princípio. Pretendiam esses
senhores, entre os que se sobressaem Luigi Galleani e Jean Grave, que a revolução
social fosse obra de um dia, de uma semana ou de alguns meses, sem recordar que
o mestre, Piotr Kropotkin, disse em uma carta datada de Londres em 15 de novem-
bro de 1909, as seguintes sábias palavras: “Toda revolução se inicia timidamente
com feitos de importância infinitamente pequena; mas toda revolução ascende à
medida que se prolonga. Se ela dura dois, três, quatro anos; se os revolucionários
são bastante inteligentes para não permitir a consolidação de um governo forte,
essa revolução ascenderá até o comunismo. E se não se começa a revolução com

63
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

alguma coisa, ainda que seja bastante A imprensa de todas as cores ad-
distante do comunismo, não se chegará mite que não se trata de uma revolução
nunca a nada, como na Rússia”. política, mas de um movimento eco-
Nossa obra de agitação por meio nômico, de uma guerra de classes que,
da ideia, e a agitação por meio da ideia se os libertários a fomentarem, termi-
e da ação de nossos bravos companhei- nará com o comunismo. E temos vis-
ros que sustentam a Bandeira Vermelha to, igualmente, que, por instinto, por
nos campos mexicanos, estão dando herança, o povo mexicano, povo não
seus frutos: a prolongação do movi- corrompido com os hábitos do arro-
mento, para que não volte a haver um cho, povo modesto, é apto para o co-
governo estável no México, pois desde munismo, comunismo que, em parte,
o princípio temos acreditado, como tem praticado por milhares de anos.
nosso velho camarada Kropotkin, que Ademais, é sabido que o povo mexica-
quanto maior duração tenha um movi- no, odeia cordialmente a Autoridade e
mento revolucionário, mais se radica- o Capital, apesar das prédicas do clero
lizarão as tendências; mais amplas são embusteiro.
as aspirações populares e mais fácil é El Imparcial, do dia 22 de março,
chegar ao comunismo. ao falar do movimento revolucionário
Outro dos frutos de nossa in- no estado de Oaxaca, disse: “As prin-
cessante propaganda é a expropriação cipais plantas de mudas de algodão de
da terra e da maquinaria de produção. Jamiltepec foram destruídas pelos re-
Há muitos números, Regeneración tem volucionários. Para se salvar do ataque
nos mostrado os atos de expropria- dos rebeldes em curso, algumas pessoas
ção da terra levados a cabo por multi- permaneceram nos bosques de Playa,
dões de proletários que se tem posto a escondidas vários dias, alimentando-se
trabalhá-la com um fuzil atravessado. somente de cocos e tartarugas. Os po-
Os leitores de Regeneración terão visto voados ao redor da propriedade de San
que quando os proletários não podem José Ejutla desejam repartir suas terras
sustentar a expropriação da terra, por e, de fato, dispõem-se a atacá-la”.
falta de armas, arrasam as fazendas e O mesmo periódico disse em 29
os povoados para que, se eles tiverem de março, ao falar do movimento re-
que sofrer, que sofram igualmente os volucionário no Distrito de Tlapa, Es-
seus carrascos. Terão visto também os tado de Guerrero: “A propriedade de
múltiplos casos de sabotagem, de gre- Jicayán, propriedade do senhor Daniel
ves revolucionarias, de consciência de Pérez Ruiz, foi esvaziada por completo.
classe dos proletários mexicanos. Os indígenas repartiram os terrenos e

