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Ensaio:

UMA INTRODUÇÃO À NEUROFILOSOFIA:


O PROBLEMA MENTE-CORPO
Camila Gomes Victorino
Departamento de Fisiologia, Instituto de Biociências, USP
Recebido 25mai2009 / Aceito 15dez2009 / Publicação inicial 17dez2009
camila.victorino@usp.br

Resumo. A neurofilosofia tenta desvendar os mistérios da inteligência consciente, aliada a outras


ciências como a neurociência e a inteligência artificial. Apesar do crescente avanço da neurofisiologia, uma
filosofia da mente que se adeque a todos os resultados e eventos observados das ciências cognitivas ainda
não pôde ser formulada, existindo um enorme desacordo quanto à origem dos estados mentais. Designado
como problema mente-corpo, ele divide a comunidade filosófica e científica em dualistas e monistas. Se os
primeiros afirmam que os estados mentais não têm como origem os estados cerebrais, os segundos
afirmam que há uma correlação entre estados físicos do encéfalo e estados mentais, sem, no entanto,
chegar a um consenso quanto aos detalhes da correlação entre encéfalo e mente.
Palavras-chave. neurofilosofia, filosofia da ciência, dualismo, monismo.

AN INTRODUCTION TO NEUROPHILOSOPHY: THE MIND-BODY PROBLEM


Abstract. Neurophilosophy, allied to other sciences, like Neuroscience and Artificial Intelligence, tries
to unravel the consciousness intelligence mysteries. In spite of the Neurophilosophy development, a Mind
Philosophy which essays to conform to the cognitive science observed-events has never had the chance to
be formulated, because there is an enormous disagree concerning the mental states origins. Designed as
the mind-body problem, it breaks up the philosophical and scientific community in dualists and monists. If the
first ones claim that mental states don´t have the brain as source, the last ones claim that there is a relation
between brain physical states and mental states, without, however, being in a consensus about the details
concerning the mind-brain relationship
Keywords. Neurophilosophy, Science Philosophy, dualism, monism.

Quando as dúvidas relativas ao experimental aplicamos - na maioria das vezes de


funcionamento do encéfalo humano surgem na maneira inconsciente - conceitos filosóficos que
mente de um indivíduo, sua primeira reação é influenciam nossa decisão quanto à escolha de
pensar nas neurociências. Ela é a linha de estudo um método ou outro, bem como a interpretação
mais bem conhecida do não-especialista, porém dos resultados. Um exemplo de como a filosofia
não é a única, fazendo parte de um grupo que da ciência influencia essa interpretação, se dá
contém muitas outras ciências que tentam quando - ao aplicarmos erroneamente o método
elucidar o funcionamento do encéfalo, bem como científico - pressupomos que os nossos
as repercussões que elas podem trazer para a resultados (a partir do momento em que eles são
sociedade, tanto em termos filosóficos e sociais, aceitos pela comunidade científica) podem ser
como tecnológicos. Essas ciências, quando generalizados para toda a natureza, apagando as
agrupadas, passam a fazer parte de um grande possíveis exceções que possam existir. Essa
agrupamento de ciências chamado de ciências generalização se baseia num pressuposto
cognitivas, o qual pode ser dividido nos seguintes filosófico chamado de indução. Segundo
domínios: inteligência artificial, evolução e Chalmers (1993), a resposta indutivista é que,
cognição, linguística, neurociências, neurofilosofia desde que certas condições sejam satisfeitas, é
e psicologia (Wilson & Keil, 1999). legítimo generalizar a partir de uma lista finita de
Todas essas ciências uniram forças para proposições de observação singulares para uma
tratar o problema da natureza da inteligência lei universal.
consciente, tendo a neurofilosofia ou filosofia da Para se entender melhor o principio da
mente um papel crucial na elucidação do estatuto indução, atentemos para o exemplo do mesmo
do autoconhecimento da mente e na elaboração autor que escreve: suponhamos que até hoje eu
de uma concepção mais clara da natureza tenha observado uma grande variedade de
(Churchland, 2004). Entretanto, a neurofilosofia é corvos sob uma ampla variedade de
pouco conhecida do público, pois ainda não circunstâncias e tenha observado que todos eles
existem muitos laboratórios que trabalham com o são pretos e que, com base nisto, concluo:
tema no Brasil. Tendo em vista sua baixa difusão, "Todos os corvos são pretos". Esta é uma
o presente ensaio visa introduzir uma das inferência indutiva perfeitamente legítima. (...)
questões primordiais que ela tenta responder: o Mas não há garantia lógica de que o próximo
problema mente-corpo. corvo que observarei não seja cor-de-rosa.
De acordo com Chalmers (1993), na posição
Para quê neurofilosofia? indutivista ingênua, a ciência é baseada no
Quando trabalhamos com uma ciência princípio de indução (...). De acordo com o

