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As Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua


portuguesa (1574) de Pero de Magalhães de Gandavo: Estudo introdutório e
edição

Book · November 2019

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6 authors, including:

Carlos Assunção Rolf Kemmler


Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
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Gonçalo Fernandes Sónia Catarina Coelho


Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
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ORTÓGRAFOS PORTUGUESES 1

CENTRO DE ESTUDOS EM LETRAS

Assunção, Kemmler, Fernandes, As Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da


UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO

lingua portuguesa (1574) de Pero de Magalhães de Gandavo


Carlos Assunção, Rolf Kemmler,
Gonçalo Fernandes, Sónia Coelho,
Susana Fontes, Teresa Moura

AS REGRAS QUE ENSINAM A MANEIRA


DE ESCREUER A ORTHOGRAPHIA DA
LINGUA PORTUGUESA (1574) DE PERO
DE MAGALHÃES DE GANDAVO
Estudo introdutório e edição

Coelho, Fontes, Moura

1 VILA REAL - MMXIX


Carlos Assunção, Rolf Kemmler,
Gonçalo Fernandes, Sónia Coelho,
Susana Fontes, Teresa Moura

AS REGRAS QUE ENSINAM A MANEIRA DE


ESCREUER A ORTHOGRAPHIA DA LINGUA
PORTUGUESA (1574) DE PERO DE
MAGALHÃES DE GANDAVO

ESTUDO INTRODUTÓRIO E EDIÇÃO

COLEÇÃO O RT Ó G R AF O S P O RT U G U E SE S 1

CENTRO DE ESTUDOS EM LETRAS


UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO

VILA REAL • M M X I X
Autores: Carlos Assunção, Rolf Kemmler, Gonçalo Fernandes, Sónia Coelho,
Susana Fontes, Teresa Moura
Título: As Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa
(1574) de Pero de Magalhães de Gandavo: Estudo introdutório e edição
Coleção: ORTÓGRAFOS PORTUGUESES 1
Edição: Centro de Estudos em Letras / Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,
Vila Real, Portugal
ISBN: 978-989-704-386-4
e-ISBN: 978-989-704-387-1
Publicação: 29 de novembro de 2019
Índice

Prefácio ................................................................................................................................
V

Estudo introdutório:

1 Pero de Magalhães de Gandavo, o autor e a obra ................................................................


IX
1.1 Pero de Magalhães de Gandavo (fl. 1574-1576): esboço biográfico ................................
X
1.2 Uma questão de antroponímia: Gandavo ou Gândavo ................................ XII
1.3 A obra histórico-literária de Pero de Magalhães Gandavo ................................XIII
1.4 As Regras que ensinam a maneira de escrever (1574) ................................ XIV
1.4.1 Conteúdo ................................................................................................................................
XVII
1.4.2 O «Dialogo em defensaõ da lingua Portuguesa» ................................................................
XIX

2 As principais ideias ortográficas de Pero de Magalhães Gandavo ................................


XIX
2.1 Vocalismo ................................................................................................................................
XIX
2.2 A grafia de <i, j, y> e <u, v> vocálicos, semivocálicos e consonânticos ................................
XXI
2.3 Consonantismo ................................................................................................ XXII
2.4 Definições ................................................................................................................................
XXIV

3 Referências bibliográficas ................................................................................................


XXVI

Edição: Regras que ensinam a maneira de escrever 1-72


Prefácio

Com o título de Ortógrafos Portugueses, esta nova série do Centro de


Estudos em Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro tem
como foco principal a divulgação das obras dos ortógrafos portugueses
quinhentistas, seiscentistas e setecentistas e irá reunir estudos e edições
semidiplomáticas de todos os tratados metaortográficos portugueses do
século XVI até ao final do século XVIII. Numa primeira fase, os trextos
serão publicados em formato impresso, seguindose uma divulgação em
acesso aberto. Posteriormente, construir-se-á uma base de dados para
promover amplo acesso de cientistas da linguagem a um corpus de textos
metalinguísticos de caráter ortográfico mais representativos da língua
portuguesa que inclua a lematização de termos linguísticos e do léxico que
constitui cada obra.
Esta base de dados fornecerá informação essencial para as disciplinas da
linguística histórica e da historiografia linguística e permitirá que os
investigadores conheçam profundamente os instrumentos linguísticos da
língua portuguesa. Possibilitará, ainda, a realização de pesquisas interativas
por meio de interface tecnológica dinâmica, que permitirá livre e amplo
acesso da comunidade científica interessada nas ideias linguístico-
gramaticais do português.
Este tipo de edição impressa, ainda muito pouco frequente em Portugal,
em obras de carácter metalinguístico, tem, no entanto, sido elaborado com
bastante frequência, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, em
obras de cariz literário / cultural, por lusófonos ou lusófilos renomados como
sejam os casos de Álvaro Júlio da Costa Pimpão (1902-1984), Américo da
Costa Ramalho (1921-2013), Aníbal Pinto de Castro (1938-2010), Augusto
Magne (1887-1996), Avelino de Jesus da Costa (1908-2000), Evelina
Verdelho (n.1945), Giuseppe Tavani (1924-2019), Ivo de Castro (n.1945),
José Gonçalo Chorão Herculano de Carvalho (1924-2011), Joseph-Maria
Piel (1903-1992), Leodegário Amarante de Azevedo Filho (1927-2011),
Luciana Stegagno-Picchio (1920-2008), Luís Filipe Lindley Cintra (1925-
1991), Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989), Maria Helena da Rocha Pereira
(1925-2017), Maria Helena Mira Mateus (n.1931), Walter Mettmann (1926-
2011), entre alguns.
Os textos metalinguísticos impressos de natureza ortográfica escritos em
língua portuguesa encontram-se preservados em bibliotecas e arquivos um
pouco por todo o mundo e são uma importante fonte documental para a
constituição da disciplina da historiografia linguística de expressão
portuguesa. Esta disciplina, integrada no domínio das Ciências da
VI Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

Linguagem, tem vindo a ser consolidada, já desde 1974, ano da publicação


do primeiro número da revista Historiographia Linguistica, e da primeira
edição da International Conference on the History of the Language Sciences
(ICHoLS), que se realiza trienalmente desde 1978. Neste contexto,
lembramos, também, a criação da revista Histoire Epistémologie, Langage,
em 1979, e editada pela Société d'Histoire et d'Epistémologie des Sciences du
Langage, que, ao longo destes trinta e cinco anos, tem sido um lugar
privilegiado de divulgação dos conhecimentos produzidos na área da história
das ciências da linguagem, especialmente da linguística, gramática, retórica,
lógica, pragmática, filosofia da linguagem e semiótica.
Inicia-se esta série com a edição das Regras que ensinam a maneira de
escreuer a orthographia da lingua portuguesa (1574) do historiógrafo e
ortógrafo quinhentista Pero de Magalhães de Gandavo. Até 2001, este
primeiro tratado metaortográfico português teve um total de seis edições,
pelo que a presente, organizada por investigadores do Centro de Estudos em
Letras, constitui a sétima edição.
A série Ortógrafos Portugueses está projetada para reunir a totalidade dos
tratados metaortográficos do século XVI até ao final do século XVIII, a saber:

Volume 1: As Regras que ensinam a maneira de escreuer a


orthographia da lingua portuguesa (1572) de Pero de
Magalhães de Gandavo;
Volume 2: A Orthographia da lingoa portvgvesa (1576) de Duarte
Nunes de Leão;
Volume 3: A Orthographia, ov modo para escrever certo na lingua
portuguesa (1631) de Álvaro Ferreira de Vera;
Volume 4: As Regras Gerays, breves, & comprehensivas da melhor
orthografia (1666) de Bento Pereira;
Volume 5: A Ortografia da lingva portvgveza (1671) de João Franco
Barreto;
Volume 6: A Orthographia, ou Arte de escrever, e pronunciar com acerto a
Lingua Portugueza (1734) de João de Morais Madureira Feijó;
Volume 7: A Orthographia da lingua portugueza (1736) de Luís Caetano
de Lima;
Volume 8: O Compendio de Orthografia (1767) de Luís do Monte Carmelo;
Volume 9: A Orthographia da lingua portugueza, ou regras para escrever
certo (1783) de Francisco Félix Carneiro Souto-Maior;
Volume 10: O Breve tratado da orthografia para os que não frequentáraõ os
estudos (1792) de João Pinheiro Freire da Cunha;
Volume 11: Miscelânea de ortografias setecentistas
Prefácio VII

1 – A Prosa Grammatonomica Portugueza (1729) de Rafael


Bluteau
2 – As Regras da Orthografia da lingoagem portugueza (1738)
de Vitorino José da Costa;
3 – A ortografia no Verdadeiro metodo de estudar (1746) de
Luís António Verney;
4 – A Orthographía Philosophica da Lingua Portugueza (1783)
de Bernardo de Lima e Melo Bacelar
5 – Os opúsculos metaortográficos de Francisco Nunes
Cardoso (1788-1790)
5.1 A Arte, ou novo methodo de ensinar a ler a Lingua
Portugueza (1788);
5.2 O Exame critico das regras da Orthografia
Portugueza (1790);
5.3 A Arte da orthografia portugueza conforme o novo
systema (1790);
6 – O «Capitulo II da Orthographia» na Eschola popular das
primeiras letras (1796) de Jerónimo Soares Barbosa.

