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Arq Neuropsiquiatr 2001;59(2-A):230-237

DINÂMICA FAMILIAR DE CRIANÇAS AUTISTAS


Maria Helena S. Sprovieri1, Francisco B. Assumpção Jr2

RESUMO - Avaliamos 15 famílias de autistas, 15 de portadores da síndrome de Down e 15 de filhos saudáveis,


com indivíduos na faixa etária de 5 a 15 anos. Os pais (ambos os genitores) desses três grupos familiares
foram avaliados quanto ao à dinâmica familiar, visando relacionar tais sintomas com o funcionamento de
famílias de autistas, em estudo comparativo. Detalhou-se a família, o quadro autístico, a família do autista, a
família e a saúde mental, suas limitações e dificuldades ao longo do ciclo vital. A pesquisa de campo foi
realizada mediante o uso dos instrumentos de dinâmica familiar da Entrevista Familiar Estruturada,
(Carneiro,1983). Os dados coletados foram comparados estatisticamente. Considerando a população estudada
(n = 45 famílias) constatou-se que as famílias dos autistas e portadores da síndrome de Down são dificultadoras
da saúde emocional dos elementos do grupo, constituindo as dos autistas maior porcentagem. Concluimos
que a dinâmica familiar do autista é dificultadora da saúde emocional dos membros do grupo, seus pais
apresentam estresse, sendo as mães com scores mais significativos mas semelhantes nos outros dois grupos.
PALAVRAS-CHAVE: família, dinâmica familiar, autismo.

Family dynamics of autist children


ABSTRACT - We studied 15 families with autists, 15 with Down’s syndrome and 15 asymptomatic children.
Patients’ age ranged from 5 to 15 years-old. The parents of these three families’ groups were appraised in
regard to their family dynamics, to relate those symptoms to the functioning of an autist family, in a comparative
study. Details were provided of the families, the overall autistic features, the autist’s family, the family and the
mental health, their limitations and difficulties throughout the vital cycle. An attempt was made to locate the
factors that aid the family in hindering the healthy emotional development of its members. The field research
was achieved by use of the instruments of the Family Dynamics Evaluation, (Carneiro, 1983). The data gathered
were statistically compared. Considering the family population studied (n = 45), we found that the autists’
families and victims of Down’s syndrome made it difficult to sustain the emotional health of group members.
We conclude that the autist’s family dynamics caused difficulties to the emotional health of the group’s
members.
KEY WORDS: familly, familiar relationship, autism.

Segundo Gilberg1, o autismo é considerado atu- dos subsistemas, dependendo de seu tamanho e da
almente como uma síndrome comportamental com definição de papéis. É através das relações familia-
etiologias múltiplas em consequência de um distúr- res, que os próprios acontecimentos da vida rece-
bio de desenvolvimento, sendo caracterizado por bem seu significado e, através dele são entregues a
déficit na interação social visualizado pela inabilida- experiência individual3. É ela, portanto, unidade bá-
de em relacionar-se com o outro, usualmente com- sica de desenvolvimento das experiências das reali-
binado com déficits de linguagem e alterações de zações e dos fracassos do homem. Sua organização
comportamento. No DSM-IV2 é relatado como qua- e estrutura não são estáveis. A sociedade fornece
dro iniciado antes dos três anos de idade, com diretrizes para o seu funcionamento a fim de que
prevalência de quatro a cinco crianças em cada ela lhe seja útil4. A família, portanto, é uma rede
10 000, com predomínio maior em indivíduos do complexa de relações e emoções pela qual perpas-
sexo masculino (3:1 ou 4:1) e decorrente de vasta sam sentimentos e comportamentos sendo a sim-
gama de condições pré, peri e pós-natais. ples descrição de seus elementos de uma família,
A família, sociologicamente, é definida como um insuficiente para transmitir a riqueza e complexida-
sistema social, dentro do qual podem ser encontra- de relacional de sua estrutura.