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indutivista ingênuo, o corpo do conhecimento O problema mente-corpo
científico é construído pela indução a partir da O problema mente-corpo se levanta a partir
base segura fornecida pela observação. A análise de questões complexas, porém comuns como "de
até aqui constitui apenas uma explicação parcial onde vem a consciência?" ou "qual a origem dos
da ciência. Pois certamente uma característica nossos pensamentos?"; questões como essas
importante da ciência é sua capacidade de levam a outras perguntas ainda mais complexas,
explicar e prever. como se as nossas mentes devem sobreviver à
Tendo em vista equívocos metodológicos morte do corpo ou se um computador poderia ser
como esses, a filosofia da ciência visa à dotado de uma consciência. As respostas a essas
elucidação dos limites do fazer científico e assim perguntas podem ser tratadas de duas maneiras
ao seu aprimoramento. O filósofo não tenta ditar distintas: uma através dos pressupostos do
como a investigação e os argumentos científicos dualismo e outra através do monismo.
devem ser conduzidos; ao invés disso, ele De acordo com Teixeira (1994), o monismo
procura enumerar os princípios e práticas que é a tese que sustenta que só existe um tipo de
têm contribuído para a boa ciência (Fodor, 1981). substância no universo (...). Existem várias
Da mesma maneira, a neurofilosofia formas de monismo, sendo a sua versão mais
trabalha os pressupostos empregados nas frequente o materialismo, que afirma que o que
ciências cognitivas experimentais. Desde seu chamamos de processos e estados mentais são
surgimento, a filosofia da mente se caracterizou meramente processos e estados sofisticados de
como um novo esforço para retornar aos um complexo sistema físico (Churchland, 2004),
principais temas clássicos que atravessaram o ou seja, o mental não é diferente do físico
pensamento na modernidade. Era preciso fazer (Fodor,1981), isto é, do encéfalo; o dualismo
uma nova tentativa no sentido de determinar a sustenta que há duas substâncias no universo e
natureza última dos fenômenos mentais (...) sem uma diferença fundamental e irreconciliável entre
ignorar os resultados das pesquisas sobre o elas. No caso, os processos mentais não
cérebro humano (Teixeira, 1994). Para se ter uma poderiam ser explicados a partir de uma causa
idéia dos principais temas estudados pela material ou que tenha relação com outros
neurofilosofia, o problema mente-corpo será fenômenos físicos hoje conhecidos. Nunca
apresentado, o qual não só concerne a própria poderíamos supor que a mente e o cérebro são a
filosofia da mente, mas todo o desenvolvimento mesma coisa (Teixeria, 1994) ou que os
das outras ciências cognitivas. processos fisiológicos cerebrais sejam o mesmo
fenômeno que os processos mentais. A tabela 1
resume as diferentes escolas dualistas e
monistas apresentadas no presente texto.

Tabela 1 - Escolas monistas e dualistas e seus diferentes pressupostos (Ems = Estados Mentais).

