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Fragmento de arroz, política fundiária e culturas alimentares tradicionais

Eu percebi que tem rolado um certo surto coletivo por conta da comercialização do
fragmento de arroz, ou como tradicionalmente é conhecido quirera de arroz. Quero
levantar aqui duas problemáticas na maioria dos discursos que tenho visto e fazer um
convite coletivo à reflexão, sobre aquilo que eu acredito ser o problema de fato.
A primeira questão é a informação errônea de que a quirera de arroz tem um valor
nutricional menor que o arroz branco “tradicional”. Então, não. A quirera de arroz nada
mais é que o arroz branco fragmentado, logo, tem o mesmo valor nutricional que um
arroz branco com o grão inteiro. Claro que se compararmos isso a diferentes espécies de
arroz, se avaliarmos grãos integrais, aí sim teremos variações nos benefícios
nutricionais, como as fibras, por exemplo, nos grãos integrais. Precisamos ter cuidado
com as “generalizações nutricionísticas” que são disseminadas nas redes. Aproveito
aqui para puxar um breve gancho do quão problemático, também, pode ser esse
processo de diminuição do valor de comidas (e aqui falo de comida mesmo não
PRODUTOS ultraprocessados, que nem são comidas, tá!), por meio da análise de
percentuais nutricionais. Quando fazemos isso reforçamos os discursos do
nutricionismo. Mas isso é papo pra um outro texto.
Voltando ao foco, um outro problema do “hype” de postagens do fragmento de arroz, é
a associação deste produto com ração animal e aí é onde nosso papo começa de fato. A
quirera de arroz, assim com a de milho, que são basicamente esses grãos pilados ou
mecanicamente fragmentados, compuseram por muitos anos, junto com a farinha de
mandioca, insumos basilares na alimentação e sustento de muitos brasileiros. No caso
das farinhas de mandioca, apesar dos estigmas, ela tá firme e forte aí até hoje. Pela
glória e honra do Senhor Exu! Mas quando se trata das quireras, elas vieram perdendo
força ao longo dos anos. Retomemos então as origens disso tudo para entender sua
relação com a ideia de “ração animal”.
O pilão é uma invenção negro africana de suma importância na tecnologia alimentar de
diversos povos da África. Sua tecnologia ancestral, assim como outras, faz parte desse
grande assentamento que é a diáspora africana nas Américas. Comer grãos
fragmentados, em diferentes espessuras, aí entram, quireras, farinhas, sêmolas, faz parte
da cultura alimentar desses povos e esses hábitos foram ressignificados nos diferentes
territórios coloniais da diáspora. A escravização europeia de negros africanos,
promoveu um processo de desumanização destas pessoas, que passaram a ser vistas
como mercadorias, e animalizadas. Os dos principais produtos designado para a
alimentação dos escravizados, nos diferentes territórios brasileiros, foram milhos,
mandiocas e arrozes. As quireras são um dos subprodutos possíveis dos milhos e
arrozes. Aqui destaco uma coisa, estamos falando de tecnologias aplicadas sobre grãos
que possibilitam a confecção de diferentes produtos e TODOS tinham algum uso
alimentício. Sabe porque!? Para esses povos a versatilidade e a integralidade do
consumo são tônicas basilares de suas culturas alimentares.
Chamo atenção ainda para o fato, de suma importância, de que os saberes em torno do
processamento destes grãos é PRETO. Brancos eram donos da propriedade, mas não
executavam nem dominavam essa sapiência. Não havia traine ou tutorial de como arar a
terra, colher e ou processar alimentos. Os saberes em torno da agricultura brasileira são
heranças das tecnologias africanas e ameríndias. Mas de onde vc tirou isso!? Vozes da
mina cabeça... Tá bommm é fonte que você quer, então toma! No documentário “Da
África aos EUA”, produzido pela Netflix, é mostrado que houve uma queda de 80% da
produção do Golden Rice da Carolina do Sul após o fim da escravização nos EUA. Mas
meu bem, olha pra Debret, tu já viu branco segurando uma enxada? Jura mesmo que
você achou que era aleatório a escolha e designação de pessoas escravizadas para esse
ou aquele posto de trabalho. Meu bem, nossa sabedoria, foi e continua sendo explorada
pela branquitude desde sempre, sem créditos, pagamento ou reparação por isso. Mas
voltemos para a quirera. Sim, ela era muito usada na alimentação de pessoas
escravizadas. Então se estes sujeitos eram coisificados, animalizados e esse produto era
o que eles comiam, loooogggooo, isso é ração animal. E de fato o mesmo produto que
os escravizados consumiam também era consumido pelo gado, galinhas e porcos. Tá
passadahm!?