1
Assistente Social, Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Terapeuta familiar; 2Psiquiatra,
Professor Livre Docente do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Diretor do
Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP.
Recebido 15 agosto 2000, recebido na forma final 21 novembro 2000. Aceito 24 novembro 2000.
Dr. Francisco B. Assumpção Jr. - Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP - Rua Ovídio Pires de Campos s/n - 05403-900 São Paulo SP - Brasil.
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A vida de uma família é um longo ciclo de even- também apresentam um crescimento em função
tos desenvolvimentais: que abrange diferentes ge- dessa vivência”.
rações e vários contextos histórico-sócio-culturais5. O autismo leva o contexto familiar a viver ruptu-
Assim, em nosso caso, ela constitui instituição soci- ras por interromper suas atividades sociais normais,
al significativa, da qual buscamos entender a transformando o clima emocional no qual vive. A
interação e a dinâmica frente ao autismo, uma vez família se une à disfunção de sua criança, sendo tal
que a síndrome traz consequências para o portador, fator determinante no início de sua adaptação. Pa-
interferindo na sua posição social e no seu estilo de ralelamente, torna-se inviável reproduzir normas e
vida, em seus relacionamentos internos e nos víncu- valores sociais e, consequentemente, manter o con-
los com o mundo externo. texto social. A família sente-se então frustrada e di-
A definição de autismo, corrobora que ele com- minuída frente ao meio, com os pais e a criança pas-
promete seriamente o grupo familiar quando este sando a ser desvalorizados11. Isso porque a limita-
passa a viver com o problema. Usualmente, as rela- ção em um elemento afeta não apenas os relaciona-
ções familiares são naturalmente afetadas quando mentos entre o “doente” e os demais, mas também
um elemento de seu grupo apresenta uma doença6. entre os outros elementos do grupo. As relações fa-
As limitações vivenciadas frente à doença levam-na miliares são então afetadas com a presença de uma
a experimentar alguns tipos de limitação permanen- criança autista, e a comunicação conjugal torna-se
te, que são percebidos em sua capacidade adaptativa confusa aparecendo agressividade12. Ressalta-se as-
sim a importância de um posicionamento pautado
ao longo do desenvolvimento. Assim, o autismo do
pela aceitação realística da situação, uma vez que o
filho coloca os pais frente a emoções de luto pela
medo e a incerteza passam a ser emoções comuns
perda da criança saudável que esperavam. Apresen-
aos pais de uma criança problema13.
tam, por isso, sentimentos de desvalia por terem sido
Tendo em vista o exposto sobre o autista e sua
escolhidos para viver essa experiência dolorosa7.
família, o objetivo deste estudo foi avaliar se as fa-
Atualmente, essas premissas sobre famílias de
mílias de pacientes autistas apresentam dificulda-
autistas com interações negativas e consequências
des maiores na dinâmica familiar, uma vez que a
danosas têm sido desafiadas de tal maneira que têm
hipótese habitual é de que famílias com membros
motivado mudanças nos conceitos sobre elas. A
portadores de autismo apresentam alterações signi-
mudança mais significativa nesses conceitos refere- ficativas em sua dinâmica familiar.
se à rejeição, da teoria dos pais serem os agentes
causadores da deficiência 8. Estudos refutam ainda MÉTODO
a culpabilidade dos pais relacionada ao autismo, Para este estudo tomou-se como família o núcleo cons-
passando esses a serem vistos, e possivelmente re- tituído por pais e irmãos, o que se denominou de família
conhecidos, como parceiros necessários para o tra- nuclear. Essas famílias foram encaminhadas ao acaso, por
tamento e desenvolvimento das crianças. Essas no- diferentes profissionais e, assim, a amostra foi variada
vas premissas resultam de uma nova visão de famí- quanto à procedência, nível sócio-econômico e cultural.