64
A revolução social - Uma polêmica em torno da Revolução Mexicana (cont.)

os revolucionários levaram 20 mulas e *


10 cavalos e incendiaram os campos de * *
cana”.
O mesmo periódico, no dia 5 Do periódico burguês, El Intran-
deste mês [abril], em um telegrama sigente, diário da tarde que se publica
que remeteu seu correspondente em na cidade do México, tomamos textu-
Oaxaca, revela a gravidade da situação almente o que se segue:
naquele importante e riquíssimo Esta-
“Os fazendeiros que Queré-
do. Assim disse: “Como resultado das
taro, que têm suas proprie-
prédicas socialistas de certos agitado-
dades contíguas ao Estado de
res, os indígenas de alguns pontos do
Guanajuato, encontram-se
Estado estão cometendo atentados. Vá- neste momento ameaçados
rios, por causa da questão agrária, cor- de uma maneira terrível por
taram as colheitas de várias proprieda- seus peões, que estão pedin-
des próximas, suprimiram a água de do à força tudo o que querem,
irrigação e realizaram outros excessos”. sem esperar consegui-lo com
O mesmo periódico disse em 7 o trabalho.
de abril: “Seguindo os conselhos dos
zapatistas que estiveram em Tepeaca; A Terra Que Eu Trabalho
Estado de Puebla, alguns indígenas to-
maram posse do terreno da fazenda de Uma pessoa que acaba de
San Miguel La Pila, propriedade do se- chegar daquela entidade fe-
nhor Luis Pacheco, e situada por aque- derativa, concedeu uma en-
trevista a um repórter do El
le caminho”.
Intransigente, na qual explica
Estes dados, somados a todos os
detalhadamente como ocor-
que têm sido apresentados nas colu-
reram os fatos que levaram
nas de Regeneración já há muitos me-
ao espanto alguns fazendei-
ses, demonstram que o movimento é ros, pois se acredita que eles
econômico e que não se necessita mais vão se repetir.
que boa vontade, firmeza e lealdade à Os peões da fazenda de Espe-
causa do proletariado para que ao fim jo, propriedade dos senhores
vejamos tremular triunfante a bandeira Legorreta, receberam seus
dos pobres, a gloriosa bandeira verme- antigos amos com uma tem-
lha dos libertários mexicanos. pestade de pedras, porque es-

65
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

tes reivindicaram o direito de algumas respeitáveis pessoas


atacá-los. da seguinte forma:

Não obstante sua rudeza, os Quando o senhor Madero


trabalhadores do campo, in- andava em sua prédica re-
flamados pelas prédicas so- volucionária, apareceu pelos
cialistas, contestaram seus campos uma mulher vestida
amos que já não queriam de freira, que vinha pregando
seguir lhes dando a riqueza por todas as partes a igualda-
quando a terra em que traba- de.
lhavam eram deles, pois ha- Aquela mulher proclamava
viam trabalhado longos anos a sedição, declarando que o
sem obter senão os mesqui- peão devia pedir as terras e
nhos frutos que lhes davam. que os proprietários destas
não eram os amos, senão os
Deixaram-no Morto humildes. Que os trabalha-
dores do campo deviam pe-
Os senhores Espejo conse- gar em armas, se fosse pre-
guiram fugir de suas proprie- ciso, para exigir que fossem
dades, porém um deles teve divididas por partes iguais a
que voltar a si do desmaio terra e seus produtos.
ao qual o conduziu a terrível Em dois meses, a freira mis-
chuva de pedras que lhe arre- teriosa havia percorrido a
messaram seus antigos cam- maior parte das fazendas que
poneses. limitam o Estado de Guana-
O estado que ficou o fazen- juato e deixou sua doutrina,
deiro foi de tal gravidade que que respondia às necessida-
os peões o haviam dado por des da gente do campo, gra-
morto, e a isso se deve ter se vada no coração de todo o
salvado de uma morte certa o mundo. Deixou também em
senhor Legorreta. todos os campos o nome de
Madero.
A Freira Misteriosa Pouco depois os campone-
ses de Guanajuato pegaram
A explicação de todos esses em armas e em Querétaro a
acontecimentos é dada por revolta não tardará a eclodir,