Então se liga, a distinção que não havia no imaginário coletivo entre a quirera dada aos
porcos e a dada aos negros escravizados, se fez potência justamente na cozinha. Há
diversos usos e abusos de sabedorias pretas para produtos como esse. São nossas
tecnologias ancestrais, fundamento base da construção da Gastronomia Brasileira. Pois
é meu bem a gente não era só um corpinho bonito mexendo colher de pau não, é muita
cuca no lance. Massss, a permanência das estruturas coloniais, fazem com que esses e
outros produtos, que tradicionalmente compõe uma cultura alimentar afro diaspórica,
sejam estigmatizados como algo menor. E aí pode ser via nutricionismo (a falácia do
valor nutricional menor), via elitização do gosto (comida de pobre), ou a atualização da
mentalidade colonizada sobre estes produtos (ração animal) que novamente coloca
nossos comeres num lugar reificado.
Mais Lourence você não consegue enxergar o quão problemática é a alta do arroz e a
política bolsonarista de não regular os estoques. Calma queridahhh. Claro que eu tô
vendo isso. E aqui eu te faço um convite, vem com a titia! É claro que a crise de
abastecimento e a epidemia de insegurança alimentar e nutricional que vivemos é
gravíssima. Masssss o problema não está na quirera. O problema está no racismo!
Pourrannnn lá vem você de novo meter racismo em tudo, agora até no arroz, vai dizer
que o problema é que ele é branco. Não meu amorrrr!!! O problema está na manutenção
de uma estrutura e política fundiária embranquecida. Ou seja, concentração de terras,
investimento e fortalecimento de um modelo de agro negócio, perseguição e ataques a
territórios indígenas e quilombolas.
Meu beeeeemmmm vocês criaram esse B.O. e precisam entender que isso só vai se
resolver quando, e se, abrirem mão de seus lugares de privilégio e assumirem a
responsabilidade dessa gestão falida, da terra e de si. Povos tracionais, ou contra
coloniais, ou não brancos, tem modelos agrários de confluência com o meio ambiente,
de bio interação, como nos explica lindamente o mestre Antônio Nego Bispo. Antes
mesmo de vocês passarem a chamar isso de S U S T E N T A B I L I D A D E, a gente
já dava baile nas formas de plantar, colher, processar, abastecer, and cozinhar. Nossas
tecnologias ancestrais que vocês insistem em subjugar e/ou se apropriam, dando um
nome de branco (PANCs, comidade verdade, agro ecologia, sustentabilidade e por aí
vai...), são o caminho para virar a chave desse jogo. Airton Krenak já nos deu a planta,
“o futuro não está a venda”. Mas vocês não estão preparados para essa conversa não é
mesmo!? Tudo bem, a gente espera, só almejamos estarmos vivos pra ver isso.
Por hora o que a mamacita aqui pede a vocês é bem simples: parem de subjugar nossos
comeres. A maravilhosa Dona Carmem Virgínea, ícone da nossa culinária ancestral,
toda quinta-feira ensina no seu IG, receitinhas maravilhosas com o que vocês chamam
de “comida de 5ª”. Vamos recalcular a rota dos nossos discursos meu amor”!? Antes de
chamar de absurdo, o consumo de quireras, pé de galinha, miúdos, farinha de mandioca,
reconheça que o fato desses produtos não estar no seu cardápio habitual não é por eles
serem ruins, ou de baixo valor nutricional ou o que quer que vocês inventem. É porque
gosto é construção social e, por aqui, permanecemos classificando e hierarquizando
comeres, a partir da régua branca de qualidade.
E só pra fechar esse assunto, eu não tô romantizando a pobreza, a carestia e o retorno ao
consumo de alguns desses alimentos por conta da diminuição do poder de compra do
povo. Eu também morro de saudades do meu Ex, e dos tempos que podia comprar filé
mignon. O que eu tô problematizando aqui é a URGÊNCIA em virarmos a chave no
olhar etnocêntrico pra essas comidas. Segurança alimentar e nutricional é um direito
constitucional desde 2010, que não é efetivado por conta do projeto de necropolítica do
Estado Brasileiro. Não apenas desse governo, o bolsonarismo só piorou o que já estava
estruturalmente ruim. Meu desejo é que o pobre consiga comer com segurança em
quantidade e qualidade adequada. Só que precisamos manter ao lado do filé, o coração
de boi, os miúdos, a folha de chuchu, a taioba, o maxixe. Eu defendo aqui a
compreensão e valorização da potência dos nossos comeres e o cuidado na construção
dos nossos discursos críticos. Para gente atacar o problema e não os sujeitos mais
afetados por ele.
Beijos de luz

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