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Os fatores que articulam um grupo de trabalho: uma leitura da

concepção de Pichon-Rivière*.

Denise Vieira da Silva

Tomamos como referência as contribuições da Psicologia Social de Pichon-Rivière e da


teoria dos grupos operativos, pelo fato de integrar dialeticamente as dimensões:
objetividade e subjetividade; individualidade, grupalidade e estrutura social, o que
imprime ao modelo teórico-metodológico uma amplitude fundamental na
compreensão da complexidade da interação humana no contexto grupal.

Para Pichon-Rivière são três os articuladores centrais de um grupo: a tarefa a realizar,


os vínculos interpessoais a constituir e os papeis, as contribuições de cada integrante a
estabelecer.Esses articuladores operam no processo grupal a partir de variáveis
constantes de tempo, espaço e objetivo comum.

As pessoas, individualmente, têm seus interesses e necessidades, mas é na relação


como o outro, com o grupo, que surge o espaço para gratificação ou frustração dessas
necessidades. É preciso encontrar o elo que as une na realização da tarefa para que
possam se constituir como grupo.

O autor apresenta uma definição que relaciona as três dimensões: “Grupo é um


conjunto restrito de pessoas, ligadas por constantes de tempo e espaço, articuladas
por sua mútua representação interna,que se propõe a realizar de forma explícita e
implícita uma tarefa, que constitui sua finalidade, interatuando através de complexos
mecanismos de assunção e atribuição de papéis”(PICHON-RIVIERE,1988,p. 20).

Os grupos que não funcionam a partir desses critérios podem ser denominados de
série, nos termos sartrianos, ou de “ bandos”. O grupo se torna uma “série” quando as

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pessoas dividem o mesmo espaço, um objetivo comum, mas não há comunicação
entre elas, não há uma articulação interpessoal, não há vínculo, como é o caso da fila
de ônibus, da plateia do cinema. Os “bandos” são os agrupamentos onde as pessoas
se unem pela semelhança, não havendo espaço para o diferente, para o
questionamento. As regras são rígidas e as pessoas que não as cumprem são
excluídas, como observamos na dinâmica de algumas tribos urbanas.

A tarefa do grupo
A tarefa é o conjunto de ações destinadas à consecução de objetivos comuns. É a razão
de ser do grupo, o motivo das pessoas estarem juntas. Essa tarefa pode ser explícita,
objetiva e observável, e, também, implícita constituída pelos medos e ansiedades
que emergem no processamento da tarefa explícita.

A tarefa explícita
A tarefa explícita é expressa através da verbalização oral ou escrita. É conhecida por
todos, é observável, concreta, palpável e gira em torno de um objetivo comum - o
objetivo do grupo. Esse objetivo comum pode ser traduzido em uma missão, meta,
plano de ação, intenção declarada. Na medida em que há o clareamento das
necessidades comuns e complementares a tarefa vai sendo configurada no projeto de
mudança do grupo.

O nível explícito da tarefa é o motivo da constituição do grupo. Todo grupo deve ter
um “porquê” e um “para quê”, ou seja, uma clareza em relação à razão da sua
existência, do “estar junto”. O estatuto e o regulamento da instituição, as funções do
departamento, as atribuições dos cargos são definições insuficientes no sentido da
apropriação plena da tarefa, há que desenvolver um processo de comunicação e
entendimento.

Frequentemente os integrantes de um grupo passam por momentos de


questionamento nos quais algumas perguntas vêm à tona: ... afinal, estamos fazendo
tudo isso para quê mesmo?... onde exatamente queremos chegar? ... somos nós que
devemos fazer? São questões típicas da falta de uma melhor explicitação da tarefa e

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suficientes para criar insegurança nos grupos, inquietude nas pessoas e resistência à
mudança.