66
A revolução social - Uma polêmica em torno da Revolução Mexicana (cont.)

pois os magníficos resultados que dizer que não é bom que os cama-
que deu aos peões seu levante radas peões dividam a terra, porque no
na fazenda dos senhores Le- futuro ficará outra vez em poucas mãos
gorreta despertou o desejo de e a miséria e a tirania serão o fruto do
imitá-los. ato heroico da expropriação. Imitem os
Alguns fazendeiros do mes- peões de outras regiões que tomaram a
mo Estado de Querétaro op- terra em comum.
taram por dar milho e lugar A terra deve ser trabalhada em
aos seus peões para semear, comum e os produtos consumidos em
livrando-se de perder suas comum.
terras ou de recorrer às forças Que dirão agora os senhores Jean
das armas”. Grave e Luigi Galleani e tantos outros
que se ufanaram de libertários e são os
A conduta destes dignos prole- piores inimigos da revolução do prole-
tários está sendo imitada em muitas tariado mexicano?
fazendas da República. Somente temos

Ricardo Flores Magón, anarquista com destacada atuação na Revolução Mexica-


na, foi membro do Partido Liberal Mexicano e do jornal Regeneración. A primeira
parte foi publicada em Regeneración, núm. 86, publicado no dia 20 de abril de 1912
enquanto a segunda parte foi publicada no número 87 do mesmo jornal, editado
no dia 27 de abril de 1912. Traduzido para o português por Vitor Ahagon e Adria-
no Skoda.

67
Aos homens de boa vontade

Antonio Bernardo Canellas

D urante a minha permanência em França procurei estudar com


atenção as diversas obras de significação social que têm sido fundadas por inicia-
tiva dos camaradas franceses e nenhuma delas me impressionou tão fortemente
quanto aquela que vem descrita nesta brochura e que foi devida à clarividência e
à tenacidade de um dos mais ilustres propagandistas do comunismo – Sebastião
Faure.
Se em França, onde a proporção dos analfabetos é mínima, esta obra foi re-
conhecida como sendo de uma utilidade inestimável, imagine-se o alcance que ela
não terá num país como o Brasil onde, sem exagero algum, mais de 60% dos tra-
balhadores são analfabetos, não se compreendendo nesta estimativa aqueles que
apenas sabem soletrar.
Por isso, entre as instituições criadas pelos camaradas franceses, a que mais
vivamente desejo ver transplantada no Brasil é essa da escola fraternal e comunista
que a amorosa inteligência de Sebastião Faure idealizou e realizou de uma forma
tão brilhante.
Reconheço que é bem arrojada esta minha pretensão, dada a maneira pela
qual nós, os brasileiros, costumamos encarar os problemas sociais. No entanto isto
não me desanima e penso que, com algum esforço e tenacidade – no que penso ser
auxiliado pelos meus camaradas das organizações obreiras e por todos os homens

68
Aos homens de boa vontade

de boa vontade – conseguirei levar a Sociedade Instrutora do Operário, ani-


efeito esta obra de grande alcance so- mando os indecisos e desmentindo os
cial que será a fundação de uma Ruche pessimistas.
modelo no Brasil. Compreende-se, porém, que uma
Tenho esperança de que o meu iniciativa destas exige vastos recursos e
exemplo será imitado e que assim pos- por isso necessário se torna fazermos
samos reduzir ao mínimo o analfabe- um grande esforço pecuniário a fim
tismo da classe operária para que o po- de reunir a quantia indispensável para
der do operariado cresça ao máximo a compra de terras, maquinismos,
em força e consciência. utensílios e tudo o que é preciso
Pretendo realizar por todo o Bra- para a instalação de uma colônia no
sil uma viagem de propaganda em prol gênero que Sebastião Faure fundou
da criação de uma sociedade cujo úni- em Rambouillet. Estes recursos serão
co e exclusivo fim será o da instrução fáceis de reunir desde que todos se
dos operários pelos métodos que vêm compenetrem da grandeza e do alcance
descritos nesta brochura e melhor de- desta iniciativa e disponham-se a fazer
senvolvido numa outra que também os sacrifícios correspondentes.
editei – Questões de Ensino – e mais por
outros métodos que julgarmos adequa- Rio de Janeiro, 20 de Outubro de 1919.
dos à nossa situação especial.
Para que a criação dessa socieda- NOTA: Todos os que desejarem cola-
de seja um fato pretendo reunir recur- borar para a realização desta iniciativa
sos afim de fundar em qualquer canto poderão enviar as suas contribuições
deste maravilhoso país um estabeleci- para o seguinte endereço:
mento no gênero da Ruche de Sebas-
tião Faure. Isto servirá para demons- Antonio B. Canellas
trar a praticabilidade deste sistema de Rua Miguel de Lemos, 48
educação – o que facilitará a obra da E. do Rio – Niterói