Para a edição semidiplomática destas obras, adotaram-se os critérios


que a seguir se enunciam:
a) manteve-se qualquer grafia original e conservaram-se todas as
variações gráficas encontradas, não se procedendo à correção de
formas do texto original mesmo que os editores as possam julgar
incorretas ou erradas existentes. Manteve-se, também, a pontuação
original, removendo-se, porém, todos os espaços antes dos sinais de
pontuação onde hoje não são habituais.
b) foram mantidas as letras maiúsculas ou minúsculas conforme se
encontram no texto original;
c) separaram-se as palavras em fim da linha indicada mediante um hífen,
mesmo quando ausente do texto original.
d) manteve-se o itálico existente ao longo do texto original;
e) mantiveram-se os carateres <u> ~ <v> e <i> ~ <j>, independentemente
do valor de vogal ou consoante;
f) uniformizaram-se as ocorrências do <ſ, ʃ, ß> longo com natureza
alográfica mediante o emprego do <s> redondo (<s, s, ss>);
g) substituíram-se os grafemas históricos como <C> (para et ou e) por <&>;
h) não se procedeu ao desdobramento da nasalação operada pela notação
léxica < ̃>, mantendo-se os demais sinais de abreviatura;
VIII Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

i) manteve-se da paginação e distribuição em linhas conforme o original;


j) indica-se do número de fólio ou da página original no fundo da página.
Estudo introdutório

1 Pero de Magalhães de Gandavo, o autor e a obra

Como se sabe, a Grammatica da lingoagem portuguesa (1536) do frade-


aventureiro Fernão de Oliveira (ca. 1507-1580/81) e a Grammatica da lingua
Portuguesa (1540) de João de Barros (ca. 1496-1570/71) foram as primeiras
obras metalinguísticas portuguesas impressas. Nestas obras, de reconhecida
importância para a história do pensamento linguístico português, a ortografia
da língua portuguesa surge pela primeira vez no âmbito de obras
metalinguísticas, já que os dois autores oferecem valiosas considerações
fonético-ortográficas sobre o português quinhentista. 1 É com as seguintes
palavras que Kemmler (2001: 169) enquadra o papel destas duas obras e de
materiais auxiliares como as cartilhas:2
Já vimos os dois textos com os quais, em 1536 e 1540, foram divulgados em letra
de forma, os primeiros resultados de uma reflexão metalinguística, dedicados à língua
portuguesa e orientada sobretudo para uma descrição fonético-fonológica da língua. Já
antes, (e depois) da obra de João de Barros, havia Cartilhas para aprender a ler e
escrever. Estas, porém, embora fossem obras de divulgação e de carácter popular,
devem ter sido orientadas mais para a aprendizagem da leitura em geral, e não
necessariamente do português, língua que então ainda estava longe de dominar a
prática escolar. Faltava-lhes a erudição necessária para os estudos que fossem para
além do elementar.
Foi neste âmbito que na segunda metade do século XVI foram impressos os
primeiros tratados de ortografia. Mas estes não se limitaram a dedicar-se unicamente à
ortografia: já se verifica neles a ocupação histórica com a língua que nas outras duas
obras não tem igual e que iria ser decisivo para os séculos vindouros.

Com efeito, o livrinho das Regras que ensinam a maneira de escrever


e Orthographia da lingua Portuguesa: com hum Dialogo que adiante se
segue em defensam da mesma lingua do bracarense Pero de Magalhães de
Gandavo constitui o ponto de início da tradição dos tratados
metaortográficos portugueses (veja-se também Gonçalves 1992: 38).

1
Fernão de Oliveira dedica-se àquilo que hoje seria considerado como grafemas, sons e
fonemas da língua portuguesa desde o «Capitolo seysto» até ao «Capitolo xviij»
(Oliveira 1536: fols. 5v-13v). Para um breve estudo das ideias ortográficas deste autor,
veja-se Kemmler (2001: 159-163). Barros (1540 fols. 40r-50r) oferece um capítulo
próprio intitulado «Da orthografia» que reúne as suas considerações sobre os grafemas e
os sons da língua portuguesa (cf. Kemmler 2001: 164-168).
2
Entre estas, será de destacar a «Cartinha» de João de Barros, datada de 1539 (cf. Barros
1971: 237-290). Veja-se também o pós-incunábulo da Cartinha (s.d.).
X Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

1.1 Pero de Magalhães de Gandavo (fl.1574-1576): esboço biográfico

Por mais importante que o autor seja quer para a historiografia linguística
portuguesa, quer para a historiografia brasileira, continuam a ser muito escas-
sas as informações que temos sobre ele. Assim, Diogo Barbosa Machado
(1682-1772) fornece a seguinte informação no terceiro volume da sua
Bibliotheca Lusitana:
PEDRO DE MAGALHAENS GANDAVO, natural da augusta Cidade de Braga, e
filho de Pay Flamengo, como denota o seu segundo apellido. Foy insigne Humanista, e
excellente Latino, de cuja lingoa abrio escola publica entre Douro, e Minho, onde foy
casado. Assistio alguns annos no Brasil, onde observou com judiciosa curiosidade tudo
quanto era digno de memoria [...] (Machado 1752, III: 591).3

Também o bibliógrafo oitocentista Inocêncio Francisco da Silva (1810-


1872) não consegue acrescentar nada à biografia fragmentária fornecida pelo
Abade de Sever:
PEDRO DE MAGALHÃES DE GANDAVO, natural da cidade de Braga, tido
por insigne humanista e bom latino. Consta que assistira no Brasil durante alguns
annos. Das datas do seu nascimento e morte nada ha por ora averiguado. – E. (Silva
1862, VI: 429).

Para além de modernizar o nome quinhentista 'Pero', ambos os


bibliógrafos referem vagamente a educação de Gandavo e a sua permanência
no Brasil, mas não mencionam qualquer data de vida.
No 12.º volume da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
(originalmente editado em 1936), encontramos essencialmente uma síntese
da informação fornecida pelos bibliógrafos:
GANDAVO (Pedro de Magalhães de). Escritor o séc. XVI, que foi professor numa escola
da antiga província de Entre-Douro-e-Minho. Era natural de Braga e viveu alguns anos no Brasil
(GEPB s.d., XII: 136).

Para além destas informações muito sumárias, o autor desconhecido do


verbete limita-se a retratar a história editorial das obras de Gandavo até
meados do século XIX.
Já José Gonçalo Herculano de Carvalho (1924-2001) oferece um pouco
mais de informações no seu artigo na Verbo: Enciclopédia Luso-Brasileira
de Cultura:

3
No Diccionario popular de Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895), as informações bio-
bibliográficas de Barbosa Machado encontram-se aproveitadas só com ligeiras
alterações na respetiva entrada no sexto volume (Chagas 1881, VI: 25).
Estudo introdutório XI

GÂNDAVO (Pêro de Magalhães de) – Humanista port. (Braga, ?-?, depois de 1579), «Insigne
humanista», no dizer de Barbosa Machado, teve escola pública de latim na sua província natal.
Autor da 1.ª ortografia port. entrou, com um Diálogo, na linhagem humanista, iniciada por Fernão
de Oliveira e João de Barros, dos defensores das excelências da nossa língua como idioma culto.
Residiu por duas vezes no Brasil (para onde em 1576 terá sido nomeado provedor da fazenda da
capitania do Brasil), sendo dele o primeiro historiador (Carvalho 1969, IX: 150).

Segundo o investigador conimbricense, o nosso autor terá falecido


posteriormente a 1579. No entanto, esta afirmação surge desprovida de
qualquer explicação, parecendo, apesar disso, encontrar geral aceitação na
literatura secundária moderna.4
Quanto à data de nascimento, é frequente a omissão, mas encontra-se
hoje com alguma frequência a indicação de que Gandavo terá nascido 'ca.
1540'. Ao oferecer a referência «[...] p. 35, n.º 71, alin. 33», Lins (2009: 11;
74) afirma que terá sido o bibliógrafo brasileiro Georges Henri Pierre
Raeders (1896-1980) quem trouxe a jogo esta data de nascimento na sua
Bibliographie franco-brésilienne (1551-1957), publicada em 1960.5
Ao considerarmos que, em última instância, a dúvida relacionada com os
dados biográficos do nosso autor não pode ser dirimida de maneira
satisfatória, não podemos deixar de concordar com a seguinte constatação de
Emmanuel Pereira Filho (1924-1968), que se recusa a inventar dados
biográficos duvidosos que não assentem em documentação verificável:
Assim, estamos vendo já uma coisa. A escassez de dados materiais sôbre o Autor
arrasta fatalmente todo e qualquer estudo ao campo da sua "poética personalità", único
elemento que podemos estudar sem a desagradável sensação do improviso leviano. O
documento realmente palpável e inconteste que nos ficou de Gândavo é sua obra e
enquanto os historiadores não arrancarem ao pó dos arquivos algo de mais concreto, a
ela teremos de nos ater, o que afinal não é de todo mau (Pereira Filho 1961: 10).

Assim, perante a impossibilidade de oferecer dados biográficos


fidedignos, parece-nos tão pertinente como preferível optarmos por uma
estratégia que prescinda de basear-se em dados vagos e, provavelmente,
errados. Assim, na senda cuidadosa de Pereira Filho, propomos que sejam

4
Semelhantemente, também Konrad Koerner (2008: 88) somente oferece a informação
limitada «Gandavo, Pero de Magalhaes (d. post1579)» no seu Universal Index of
Biographical Names in the Language Sciences. Já Martí (2009: 511) relativiza a
referência ao ano da morte do ortógrafo: «[...] d. 1579, exact dates and places of birth
and death unknown».
5
Infelizmente, ainda não conseguimos ter acesso a esta obra. Indicações como 'ca. 1540'
encontram-se em bibliotecas e repositórios como a Biblioteca Nacional Digital ou o
Registo Nacional de Objetos Digitais, mas também há propostas que parecem mais
seguras como a de Russo (2018: 12) que propõe '(1540-1579)'.
XII Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

considerados os anos de publicação das obras do autor, acrescentando-se a


abreviatura 'fl'. para floruit: (fl.1574-1576).

1.2 Uma questão de antroponímia: Gandavo ou Gândavo

Como evidencia o testemunho do filólogo brasileiro Evanildo Cavalcante


Bechara, a pronúncia – e por conseguinte a grafia – do último apelido do
nosso ortógrafo e historiador quinhentista é objeto de discussão e de revisão
há mais de sete décadas:
Em 1946, Pero de Magalhães volta a suscitar a atenção do público estudioso não
porque um historiador viesse trazer novos subsídios de interpretação a seu Tratado da
Terra do Brasil ou História da Província Santa Cruz, ou um filólogo focalizasse
aspectos de seus opúsculos gramaticais. A razão era tão somente a questão de pôr em
dúvida o tradicional uso de se proferir como paroxítono – Gandavo – o último
elemento aposto ao nome próprio daquele que Barbosa Machado considerara "insigne
humanista e excelente latino", natural de Braga e dos primeiros apaixonados do Brasil
(Bechara 1998b: 89).