A tarefa implícita
A tarefa implícita é dimensão da subjetividade e está relacionada com o processo de
resistência à mudança, conflitos, mitos grupais e sentimentos, que podem se
transformar durante o processo da comunicação, na “ agenda oculta” , ideias que não
são colocadas em discussão. São frases típicas relacionadas com a existência de
conteúdos implícitos nos grupos: - não sei porque, mas este trabalho não está
rendendo... por que estamos competindo tanto? há alguma coisa no ar - não sei o
que é... é impossível o consenso neste grupo.. só eu falo .... êle não se integra,não
participa,... em nossas reuniões conversamos de tudo e não resolvemos nada!

O nível implícito da tarefa caracteriza-se pela existência de medos e ansiedades a


serviço da resistência à mudança dos integrantes. A evitação de conflitos, o receio da
exposição, a dificuldade de enfrentamento dos obstáculos e de assumir o risco de
engajar-se emocionalmente, são atitudes que reforçam e acumulam os conteúdos
implícitos de um grupo.

Apenas por uma questão didática, estamos separando a tarefa explícita da tarefa
implícita, as duas dimensões estão estreitamente relacionadas, atuam juntas num
processo dialético de mútua modificação. Portanto, não é possível desenvolver grupos
operativos, criativos, que utilizam as suas potencialidades, trabalhando apenas a tarefa
explícita ou as duas dimensões separadamente.

A construção do vínculo
O vínculo é um tipo de relacionamento de natureza complexa, pois cada integrante
traz para o grupo a história pessoal permeada de experiências marcantes que
configuram o seu mundo interno. O vínculo se constitui na interação estabelecida
entre os integrantes de um grupo, a partir do entendimento do outro enquanto
diferente, do reconhecimento da existência de necessidades comuns e
complementares e da satisfação recíproca dessas necessidades através dos

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mecanismos de comunicação e de aprendizagem. O resultado é um processo de
desenvolvimento mútuo baseado em sensibilidade e cooperação.

Para haver vínculo é preciso um processo de descentramento, de afastamento do


mundo interno, do “pedestal narcísico” e um caminhar em direção ao outro, podendo
senti-lo e compreendê-lo na sua integralidade. Em outras palavras, ser capaz de
empatia solidária, o outro passa a ser significativo num processo de troca, de
cooperação, alcançando a mútua representação interna, ou seja, um integrante é
capaz de perceber o outro na sua necessidade por um processo de internalização
desse outro, onde um passa a ser significativo para o outro, a ausência faz diferença
no processo grupal. Quando existe o esforço e o interesse de clareamento da
comunicação, os integrantes do grupo podem ser afetados mutuamente no sentido de
favorecer o aprendizado e o processo de transformação pessoal e coletivo.

A existência de um vínculo frágil pode trazer algumas dificuldades para a produtividade


grupal, estereotipando e até paralisando a comunicação e a tarefa. Algumas situações
são reveladoras da necessidade de exame do processo vincular do grupo:
individualismo acentuado; impaciência ou intolerância; desqualificação do outro;
isolamento da tarefa; egocentrismo; formação de sub-grupos e competição
predatória.

Os papéis que vivemos no grupo


O terceiro articulador de um grupo são os papeis atribuídos e exercidos que incluem
expectativas de comportamento ou de desempenho que podem ser assumidas ou não
pelos integrantes. Os papéis podem ser estabelecidos formalmente, através da
definição dos cargos, das funções, das posições instituídas ou, informalmente, quando
emergem no acontecer do processo das relações intra grupais. Esses, muitas vezes se
dão no nível implícito da tarefa. A história de vida, o contexto social e vincular são
dimensões fundamentais na emergência dos papeis processuais de um grupo. É da
conexão, do encontro de uma necessidade individual de assunção com a necessidade
grupal de atribuição que um papel pode ser exercido.

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A cada papel corresponde o seu complementar, o seu par, um precisa do outro para
funcionar: professor-estudante; pai-filho; chefe-subordinado; santo-devoto;
autoritário-subserviente. Todo papel tem uma função e denota uma posição no grupo.