69
Prefácio? Não!
Prefácio ao livro Alvoradas, de Ilka Maia

Maria Lacerda de Moura

A jovem poetisa e o “não-prefácio” da madrinha Maria Lacerda de Moura

A lei daquele país proibia aos amos de escravos que vendessem as crias de
seus negros e que se livrassem de seus serviçais sob o pretexto de velhice. Ao com-
prar um escravo, o amo se via obrigado a conservá-lo até que morresse. O domínio
de cada colono formava desse modo um pequeno Estado.
Resgatamos aqui um texto obscuro e até então esquecido de Maria Lacerda
de Moura. Tentamos fazer com que ganhe mais projeção através das páginas da
Revista da Biblioteca Terra Livre, em especial pelo seu teor fortemente pessoal e
rebelde.
“Prefácio? Não!” foi escrito em 1923 e publicado como apresentação ao livro
Alvoradas (1924) da poetisa Ilka Maia, uma garota que na época tinha apenas 16
anos e já demonstrava um enorme talento para as letras.
Mas quem foi Ilka? Nascida em 27 de abril de 1906 na cidade de São Pau-
lo, Ilka de Freitas Maia era filha do advogado Luiz Oscar de Almeida Maia e de
Maria da Glória de Freitas Maia, professora. Começou a escrever desde pequena.
Posteriormente, formou-se em Psicologia e trabalhou como funcionária pública
na prefeitura da capital por vários anos, atuando como Psicotécnica e na área da
Psiquiatria, contribuindo com descobertas importantes em relação a testes em Psi-
canálise. Aposentada, viveu em várias cidades do interior do estado até seu faleci-
mento em 1988, na cidade de Bananal/SP.
Ilka Maia foi autora de outros livros de poesias ao longo da vida, mas apa-

70
Prefácio? Não!

rentemente não teve envolvimento As pedras


com o movimento anarquista. Oras, A D. Maria Lacerda de Moura
então por quê uma libertária haveria
de escrever um prefácio para seu livro? I
Simples: Maria Lacerda de Moura era Quem diz que a pedra muda, à
madrinha da autora e escreveu um tex- beira de uma estrada,
to, a modo de conversa ou conselho à É pedra morta e fria, é pedra indi-
menina que se iniciava nas letras e des- ferente?...
cobria o mundo! Uma mulher falando Quem diz que ela não sente os
a outra mulher sobre os desafios e os beijos da alvorada?...
obstáculos que lhe são impostos por Quem diz que a pedra é morta e
justamente ser uma mulher. Um escrito que a pedra não sente?...
carregado de um tom íntimo e pessoal,
mas claramente com um teor libertário Quem diz que a pedra é um bloco
e revolucionário para a época, ao abor- estúpido de nada?
dar a luta das mulheres por sua eman- Quem diz isso, não pensa - e
cipação econômica, social e intelectual, quem diz isso mente!
utilizando a literatura, a sociologia, a A pedra, a pedra muda à beira de
arte e a política para explicar à jovem uma estrada,
afilhada conceitos deveras complexos. É um mistério do Céu! Talvez um
Para Maria Lacerda, o motor da vida e penitente!...
a inspiração do bom artista e do cida-
dão do mundo, rebelde, solidário e re- E é por isso que quando, as lágri-
volucionário é a “Dor Universal”, aque- mas das chuvas,
la que nos move sempre em busca de Rolam, cheias de dor, dos olhos
aperfeiçoar-nos, aquela dor que todos das estrelas,
sentimos mas ninguém sabe explicar... Choram as pedras, sós, como ve-
Para concluir essa breve apresen- lhas viúvas...
tação, deixamos registrado um soneto
escrito por Ilka Maia nas páginas de E é por isso que quando, as vezes
Alvoradas e dedicado à madrinha Ma- distraído,
ria Lacerda de Moura. Voltas, mudo, pastor ao passar
junto delas,
Boa Leitura! Parece-te escutar, às vezes, um
Apresentação e transcrição por gemido....
Rosa Silva.