Com efeito, foi o brevíssimo artigo «Gândavo, não Gandavo» (1946,


1947) de Joaquim da Silveira (1879-1972) que motivou à revisão prosódica
que se foi impondo em larga medida desde então. Como resposta de cariz
filológico, o contributo de Silveira (1947) incentivou a elaboração do artigo
intitulado «Pronúncia de nomes próprios: o problema Gandavo ou Gândavo»,
que Evanildo Bechara tem vindo a divulgar desde 1998.6 Dado que «[...] o Dr.
Joaquim da Silveira [...] defendia a tese de que a verdadeira pronúncia seria
Gândavo, proparoxítono, e não Gandavo», Bechara entende ser necessário
discutir e rebater a pertinência dos argumentos aduzidos por aquele estudioso,
uma vez que
a proposta do estudioso português mereceu o aplauso de quantos vieram posteriormente
a tratar de Pero de Magalhães, quer em enciclopédias, quer em trabalhos de natureza
histórica, literária ou lingüística, assinados por notáveis especialistas nestas áreas da
ciência (Bechara 1998b: 90).

Mais recentemente, o estudo «Gandavo, não Gândavo» de Rolf


Kemmler (no prelo) dedicou-se a esta questão ao tomar em conta o estudo
de Silveira (1946, 1947) e a resposta de Bechara (1998a, 1998b). Deste
estudo, resultam a apresentação e a discussão de um número considerável

6
O artigo «Pronúncia de nomes próprios: o problema Gandavo ou Gândavo» foi
publicado pela primeira vez em Bechara (1998a) e logo a seguir em Bechara (1998b).
Chegou a ser republicado várias vezes, e parece que a edição mais recente foi feita sob o
título «Gandavo ou Gândavo?» em Bechara (2010).
Estudo introdutório XIII

de fontes anteriormente desconhecidas, que permitem a conclusão de que


a grafia silveiriana <Gândavo> carece de justificação e pertinência, quer
no que respeita ao apelido português com a grafia mais correta
<Gandavo> e a sua correspondente pronúncia [gɐn'davʊ], quer no que
respeita ao topónimo latino Gāndāvŭm, com a penúltima sílaba longa.
Assim, ainda que a grafia silveiriana 'Gândavo' tenha prevalecido nos
estudos gandavianos de cariz historiográfico, literário ou historiográfico-
linguístico desde 1946, é a partir de Viana (1953) que nos deparamos com
um número cada vez maior de investigadores que referem explicitamente o
nome do nosso autor com a grafia de <Pero de Magalhães Gandavo>,
indicando assim uma pronúncia paroxítona. Estes são, entre outros, e numa
pesquisa não exaustiva: Almada (2011: 173), Costa (2010, 2017, 2018),
Gärtner (1997: 339), Grecco (2009: 27), Hart (1955: 412-413), Kemmler
(2001: 169-155; 2011; 2013: 148), Luz (2005), Maia (2010: 35, 48),
Martínez Pereira (2004), Maruyama (2001), Módolo / Negro (2017), Naro
(1971: 625, 644), Rosa (2015: 70, 120, 127; 2017: 102), Salas Quesada
(2005: 802), Silva (2012: 18), Verdelho (1994: 446). A este elenco de
investigadores acresce ainda a ficha biográfica para o CTLF de Augusto /
Kemmler / Assunção (2015), bem como a edição Tratado da terra do Brasil:
História da Província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil,
recentemente organizada pelo Senado Federal do Brasil (Gandavo 2008),
que implicitamente aposta na pronúncia paroxítona do antropónimo.

1.3 A obra histórico-literária de Pero de Magalhães Gandavo

Dois anos antes da sua obra metaortográfica, o cronista bracarense estreou-se


no campo da historiografia com a Historia da prouincia sãcta Cruz a que
vulgarmẽte chamamos Brasil. Trata-se de um opúsculo de 48 fólios em
formato in-quarto, impresso pelo lisboeta António Gonçalves, datando as
licenças de impressão entre 10 de novembro de 1575 e 4 de fevereiro de
1576 (Gandavo 1576: fol. 2v).
Com efeito, a Historia da prouincia sãcta Cruz constitui a primeira obra
historiográfica do Brasil, oficialmente 'achado' pouco mais de sete décadas
antes.7 Para além disso, existe ainda o manuscrito quinhentista «Tractado da

7
Após a edição princeps, a História foi objeto de duas edições simultâneas no ano de
1858, uma promovida pela Academia das Ciências de Lisboa (ACL; cf. Gandavo
1858a) e outra no número 21 da Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro
(cf. Gandavo 1858b; o número da revista que foi reeditado em 1930; cf. Gandavo 1930).
A partir daí, as suas edições foram-se multiplicando, sobretudo no Brasil.
XIV Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

Terra do Brasil no qual se cõtem a informação das cousas que ha nestas


partes» que só foi impresso no século XIX.8

Gandavo (1576: fol. 2r) e Gandavo (s. d.: fol. 1r).

1.4 As Regras que ensinam a maneira de escrever (1574)

O primeiro tratado ortográfico propriamente dito da língua portuguesa


surgiu na segunda metade do ano de 1574, em Lisboa, tendo sido
impresso na oficina de António Gonçalves, impressor d'Os Lusíadas
(1572). Trata-se das Regras que ensinam a maneira de escrever e
Orthographia da lingua Portuguesa: com hum Dialogo que adiante se
segue em defensam da mesma lingua de Pero de Magalhães de Gandavo,
que é uma obra de apenas 36 fólios não paginados.9

8
O Tratado foi publicado pela primeira vez no quarto volume da Collecção de noticias
para a historia e geografia das nações ultramarinas da ACL (Gandavo 1826). Veja-se,
também, a edição preparada por Pereira Filho (Gandavo 1965).
9
Cf. Gandavo (1574: 1-72). O opúsculo não tem contagem de fols., mas a edição fac-
similada possui paginação. Nota-se, porém, que a introdução de Buescu (1981: [III]-
[XXXIII]) – aliás sem indicar uma paginação – conta os fols. de uma maneira difícil
de entender: fol. 3r é, com ela, fol. 2 v, etc. Parece que Buescu começou a contagem
na folha vazia que vem depois do rosto. Princípios de filologia, seguidos tanto por
Pereira Filho (1961), como por Nagel (1969), exigem uma contagem a partir do rosto
até ao último fólio. Desta maneira, quase todas as citações que a investigadora retira
das Regras não estão certas (p.ex. p. VI, notas. 1, 2, 4, 5; pp. [XI], [XII] n. 1; p. [XIII]
Estudo introdutório XV

Gandavo (1574: fol. 1r).

Este tamanho reduzido não impediu que a obra se tornasse o tratado


ortográfico com maior êxito livreiro anterior ao de Madureira Feijó (séc.
XVIII). Pelo que parece, houve, ainda no século XVI, pelo menos mais
duas edições, fazendo as Regras parte do conjunto Exemplares de diversas
sortes de letras, tirados da Polygraphia de Manuel Baratta escriptor
portugves, acrecentados pello mesmo autor [...] de Manuel Barata
(ca.1549-pós-1584, cf. Duque 2012: 297), no qual surgem providas de um
rosto próprio. 10 Na sua totalidade, as edições e reimpressões da obra
apresentam-se como segue:

nn. 2, 3; p. [XIV], nn. 2, 3, etc.), algumas até mesmo erradas (p. [VII], nn. 1, 2; p.
[XIV], n. 1; p. [XIX], n. 3). Em caso de uma reedição do fac-símile de 1981, seria,
portanto, muito desejável fazer uma revisão pormenorizada do texto introdutório.
Lamentavelmente, foi o que não se fez quando este texto foi reproduzido nas páginas
111-141 da Historiografia da Língua Portuguesa da mesma autora (Buescu 1984b).
10
Devido a esta inclusão do tratado ortográfico numa obra miscelânea que reúne outros
elementos bibliográficos como o tratado de caligrafia de Manuel Barata (1590, 2009) e
o Tratado de Arismetica com muyta diligencia emmendado (Nicolás 1590) do
matemático espanhol Gaspar Nicolás (fl. séc. XVI), as informações bibliográficas de
que dispomos são bastante confusas. Contrariamente ao que dizem Silva (1862, VI:
430), e Buescu (1981: [VI] e [XXXIII]), o estudo atento das indicações de Anselmo
(1977), permite a conclusão de que devem existir apenas duas reedições quinhentistas:
XVI Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

(11574): Regras qve ensinam a maneira de escreuer e orthographia da lingua Portuguesa:


com hum Dialogo que a diante se segue em defensam da mesma lingua, Avtor
Pero de Magalhães de Gandauo, Em Lisboa: Na officina de Antonio Gonsaluez.
(21590): Regras qve ensinam a maneira de escrever a orthographia da lingva Portuguesa:
com hum Dialogo que adiante se segue em defensão da mesma lingua, Avtor Pero
de Magalhães de Gandauo, em Lisboa: por Belchior Rodriguez; Vendemse em
casa de Ioão d'Ocanha, liureiro.
(31592): Regras qve ensinam a maneira de screver a orthographia da lingva Portuguesa:
com hum Dialogo que adiante se segue em defensão da mesma lingua, Autor Pero
de Magalhães de Gandauo, em Lisboa: em casa de Alexandre de Siqueyra;
Vendemse em casa de Ioão d'Ocanha liureiro.
(41969): Rolf Nagel: «Die Orthographieregeln des Pêro de Magalhães de Gândavo», em:
Aufsätze zur Portugiesischen Kulturgeschichte: Portugiesische Forschungen der
Görresgesellschaft 1/9, páginas 110-135.
(51981): Regras que ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa:
Com o diálogo que adiante se segue em defensão da mesma língua, Edição fac-
similada da 1.a Edição, Introdução de Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa:
Biblioteca Nacional,
(62001): Tōru Maruyama: Keyword-in-Context-Index of the Regras que Ensinam a
Maneira de Escrever e a Orthographia da Lingua Portuguesa (1574) By Pero
de Magalhães de Gandavo, Nagoya: Department of Japanese Studies, Nanzan
University.