Ems provêem Não admite


Ems podem
de meio físico introspecção (Ems Admite que Ems
Ems corresponder aos
Teses Diferentes concepções com se relacionam se relacionam a
provêem de estados mentais
filosóficas das teses propriedades necessariamente a estruturas não
meio físico percebidos pelo
especiais não- respostas neurofisiológicas
senso comum
físicas comportamentais)

Cartesianismo NÃO NÃO ADMITE ADMITE S/ AFIRMAÇÕES


dualismo
Dualismo da
SIM SIM ADMITE S/ AFIRMAÇÕES S/ AFIRMAÇÕES
propriedade

Behaviorismo filosófico SIM NÃO NÃO ADMITE S/ AFIRMAÇÕES S/ AFIRMAÇÕES

(Materialismo
reducionista) SIM NÃO ADMITE ADMITE SIM
Fisicalismo de eventos
monismo (Materialismo
reducionista) SIM NÃO ADMITE NÃO ADMITE SIM
Fisicalismo de tipos

Funcionalismo SIM NÃO ADMITE ADMITE S/ AFIRMAÇÕES

Materialismo
SIM NÃO ADMITE S/ AFIRMAÇÕES NÃO
eliminacionista

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O dualismo não é a concepção mais funcional e consciência. (...). Segundo Teixeira
amplamente defendida em meio à comunidade (1997), o livro de D. J. Chalmers, "The Conscious
científica e filosófica atual, mas é a ”teoria da Mind", é talvez a tentativa mais recente de se
mente” mais difundida em meio às pessoas em formular uma teoria abrangente da natureza da
geral (Churchland, 2004), tendo, aliás, consciência. De acordo com o autor, sua teoria é
importância fundamental no desenrolar histórico ousada e corre na direção oposta a tudo o que os
do desenvolvimento das “teorias da mente”, pois cientistas cognitivos e neurocientistas desejam:
as primeiras teorias que tentaram de alguma reduzir estados conscientes a uma base
maneira explicar a mente humana foram dualistas neurofisiológica ou física.
(Churchland, 2004). Esta posição é uma variedade de dualismo,
Existem várias formas de dualismo, entre as na medida em que ela postula propriedades
quais o dualismo da substância ou cartesianismo básicas além daquelas estipuladas pela física.
é a mais conhecida. Ele admite que a mente Mas trata-se de uma variedade inocente de
possui uma natureza inteiramente independente dualismo, inteiramente compatível com uma visão
do corpo e consequentemente que ela não é científica do mundo (Teixeira, 1997).
sujeita à morte (Descartes, 1973). Essa idéia é Enquanto que as teorias dualistas se
bastante popular, mas cheia de problemas baseiam em hipóteses que ainda não
quando passamos a nos questionar que se a encontraram fundamento experimental ou
mente provém de algo totalmente diferente da matemático, reações baseadas nos avanços da
matéria, como seria possível a sua ligação ao pesquisa em neurofisiologia se desenvolveram,
corpo? Alguns argumentam que essa substância originando diversas teorias monistas.
proveria de alguma forma de energia ainda não- O behaviorismo filosófico foi a primeira delas
descrita pela ciência, porém as provas de sua e afirma que um estado mental nada mais é do
existência são extremamente parcas, o que levou que o conjunto de comportamentos observáveis,
à modificação desta teoria para uma forma menos desencadeados pela entrada de dados
radical: o dualismo da propriedade (Churchland, ambientais, também observáveis (Churchland,