71
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

S.Paulo, 19 de Junho de 1923 S. Paulo, 20 de Junho de 1923


Ilka Maia
II
*
As pedras são sinais de dolorosas * *
vidas!...
São restos imortais de vidas acaba- Prefácio? Não!

S
das!
São almas sem abrigo – as almas
foragidas
Que Deus deixou sem lar no gelo ou inimiga dos prefácios por-
das calçadas!... que não concordo com a insti-
tuição dos padrinhos. Padrinho e Ma-
São crianças sem pão, famintas, drinha constituem assim uma espécie
atiradas… de tutela para a vida. E o meu tempe-
Aos turbilhões da rua, em trapos ramento combativo, rebelde, revolta-se
envolvidas!... contra toda e qualquer coação à minha
São os cegos sem luz de pupilas liberdade. Na acepção literária o prefá-
cansadas cio é o segundo batizado ou melhor: o
Que procuram a paz das campas crisma. Se o autor é mal sucedido, se é
esquecidas!... medíocre, diz o padrinho “Ora, pediu-
-me o prefácio, como negar? Quis au-
São mudos a que a mão de ferro xiliar a um principiante, eu sabia que
do Destino, não tinha talento, mas...” E deixa no ar a
Estrangulou o som das portas da afirmação da sua grande generosidade
garganta!... no gesto amplo da mão de protetor. De-
- E as mais tristes, mais sós, des- testo a proteção, sob qualquer forma.
prezadas de Deus, Se o autor vence, se afirma uma
individualidade, até morrer o padrinho
Que não servem sequer de encos- compartilha dos lucros “Não fora eu...
to ao peregrino, Era desconhecido... Corrigi, melhorei,
Essas são corações que numa an- retoquei, ensinei, dei-lhe um pouco do
gústia santa meu grande cabedal...” Detestável tudo
Amaram como o meu, uns olhos isso.
como os teus!... Quando publiquei o meu pri-
meiro livro o fiz sozinha, consciente,