Depois do 'êxito editorial' (Buescu 1984a: 25) das três impressões


quinhentistas, não surgiram reedições até à década de 1960.11 Com efeito, o
lusitanista alemão Rolf Nagel foi o primeiro investigador moderno a reeditar
o texto gandaviano, apesar de constar que Emmanuel Pereira Filho (1961)
teria, anteriormente, preparado uma edição crítica nunca publicada.12

a 2.ª edição, impressa por Belchior Rodrigues, Lisboa, 1590, cf. Anselmo n.º 999,
(fazendo o opúsculo de 16 fols. parte da Polygraphia, impressa por António Álvares,
Lisboa, 1590, cf. Anselmo n.º 13) e a 3.ª edição, impressa por Alexandre de Siqueira,
Lisboa, 1592, cf. Anselmo, n.º 1063 (fazendo o opúsculo de 12 fols. parte da
Polygraphia, do mesmo impressor, Lisboa, 1592, cf. Anselmo, n.º 1061).
11
Na verdade, o opúsculo seiscentista apenas foi mencionado de maneira passageira
nos artigos em que Noronha (1881), Gonçalves (1936: 9, 12), Vasconcelos (1929:
867), Vasconcelos (1933) e Pinto (1961: 126) mencionaram ortografias históricas
portuguesas.
12
Para justificar a edição por ele elaborada, é com as seguintes palavras que Nagel
(1969: 111) comenta o seguinte: «Im Jahre 1965 veröffentlichte der brasilianische
Gelehrte Emmanuel Pereira Filho den Tratado da Província do Brasil [...] in einer
kritischen und kommentierten Ausgabe. Aus der Bibliographie geht hervor, daß von
den Regras bis dato noch keine moderne Ausgabe erschienen ist. Pereira Filho, der
sich intensiv mit Pêro de Magalhães de Gândavo beschãftigt hat, verweist auf eine
eigene Arbeit aus dem Jahre 1961. Der erstaunte Leser findet dort eine Einleitung zu
Estudo introdutório XVII

Mais recentemente, a Secretaria de Estado da Cultura publicou a


conhecida edição fac-similada dentro da coleção de fac-símiles da
Biblioteca Nacional, acompanhada por uma «Introdução» de Maria Leonor
Carvalhão Buescu (1932-1999). A esta quinta edição junta-se, enfim, o
Keyword-in-Context-Index, uma concordância de [VI], 84 páginas que foi
elaborada e dada à luz em formato livro pelo lusitanista japonês Tōru
Maruyama, em 2001, como sexta edição.
Numa comparação destas referências bibliográficas, observa-se alguma
variação entre a editio princeps gandaviana e as edições seguintes. Assim,
se Gandavo (1574: fol. 1r) usa a conjunção coordenativa em «[...] escreuer e
orthographia [...]», as outras duas edições quinhentistas dão preferência ao
artigo definido, pois mudam o título para «[...] escreuer a orthographia [...]»
(cf. Gandavo 1590: fol. 1r, Gandavo 1592: fol. 1r). Já na edição fac-similada
da Biblioteca Nacional e na edição preparada de Maruyama (2001),
encontramos uma solução que junta a conjunção e o artigo: «[...] escreuer e
a orthographia [...]» (cf. Gandavo 1981: [I]; Maruyama 2001: [I]).

1.4.1 Conteúdo

Com base na editio princeps, a estrutura das Regras de Gandavo pode ser
representada da seguinte forma:
fólios conteúdo

1r [rosto]
1v [página em branco]
2r [licenças]
2v [dedicatória] A elRey nosso senhor.

einer kritischen Edition der Regras und – nichts weiter. Daß es sich um die Einleitung
handelt, an die sich der Text anschließen soll, ist nicht zu bezweifeln; denn der
Verfasser dankt dem Verlag (p. III) und begründet seine Editionskriterien (p. XXIVf.).
Nur, der Text Gândavos ist nicht gefolgt».
[No ano de 1965, o estudioso brasileiro Emmanuel Pereira Filho publicou o
Tratado da Província do Brasil [...] numa edição crítica e comentada. Da bibliografia
consta que nenhuma edição moderna das Regras foi publicada até à data. Pereira
Filho, que estudou intensivamente Pêro de Magalhães de Gandavo, faz referência ao
seu próprio trabalho de 1961. O leitor admirado encontrará uma introdução a uma
edição crítica das Regras e – nada mais. Não há dúvida de que esta é a introdução à
qual deve seguir o texto; pois o autor agradece ao editor (p. III) e justifica os seus
critérios de edição (p. XXIV-XXIX). Só o texto de Gandavo não seguiu].
XVIII Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

fólios conteúdo

3r-5r PROLOGO AO LECTOR.


De como se ha de fazer differença na pronunciação de algũas letras
5r-7v
em que muitas pessoas se costumão enganar.
¶ DAS LETRAS COM que se escreue, & syllabas que se formão
8r-8v
dellas.
Dos lugares onde se hade vsar destas letras maiusculas, & das
9r-9v
pausas & distinções que se requerem no discurso das escripturas.
10r ¶ DO QVE SE POEM per parenthesis.
10v ¶ Do que se ha de pôr com interrogação.
¶ DOS SINAES QVE SE hão de vsar quando se não acabar a dição
11r-12v
no fim da regra, & de como se ha de fazer esta diuisaõ.
¶ DOS ACCENTOS QVEse hão de vsar em algũas letras, ou
13r-14v
vocabulos que teuerem duuidosa a significação.
¶ DAS LETRAS SVPERfluas que se hão de vedar nas partes onde
14v-15v
não forem necessarias
15v-16r ¶ DE COMO SE HAõ DE escreuer os nomes & verbos compostos.
16r-16v ¶ Da pronunciação G.
16v-18r ¶ DAS PARTES A QVE se ha de ajuutar esta aspirção H.
¶ DE QVE MANEIRA & em que lugares se ha de vsar desta letra I,
18r-19r
& onde hade ser grego.
19r-19v ¶ DOS LVGARES onde se ha sempre de seguir M.
19v-20r ¶ DE COMO SE HA DE vsar desta letra R.
20r-20v ¶ DE COMO SE HA DE vsar desta letra V.
SEGVESE HVM Dialogo em defensaõ da lingua Portuguesa, sobre
a qual tem disputa hum Portugues com hum Castelhano, onde por
21r-36v
se tratar desta materia vsa cada hum de sua linguagem na maneira
seguinte.

Entre os dezassete capítulos do opúsculo, quatro estão relacionados


com a pontuação e oito deles são dedicados à relação entre os sons e a
respetiva grafia. Note-se que 16 dos 36 fólios (ou 44,4%) correspondem ao
«Dialogo em defensaõ da lingua Portuguesa», que apresentaremos
brevemente em seguida.
Estudo introdutório XIX

1.4.2 O «Dialogo em defensaõ da lingua Portuguesa»

Como vimos supra, pouco menos de metade das Regras é ocupada pela
prosa dialogada intitulada «Dialogo em defensaõ da lingua Portuguesa». Este
diálogo metalinguístico, reproduzido juntamente com todas as edições das
Regras, insere-se na tradição epistemológica que João de Barros (1496-1570)
estabeleceu em Portugal através do «Dialogo em lovvor da nossa
lingvagem» (Barros 1540: fols. 50v-60v; Barros 1971: 390-410).
Depois do artigo histórico de Williams (1936), consta que o diálogo
gandaviano ainda foi estudado por Buescu (1978: 45-47) e Buescu (1981),
Costa (2004), Hue (2007), Vicente (2008), Silva Filho (2009), Celani (2012:
86-90), Duarte (2017), Russo (2018: 12-13) e Passerini (2019). Para além
disso, também se encontram referências algo passageiras em artigos como os
de Cagliari (1994: 110), Martínez Pereira (2004: 235) e Maia (2010: 35).
Para além das edições do conjunto metalinguístico de Gandavo supra
mencionado, Hue (2007: 67-78) elaborou uma edição 'atualizada' do texto ora
intitulado «Diálogo em defesa da língua portuguesa», em que a autora se
serviu, com algumas exceções, das ortografias modernas brasileira e espanhola
que estavam em vigor na época em que preparou a edição (Hue 2007: 37).

2 As principais ideias ortográficas de Pero de Magalhães Gandavo13

2.1 Vocalismo

Contrariamente de Fernão de Oliveira (1536; cf. Kemmler 2001: 159-161) e


João de Barros (1540; cf. Kemmler 2001: 164-166), nas Regras, Gandavo
não prevê um uso constante de sinais diacríticos e de grafemas especiais para
indicar o timbre ou a tonicidade das vogais.14 Assim, o ortógrafo propõe o
uso de acentos somente «[...] em algũas letras, ou vocabulos que teuerem

13
O presente capítulo constitui uma versão revista dos capítulos 3.2.1.1 e 3.2.1.2 de
Kemmler (2001: 170-175). Para referências adicionais relativas a Gandavo e à sua
obra, cf. Augusto / Kemmler / Assunção (2015).
14
Para informações que vão para além da nossa breve exposição das principais regras
de uso de uma acentuação gráfica nos tratados metaortográficos desde quinhentos
até Madureira Feijó, cf. o artigo de Araújo / Maruyama (1991). Convém, no entanto,
advertir que os dois autores também tomam em consideração o uso posto em prática
ao longo do texto metaortográfico.
XX Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

duuidosaa significação» (Gandavo 1574: fol. 13 r). Neste sentido, Gandavo


(1574) prevê o uso do acento nas seguintes circunstâncias:15
a) no resultado da crase do artigo feminino a com a preposição a, que se
grafa como à, no plural âs (Gandavo 1574: fol. 13 r);16
b) nas formas verbais da terceira pessoa do atual pretérito mais-que-perfeito
simples (alcançàra, louuára, agradecéra), para assim as distinguir das
respetivas formas do futuro imperfeito (alcançará, louuará, agradecerá,
cf. Gandavo 1574: fol. 14 r).17
Encontra-se, ainda, outro uso explícito de um acento no caso de <ô>
(hoje ó) com função de vocativo:
Vos ô poderoso Senhor valeinos, ô grão Rey ajudainos (Gandavo 1574: fol. 13 v).18