lia e maior apreciação do seu papel no norteamento O estudo foi desenvolvido inicialmente com a seleção
das dinâmicas pessoais de crianças, incluindo as de três grupos:
Grupo A - 15 famílias, cada uma com uma criança com
autistas. Nessa nova visão das famílias verifica-se ou
síndrome autística diagnosticada segundo os critérios do
reconhece-se a contribuição positiva das pessoas DSM IV, no Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adoles-
deficientes para suas famílias, descrevendo-se estu- cência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
dos empíricos e breves 9,10, nos quais se relatam evi- da Universidade de São Paulo, na faixa etária de 5 a 15
dências de contribuição positiva, tais como: aumen- anos. A amostra foi selecionada a partir de ambulatório
to da felicidade, maior amor, laços familiares fortifi- especializado do projeto “Distúrbios do Desenvolvimen-
cados, fé religiosa fortificada, rede social expandi- to”, com as crianças sendo escolhidas aleatoriamente du-
da, maior conhecimento sobre deficiências, apren- rante o dia de atendimento. Foi sempre selecionada, para
dizado em tolerância e sensibilidade, aprendizado a avaliação familiar, a 5a. criança a ser atendida. Em caso
de não-aceitação, foi indicada a criança seguinte na or-
em paciência, maior desenvolvimento de carreira,
dem de atendimento.
crescimento pessoal, domínio pessoal e o fato de
Grupo B - 15 famílias, com uma criança portadora de
viver a vida mais calmamente. Notam ainda9 que síndrome de Down diagnosticada clínica e laboratorial-
“crianças deficientes contribuem positivamente para mente, na faixa etária de 5 a 15 anos. As crianças foram
as suas famílias, e que, algumas famílias não somente encaminhadas de forma aleatória por profissionais da área,
sobrevivem com a experiência da deficiência, mas a partir de seus serviços de atendimento.
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Grupo C - 15 famílias, cada uma com uma criança belecimento dos primeiros contatos que a definiam como
assintomática, na faixa etária de 5 a 15 anos. As crianças participante da pesquisa, com todos os elementos do gru-
foram encaminhadas por professores ou conhecidos, de po presentes.
maneira aleatória, sem que houvesse relacionamento fa- As famílias dos três grupos que formaram a amostra
miliar com a criança identificada. da pesquisa foram estudadas pela aplicação do referido
Todas as famílias foram informadas sobre a realização instrumento de avaliação, privilegiando as categorias já
da pesquisa, mostrando-se dispostas a participar volun- descritas, o que permitiu observar-se um padrão de funci-
tariamente do estudo. onamento familiar.
As famílias que compuseram a amostra foram avalia- Após tais avaliações, os dados foram comparados atra-
das quanto ao funcionamento familiar, através da Entre- vés do teste χ2 visando-se verificar semelhanças ou dife-
vista Familiar Estruturada (EFE) 14, instrumento de pesqui- renças entre os grupos estudados no que se refere a essa
sa construído e validado para o Brasil. Mediante sua apli- dinâmica familiar. Esse teste foi escolhido em função de
cação identificam-se os padrões de funcionamento fami- tratar-se de estatística não-paramétrica com variável
liar. Quanto maior o número quantificado na escala, pior ordinal (segundo nível de mensuração) na qual a variável
o funcionamento na categoria avaliada. A EFE permite é somente ordenável e não quantitativa. Assim, foram
análise e quantificação das categorias comunicação, re- estabelecidas correlações entre os conflitos e as perturba-
gras, papéis liderança, conflitos, manifestação de ções na dinâmica familiar da criança autista, da portado-
agressividade, afeição física, individualização, integração, ra da síndrome de Down e da criança assintomática. Des-
auto-estima, interação conjugal e interação familiar sa forma tentou-se comprovar empiricamente a hipótese
facilitadora de saúde emocional nos seus membros 14. O proposta neste estudo.
instrumento EFE foi aplicado em cada família após o esta-
RESULTADOS
Tabela 1. Autistas x famílias assintomáticas. A amostra estudada apresentou as seguintes ca-
racterísticas:
Dinâmica
Na população com crianças autistas, os pais apre-
Família Dificuldade Facilidade Total sentaram idade média de 42,26 anos (± 6,58); as
mães, 39,33 anos (± 7,02); e os filhos autistas, 11,86
Autista 13 2 15
anos (± 4,38). Cinco famílias representaram a nova
Assintomática 7 8 15 pequena burguesia, oito a pequena burguesia tra-
Total 20 10 30 dicional e duas o subproletariado, conforme a clas-
sificação de Lombardi et al.15.