72
Prefácio? Não!

não me querendo escravizar a tutelas, deiramente individual, intelectual, é


responsabilizando-me pelo meu ato. uma espécie de terceiro sexo: as mu-
Atirei-o amplamente, corajosa- lheres desconfiam de nós, os homens
mente, por todo o Brasil e, esperei, sem têm medo da concorrência... e, todos
sequer uma única apresentação, a não se associam para desviar a atenção do
ser o meu nome desconhecido. nosso valor, ridicularizando-nos, en-
É o que ILKA deve fazer agora. É volvendo-nos de sátiras ou de galan-
o que toda mulher deve fazer quando teios, outra arma indigna como a tática
tem consciência de si mesma, quando do silêncio.
se promete um esforço continuado, A literatura do boudoir, que tan-
perseverante, em busca de uma nesga to seduz a mulher, é o meio de afastá-
da Beleza imortal. -la docemente... E ela não entende ou
Não se trata de uma mulher vul- prefere não entender, espreguiça-se
gar e não devo antecipar a emoção dos languidamente às frases alambicadas
leitores dessa vigorosa poetisa ainda dos D. Juan – almofadinhas da litera-
menina. tura – e se deixa ficar na inconsciência
A mulher, para conquistar o lu- da inatividade mental, estendendo as
gar a que tem direito, o lugar que é mãos para mais fortes algemas...
muito seu e que foi usurpado pela pre- A mulher intelectual é uma pre-
potência masculina aliada à submissão cursora: tem de ser ousada, tem de ser
inconsciente, feminina; usurpado pelo heroína, tem de sacrificar toda a sua
atentado ao seu desenvolvimento men- vida a vencer dificuldades, a tropeçar
tal na inação da sua atividade cerebral em barreiras incalculáveis.
e no jugo do trabalho doméstico (obri- Da tutela do Pai passa para a tu-
gatório) só para o sexo feminino, - a tela do Marido... não se falando da so-
mulher tem de reagir, com todas as for- ciedade que não larga a presa.
ças, contra o meio ambiente: família, Se tem talento de verdade encon-
sociedade, opinião pública, preconcei- tra centenas de candidatos a diretores
tos de toda espécie, e tem necessidade espirituais...
de vigor, de heroísmo, de personalida- E a sua mente se vai alargando
de para vencer todos os entraves e, bri- ao contato das experiências amargura-
lhar, - (quand même) as muralhas se- das e as responsabilidades se multipi-
culares da escravidão social, mormente cam num crescendo assombroso, e, são
para o sexo frágil que por ser frágil é o tantas que as lágrimas se misturam às
mais sobrecarregado... glórias, numa apoteose dolorosa de So-
No nosso país, a mulher verda- nhos e de duelos de vida ou de morte!...

73
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

Eis quanto te aguarda, minha lada evolutiva.


ILKA. Atravessamos uma época extra-
Sê forte. Procura vencer. ordinária de transformação social e o
Não te deixes esmagar como tan- Artista tem de procurar, nesse caos, o
tas outras. Não deixes que te sepultem fio de Ariadne, tem de encontrá-lo, que
a inspiração. Não consintas que macu- se constituiu guarda avançada dos mis-
lem a tua Musa. térios sagrados dos iniciados da beleza
De todos esses montões de livros imortal, dos iniciados da perfeição in-
editados a cada hora – só ficam aqueles definida...
escritos dentro da alma, aqueles ilumi- É mutilada a obra de Arte quan-
nados na flama dos grandes e fecundos do o Artista sucumbe desviando-se por
sacrifícios, nascidos da vida interior; encruzilhadas adrede preparadas pelos
só conseguem penetrar os portais de reacionários, pelos escribas da frater-
outras gerações os livros escritos com nidade humana, pelos mercadores dos
o suor do nosso coração, com as má- templos... Por isso, CRISTO, no gesto
goas da alma – se os animou um desejo de os enxotar, indicou um atalho nas
maior, uma ânsia incontida, um anelo obras de Arte renovadora e grande...
de perfeição e beleza. Queres ver, minha ILKA, um
Tens de cultivar dentro do peito exemplo? D’ANNUNZIO tem o mérito
um Ideal, qualquer que ele seja. de haver procurado uma saída para o
Pois bem, minha ILKA, a Arte, seu anseio de liberdade, de infinito. Er-
como tudo, tende a uma forma inédita. rou. Não é nos pequeninos FIUME que
Os grandes iniciados das ideias está solução para as tragédias da vida,
modernas ensinam-nos que, doravan- nem é nessas conquistas locais que se
te, é bem mais ampla a missão do Ar- encerram as grandes verdades.
tista. É preciso se eleve ele até se cons- O campo de ação é muito mais
tituir em canal por aonde deve jorrar a vasto, não pode ser restringido à noção
linfa bendita da Beleza, mas, também, da pátria ou da família. O Artista deve
é necessário se liberte de escolas e sec- ter a intuição da Unidade porquê tem
tarismos para a amplitude de horizon- de penetrar a DOR UNIVERSAL.
tes vastos como vasto é o lampadário A solução das grandes verdades?
de esperanças dos idealistas do século Procura-a nas injustiças huma-
XX. nas. Procura-a nos soluços das mães
A ARTE é renovadora, é rebelde, miseráveis que perdem os filhos devo-
é livre, é construtora, é, em todos os rados pelos cães policiais das fábricas...
tempos, um surto formidável na esca- ou estraçalhados entre os dentes das

74
Prefácio? Não!

engrenagens das máquinas. canta a DOR UNIVERSAL?