No capítulo que se dedica às vogais e à sua acentuação não se


encontram mais regras, mas o autor, provavelmente devido à preocupação
com a brevidade da obra acrescenta ainda que

15
É verdade que, no texto original (p. ex. Gandavo 1574: fol. 13r e 13v), o uso real de
diacríticos oscila entre os acentos agudo e grave, embora prevaleça o primeiro. No seu
artigo sobre a acentuação de facto nos tratados metaortográficos históricos, Araújo /
Maruyama (1991: 86) apresentam exemplos de trechos que mostram
convincentemente que Gandavo (ou o tipógrafo António Gonçalves) não terá
distinguido funcionalmente os três acentos. Parece evidente que Nagel (1969: 118) se
terá baseado em considerações parecidas na sua 4.ª edição, pois preferiu transcrever
estes casos de acentuação incoerente de maneira uniforme com o acento agudo.
16
Embora considere que seja desnecessária, Gandavo 1574: fol. 13v) ainda admite a
grafia do produto da crase como <aa>, em que a duplicação da vogal tem o papel de
sinal diacrítico. Para além disso, também se observam três ocorrências da grafia
<â> (Gandavo 1574: fol. 4v, 5r, 18v).
17
Não deixa de ser interessante que Gandavo propõe neste âmbito o uso de <-m> nas
terceiras pessoas do plural do pretérito perfeito simples (alcançaram, louuaram),
enquanto favorece a grafia <-ão> para as respetivas formas do futuro (alcançarão).
Apesar de Gandavo apresentar a sua proposta bastante inovadora de oferecer formas
distintivas, em seguida admite a grafia concorrente com <-m> para ambos os casos.
Julgamos que esta consideração poderá ser interpretada como uma concessão do
ortógrafo ao uso do seu tempo.
18
Buescu (1981: [XIII]) conclui de maneira coerente: «A aplicação ortográfica do próp-
rio texto gandaviano parece apontar para o timbre aberto de ô: sô = só, ainda que pen-
semos que a práxis tipográfica só sob caução pode ser considerada como probatória».
Estudo introdutório XXI

Alem destes ha outros muitos vocabulos, em que he necessario vsarse deste & doutros
accentos, pera que melhor se saibão pronunciar, & entender a significação delles. Mas
por agora não quis tratar aqui, senão destes em cuja significação pode auer duuida não
se vsando do tal accento que acima fica declarado (Gandavo 1574: fol. 14r-14v).

Convém, ainda, mencionar alguns exemplos de palavras que surgem


acentuadas no próprio texto, ainda que com pouca frequência, e cujo caso
não foi referido explicitamente pelo ortógrafo: fôra (Gandavo 1574: fol.
10r; o contexto dá para entender que a pronúncia da palavra em questão
deve ser ['fŒrɐ]), está (Gandavo 1574: fols. 11v, 12v, 18v et passim),19 pôr
(Gandavo 1574: fols. 6r, 10v, 25r et passim); pôrseha (Gandavo 1574:
fols. 10r, 11r, 13v et passim), sô (Gandavo 1574: fols. 5v, 8r, 9v et
passim).20 A partir dos poucos exemplos que surgem no texto, verifica-se
que os três acentos não são atribuídos rigorosamente a sílabas abertas ou
fechadas, sendo que em muitos casos qualquer um dos três acentos
pode(ria) ser usado. O ortógrafo prevê, portanto, sobretudo acentos na
sílaba tónica, mas com «[...] função gráfica distintiva e impeditiva da
homonímia [...]» (Buescu 1981: [XIII]).

2.2 A grafia de <i, j, y> e <u, v> vocálicos, semivocálicos e consonânticos

Para além do que se referiu supra, as Regras não se ocupam muito mais
com os sons vocálicos. Os ditongos parecem não ter interesse para o autor.
Mesmo assim, encontramos informações sobre o tratamento deles quando
trata da questão das grafias <i, j, y>.
São consideradas lícitas as grafias com <i, y> sempre que se usa a
vogal [i] propriamente dita, com <j> consoante com valor de [ʒ], tanto em
posição inicial (jornada) como em posição intervocálica (sobeja) e <i, y>
com valor de semivogal anterior [ɪ̯ ] só quando, em ditongo, se encontra
precedida por outra vogal, seja em posição medial (joya, mayor, saiba) ou
final (Rey, foy, cf. Gandavo 1574: fols. 18r-19r).
Gandavo (1574: fols. 18v-19r) realça ainda que o grafema <y> não só
se poderia usar em palavras que o têm por origem, mas, baseando-se no
uso corrente, facultativamente, com a função de representar a semivogal
anterior [ɪ̯ ].

19
Observa-se também a variação gráfica estâ (Gandavo 1574: fol. 3v).
20
Para além disso, encontram-se as variantes só (Gandavo 1574: fols. 19v, 12v) e
sómente (Gandavo 1574: fols. 3v, 34r).
XXII Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

Para a fricativa [v], Gandavo preconiza a grafia <v-> em posição


inicial, mas <-u-> no contexto intervocálico e medial. Tendo em conta o
seu desinteresse em relação aos ditongos, percebe-se que não mencione
explicitamente a semivogal anterior [ʊ̯] neste contexto.

2.3 Consonantismo

Uma grande preocupação do nosso ortógrafo é a distinção fonológica


e gráfica das sibilantes. No primeiro capítulo do opúsculo, de forma a
evitar a pronúncia e grafia incorretas, o autor estabelece uma série de
oposições fonológicas, distinguindo claramente os grafemas <s->,
<VsC>, 21 <CsV>, <-ss->, <c>, <z> e <VsV>. Ao proibir que se
troquem os grafemas, Gandavo (1574: fols. 6r-6v) dá para entender
que os sons, embora parecidos, são diferentes e introduz os pares
mínimos passos ~ paços, cozer ~ coser, cervo ~ servo, cella ~ sella.
Destes exemplos e da sua explicação, que lhes segue, pode-se concluir
que Gandavo atribui às variantes grafemáticas <s->, <VsC>, <CsV>,
<-ss->, <ce,i> o som de [s],22 a <s> o som de [s̺ ]23 e a <z> o som de
uma africada que parece afirmar ser [d͡ z]. 24 Pelos vistos, o nosso

21
Para indicar a posição de um dado grafema, recorremos às seguintes opções: p. ex.
para o grafema <s> na posição medial até agora sempre usámos <-s->, nas
ocorrências inicial <s-> e final <-s>. Julgamos, porém, conveniente introduzir
também o posicionamento entre consoantes e vogais. A fim de evitar confusões,
usaremos, sempre que for necessário, <V> (maiúsculo) para representar um
ambiente vocálico e <C> (maiúsculo) para representar um ambiente consonântico.
Estas abreviaturas vêm indicadas sem hífen, com o grafema em análise em
minúsculo, sendo, p.ex., a posição medial entre vogais ou entre vogal e consoante
indicada como <VsV>, <CaV>, etc.
22
Gandavo (1574: fol. 7r) até chega a dar-nos uma descrição articulatória detalhada:
«[...] entendam que quando pronunciarem qualquer dição com c, hão de fazer força
com a lingua nos dentes debaixo de maneira, que fique algum tanto à ponta
dobrada pera dentro [...]».
23
Cf. Gandavo (1574: fols. 7r-7v): «[...] quando for com s, porão a lingua mais
folgadamente pera cima que fique soando a pronunciação á maneira de assuuio de
cobra, que esta foy a causa porque os Antigos formàram o s, da feição da cobra [...]».
24
Gandavo (1574: fol. 7v): «Quanto esta letra z, composerão os Gregos de duas
letras, conuemasaber, do s, & do d, & assi a pronunciação della não he outra
cousa, senão a de hum s, carregado por respecto daquelle d, que lhe formão diante,
o qual d, não deixa soltar a lingua tão liuremente como quando o mesmo s, per si
se pronuncia». A descrição feita por Gandavo parece indicar que ainda considerava
usual algo como a africada alveolar sonora [d͡z]. Tal procedimento talvez possa ser
Estudo introdutório XXIII

ortógrafo tenta desta maneira remediar com estas explicações as


dificuldades ortográficas que se devem à simplificação fonológica do
sistema das sibilantes, nomeadamente a confusão entre as fricativas
pré-dorso-alveolares [ʃ, ʒ] e as correspondentes fricativas ápico-
alveolares [s̺ ] e [z̺ ] de formação etimológica. 25
De maneira algo mais sistemática do que Oliveira (1536) e Barros
(1540), Gandavo prevê o uso de grafemas com função distintiva. Assim,
quando <ge,i> tem o valor de [g], o ortógrafo insiste no uso de <u>:
<gue,i>. Esta combinação grafemática serve para distinguir o som tanto na
sequência <ga,o> = [g], como de <gua,o> = [gw].
Também a 'aspiração'26 <h>, para além da sua função etimológica (ha,
ah, hum, hũa, hia, hi), pode servir de diacrítico, assumindo a função
distintiva ao ser usada para distinguir a forma verbal he (terceira pessoa
do singular do presente do indicativo de ser) da conjunção coordenativa e
(Gandavo 1574: fol. 17 r).27
As Regras merecem ainda destaque por tratarem de maneira concisa,
mas sistemática, tanto de questões de pontuação, como, provavelmente pela
primeira vez no texto metaortográfico português, da maiusculação. Relativo
a este último aspeto, Gandavo (1574: fols. 9r-9v) prescreve regras simples,
nomeadamente em todas as formas onomásticas, toponímicas, nos nomes
dos doze meses e, naturalmente, no início de uma frase.
Encontramos ainda um tratamento explícito da divisão silábica
(Gandavo 1574: fols. 11r-12v) e das consoantes dobradas, que são usadas
especialmente nas formas nominais e verbais prefixadas (accidente,

