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I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP

Educação e Infância em F. Delalande e C. Freinet


Tamya de O. R. Moreira
ECA/ USP – tamya.moreira@usp.br

Resumo: O presente artigo apresenta uma aproximação entre as concepções de Infância e Educação
identificadas nas obras de Célestin Freinet (1896-1966) e François Delalande (1941-). Os estudos dos
dois autores permitem amplas reflexões sobre o ensino de música, na medida em que encaram o fazer
musical de crianças, suas explorações do material sonoro, como verdadeiras criações musicais.

Palavras-chave: educação musical, Pedagogia das Condutas Musicais, Pedagogia Freinet.

Education and Childhood in F. Delalande and C. Freinet

Abstract: This paper presents an approach between the conceptions of Childhood and Education in the
works of Célestin Freinet (1896-1966) and François Delalande (1941-). The writings of both authors
allow wide reflections over music teaching, as far as they face the children’s musical production, their
sound material research, as true music creations

Keywords: music education, Pedagogy of Musical Behaviour, Freinet’s Pedagogy.

1. Introdução

Partindo da proposta de aproximação entre a bibliografia trabalhada na disciplina


A criança, o sonoro e o musical: reinventando a música 1 e as pesquisas em andamento dos
participantes, procuramos realizar um estudo que apresente alguns aspectos das obras de
Célestin Freinet e François Delalande no âmbito da educação na infância. Estes aspectos nos
apontam consonâncias entre os dois autores, apesar de Freinet não ter-se dedicado exatamente
à educação musical e, por outro lado, Delalande ter como um de seus focos de pesquisa – o
que se refere à educação e que nos interessa aqui - a relação que as crianças estabelecem
exclusivamente com o material sonoro e musical.
Os olhares que os dois autores direcionaram à infância em muito convergem e
serão apresentados por meio da exposição de alguns trechos das Invariantes Pedagógicas,
aproximando-os das propostas de Pedagogia das Condutas Musicais e do aproveitamento da
teoria dos jogos de Jean Piaget para pensar o fazer musical, ambos de Delalande.
Esta aproximação entre os dois autores integra a pesquisa A música na Pedagogia
Freinet: subsídios para a reflexão e a prática em educação musical. A comparação entre
pensamentos pedagógicos de Freinet e pensamentos de autores da educação musical do século
XX, dos quais Delalande é o primeiro, é uma das etapas previstas para a pesquisa que se
encontra em desenvolvimento.
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2. François Delalande

Engenheiro e pesquisador, François Delalande (Paris, 1941) foi, de 1970 a 2006,


um dos principais organizadores do Grupo de Pesquisas Musicais (Grupe de Recherche
Musicales), ligado ao Instituto Nacional do Audiovisual (Institut National de l’Audiovisuel)
em Paris 2.
Além de desenvolver pesquisa na área das condutas musicais na infância e suas
implicações pedagógicas – foco no presente trabalho -, Delalande também apresenta grande
produção de pesquisa relacionada à análise musical, principalmente da música eletroacústica,
o que implica em desdobramentos na teoria da análise musical e da escuta.

3. A Pedagogia das Condutas Musicais e os jogos de Piaget

O que é fazer música? Esta é, segundo Delalande, a primeira questão que alguém
que reflete sobre pedagogia musical deve-se fazer (Delalande, 1995: 10). O fazer musical
ainda é entendido por muitas pessoas como a habilidade de tocar um instrumento e dominar
uma técnica de leitura e escrita específica. Desta maneira, falar de educação musical para
crianças em idade pré-escolar seria um contra-senso. Porém, a partir do conhecimento da
música de outras culturas e de estudos da psicologia do desenvolvimento, Delalande admite
ser possível pensar em uma pedagogia musical para crianças pequenas, uma Pedagogia das
Condutas Musicais (Delalande, 1988: 3).
A partir das experiências proporcionadas pelos estudos de etnomusicólogos e pela
obra de compositores contemporâneos, Delalande entende como necessário não um foco em
aspectos do produto sonoro resultante das ações dos músicos - que muito variam entre as
diferentes culturas e correntes estéticas -, mas uma atenção ao comportamento de quem faz ou
escuta música. Seriam as atitudes dos músicos, suas condutas, o denominador comum entre as
diversas práticas musicais (Idem). Observando a atividade musical na infância sob esta
perspectiva, Delalande foca nas condutas presentes no fazer musical das crianças, de maneira
a reconhecer suas atitudes exploratórias do material sonoro como invenções musicais, bem
como as dos adultos. A Pedagogia das Condutas Musicais aparece, então, como proposta que
abarca as várias possibilidades de produtos musicais, na qual “o papel atribuído ao educador é
estimular a sua (da criança) imaginação, conduzi-la em sua elaboração, valorizar suas
descobertas, em suma, reforçar deliberadamente sua conduta natural” (Idem: 5)
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Na busca por uma definição abrangente do que é fazer música, Delalande chega a
três aspectos que julga eficientes ao propósito:

Parece-me que os músicos - tanto quando produzem, quanto quando


escutam – têm em comum essas três grande capacidades: ser sensíveis aos
sons, encontrar neles uma significação e gozar de sua organização
(Delalande, 1995: 11).