χ20 = 5,4; (significativo; α = 0,05)
Na população com crianças portadoras de
síndrome de Down, os pais apresentaram idade
média de 41,44 anos (± 6,76); as mães, 40,26 anos
Tabela 2. Autistas x síndrome de Down.
(± 6,65); e as crianças, 9,46 anos (± 3,32). Sete fa-
Dinâmica mílias representaram a nova pequena burguesia, cin-
Família Dificuldade Facilidade Total co a pequena burguesia tradicional e três o
subproletariado 15.
Autista 13 2 15 Na população com filhos assintomáticos a idade
Síndrome de Down 14 1 15 média dos pais foi 40,53 anos (± 12,89); das mães,
38,8 anos (±12,04); e dos filhos, 11,04 anos (±3,57).
Total 27 3 30
Nove famílias representaram a nova pequena bur-
χ20= 0,37; (não-significativo; α = 0,05) guesia, cinco a pequena burguesia tradicional e uma
o subproletariado 15
Os conceitos de nova pequena burguesia, peque-
Tabela 3. Síndrome de Down x assintomática.
na burguesia tradicional e subproletariado são pro-
Dinâmica venientes da escala de Pelotas 15 e significam ori-
gens e procedência mais que nível econômico. As-
Família Dificuldade Facilidade Total
sim representam respectivamente grupos que tra-
Síndrome de Down 14 1 15 balham em comércio ou prestação de serviços, pos-
Assintomática 7 8 15 suidores de formação universitária; grupos que tam-
bém trabalham em comércio ou prestação de servi-
Total 21 9 30
ços com conhecimento de seu ofício porém sem for-
χ20 = 7,778; (significativo; α = 0,05) mação universitária e, finalmente grupos dedicados
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a serviços eminentemente domésticos. Consideran- Por outro lado, os itens totalmente comprometi-
do-se essa classificação não houve diferenças signi- dos cujos escores são iguais a zero (uma vez que
ficativas no que se refere à idade dos pais e dos fi- não se observam essas funções), referem-se a:
lhos, bem como ao grupo social das famílias estu- Interação conjugal correspondendo ao processo
dadas. de trocas relacionais estabelecidas entre marido-
As famílias com crianças autistas são significati- mulher.
vamente menos facilitadoras de saúde emocional Individualização caracterizada pelas dificuldades
que famílias com crianças assintomáticas (Tabela 1). na individuação e existência de comportamentos
Isso porque o instrumento utilizado se apresenta de inibidores do crescimento pessoal.
maneira que as tarefas propostas são realizadas, ou Integração com a possibilidade de complementa-
não, de acordo com as normas consideradas como ção das necessidades de cada um através das ativi-
satisfatórias ou insatisfatórias no que se refere as dades do parceiro.
categorias avaliadas. Auto-estima caracterizada pela própria auto ima-
As famílias com crianças autistas e portadoras da gem, diminuída pela presença do filho comprome-
síndrome de Down têm, ambas, dificuldades na pro- tido.
moção de saúde emocional (Tabela 2).