explicado pelo facto de ele ser oriundo do Norte de Portugal, ou seja, de uma área
conhecida por ser linguisticamente conservadora, como justamente realça Teyssier
(1982: 104), quando trata da manutenção do sistema das quatro sibilantes.
25
A este respeito, cf. também Teyssier (1982: 50 e 104 [nota 31]).
26
Identificando-o como 'letra', Gandavo (1574: fols. 8r, 16v) identifica este grafema
etimológico como 'aspiração' (ou mesmo 'aspirção' em Gandavo 1574: fol. 16v),
mas, ao contrário de Oliveira (1536) e Barros (1540), não tenta explicar o fenómeno
gráfico com argumentos fonéticos.
27
O nosso ortógrafo dá-nos aqui uma indicação muito interessante dos costumes
ortográficos do seu tempo. Ele declara facultativa a grafia <he> ou <é>, mas restringe
logo a aplicação da segunda forma: «Mas porque com este accento he muito pouco
vsado, & muitas pessoas o auerão por nouidade, ignorando pela ventura o que o tal
accento denota, pareceme que sera mais acertado & melhor escrevello com h, por ser
costume mais claro & facil a todos, que destoutra maneira que digo (saluo meliori
iudicio)» (Gandavo 1574: fol. 17r-17v).
XXIV Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

affirmo, innumeravel; cf. Gandavo 1574: fol. 15v) quando exigido pela
etimologia. Aderente, em alguns casos, à grafia de consoantes dobradas,
Gandavo (1574: fols. 15r e 19v-20r) proíbe, porém, de maneira categórica
a grafia da maiúscula <-R-> no meio de palavras, como também de <rr->
no início de palavras e depois de consoante nasal ou lateral.

2.4 Definições

Devido ao caráter sucinto das Regras gandavianas, é algo difícil encontrar


e retirar do texto definições que permitam uma comparação com
definições tradicionais.
No que respeita à definição da ortografia, destacam-se as palavras
seguintes do autor quando este refere:
[...] saber bem guardar a orthographia, pondo em seu lugar as letras & os accentos
necessarios que se requerem no discurso das escripturas (Gandavo 1574: fol. 3 r).

Quanto ao alfabeto, Gandavo afirma o seguinte:


NESTA arte do escreuer ha vinte letras, ou vinte & hua com este y grego, a fora h, que
lhe não chamão os Latinos letra, senão aspiração. Destas vinte & hua, são seis vogaes
& quinze consoantes. As vogaes são estas, a, e, i, o, u, y. As consoantes as mais que
restão. [...]
Tambem he necessario saber fazer todas estas letras grandes (ou maiusculas por
melhor dizer como lhe chamão os Latinos) pera vsarem dellas (como a diante direy)
nas partes onde forem necessarias. As quaes se fazem desta maneira seguinte. A, B, C,
D, E, F, G, H, I, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, V, X, Z, Y (Gandavo 1574: fols. 8r-8v)

Ao contrário da tradição, não encontramos em Gandavo nenhuma


definição do conceito tradicional de letra, ainda que estejamos perante o
primeiro tratado metaortográfico da língua portuguesa.
Se bem que não se trate aqui de uma definição propriamente dita,
podemos constatar que a compreensão do conceito da ortografia por Gandavo
é eminentemente orientada pelo exercício prático da escrita. O mesmo deixa
transparecer a noção do seu alfabeto.
Trata-se de um abecedário reduzido, em comparação com o que poucas
décadas antes apresentaram Oliveira (1536) e Barros (1540), o que Buescu
(1981: [XII]) identifica como 'recessão alfabética'. O que temos aqui é, no
fundo, nada mais do que o alfabeto latino que já se conhece: ainda que o autor
inicialmente refira um alfabeto de vinte e um carateres, inclui, de facto, vinte
e três. Neste sentido, embora Gandavo inclua <h, k, x> no seu repertório
alfabético, parece óbvio que não atribui aos dígrafos tão típicos para o
português (como p.ex. <ch, nh, lh>) ou para a transcrição latino-portuguesa
Estudo introdutório XXV

do grego (como p.ex. <ph, rh, th> para <φ, ρ / ϱ, ϑ / θ>) o estatuto de 'letras',
ou seja, de grafemas. Esta postura não está muito longe da consagrada no
português atual.28
Para terminar, convém realçar mais uma vez a forma como Gandavo se
preocupou em analisar e representar graficamente a etimologia de uma
palavra. Esta preocupação surge associada ao objetivo de respeitar, tão
fielmente quanto possível, a pronúncia correta da qual o ortógrafo só se desvia
quando se justifica pela etimologia ou pelo uso. 29 Não será, por isso,
descabido marcar com o opúsculo gandaviano o início da inclusão expressa
de ideias etimológicas e etimologizantes no texto metaortográfico português.

Com as Regras que ensinam a maneira de escrever e Orthographia


da lingua Portuguesa, o ano de 1574 marca o início de produção de tratados
metaortográficos da língua portuguesa que vão alcançar o seu apogeu no
século XVIII.
Com efeito, este opúsculo metaortográfico pode ser considerado uma obra
de grande sucesso. Com nada menos do que três edições quinhentistas,
as Regras tiveram até agora seis edições, pelo que a presente edição deve ser
considerada a sétima. Apesar de ser um tratado de dimensão reduzida, obteve
bastante sucesso editorial na época, sendo apenas ultrapassado séculos mais
tarde pela Ortografia de Madureira Feijó.
Em termos de ideário metaortográfico, destaca-se o facto de Gandavo se
mostrar marcadamente preocupado com a representação gráfica da etimologia,
mesmo que as suas considerações não sejam ainda tão sistemáticas como
pouco mais tarde se veria na obra de Leão (1576).

28
Ao contrário do que acontece nos primórdios da lexicografia portuguesa, basta ver a
ordem de <ch, lh, nh> num dado dicionário: modernamente, estes dígrafos
deixaram de ser considerados grafemas próprios do português.
29
Cf. também Nagel (1969: 131-132).
XXVI Carlos Assunção / Rolf Kemmler / Gonçalo Fernandes / Sónia Coelho / Susana Fontes / Teresa Moura

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Estudo introdutório XXXI

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1936): 636-642.
REGRAS
QVE ENSINAM
A MANEIRA DE ESCRE-
VER E ORTHOGRAPHIA DA
lingua Portuguesa, com hum Dialo-
go que adiante se segue em de-
fensam da mesma
lingua.

AVTOR
PERO DE MAGALHÃES
DE GANDAVO.

EM LISBOA
Na officina de Antonio Gonsaluez.
Anno de 1574.

fol. 1r
2 Pero de Magalhães de Gandavo

fol. 1v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 3

VI por mandado dos illustrissimos & reueren-


dissimos senhores da sancta & geral Inqui-
sição esta obra de Pero de Magalhães sobre a or-
thographia da lingua Portuguesa com hum Dia-
logo em fauor da mesma lingua. E não achey
nella cousa contra a Fee & bõs costumes antes
tenho o tal exercicio por licito & proueitoso ne-
ste genero de materias desta qualidade, & me pa-
rece se deue imprimir. Em fe do qual assiney a-
qui viij. de Octubro. 1574.
F. Bertholameu
Ferreira.

¶ Vista a enformação acima escripta


imprimase. Em Lixboa a 9. de O-
ctubro de 1574.
Lião Anriquez. Manoel de Coadros.

fol. 2r
4 Pero de Magalhães de Gandavo

A elRey nosso
senhor.

POR SER A PRESEN-


te obra (muito alto &
serenissimo Rey senhor
nosso) em defensão da
lingua Portuguesa, &
V. A. ter tanta razão de a honrar & en-
grandecer muito, pella professar & ser
senhor da mesma nação, cobrey ani-
mo pera a dedicara V. A. a quem hu-
milmente peço ma receba debaixo
de seu emparo, pera que seguramen-
te sem temor dos mal dizentes possa
sair a luz, illustrandoa com o nome
de V. A. Cuja real pessoa nosso Se-
nhor guarde & deixe reinar per
longos annos em muita
felicidade.

fol. 2v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 5

PROLOGO AO LECTOR.

HVã das cousas (discreto


& curioso lector) que
me pareceo ser muy ne-
cessaria & conueniente
a toda pessoa que escre-
ue, saber bem guardar a orthogra-
phia, pondo em seu lugar as letras &
os accentos necessarios que se reque-
rem no discurso das escripturas. E
porque nesta parte os mais dos Por-
tugueses saõ muy estragados & vi-
ciosos, & com innumeraueis erros
que cometem, corrompem a verda-
deira pronunciação desta nossa lin-
guagem Portuguesa, quis fazer estas
regras da orthographia a rogo de al-
gũs amigos, as quaes trabalhey por
comprehender em breues palauras

fol. 3r
6 Pero de Magalhães de Gandavo

com a menos difficuldade que pude,


pera com ellas aproueitar a toda pes-
soa que as quiser seguir. Porem hase
de entender que minha tenção não
foy fazellas, senão pera os que não são
latinos. E por esta razão quis nellas
vsar de algũs exẽplos, pera que assi fi-
cassem mais claras, & cõ menos tra-
balho fossem entẽdidas de qualquer
pessoa ainda que nam tenha (como
digo) inteligencia de latim. Porque
se meu intento fora sómente aprouei-
tar com ellas aos grammaticos, ouue-
ra os taes exẽplos por escusados: pois
estâ claro não serem necessarios senão
a estes que escassamente sabem que
cousa he nome, & que cousa he ver-
bo. Os quaes ainda que tenhão mui-

fol. 3v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 7

ta experiencia de escreuer, não po-


derão deixar de cair em muitos er-
ros, se não teuerem algũas regras
que nesta parte os allumiem. E al-
lem da orthographia que nas pre-
sentes se pode comprehender, ha
muitos vocabulos em que se comet-
te vicio, & são tantos que seria cou-
sa muy comprida querer aqui ex-
primir & tratar de raiz como se hão
todos de escreuer. Porque hũs se es-
creuem com c, outros com s, &
outros com z: cada hum em fim
segue sua origem, & assi hũs per
descuido, & outros por não sa-
berem latim (que he a fonte don-
de manou a mayor parte de-
stes nossos vocabulos) costumão

fol. 4r
8 Pero de Magalhães de Gandavo

trocar muitas vezes hũas letras por


outras, o que realmente se nam pode
fazer sem offenderem â pronuncia-
ção desta nossa linguagem. E se os
Portugueses nisto quisessem aduertir
com diligencia mostrandose hũ pou-
co mais curiosos desta arte de que tão
pouco se prezão, não aueria pela ven-
tura tantos que praguejassem desta
nossa lingua: porque com saberem
bem escreuer, saberião bem pronun-
ciar os vocabulos, & com os saberem
bem pronunciar, ficaria a mesma lin-
gua parecendo melhor aos naturaes
que a professam. Por onde não auia
de auer pessoa que se prezasse de si, q̃
não trabalhasse por saber algũ latim,
que nisso consiste o falar bem Portu-

fol. 4v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 9

gues: & desta maneira facilmẽte eui-


tarião todos estes erros, & serião per-
fectos em guardar a orthographia cõ-
forme â ethymologia & pro-
nunciação dos vocabulos