O apontamento destas três capacidades observadas nos músicos em diversas


culturas e o estudo das relações que as crianças estabelecem com a música acabam por
aproximar Delalande da teoria cognitivo-desenvolvimentista de Jean Piaget, cuja ideia
primeira é a de que o desenvolvimento procede de acordo com uma série de estágios
qualitativamente diferentes. Piaget apresenta os jogos sensório-motor, simbólico e de regras
como atividades correspondentes aos estágios do desenvolvimento e Delalande os relaciona às
condutas musicais.
O jogo sensório-motor, observado por Piaget no início da primeira infância, é “um
jogo de puro exercício, sem intervenção do pensamento nem da vida social, pois só ativa
movimentos e percepções.” (Piaget, 1999: 28) De acordo com Delalande, aí estão situadas as
explorações em que o gesto e a sensação são indissociáveis, como quando uma criança brinca
com uma porta que faz determinado ruído ou quando explora brinquedos sonoros. Ao mesmo
tempo, Delalande admite que este jogo é a atividade do instrumentista quando adulto, quando
este realiza a fusão entre a sensação e a motricidade tocando seu instrumento. (Delalande,
1995: 20)
O segundo jogo observado por Piaget, o jogo simbólico, é onde aparecem as
representações, o faz de conta, as imitações do real onde a criança o recria a sua maneira
(Piaget, 1999: 28). De acordo com Delalande, o simbolismo em música aparece na maioria
das culturas, sendo que os músicos não fazem sons por si mesmos nem estruturas por si
mesmas. Diz ainda que

(...) no interior das músicas descobrimos certo número de esquemas, de


organizações da matéria sonora que possui algo em comum com um
movimento, que podemos encontrar no vivido. Quer dizer que o vivido
extra musical está presente na música como uma espécie de rastro
(Delalande, 1995: 21)

O terceiro e último jogo de Piaget, o jogo de regras, refere-se a atividades


organizadas e guiadas por um corpo de regras estáveis, que se mantém por, pelo menos, uma
partida. (Piaget, 1999: 41) Para Delalande, o jogo musical com regras se refere a um fazer
musical que alcança o prazer por meio da organização, da gramática, lembrando que cada
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cultura possui a sua. Busca-se dominar as regras, de maneira que estas venham fomentar a
imaginação ao invés de sufocá-la, resultando em satisfação intelectual. (Delalande, 1995: 22)
Os jogos de Piaget ajudariam, então, em um maior entendimento sobre o que é
fazer música, sobre os comportamentos próprios ao fazer musical. A observação destes
comportamentos nos faz reconsiderar o fazer musical na infância, pensando a educação
musical como promoção de espaços para a manifestação das condutas, ao invés de concentrar
esforços na adequação da atividade musical infantil a resultados sonoros pré-determinados
(Idem: 28)