As famílias portadoras de paciente com síndrome DISCUSSÃO
de Down são menos facilitadoras de saúde emocio- A família, quando tem um elemento-problema,
nal, quando comparadas com famílias de crianças não cumpre com seu papel social de educar indiví-
assintomáticas (Tabela 3). duos para participar da sociedade segundo suas
No instrumento utilizado (EFE), os itens positi- normas. Isso porque ela é uma instituição social cri-
vos, embora prejudicados (uma vez que , mesmo ada para formar indivíduos para essa mesma socie-
qualitativamente comprometidas, observa-se a pre- dade segundo suas regras que, hoje, em uma socie-
sença das funções estudadas), nas famílias compro- dade pragmática, contém dados de seleção como
metidas (com autistas e portadoras de síndrome de eficiência e eficácia. Neste estudo verificou-se que
Down) são: as famílias com um elemento deficiente dificultam
Comunicação, definida como qualquer compor- o desenvolvimento emocional sadio de seus outros
tamento verbal ou não verbal manifesto pelo emis- membros, mesmo quando ela se compõe somente
sor em presença de um receptor, caracterizando-se de pais e filho doente uma vez que dificulta naque-
quatro distúrbios: incongruência quando os níveis les o desenvolvimento de seus papeis de pais e
de relato e ordem não se reforçam mútuamente, conjuges.
confusão quando são utilizadas frases incompletas,
A abordagem sistêmica enfatiza que a doença
estilo obscuro, mudanças bruscas de assunto e lin-
afeta a família enquanto unidade (Huth, 1978) com
guagem pouco explícita que dificultam a compre-
o continuo intercâmbio entre seus membros distri-
ensão das mensagens; sem direcionalidade adequa-
buindo as responsabilidades de disfunção ao longo
da quando não são sempre dirigidas às pessoas do
do sistema. Assim, ela tende a responder como uma
grupo familiar; sem carga emocional adequada
unidade a doença, em um de seus membros, sendo
quando sua transmissão é feita sem que sua carga
seus membros afetados em grau variado pela
emocional seja manifesta.
sintomatologia do paciente 16. A resposta de seus
Papéis, corrrespondendo ao desempenho e cum-
familiares, concomitantemente também tem um
primento das funções familiares essenciais relacio-
efeito no paciente. Assim, a família vivendo acentu-
nadas a posição de marido, mulher, pai, mãe, filho,
ado estado de desequilíbrio devido às dificuldades
irmão, irmã.
vivenciadas frente a doença sofre, como consequên-
Liderança, carcterizada pelo uso diferenciado da
cia, situações de tensão. Passa então a mostrar
autoridade de maneira fixa ou alternada com opor-
consequências nas suas relações, com o sistema fa-
tunidades aos diferentes membros da família.
miliar dificultando a saúde emocional de seus mem-
Manifestação de agressividade com a expressão
bros, conforme pudemos observar neste estudo.
de sentimentos de raiva e hostilidade passíveis de
expressão. Dependendo do estágio de desenvolvimento que
Afeição física caracterizada por comportamentos ela estiver atravessando por essa ocasião, a necessi-
não verbais manifestos pelos diferentes membros dade de mudança em sua estrutura provocará aba-
do grupo. los que serão traduzidos em crise de maior ou me-
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nor proporção. Para que essas mudanças sejam seus recursos para solucionar os problemas do gru-
satisfatórias, deve haver flexibilidade do grupo. A po familiar, ao mesmo tempo em que se preocu-
deficiência de um filho dificulta tais mudanças pe- pam com as necessidades emocionais de cada mem-
las limitações do paciente, por suas dificuldades de bro. Mostram flexibilidade e liderança alternada.
exercer seu papel no grupo e pelas solicitações de Esses aspectos não foram observados na maioria das
seu problema. Assim temos uma família com limites famílias avaliadas nesta pesquisa.