De como se ha de fazer
differença na pronunciação de al-
gũas letras em que muitas pessoas
se costumão enganar.
AS LETRAS
que se costumão muitas ve-
zes trocar hũas por ou-
tras, & em que se co-
metem mais vicios nesta
nossa linguagem, são estas que se seguem,

fol. 5r
10 Pero de Magalhães de Gandavo

conuemasaber, c, s, z, & isto nace


de não saberem muitos a differença que
ha de hũas ás outras na pronunciação.
E assi ha nesta parte erros tão manife-
stos, & tambem recebidos de algũas pes-
soas, que cuidão que dous ss, em meyo
de parte, tem muito mais semelhança de
z, que de c, no que totalmente se enga-
não, porque dous ss, tem mais semelhan-
ça de c, que de z, assi como remissão,
profissão, &c. E hum mais de z, que de
c, (digo em meyo de dição entre duas
vogaes) assi como, casa, peso, &c.
que se esteuer diante consoante ainda que
seja em meyo de parte, hum sô terà a
mesma força que tem dous, assi como
defensão, descanso, curso, &c. En-

fol. 5v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 11

fim que esta letra s, em principio de di-


ção, & em meyo diante consoante,
& em meyo dobrado entre duas voga-
es, sempre tem hũa mesma força & se
pronuncia de maneira que parece ter ma-
is semelhança de c, que de z, & em
meyo singello entre duas vogaes mais de
z, que de c, (como ja tenho dito.)
Mas ainda que isto assi pareça, nem
por isso terão licença de pôr c, em lu-
gar de s, nem s, em lugar de z, nem
z, em lugar de s, nem s, em lugar de
c, porque na verdade seria corrompe-
rem a verdadeira pronunciação dos voca-
bulos, & muitas vezes significar hũa
cousa por outra, assi como, passos que
se escreuem com dous ss, quando significão

fol. 6r
12 Pero de Magalhães de Gandavo

os que se dão com os pês, & paços quan-


do se entendem pellas casas reaes com c. E
outros algũs nomes & verbos ha, que não
tem outra differença na significação, se não
escreuerem se com s, ou com c, ou com z,
assi como cozer que se escreue com z,
quando he por cozinhar algũa cousa em
fogo, & coser com s, quando he por coser
com agulha. Tambem ceruo se escreue
com c, quando he pelo veado, & seruo com
s, quando se entende pelo escrauo. E assi
tambem cella com c, quando se toma pelo
aposento do religioso, & sella com s,
quando significa a que se poem no cauallo.
E porque de todas estas diuersidades de vo-
cabulos que ha em nossa lingua, se não po-
dem fazer regras geraes pera se conhecer
com que letras se hão de escreuer, he for-

fol. 6v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 13

çado que todos os escriuães que nesta par-


te quiserem ser perfectos, tenhão algum
conhecimento de latim, ou ao menos conhe-
ção a differença que ha na pronunciação do
c, ao s, & do s, ao z, porque se cairem
nella, com mais facilidade poderão vedar
muitos erros conforme ao sentido da ore-
lha que nesta parte não he pouco fiel. E
pera saber como se ha de fazer esta diffe-
rença, entendam que quando pronuncia-
rem qualquer dição com c, hão de fazer
força com a lingua nos dentes debaixo de
maneira, que fique algum tanto a ponta
dobrada pera dentro, & quando for com
s, porão a lingua mais folgadamente pera
cima que fique soando a pronunciação á
maneira de assuuio de cobra, que esta foy
a causa porque os Antiguos formàram o s,

fol. 7r
14 Pero de Magalhães de Gandavo

da feição da cobra, & o c, à maneira


de meyo circulo que fica dobrado semelhan-
te à lingua quando o pronuncia. Quanto
esta letra z, composerão os Gregos de du-
as letras, conuemasaber, do s, & do
d, & assi a pronunciação della não he ou-
tra cousa, senão a de hum s, carregado
por respecto daquelle d, que lhe formão
diante, o qual d, não deixa soltar a lin-
gua tão liuremente como quando o mesmo
s, per si se pronuncia. Assi que esta &
todas as mais letras inuentaram os mes-
mos Antiguos sapientissimamente, porque
cada hũa tem a forma conforme à
natureza & semelhança de
sua pronuncia-
ção.

fol. 7v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 15

¶ DAS LETRAS COM


que se escreue, & syllabas que se
formão dellas.
NESTA arte do escreuer ha vinte
letras, ou vinte & hũa com este y gre-
go, a fora h, que lhe não chamão os Latinos
letra, senão aspiração. Destas vinte & hũa,
são seis vogaes & quinze consoantes. As
vogaes são estas, a, e, i, o, u, y. As consoantes
as mais que restão. E quantas vogaes teuer
hũa dição, de tantas syllabas sera. Saluo quã-
do acontecerem duas vogaes juntas, estas du-
as não terão mais que hũa sô syllaba: quero
dizer que aquelle u, que se segue sempre di-
ante q, & algũas vezes diante g, que não
se conte por vogal, nem se faça menção, se-
não da outra vogal que se segue diante del-
le. E assi tambem quando j, ou v, seruirem

fol. 8r
16 Pero de Magalhães de Gandavo

de consoantes, nam se entenderão então


por vogaes. As syllabas são estas que se
seguem, & destinguemse desta maneira
que neste vocabulo significo con, ue, ni, en,
te. Finalmente que hũa syllaba não he ma-
is que hum som que se faz com a voz co-
mo cada hũa destas que atras ficam destin-
tas. Tambem he necessario saber fazer to-
das estas letras grandes (ou maiusculas por
melhor dizer como lhe chamão os Lati-
nos) pera vsarem dellas (como a diante di-
rey) nas partes onde forem necessarias.
As quaes se fazem desta maneira seguinte.
A, B, C, D, E, F, G, H, I, K, L, M,
N, O, P, Q, R, S, T, V, X, Z, Y.

fol. 8v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 17

Dos lugares onde se hade


vsar destas letras maiusculas, &
das pausas & distinções que se re-
querem no discurso das escriptu-
ras.
EM principio de regra quan-
do se começar a escreuer al-
gũa cousa, sempre se vsarà
de hũa letra destas maiuscu-
las. E no discurso da escriptura auerá tres
maneiras de distinções, pera que o lector
saiba melhor pausar & entender o senti-
do da sentença, ou clausula, conuemasa-
ber, auerá virgula, dous pontos: hum
ponto. (da maneira que fica significado)
Da virgula se vsarà quando quiserem de-

fol. 9r
18 Pero de Magalhães de Gandavo

stinguir hũa parte da outra indo proseguin-


do pela sentença adiante todas as vezes que
for necessario. Dos dous pontos em algũs
lugares, onde se fezer mais pausa. De
hum ponto no fim da clausula, onde se a-
caba de concluir algũa cousa. E logo a di-
ante do mesmo ponto a primeira letra que
se seguir serà maiuscula: porque hum pon-
to sô tem mais força que dous, & os do-
us mais que a virgula. E assi todos os
nomes proprios, & sobrenomes de homẽs,
ou de molheres, & nomes de cidades, de
villas, ou de lugares, de reinos, prouinci-
as, nações, & rios, & de nomes exqui-
sitos de animaes, ou bichos feroces, & os
doze meses do anno, tambem se
escreuerão com letra ma-
iuscula.

fol. 9v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 19

¶ DO QVE SE POEM
per parenthesis.

QVANDO se offerecer em
algũa parte da escriptura dizer al-
gũa cousa fôra da sentença, que
muitas vezes se não escusa pera ornamen-
to, & declaração do que se escreue, pôr-
seha entre dous meyos circulos (desta ma-
neira.) Todauia não sera muita lectura,
porque se não embarace o lector, nem per-
ca o tino da sentença ou pratica que leua
enfiada. A isto chamão os Latinos Parẽ-
thesis, o qual ainda que se não lea, nem
por isso fica o proposito, & sentido da
pratica desatado, como em algũas partes
no discurso da presente escriptura se po-
de ver.

fol. 10r
20 Pero de Magalhães de Gandavo

¶ Do que se ha de pôr com interro-


gação.
QVANDO for necessario
escreuer algũa cousa em que
se faça algũa pregunta a mo-
do de exclamação, ou de
qualquer maneira que seja, no fim della
se porà hum ponto, & junto delle hum
risco reuolto pera cima, como se pode ver
neste exemplo que se segue. Ha pela ven-
tura cousa no mundo que o homem com a
industria não alcançe? A isto se chama in-
terrogação, a qual sempre se ha
de vsar desta maneira que
digo nas partes se-
melhan-
tes.

fol. 10v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 21

¶ DOS SINAES QVE SE


hão de vsar quando se não aca-
bar a dição no fim da regra, &
de como se ha de fazer esta diui-
saõ.