4. Célestin Freinet e o Movimento Escola Moderna

O pedagogo francês Célestin Freinet nasceu em 1896, em um vilarejo chamado


Gars, nos Alpes Marítimos, onde passou a infância como pastor. Em 1914 alistou-se e
combateu na Primeira Guerra Mundial, sofrendo fortes ferimentos nos pulmões. Com a saúde
debilitada depois da guerra, Freinet entrou em sala de aula e iniciou sua carreira de pedagogo
em 1920, na pequena aldeia de Bar-sur-Loup.
Devido à falta de experiência pedagógica e a descrença no sistema tradicional de
ensino, Freinet começou a experimentar novas maneiras de ensinar seus alunos, surgindo
então a aula passeio, os ateliês, entre outras técnicas pedagógicas que transformaram sua
relação com as crianças. As atividades de Freinet ganharam visibilidade no cenário
pedagógico internacional a partir de duas práticas indissociáveis: o texto livre e a imprensa.
Sem acreditar na eficiência dos manuais escolares - os livros didáticos da época -,
visto que o conteúdo destes nada tinha a ver com a vida das crianças, desmotivando-as no
processo de alfabetização, Freinet propôs que seus alunos escrevessem textos sobre assuntos
que lhe interessassem, como, por exemplo, uma aula passeio ou algum fato vivido. O texto
poderia ser o mais simples possível, mas constituía um espaço de expressão do aluno, a
alfabetização estaria, então, plena de sentido.
Com os textos prontos, corrigidos coletivamente, surge a necessidade de mantê-
los vivos ao invés de trancá-los nos armários da escola. Então Freinet propôs aos alunos a
fabricação de jornais com seus próprios textos e desenhos. Desta maneira, as crianças teriam
um espaço público de expressão livre, outro termo caro a Freinet.
Impressos, os jornais começaram circulando pelo vilarejo, sendo lidos pelas
famílias e pelos amigos, até que surge a correspondência interescolar. As crianças se
correspondiam com outras crianças, de outras escolas, e o trabalho de Freinet despertou a
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curiosidade de vários pedagogos, que visitaram sua escola e levaram suas concepções e
práticas a outros lugares, nascendo, assim, o Movimento Escola Moderna. O Movimento
cresceu no século XX e ainda cresce, congregando educadores em vários países do mundo,
como França, Canadá, África do Sul, Espanha, Brasil, entre outros.

5. As Invariantes Pedagógicas

Com a divulgação de seu trabalho e a ampliação de práticas fundamentadas neste,


Freinet publica as Invariantes Pedagógicas, uma série de princípios que não poderiam variar
independente do povo e do contexto. As Invariantes foram apresentadas em forma de teste, no
qual o professor poderia avaliar sua prática pedagógica, e foram organizadas em relação a três
aspectos: A natureza da criança, As reações da criança e As técnicas educativas 3.
Apresentaremos aqui algumas das Invariantes, que serão comentadas adiante.
Estas foram escolhidas de acordo com a proposta do presente trabalho: a aproximação das
concepções de infância e de educação dos dois autores. As Invariantes são seguidas de
pequenos textos do próprio Freinet, numa tentativa de tornar a afirmação mais clara.
Invariante n° 1: A criança e o adulto têm a mesma natureza.
“A criança é como uma árvore que ainda não tendo terminado seu crescimento, se
nutre, cresce e se defende exatamente como a árvore adulta”.
Invariante n° 2: Ser maior não significa necessariamente estar acima dos outros.
“Suprima o pedestal, de repente você estará no nível das crianças. Você as verá
não com olhos de pedagogos e chefes, mas com olhos de homens e crianças, e com este ato
você reduzirá seguidamente a perigosa separação entre aluno e professor que existe na escola
tradicional”.
Invariante n° 4: A criança e o adulto não gostam de imposições autoritárias.
“É o que pretende a nossa pedagogia, passando ao máximo a palavra à criança,
proporcionando-lhe individual e cooperativamente, uma iniciativa máxima no âmbito da
comunidade, esforçando-se mais em prepará-la que em dirigi-la”
Invariante n° 7: Todos gostam de escolher seu próprio trabalho, mesmo que essa
escolha não seja a mais vantajosa.
“Dai às crianças a liberdade de escolher o seu trabalho, de decidir o momento e o
ritmo desse trabalho e tudo mudará.”
Invariante n° 20: Fale o menos possível.
“Quanto menos você falar, mais coisas você fará.”
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Invariante n° 28: Uma das primeiras condições de renovação da escola é o


respeito à criança e, por sua vez, a criança ter respeito aos seus professores; só assim é
possível educar dentro da dignidade.
“O antigo provérbio recomendado aos adultos é inteiramente válido nas nossas
aulas: Não faças aos outros o que não queres que te façam.”

6. Aproximações entre os dois autores

A primeira convergência que apontamos nos trabalhos dos dois autores diz
respeito à equiparação entre criança e adulto. Freinet, em suas Invariantes n° 1, 2 e 28, deixa
claro que seu pensamento pedagógico se apóia na supressão de uma hierarquia referente à
idade. Esta ideia é reforçada de maneira menos direta nas Invariantes n° 4 e 7, que tratam de
outros aspectos da prática pedagógica, mas criança e adulto aparecem, mais uma vez, como
sujeitos com os mesmos direitos. Na obra de Delalande, este aspecto aparece tanto no
aproveitamento da teoria de Piaget quanto na proposição da Pedagogia das Condutas
Musicais. O fazer musical de crianças e adultos são considerados da mesma natureza na
medida em que o foco é desviado do resultado sonoro para os comportamentos que o geram, e
a teoria dos jogos é tomada como ferramenta de descrição e entendimento da prática de quem
faz e escuta música. Delalande deixa ainda mais clara esta comparação quando afirma que

Não é apenas o estudo do comportamento musical dos adultos que nos


permite interpretar melhor a atividade sonora das crianças, mas,
reciprocamente, é o estudo do jogo infantil lançando luz sobre as invenções
e execuções do músico (Delalande, 1988: 3).