Procura-a na ociosidade farta e Perscruta a Dor em todos os sen-
na sociedade da miséria. tidos. Encontrarás a libertação.
Procura-a nas arcas entupidas Crescerá, sobre a tua cabeça an-
dos ricos e nas enxergas nuas dos cor- gélica, a auréola dos Iniciados...
tiços imundos. E viverás na memória dos Artis-
Procura-a nos cárceres onde o tas, dos tristes e dos oprimidos.
frio gargalha retalhando as carnes de Não te preocupes com as glórias
criaturas e para onde vão crianças ficar efêmeras, com as palmas das multidões
em contato com degenerados e mons- inconscientes.
tros para aprender a torpeza e a barba- O Artista prefere ser incompre-
ridade e a revolta inconsciente. endido isolando-se da vulgaridade...
Procura-a na exploração do ho- O Artista deve ter individualida-
mem pelo homem, na escravidão so- de própria, viver fora da sua época, ser
cial da mulher, no trabalho da criança, estrangeiro no seu próprio país, sonhar
no olhar dos garotinhos esfarrapados, uma humanidade sempre maior em
viciados, cigarro à boca, entrecortada a vista de porvir cada vez mais vasto.
fumaça pelos nomes pouco edificantes. Não falo, ILKA, aos teus 16 anos:
Procura-a no anseio das almas falo à alma da Artista, à sensibilidade
nobres, nos surtos dos poetas a escalar feminina, à tua precocidade assombro-
o Infinito, nas nossas aspirações trans- sa.
cendentais, nos sonhos dos precurso- Perdoa-me. É o desalento? É a
res, no lirismo dos corações enamora- Dor que te venho abrir no peito em
dos do Ideal. novas cicatrizes como aquelas cantadas
Mas, revolve a Dor, minha ILKA. nos teus lindos versos?
Não há arte sem muita Dor! Não sei, minha ILKA, é a Vida...
A Dor é a grande genetriz!... é a Arte...
Depois, verás como cresceste Vês como fizeste mal em exigir o
dentro de ti mesma. meu prefácio?
A grande Dor é o privilégio, a Já é a linguagem da Madrinha...
compensação e a benção dos Artistas. Deixo-te, filhinha espiritual. Se-
E, se hás de ficar pelas encruzi- gue o teu caminho, refugia-te na so-
lhadas colhendo os suspiros impercep- lidão da tua alma, ouve as tuas vozes
tíveis das borboletas que rasgaram as interiores e lembra-te de que só há um
asas num espinho de roseira, - colhe entrave para os nossos voos, - é a im-
a grande Dor, penetra a Dor humana, possibilidade mental de voar mais alto.

75
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4

Beijo-te com o respeito com que


se surpreendem as Sacerdotisas da Be-
leza orando as contas dos seus poe-
mas...
Salve!
És mais uma grande Dor entre
as muitas dores que soluçam dentro de
mim mesma...

São Paulo, 1923

Maria Lacerda de Moura

Maria Lacerda de Moura foi uma das mais notórias anarquistas brasileiras, uma
das primeiras mulheres a discutir a emancipação feminina no país.