No interjogo dos papéis podemos encontrar situações do tipo:.. aqui uns planejam,
controlam e ficam com a melhor parte, os outros executam; ...esperamos que o diretor
atue de uma maneira e ele age de outra;... não sei exatamente o que o coordenador
espera de mim; sou desse jeito mesmo, autoritário!... não quero mais ser o porta voz
deste grupo,... não suporto mais carregar os problemas nas costas!

O que transforma um conjunto de pessoas em um grupo de trabalho é ter um projeto


comum, uma tarefa em marcha para alcançá-lo, através da constituição de vínculos, e
do exercício de papéis cooperativos, e contributivos para a produtividade grupal,
definida com base nas necessidades articuladas dos integrantes. É importante que o
grupo represente um espaço para satisfação dessas necessidades individuais e
coletivas para que se constitua como unidade, o que não implica em pensamento
único, em unanimidade, mas em integração dialética das diferenças ou em convivência
com elas.

Os papeis processuais
Os principais papéis informais que emergem na dinâmica do processo grupal,
caracterizados por Pichon-Rivière (1988) são: porta voz; líder de tarefa; bode
expiatório, sabotador e impostor. Existe uma tendência a interpreta-los como positivos
ou negativos, entretanto eles possuem uma função instrumental no processo de
aprendizagem e mudança em grupo. Se os integrantes promovem o desvendamento e
a compreensão dos papeis emergentes, podem obter um salto qualitativo em termos
de operatividade grupal.

O porta-voz
A partir das experiências sociais com a técnica dos grupos operativos, Pichon-Rivière
(1988) verificou que em alguns momentos um integrante do grupo não fala só por si,
fala pelo grupo ou por parte dele. Frequentemente traz uma temática implícita, ou

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seja, um conteúdo grupal que todos ou muitos percebem, sentem, mas não explicitam
por algum motivo e nesse momento,o integrante que fala, assume o papel de porta-
voz.

Esse processo ocorre em função das características pessoais e do contexto do grupo, o


integrante, no papel de porta-voz, vivencia essa temática de forma mais intensa, e,
portanto, tem uma necessidade mais premente de explicita-la. Inclui uma importante
função, a de revelar o "não dito" da dinâmica das relações interpessoais, que está
obstaculizando a integração e o desenvolvimento da tarefa.

Líder de tarefa
Quando o porta-voz é aceito pelo grupo ele se torna um líder, que é o papel de alguém
que orienta a ação, preocupando-se em igual dimensão com os resultados e com o
clima interno determinado pela qualidade das interações. Existe uma relação de escuta
ativa, possibilitando uma rede de comunicações e contribuições efetivas à
operatividade grupal.

Bode expiatório
O porta-voz nem sempre é aceito pelo grupo, porque muitas vezes ainda não é o
momento mais adequado para revelar determinados conteúdos, ou não há um grau de
amadurecimento, de compreensão coletiva que possibilite ao grupo assumir uma
determinada questão como própria. É frequente, por exemplo, ocorrer condutas de
resistência a algum procedimento novo de trabalho, que está sendo proposto ou
implementado. Se alguém traz essa percepção à tona pode acontecer que o grupo se
volte contra o “ denunciador” , identificando o problema como individual, negando-o
como uma realidade coletiva. O integrante que trouxe, ou que traz normalmente
questões semelhantes fica no lugar do depositário dos problemas, do "problemático”.

A atenção do grupo a esse tipo de interação torna-se relevante, uma vez que,
frequentemente, é muito difícil para o integrante que é colocado no papel de bode-
expiatório suportar essa centralização, pois funciona como pressão, como crítica com o
objetivo de mudança de comportamento. A resolução dessa situação está relacionada

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com a capacidade do grupo em identificar a modalidade da sua comunicação,
direcionada para um único integrante, com um esforço de todos em convencê-lo,o que
pode significar um processo de depositação das razões das dificuldades do grupo nesse
integrante. A redução da tensão pode ocorrer se o grupo cria condições para uma
reflexão, onde é possível perceber o fenômeno, a participação grupal, e cada um é
capaz de assumir a parte que lhe cabe do problema, dividindo a carga e facilitando a
resolução da dificuldade.