2004). 2004). Assim, segundo Churchland (2004), o
Nesse tipo de dualismo, embora não haja estado mental não mais se caracterizaria como
outra substância envolvida além da matéria do algo interior e extraordinário, mas como um
encéfalo, afirma-se que o último seria dotado de conjunto de operações que o individuo realiza em
um conjunto especial de propriedades (no caso, determinada situação.
os estados mentais; nome que indica estados Por exemplo, o estado mental "dor", não é
como sensação de cor, desejos, apreciações e visto como algo único e pessoal, mas apenas
outras sensações e pensamentos que proviriam como o conjunto de reações comportamentais (o
de nossa mente) que nenhum outro tipo de objeto afastamento do membro da fonte de danos, o
físico dispõem; tais propriedades são grito "ai" etc) que a ação "danos celulares"
consideradas não-físicas, no sentido de que desencadearia. Uma das falhas dessa visão é
jamais podem ser reduzidas ou explicadas em que ela nega o aspecto introspectivo, isto é, único
termos dos conceitos das ciências físicas e pessoal, do estado mental, ou seja, o fato de
habituais (Churchland, 2004). que, ao vermos a cor vermelha, não só
Pra se entender melhor, basta pensar que realizamos um conjunto de operações padrão
essas propriedades poderiam ser consideradas (como o recebimento de dados ambientais e sua
como emergentes (provenientes do tipo de saída), como temos a sensação de que algo é
organização complexa que a matéria física de vermelho e não laranja, um aspecto puramente
origem dispõe), assim como a cor é uma introspectivo do ato de enxergar (Churchland,
propriedade emergente da organização específica 2004). Essa falha levou ao desenvolvimento de
dos átomos de uma substância. Essas outras concepções de filosofia da mente como o
propriedades são facilmente descritas na materialismo reducionista, o funcionalismo e o
natureza, mas para o dualista, os estados materialismo eliminacionista.
mentais não se resumiriam somente a isso, pois O materialismo reducionista ou teoria da
elas iriam para além da estrutura física do identidade afirma de maneira simples que cada
encéfalo, apresentando-se como uma lei presente estado mental é idêntico a um estado físico
em todo o universo e independente da (evento, processo) (Boyd, 1980). Seu nome vem
organização da matéria que as abriga. Nesse do fato de que cada estado mental seria idêntico
caso, a experiência consciente deve ser a um processo fisiológico interior do encéfalo, fato
considerada como sendo uma característica que seria devidamente provado com o avanço
fundamental do mundo, do mesmo jeito que das descobertas no campo das neurociências
massa, carga eletromagnética e espaço-tempo (Churchland, 2004). Ao assumir que a
(Leal-Toledo & Teixeira, 2005). neurociência pode revelar os mecanismos físicos
De acordo com Chalmers (1996) - um dos subjacentes às funções psicológicas, assume-se
mais conhecidos dualistas da atualidade -, não há que é de fato o cérebro que realiza essas
conexão lógica entre base física ou arquitetura funções, isto é, que as capacidades da mente