76
O Carnaval
Rafael Barrett


U ma máscara, sobre outra” disse Shakespeare. É necessária
uma dupla proteção para arriscar-se a ser sincero. O Carnaval é, principalmente,
a festa da sinceridade. Durante alguns dias somos todos somos o mais franco que
conseguimos, a ponto de cair no descaramento; falamos quase tudo o que pen-
samos; atrevemo-nos a parecer loucos, isto é, a parecer que somos; aliviamo-nos
de doze meses de hipocrisia. Privilégio admirável! É-nos permitido correr, cantar,
gritar e rir à vontade, e a vestir-se como quiser. Suprime-se a rotina, a convenção
correta, a metade das farsas sociais; cura-nos do terror mais vil, o terror do ridícu-
lo, congratulamo-nos com o grotesco, abre-se o ferrolho da fantasia, tornamo-nos
espontâneos, improvisamos uma espécie de segunda inocência. É um momento de
liberdade, um ensaio de uma vida melhor e futura; um relâmpago. Logo se retorna
ao fundo cinza do velho costume. A alegria não é desse mundo. Somos bestas as-
tutas; somos novamente hipócritas: defendamo-nos! Rejeitemos o júbilo: sejamos
cautelosos em implementar as soluções de nossa razão. Ordem! Ordem! Não há
nada tão anarquista como o bom senso.
“O ano todo é Carnaval”; um Carnaval triste e sórdido. Perante o mestre, o
chefe, o juiz ou o instrumento de nossa ambição, fazemos a comédia da servidão e
da intriga. Os mais fortes a fizeram: Bonaparte, o soberano vindouro de uma corte

78
O Carnaval

cujo esplendor assombrou a Europa, fez verdade. É a época em que se triunfa e


a corte à amante de Barras. Façamos o em que se estremece, em que os mari-
grande bloco dos “arrivistas”. E aqueles dos descobrem sua desgraça e as feias
que alcançaram, sempre a caráter, mu- confessam seu amor. O papelão não se
dam de careta. “Perdoe meu talento”, ruboriza. Mulheres silenciosas e des-
imploram-nos. É a farsa da modéstia, prezadas, que não tendes outra beleza
o medo da inveja. E o orgulho, ou seja, que a de seus olhos magníficos, outro
o valor daqueles que se negam a fingir, tesouro do que dois diamantes encrava-
é o que sucumbe, não aos ruidosos gol- dos, sede efêmeras huris sob a máscara.
pes do destino, mas ao surdo roer do Sede somente vossos olhos; somente
medíocre, à infecção dos homens mi- os buracos sombrios onde desponta a
cróbios. Examinai, diante do espelho, alma nua... somente o mistério.
as dobras de nossa máscara de carne. Assim o Carnaval, em sua fugaz e
Não é a velhice que abre as rugas do frenética agitação, faz emergir à super-
rosto; é o gesto variado e contínuo da fície do mundo a realidade e o mistério,
mentira humana. Nem a idade e nem que nunca se desunem. É símbolo do
a dor são capazes já de tornar respeitá- carnaval da natureza, carnaval trágico,
vel a efígie dos que vivem do ódio e do em que o fundo inacessível é coberto a
engano. O carnaval celebra as férias da cada século com um disfarce diferen-
fisionomia. Atrás da máscara, a face é te. Ontem foi a ideia, foi a chama, foi o
devolvida ao verismo da solidão ou do átomo, foi o capricho dos deuses irri-
sonho. tados. Hoje é a sede infinita do núme-
Máscara: escudo. Mascarados: des- ro. Nossas mãos trêmulas se cansam de
carados. O repugnante e o tímido se buscar. A Isis se esconde sob um véu
vingam: convertem-se no enigma que que renasce sem trégua, e estremece-
talvez atraia, no “muro atrás do qual mos com a ideia de que nós tocamos os
está ocorrendo alguma coisa”. O lepro- despojos de um Carnaval falecido, os
so, se tiver imaginação, seduzirá a vir- restos de um festim esquecido, as cin-
gem. É o momento de ocultar o corpo zas de uma festa apagada. O Universo
para mostrar o espírito. É o instante da nos aparece como uma imensa máscara
vingança, em que se murmura ao ouvi- por cujos buracos negros olha a morte,
do do próximo a piada mais terrível: a e não contém mais do que o vazio.
Rafael Barrett (1876-1910) foi um anarquista espanhol radicado no Paraguai.
É tido como um dos principais nomes na formação da literatura paraguaia. Texto
originalmente publicado em La Razón, de Montevideo, no dia 24 de fevereiro de
1909. Traduzido para o português por Clayton Peron.

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