Somando as Invariantes à livre expressão, detectamos em Freinet, bem como em


Delalande, uma concepção de infância na qual a criança é um sujeito ativo e criativo, a quem
o educador deve dar voz. Tanto na Pedagogia Freinet quanto na Pedagogia das Condutas
Musicais, os procedimentos do professor devem seguir as necessidades expressas pelas
crianças em seus processos criativos. O entusiasmo com a produção das crianças e a estima
aos seus trabalhos fica evidente quando Freinet escreve sobre La Gerbe, revista do
Movimento Escola Moderna feita por crianças:

(...) demos assim numerosos exemplos das riquezas que são capazes de nos
oferecer as crianças que têm finalmente a possibilidade de se interessar pelo
mundo ambiente e de nos dizer sob a forma que convém ao seu
temperamento – prosa ou poesia, canto, desenho, inquéritos, contos,
atividades manuais – as suas necessidades verdadeiras sobre as quais
poderemos então construir uma sólida pedagogia (Freinet, 1976: 15).
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Esta postura educacional que dá voz à criança pode ser observada em


direcionamentos práticos de Delalande, em que ele afirma que o único meio de interferência
que o educador pode ter é o de controlar as condições nas quais se exercita a pesquisa sonora
da criança, vendo a criança como um verdadeiro criador. (Delalande, 1995: 5) Afirma ainda -
aqui concordando com a Invariante n°20 -, que o artifício mais banal e menos eficaz são as
indicações verbais. O professor deve, ao invés de dizer faça assim, criar condições em que a
criança tenha desejo de agir. (Idem: 6)
O exercício criativo através da pesquisa voluntária e livre das crianças é princípio
não só da Pedagogia das Condutas, mas tem seu lugar na Pedagogia Freinet sob o termo
tateamento experimental. Nesta última, é de extrema importância o

(...) trabalho de pesquisa reflexiva no ritmo próprio de cada aluno, sem a


interferência do professor. As descobertas que a criança faz sozinha são as
mais importantes e às vezes o professor, pensando ajudar, queima etapas e,
muitas vezes, desinteressa a criança. (Sampaio, 1989: 217)

Estes ideais de liberdade e autonomia no trabalho das crianças ainda são


observados nas Invariantes n° 4 e n° 7.
As concepções de educação e infância observadas nas obras dos dois autores nos
apontam a necessidade de explorar a complexidade dos pensamentos sobre educação musical,
admitindo que estes não precisam nem devem ficar no âmbito de músicas determinadas ou da
visão da criança como mera reprodutora. As inquietações de Delalande sobre as
especificidades da prática musical, independente dos produtos sonoros, e o incansável
tateamento de Freinet com seus alunos, buscando uma prática pedagógica transformadora,
incitam o despertar do novo, nos pensamentos e nas práticas de educadores e crianças.

Referências:

DELALANDE, François. La Música es un juego de niños. Trad.: Susana G.


Artal. Buenos Aires: Ricordi, 1995.

____________. L’educazione musicale da 0 a 6 anni. Bambini. Torino: Janeiro/1988.


Disponível em: <http://www.comune.torino.it/centromultimediale/bambini/bambini_88.htm>.
Acesso: 09/08/2012.

FREINET, Célestin. O texto livre. 2ª. Ed. Lisboa: Dinalivro, 1976.

PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Trad.: Maria Alice M. D’Amorim e Paulo


Sérgio Lima e Silva. 24ª Ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1964.
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SAMPAIO, Rosa M. W. F. Freinet: Evolução histórica e atualidades. São Paulo: Ed.


Scipione, 1989.

Notas

1
Disciplina oferecida no Programa de Pós-Graduação em Música da ECA – USP pela Profa. Dra. Maria Teresa
Alencar de Brito no primeiro semestre de 2012.
2
Fonte: www.francois-delalande.fr, acessado em 08/07/2012.
3
Originalmente publicadas em Pour l’école du peuple em 1946. Aqui apresentaremos a tradução contida em
Sampaio, Rosa M. W. F. Freinet: evolução histórica e atualidades. São Paulo: Ed. Scipione, 1989.

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