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humana são, na verdade, capacidades do cérebro Amaral, 2002).
humano, o que é hipótese altamente provável, Para responder a essa intuição da múltipla
baseada em evidências atualmente disponíveis realização do mental, vários funcionalistas
da física, química, neurociência e biologia caracterizaram os estados mentais de um sistema
evolucionária (Churchland, 1994). cognitivo em termos da função causal desses
A teoria da identidade reconhece que estados numa rede causal envolvendo outros
fenômenos mentais possam interagir entre si, estados mentais, “inputs” (entrada de dados) e
sem que para isso, tenham que desenvolver “outputs” (saída de dados) do sistema (Abrantes
respostas comportamentais, também designadas & Amaral, 2002). Isto é, os estados mentais
como "saída de dados" pelos behavioristas poderiam ser a causa de outros estados mentais,
(Churchland, 2004). Por exemplo, quando alguém afirmando assim, que este estado se resumiria ao
tem uma idéia e abandona a idéia no mesmo seu papel funcional, já que é o fato dele causar
instante, sem desencadear deste modo uma outros estados mentais (servindo como “inputs”
ação, estaria se produzindo uma interação entre ao gerar e como “outputs” ao produzir efeitos) que
vários estados mentais, mas, sem o realmente interessa.
desencadeamento de uma ação ou de uma saída Apesar de parecer similar ao behaviorismo
de dados. Assim, essa teoria completa mais uma filosófico, essa escola não resume os estados
lacuna deixada pela teoria anterior, a qual negava mentais a entradas e saídas de dados somente,
a existência desses estados mentais. mas admite que exista uma conexão desse
De acordo com Fodor (1981), a teoria da estado a outros estados mentais (o que admitiria
identidade pode ser dividida em duas doutrinas: o a existência de estados mentais que não
fisicalismo de eventos e o fisicalismo de tipos. gerariam, obrigatoriamente, respostas externas
Ambos afirmam que existe uma identidade entre comportamentais, como o simples fato de refletir
os eventos fisiológicos e os processos mentais um problema, por exemplo). Assim, a mente
correspondentes a esses eventos, todavia, o passou a se caracterizar como uma rede de
primeiro sustenta que todos os estados mentais diversas relações causais (“inputs” e “outputs”),
até então descobertos são de ordem sem que elas estivessem sempre engessadas a
neurofisiológica, deixando assim, a possibilidade um meio físico.
de que existam estados mentais produzidos por Aparentemente, o funcionalismo seria
qualquer outro meio físico suficientemente também parecido ao materialismo reducionista,
complexo e não-neurofisiológico; já o segundo faz afirmando que o estado mental poderia
a asserção mais arrebatadora de que todos os corresponder a qualquer outra estrutura física -
estados mentais possivelmente existentes são seja ela feita de neurônios ou de circuitos -, desde
neurofisiológicos, excluindo a possibilidade da que sua organização seja tão complexa, quanto à
existência de outras formas de inteligência não- organização do encéfalo. Entretanto,
neurofisiológicas, como, por exemplo, um diferentemente do primeiro, o funcionalismo
andróide. Resumindo, o fisicalismo de eventos admite a possibilidade da criação de estados
não elimina a possibilidade lógica de máquinas mentais por outros estados mentais.
terem propriedades mentais. O fisicalismo de O que querem dizer os funcionalistas
tipos rejeita essa possibilidade porque as quando asseveram que uma propriedade não-
máquinas não possuem neurônios (Fodor, 1981). mental qualquer realiza uma propriedade mental?
Para Fodor (1981) o problema com o fisicalismo (...) O fato de ocorrências mentais causarem
de tipos é que a constituição psicológica de um ocorrências físicas é razão suficiente para
sistema parece não depender de seu "hardware", concluirmos que tipos mentais façam diferença
ou seja, de sua composição física, mas sim de causal em um mundo físico? (Abrantes & Amaral,
seu "software", isto é, de seu programa. 2002).
A idéia de que mentes seriam análogas a Mesmo que fenômenos mentais sejam
máquinas computacionais implementadas em diferentes de fenômenos físicos, os primeiros são
diferentes tipos de substrato mostrava-se necessariamente embasados pelos últimos, no
bastante atraente, não somente porque sentido em que, se há alguma mudança no nível
consistente com, e sugerida pela pesquisa do mental, há mudança no nível que o embasa, o
empírica sobre a cognição, mas também por físico (Abrantes & Amaral, 2002). Todavia, o
fortalecer a autonomia da pesquisa do mental funcionalismo pareceu conformar-se a algumas
face à pesquisa do físico (Kim 1998, citado de das intuições fundamentais de doutrinas
Abrantes & Amaral, 2002). Entretanto, para o fisicalistas sem, com isso, abrir mão do não-
teórico da identidade cada tipo mental é reducionismo do mental ao físico (Abrantes &
individuado por um tipo físico, engessando-se Amaral, 2002), como o faz o materialismo
assim as relações mente-corpo e impossibilitando reducionista.
a múltipla realização (capacidade de estados Outra reação ao materialismo reducionista
mentais criarem outros estados mentais), foi o materialismo eliminacionista. O materialismo
situação que desvela a inépcia desta postura para eliminacionista afirma que o ultimo é falso, pois
lidar com o problema mente-corpo (Abrantes & uma correspondência exata dos estados mentais