para proceder a transformação necessária 17, fato Nas famílias de pais de crianças autistas avalia-
que observamos em nosso estudo. das neste estudo observou-se comunicação pouco
A adoção de determinados padrões de compor- clara e também menos investida de carga emocio-
tamento e atitudes com relação aos aspectos da vida nal adequada. A liderança exercida, sobretudo pela
passam a ser subordinados quase que exclusivamen- mãe, é fixa e autocrática. Há pouco espaço para a
te à doença, conferindo-lhe característica de super- expressão da agressividade e afeição física, pouca
organização, a qual leva ao estabelecimento de pa- individuação dos membros e integração comprome-
drões familiares rígidos impossibilitando o processo tida. A relação conjugal não é gratificante, com os
de desenvolvimento individual e familiar. Os proble- “scores” obtidos em nosso trabalho através do EFE,
mas identificados estão vinculados aos cuidados iguais.
exigidos pelo paciente. O envolvimento da família Neste estudo, pudemos observar que as famílias
para o seu tratamento, a frequência a outras insti- com pacientes autistas, são significativamente
tuições, o tempo da mãe fora de casa, muitas vezes dificultadoras da saúde emocional dos membros do
exigindo que outras pessoas exerçam seu papel, co- grupo, com a doença crônica tornando-se um sinto-
laboram para a desorganização do sistema. Assim, ma que acomete uma família de forma permanen-
ela interage mais externa que internamente, viven- te. Tal sintoma expressa-se através das dificuldades
do assistida e muitas vezes controlada, por outra enfrentadas frente a papéis, comunicação, lideran-
instituições. ça, manifestação da agressividade e afeição física
Ressentimento, irritação pelo fardo que a crian- Como já observado, as mudanças adaptativas da
ça representa e raiva são reações possíveis, alusivas estrutura familiar ocorrem em função de sua orga-
tanto à punição quanto às atitudes de ignorar e re- nização interna e de sua posição externa na socie-
jeitar a criança doente. As reações ansiógenas e dade. Quando isto tais mudanças se dão em respos-
depressivas moduladas por sentimentos de hostili- ta ao contexto social, os vínculos afetivos podem
dade tanto com relação à criança quanto aos outros ficar enfraquecidos, a configuração familiar pode
familiares também se fazem presentes6. A perda so- oferecer modelos de fracasso pessoal ou social. Por-
frida pode ser não somente de pessoas mas de am- tanto, pode-se considerar que a adaptação ocorre
bições, habilidades ou ideais e expectativas que ne- em função do potencial de integração da personali-
cessitam ser abandonados pelos familiares 18. Os re- dade da pessoa e do caráter psicológico do seu gru-
cursos da família ficam diluídos pela vivência de per- po familiar. Essas dificuldades, decorrentes da pre-
da de outros projetos familiares que o problema do sença do paciente autista que, por suas dificuldades
doente inviabiliza ou posterga. As vivências de per- de integração, dificulta o processo relacional de sua
da se repetem ao longo do ciclo vital dificultando a família, interferindo em sua organização interna e
interação familiar, dado observado claramente em externa. Assim, o sistema familiar vive em perma-
nosso estudo. O fracasso devido a uma perda, as nente crise, sem perspectivas de mudança em fun-
necessidades de adaptação constante e de mudan- ção das dificuldades de desenvolvimento de um de
ça de papel estão implícitas, nos problemas advindos seus elementos que apresenta um quadro de doen-
doente. A família não consegue lidar com essas si- ça crônica e incapacitante. Tais alterações requerem
tuações o que a leva a disfunções. Dificulta assim, mudanças no desempenho de papéis e de regras,
como já mencionado, o desenvolvimento emocio- mudanças organizacionais e adaptativas relaciona-
nal saudável de seus membros. A auto-estuima, con- das com alterações na composição familiar. A famí-
forme vimos, encontra-se então comprometida. lia, diante da doença crônica, fracassa em comple-
As famílias funcionais empregam efetivamente tar etapas de desenvolvimento 19. Esse dado, tam-
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bém foi encontrado ao se estudar a dinâmica fami- muitas vezes não percebendo esse distanciamento
liar de autistas e portadores da síndrome de Down. e tornando as funções do sistema disfuncionais.