Sabotador e impostor
É o papel oposto ao do líder, é o papel que indica a resistência à mudança, é o jogador
que durante a partida joga a bola fora do campo ou coloca a perna para derrubar o
adversário. Pode ser consciente ou não. O papel do grupo, nesse caso, é procurar
compreender as razões que levaram o integrante a dificultar a realização da tarefa. A
impostura é um tipo de sabotagem, em que a verbalização e alguns comportamentos
aparentam adesão e afinidade com o que está sendo proposto, mas um olhar mais
apurado, descobre atitudes de resistência e impedimento da tarefa.

A descrição dos papéis processuais de um grupo pode levar ao julgamento dos que
são corretos e errados, entretanto, todos nós podemos eventualmente nos ver e aos
outros exercendo qualquer um desses papéis durante a nossa vida. O importante é
investigar a sua origem e funcionalidade em relação à tarefa, pois facilita o processo de
aceitação das diferenças e a constituição dos vínculos. A compreensão dos papéis que
vivemos nos grupos, nos diversos âmbitos da vida, pode proporcionar uma fonte de
informação importante para o nosso processo de crescimento e desenvolvimento
como sujeitos da nossa história.

Os papéis denotam a diversidade humana de um grupo, expõem as diferenças de


participação. A unidade de um grupo não significa, em sentido dialético, a exclusão
dos opostos. Pichon-Rivière (1988) ressalta que a diferença pode ser operativa, que
quanto maior for a heterogeneidade dos integrantes de um grupo e mais homogêneo
o investimento na tarefa, mais produtivo será.

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O pensar em Grupo Operativo
O estar em grupo é lançar-se numa corrente de possibilidades, para isso é importante
à tolerância a ansiedade e ambiguidade, a perda de controles seguros. Objeto e sujeito
tendem a coincidir e, no processo de questionamento do objeto, também o sujeito
será problematizado. É imaginar, fantasiar e propor hipóteses científicas.

O grupo cria seus objetivos e faz suas descobertas utilizando o que existe em cada ser
humano em termos de experiência de vida. Cada grupo escreve a sua história, trabalha
no melhor nível que pode e esse ritmo precisa ser entendido.

Aprender a aprender como o resultado fundamental do processo humano nos espaços


grupais operativos, pressupõe o aprender a pensar, a integrar pensamentos e
sentimentos, a transformar o pensamento crítico em ação social.

As principais dimensões dessa forma de aprendizagem em grupo são:


1. A informação é trazida fragmentada e o grupo a reconstrói e quando a apreende já é
superior à original.
2. Em geral se aprende mais do que é possível pensar, demonstrar ou declarar
conscientemente.
3. Cada um contribui com o que pode, com seu repertório de condutas e sua forma de
ser. O conjunto das contribuições articuladas em relação ao objetivo é que vai produzir
um novo conhecimento, uma nova possibilidade.

4. Para isso, é necessário a valorização da opinião de cada um e o reconhecimento das


limitações humanas frente ao conhecido e desconhecido. A fala é um importante meio
de comunicação no grupo, possui uma dupla função, paralisar ou libertar.

Em síntese, articular pessoas em grupo operativo para o desenvolvimento de um


projeto, na perspectiva pichoniana, é possível através da regulação e aproveitamento
das contribuições individuais, tendo em perspectiva a apropriação da tarefa, o
desenvolvimento da rede vincular e a cooperação entre os diferentes papeis. É pelo
movimento dialético do mundo interno-mundo externo onde o eu e o outro se

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confrontam atravessados pelo contexto social, em um processo criador, que vai sendo
configurada a estratégia da descoberta e da transformação.

Referência bibliográfica
PICHON-RIVIÈRE, Enrique. O processo grupal. São Paulo: ed. Martins Fontes, 1988.

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