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percebidos pelo senso comum, aos estados é o de apurar se um fenômeno com as
físicos do encéfalo é impossível, já que a características que, aparentemente pertencem
interpretação que o senso comum faria desses aos qualia, pode ser tratado a partir de uma
estados é totalmente equivocada e distorcida. abordagem fisicalista, como parece ser a diretriz
Assim, de acordo com a primeira escola, as dominante nas ciências da mente
neurociências, ao invés de reiterar as contemporâneas (...), pois diante de uma
correspondências de um plano a outro, destruiria, paisagem marinha, onde o céu e o mar aparecem
com o tempo, as concepções de senso comum, como sendo igualmente azuis, como posso
de nossos estados mentais. A importância do afirmar que estou percebendo uma única cor
materialismo eliminacionista vem do fato de que (Vicentini, 2001)? Afinal, uma vez que todos nós
seria mais adequado considerar nossas mais aprendemos as palavras que designam as cores,
ternas intuições sobre a função mente/cérebro vendo objetos coloridos e públicos, nosso
como hipóteses revisáveis, ao invés de encará- comportamento verbal concordaria mesmo se nós
las como certezas transcendentais absolutas ou experienciássemos as cores subjetivamente de
certezas introspectivamente dadas. O modos inteiramente diferentes (Dennett, 1991,
reconhecimento da possibilidade de uma tal citado de Vicentini, 2001).
revisão faz uma enorme diferença na maneira Deste modo, o problema dos qualia se
pela qual nós conduzimos experimentos caracteriza como o principal desafio para os
psicológicos e neurobiológicos, e em como nós neurofilósofos que visam - dentro de cada
interpretamos seus resultados (Churchland, concepção de filosofia da mente - construir uma
1994). Desse modo, o materialismo abordagem teórica que se adeque a todos os
eliminacionista parece ser mais uma forma de conhecimentos até então adquiridos pelas
revisão do conceito de teoria da identidade, do ciências cognitivas. Deve-se lembrar, entretanto,
que como uma teoria contraria a esta. que, apesar dos desafios e falhas que apresenta
Como se pôde perceber, variações sobre cada escola, a abordagem fisicalista está cada
um mesmo conjunto de problemas vêm vez mais em voga, desviando a atenção outrora
desafiando e vencendo todos aqueles que se dada ao dualismo. São os avanços da pesquisa
debruçaram sobre a análise do fenômeno mental em neurociências, psicologia e inteligência
no presente século (Vicentini, 2001), Além das artificial que são os responsáveis pelo
controvérsias e adições postas por novas teorias, fortalecimento das diversas formas de monismo;
a neurofilosofia ainda se vê desafiada por tópicos aliás, serão possivelmente os avanços futuros da
que perspassam todas as escolas. Pretende-se pesquisa nessas áreas que poderão gerar um
assim, apresentar adiante os princípais dilemas consenso e mesmo uma concepção de filosofia
com os quais ela está lidando no momento. da mente unificada que possa explicar toda a
complexidade da mente humana, isso, claro, se a
Desafios futuros relação entre os fenômenos físicos do encéfalo
É sensível para todo aquele que possui ao aos fenômenos mentais, afirmados pela teoria da
menos um pequeno conhecimento dos preceitos identidade e suas complementações, estiver
da ciência atual, um aparente descompasso entre correta.
a visão resultante das descrições científicas e
aquela imagem do mundo que se obtém pela Dualismo ou monismo?
experiência, por meio dos sentidos e que está O dualismo, apesar de ter sido deixado de
baseada nas mais íntimas intuições de como o lado pelas ciências cognitivas experimentais,
mundo é. Esse mundo de cores, odores, sabores, ainda gera fortes debates em meio à comunidade
etc. é reduzido a um amontoado de desbotados filosófica e à sociedade em geral. A existência da
elementos básicos e enunciados de leis que não possibilidade de manutenção da mente após a
deixa ver como tão vívidas propriedades possam morte do corpo físico, afirmada pelas escolas
ser deduzidas a partir de uma base tão elementar dualistas, faz com que essa teoria seja uma das
(Vicentini, 2001). Dentro dessa linha de preferidas da comunidade não científica, pois ela
pensamento, os qualia aparecem como responderia às dúvidas existenciais humanas que
candidatos resistentes às tentativas de lhe a ciência e a filosofia não puderam até agora
outorgarem uma cidadania científica (Vicentini, responder. Todavia, em termos científicos, o
2001). dualismo não parece apresentar comprovação
Qualia é o termo empregado para denotar experimental. Até o momento, o materialismo
as características intrínsecas de nossas reducionista parece conseguir responder às
sensações, as quais podemos obter apenas por atuais dúvidas científicas a respeito da mente,
meio da introspecção (Churchland, 1989, citado bem como contribuir na construção de um modelo
por Vicentini, 2001). Os qualia resistem a físico desta. Suas complementações, dadas pelo
qualquer tentativa de descrição, pois são funcionalismo e pelo materialismo eliminacionista,
acessíveis somente à consciência do a fortalecem ainda mais, pois abrem
experienciador (...) e pode-se dizer que o respectivamente, o horizonte para a existência de
problema central que direciona essa investigação mentes não neurofisiológicas e para a idéia de