A família é uma instituição sólida da sociedade, Em nosso estudo, as famílias assintomáticas fo-
a qual deve proporcionar a seus elementos suportes ram consideradas mais facilitadoras da saúde emo-
emocional, econômico e social, que possibilitem seu cional. A comunicação nessas famílias é mais clara.
desenvolvimento e sua inserção social. Para realizar A liderança se mostra flexível. Os membros da famí-
essa tarefa dispensa cuidados a seus elementos. lia podem expressar sua agressividade e, ao mesmo
Quando um de seus elementos é doente a tensão tempo, ter espaço para a afeição física com a troca
no sentido de compreender os processos normativos de carinho. A individualização de cada membro está
e atendê-los é grande, ou seja, o funcionamento das presente, sem comprometer a integração do grupo
famílias sob condições incomuns de tensão leva-as familiar. O casal tem auto-estima adequada e se di-
à desorganização, não facilitando a saúde emocio- ferencia na interação conjugal. Enfim, nestas famíli-
nal e não favorecendo a inserção social 20. Essa ca- as existe a possibilidade de crescimento tanto indi-
racterística também foi verificada nesta pesquisa. vidual quanto familiar e, nelas, os pais têm maior
A família é, portanto, profundamente afetada condição de resgatar experiências não-vividas atra-
pela ocorrência de uma doença crônica em um de vés da educação de seus filhos e por eles são estimu-
seus membros. Embora ela tenha como função me- lados ao corresponderem às expectativas do social.
diar a tensão de seus membros, um nível de tensão As manifestações desses pais ilustram que essas
grande e prolongado pode destruir sua capacidade famílias com crianças assintomáticas mostram rela-
de funcionar como anteparo para eles, conforme ções funcionais e positivas. A relação apresenta tro-
observou-se ao longo deste texto. cas entre quem ensina e quem aprende, significan-
Pudemos observar que as famílias com portado- do crescimento. Existem sentimentos positivos de
res da síndrome de Down também dificultam a saú- autovalorização. Os limites de sua estrutura se fa-
de emocional, uma vez que a presença de um defi- zem claros 22.
ciente no grupo familiar faz com que esse grupo A flexibilidade está presente nessas famílias, a
passe a sofrer discriminações, gerando tensões que comunicação é clara, a manifestação da agressivi-
interferem na interação familiar. Dessa maneira, a dade ocorre e a expressão física do afeto é trocada
deficiência mental torna-se também um problema com naturalidade, conforme traduz os resultados da
da família, da comunidade e da sociedade, como avaliação dos dados da pesquisa.
ponderado anteriormente.
As famílias disfuncionais valorizam o mito da pre-
Os dados por nós obtidos confirmam as afirma- servação do status quo não facilitando as mudan-
ções de Herz 21, que refere que em situação de ten- ças. Os talentos dos membros individuais são geral-
são prolongada, com o intuito de se proteger da mente suprimidos e, quando planejam algo em con-
intensa ansiedade, a família se bloqueia para a co- junto, expressam grande homogeneidade de inte-
municação, expressão, e verbalização de afetos. resse. Os sintomas apresentados por um membro
De acordo com os dados obtidos observamos que podem estar camuflando o comportamento
famílias de autistas e portadores da síndrome de desadaptado de outro 23. O clima é restritivo confor-
Down dificultam o desenvolvimento emocional sa- me percebido por análises procedidas nesta pesqui-
dio dos membros do grupo uma vez que alteram de sa. A comunicação é confusa e há dificuldade de
maneira significativa, conforme observamos no de- abertura para expressar seus sentimentos. A
correr do trabalho, suas funções básicas. agressividade dos elementos do grupo não pode ser
manifestada. A presença de uma criança deficiente
Os comportamentos disfuncionais já citados refe-
limita os movimentos dos elementos do sistema,
rem-se a processos que interrompem a capacidade
constituindo fator de estresse. Como a doença é de
da família de manter adequadamente sequências de
curso constante, favorece disfunções familiares, con-
realização e preenchimento de necessidades de seus
firmando os resultados deste estudo.