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que há uma ilusão ao se correlacionar os estados Agradecimentos
mentais aos estados percebidos pelo senso Agradeço a Arnaldo Cheixas-Dias e Rodrigo
comum. Pavão pelos valiosos comentários
Assim, parece não restar dúvidas quanto à
veracidade das afirmações do materialismo Bibliografia
reducionista, porém estados mentais mais Abrantes, P.; Amaral, F. Funcionalismo e causação mental. In.
International Colloquium in Philosophy of Mind, 3, 2002,
complexos, como a consciência, ainda carecem
Campinas, Brasil. Proceedings of the Third International
de um modelo científico maduro, o que gera uma Colloquium in Philosophy of Mind, Campinas,
série de reticências à afirmação de que não Manuscrito, 2002, 14-45;
existem mais questões quanto à correlação Boyd, R. (1980 ). Materialism without reductionism. In.
Readings in philosophy of psychology, I, USA, Library
estado físico / estado mental. Por enquanto, as of Congress Cataloging in Publication Data;
evidências se inclinam para o lado do monismo, Chalmers, A. F. (1993) O que é ciência, afinal? São Paulo, SP,
porém mesmo que esta escola seja a correta, o Editora Brasiliense;
cientista cognitivo deve manter a mente aberta Chalmers, D. J. (1996) The conscious mind: In search of a
fundamental theory. Oxford, Oxford University Press;
para as novas descobertas que poderão mudar a
Churchland, P. M. (2004) Matéria e Consciência, Uma
idéia do que seria um estado mental; somente a introdução contemporânea à filosofia da mente. São
adoção desse espírito aberto, impedirá que o Paulo, SP, Ed. Unesp;
materialismo reducionista se transforme em um Churchland, P. S. (1994). Can neurobiology teach us anything
about consciousness? Presidential Address to the
dogma, impedindo no futuro, o avanço rumo a um
American Philosophical Association, Pacific Division.
modelo da mente mais próximo da realidade. Proceedings and Addresses of the American
Philosophical, Association. Lancaster, PA: Lancaster
Conclusão Press. 67-4: 23-40 ;
Descartes (1973). Discours de la méthode. Paris, Librairie
As questões neurofilosóficas são tão antigas
Générale Française ;
quanto o dia em que o primeiro ser humano se Fodor, J. (1981). The Mind/body Problem. Scientific American,
fez a pergunta de "quem somos nós". A natureza 244, 124-132;
do pensamento e sua origem perspassou as Leal-Toledo, G.; Teixeira, J. F. (2005). O dualismo e o
argumento dos zumbis na filosofia da mente do século
mentes de grandes filósofos, todavia sem obter
XX. Cadernos do Centro Universitário São Camilo, 11,
consenso. Atualmente, entretanto, os avanços da 1;
pesquisa em neurociências são um forte Teixeira, J. F. (1994). O que é filosofia da mente. Coleção
argumento a favor das teorias materialistas, sem Primeiros Passos. São Paulo, SP, Ed. Brasiliense
Teixeira, J. F. (1997). A teoria da consciência de David
que, no entanto, as teorias dualistas sejam
Chalmers. Psicologia USP, 8, 2;
abandonadas, pois a pouca idade das Vicentini, M. R. (2001). O critério do desempenho: do
neurociências ainda não permite a construção de behaviorismo ao funcionalismo. Acta Scientiarum,
um modelo científico capaz de explicar Maringá, 23, 1, 223-230;
Wilson R. A., Keil F. (Ed.s) (1999) The MIT Encyclopedia of
completamente estados mentais mais complexos
the Cognitive Sciences. Cambridge, MA, MIT Press
como a consciência.
Se o materialismo se mostrar correto, é fato
que antigas questões de ordem filosófica serão
respondidas pelas ciências cognitivas, porém isso
não quer dizer que a neurofilosofia se tornará
obsoleta, já que sempre existirão perguntas para
serem respondidas com relação à natureza da
mente e, portanto, neurofilósofos para definirem
pressupostos por trás das diversas linhas
experimentais que irão surgir.

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