membros, comprometendo seu senso de competên-
cia. Os pais têm seu senso de competência afetada, As famílias de autistas vivem continuamente
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sintomáticas porque o problema progride em ter- sociais e tem dificuldades de se organizar, bem como
mos de gravidade. Quanto mais essa criança evolui passa a apresentar uma autoestima comprometida.
e entra em outras etapas evolutivas, mais seus limi- A presença dessas patologias crônicas (autismo e
tes se fazem presentes. A família enfrenta os efeitos síndrome de Down) faz com que, as famílias envol-
de um de seus membros ser permanentemente sin- vidas, sejam dificultadoras da saúde emocional dos
tomático, com deficiências que progridem gradativa- elementos do grupo, conforme pudemos observar.
mente. Os períodos de alívio das exigências ligadas Algumas categorias por nós avaliadas parecem
a doença são mínimos, o que contribui para a famí- mais comprometidas frente ao problema, no que se
lia se disfuncionar. refere à auto-estima (um filho com doença crônica
desvaloriza a família), com a família não contando
As necessidades de adaptação constante e de
com a compreensão da sociedade por esta geral-
mudança de papel estão implícitas. Devido à cres-
mente depreciar as crianças deficientes 27; à integra-
cente demanda de tarefas, os riscos de esgotamen-
ção (um deficiente sempre atrapalha a inserção so-
to e os problemas emocionais são grandes. Os fami-
cial da família) pois conforme Goffman 26 observou,
liares que cuidam do doente se sentem pressiona-
a posição ocupada na sociedade pelas pessoas com
dos e adotam atitudes de controle com os outros
algum tipo de limitação é semelhante a dos grupos
membros da família, contribuindo para dificuldades
étnicos menos privilegiados e a dos grupos religio-
relacionais.
sos minoritários; à individualização (um deficiente
A cada etapa evolutiva aparecem novas vivências impede que os pais cresçam) pois pais de deficien-
de perda, constituindo se problema cíclico. Assim tes sofrem restrições em todos os setores da vida 28;
ressalta-se a importância de um posicionamento à interação conjugal (um deficiente dificulta o siste-
pautado pela aceitação realista da situação 24,25. ma relacional), pois o deficiente impede que os pais
vivam a criatividade e o crescimento, assim como
dificultam o respeito a individualidade dos elemen-
CONCLUSÕES tos do grupo 29.
A partir da análise e discussão dos dados obti- Pudemos observar neste estudo aspectos da di-
dos, acreditamos terem sido abordados pontos im- nâmica familiar dos autistas e portadores da
portantes sobre o assunto, verificando algumas ca- síndrome de Down, que nos permitem concluir que
racterísticas relevantes para a melhor compreensão a família do autista é dificultadora da saúde emoci-
da dinâmica dessas famílias. onal dos elementos do grupo.
O autista tem, como característica de sua pró- Acreditamos que falar dessas famílias é como falar
pria problemática, dificuldade na interação social de todas aquelas que se superorganizam em torno
visualizada pela inabilidade em relacionar-se com o de algum padrão de cronicidade. Seu funcionamen-
outro, característica que traz também problemas de to, associado aos conteúdos específicos que as dife-
conduta. Esse fator reflete-se no ambiente familiar, renciam, apresentam a mesma configuração no que
desorganizando-o e impedindo-o de ultrapassar de se refere à doença como elemento organizador dos
modo satisfatório suas fases evolutivas. Assim, a fa- padrões relacionais. A dificuldade de favorecer a
mília passa a viver em função do doente e de suas saúde emocional se apresenta na medida que estes
exigências, por sua dificuldade em adquirir autono- sistemas não disponham de recursos internos e/ou
mia e pela dependência permanente. Não se pode externos para fazer face á tensão por tempo prolon-
deixar de avaliar tal situação como estressante e gado ou por toda a vida.
dificultadora de verbalização afetiva. O autista e o
deficiente mental, participam de um processo de
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