QVANDO no fim de
algũa regra se não acabar
a dição de escreuer por não
caber na mesma regra, pôr-
seha junto da parte que fi-
ca escripta dous sinaes desta maneira = que
significão irse acabar a outra parte que
resta no principio da regra que se ha de
seguir. Porem hase de ter aduertencia
que em semelhantes lugares nunqua se par-
ta syllaba pelo meyo ainda que pareça ser
necessario partirse pera igualdade da escri-

fol. 11r
22 Pero de Magalhães de Gandavo

ptura: porque não se sofre estar a con-


soante em hũa regra, & a vogal na ou-
tra, digo quando ambas se ajuntão que fa-
zem hũa syllaba. Saluo esta letra s, nun-
qua se apartará de p, nem de t, ainda que
pareça que se parte a syllaba pelo meyo, assi
como, estes vocabulos que se seguem & ou-
tros semelhantes, quando se ouuesse de par-
tir a syllaba que está antes do s, por não
caberem na regra, diuidirsehião desta ma-
neira, re= sponde, de= spacho, hone= sti-
dade, con= stranger, &c. Finalmente que
sempre andará o s, pegado no p, & no t,
pera perfectamente se auer de escreuer.
¶ E tambem esta letra c, pelo conseguinte
em tal caso nunqua se apartará do t, assi
como, san= cta, conje= ctura, vi= ctoria,
&c. Ainda que nesta nossa linguagem pela

fol. 11v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 23

corrupção dos vocabulos, vsão muito poucas


vezes, ou quasi nunqua de c, ante t: mas
quando o vocabulo o tem de sua origem, &
assi inteiramente foy vsurpado do latim pe-
ra nosso vso, não sera desnecessario, nem
inconueniente vsallo (como algũs querem di-
zer) antes vsandose (como digo) nos taes
vocabulos, sera muita perfeição: porq̃ quan-
to mais chegarmos ao latim estes & outros
quaesquer vocabulos latinos que corrupta-
mente vsamos guardandolhes fielmente sua
orthographia, tanto sera nossa lingua mais
polida, & ficara nesta parte mais singular,
& appurada que as outras. ¶ E assi tam-
bem quando em algum vocabulo se dobrar a
consoante, quero dizer quando duas letras
semelhantes esteuerem entre duas vogaes,
ou ẽtre vogal & cõsoante, assi como, approuo,

fol. 12r
24 Pero de Magalhães de Gandavo

affligo, asseguro, &c. & que cada hum


dos taes vocabulos se haja de diuidir por
não caber na regra, nunqua a consoante
se apartará da vogal que está antes della:
& assi não auendo lugar em que possa ca-
ber mais do vocabulo que a syllaba que
está ante das duas consoantes, hũa dellas fi-
cará no fim da regra junto da vogal que lhe
antecede, & a outra que resta responde-
rá no principio da regra á outra letra &
ás mais que a diante se seguirem, assi co-
mo, ap= prouo, of= ficio, neces=
sidade, & outros infinitos a
que sempre em seme-
lhantes lugares
se ha de guar-
dar esta regra.

fol. 12v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 25

¶ DOS ACCENTOS QVE


se hão de vsar em algũas letras, ou
vocabulos que teuerem duuidosa
a significação.

QVANDO este articulo a, ou


as, se ajuntar a algũs nomes fe-
meninos, a que se concede ou
nega algũa cousa, terá hum accento em
cima, assi como, à vossa geração se deue
esta honra, ás cousas diuinas se ha de ter
grande acatamento, &c. Enfim que assi
como dixeramos, ao, ou aos em nomes mas-
culinos, assi diremos à, ou âs, com este
accento em cima em nomes femininos: sal-
uo quando se ajuntar a algũs nomes pro-
prios, não sera necessario vsarse deste ac-
cento nelle ainda que sejão femeninos, por-

fol. 13r
26 Pero de Magalhães de Gandavo

que se dixessemos, a Lixboa se deue esta


honra, està claro não ter alli este a, necessi-
dade de accento, pois se não deue vsarse
não quando a pronunciação carrega nelle
da maneira que nos exemplos acima fica
declarado onde se denota com o tal accento
o mesmo que outros denotão com dous aa,
não sendo a meu juizo necessario mais que
hum sô, vsandose nelle deste accento que digo.
¶ E assi tambem quando se ouuer de vsar
desta letra o, em algũa inuocação, pôrseha
com hum accento emcima, assicomo. Vos ô
poderoso Senhor valeinos, ô grão Rey a-
judainos, &c. Tambem ha muitos verbos
que não se sabe se falão do tempo passado,
se do por vir: & pera se tirar esta duuida,
quando falarem do tempo passado, se porá o
accento na penultima, que não he a derradei-

fol. 13v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 27

ra syllaba, senão que esta antes della, assi-


como, alcançára, louuára, agradecéra, &c.
E quando falarem do por vir, pôrseha na
vltima desta maneira, assicomo, alcança-
rá, louuoará, agradecerá, &c. E estes
verbos & todos os mais no plurar, quan-
do falarem do passado que fezerem o accen-
to na penultima se escreuerão com m, assi-
como, alcançaram, louuaram, &c. E quan-
do falarem do futuro que fezerem o accen-
to na vltima, se escreuerão com ão, assi-
como, alcançarão, louuarão, &c. Ou tam-
bem se podem escreuer com m, quer falem
do passado quer do por vir, distinguindo
esta duuida com os mesmos accentos da
maneira que acima digo. Alem destes
ha outros muitos vocabulos, em que he

fol. 14r
28 Pero de Magalhães de Gandavo

necessario vsarse deste & doutros accen-


tos, pera que melhor se saibão pronunciar,
& entender a significação delles. Mas por
agora não quis tratar aqui, senão destes
em cuja significação pode auer duuida não
se vsando do tal accento que acima fica de-
clarado.

¶ DAS LETRAS SVPER


fluas que se hão de vedar nas par-
tes onde não forem necessarias.

NVNQVA em principio
nem em cabo de dição, se vsa-
rá de duas letras semelhan-
tes, nem ainda no meyo,
saluo quando a origem do vocabulo as pe-
dir, ou quando algum nome ou verbo for

fol. 14v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 29

composto como adiante se dira.


Em nenhũa dição diante consoante se
seguirão nunqua dous rr, porque sera
grande vicio, assi como, Anrique, honra,
&c. que se escreuem com hum sô r, &
não com dous como muitas pessoas costu-
mão: porque hum r, diante consoante tem
tanta força como em principio de dição, &
por isso he desnecessario nas taes dições vsa-
rem de dous, senão de hum sô.
¶ Outras impropriedades de letras se vsão
em algũs nomes, que são tão bem recebi-
das & acceitas na terra, como se as te-
uessem de sua origem, os quaes são estes,
& costumão se escreuer desta maneira á
imitação dos Gregos, Xpõ , Ihũs, Xpão,
Xpuão, espriuão: auendose de escreuer
destoutra, Christo, Iesus, Christão, Chri-

fol. 15r
30 Pero de Magalhães de Gandavo

stouão, escriuão. E ainda que destas du-


as maneiras se vse, & a pronunciação toda
seja hũa, todauia como eu digo sera melhor
vsado, pois estas são as letras de sua natu-
ral origem com que se deuem escreuer.

¶ DE COMO SE HAõ DE
escreuer os nomes & verbos
compostos.

TODOS os nomes & ver-


bos que forem compostos de-
stas letras, a, i, o, di, a pri-
meira que se seguir diante
de qualquer dellas, sera
dobrada. De a, assicomo, affirmo, acciden-
te, asseguro, &c. De i, assicomo, illustre,
innumerauel, irrigular, &c. De o, assico-

fol. 15v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 31

mo, officio, oppressão, offendo, &c. De


di, assi como, differente, dissimular, dif-
ficuldade, &c. E pelo mesmo caso que esta
regra se guarda em o latim, se deue tam-
bem guardar com a mesma fidelidade nesta
nossa linguagem.

¶ Da pronuncia-
ção G.

SEMPRE diante g, se
seguirá u, ante e, & ante
i, quando se pronunciar com
força, assicomo, guerra, san-
gue: guitarra, guia, &c. E se não
teuer este u, ante e, & ante i, te-
rá a pronunciação desta maneira, assi-

fol. 16r
32 Pero de Magalhães de Gandavo

assicomo, gente, geração: fugida, regi-


mente, &c. E quando diante g, se seguir
a, ou o, nunqua se porà u, assicomo Gon-
çalo, gozo, braga, lugar, &c. Saluo
quando for necessario a pronunciação go-
star delle, assicomo, igual, guarda, lin-
gua, &c.

¶ DAS PARTES A QVE


se ha de ajuutar esta
aspirção H.

A ESTA letra a, se a-
juntarà h, quando for ver-
bo, que significar auer al-
gũa cousa, quer com elle
se affirme quer se negue,
assicomo, ha muitos annos que vi foão, não

fol. 16v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 33

ha impedimento de ninguem, &c.


E assi tambem ao mesmo a, se ajuntará
h, quando com elle significar algũa excla-
mação, então neste lugar se porá h, dian-
te, assicomo. Ah desauentura tão grande.
Ah campos Lusitanos suspiray, &c.
Tambem a esta letra e, se ajuntará h,
quando for verbo, que significar ser algũa
cousa, quer negando quer affirmando, assi
como, he muito meu amigo. não he quem
parecia, &c. E isto não porque o tenha de
sua origem, mas pera com elle denotar que
he verbo como digo, & não conjunção. Po-
sto que tambem costumão algũas pessoas
por escusar este h, no tal verbo, escreuello
somente com hum accento em cima desta
maneira é. Finalmente que de qualquer de-
stas se pode vsar. Mas porque com este ac-

fol. 17r
34 Pero de Magalhães de Gandavo

cento he muito pouco vsado, & muitas


pessoas o auerão por nouidade, ignorando
pela ventura o que o tal accento denota,
pareceme que sera mais acertado & me-
lhor escreuello com h, por ser pelo costume
mais claro & facil a todos, que destoutra
maneira que digo (saluo meliori iudicio.)
¶ E pelo conseguinte he necessario vsar
se tambem deste h, em algũs vocabulos ain-
da que de si o não tenhão, não porque seja
necessario a pronunciação gostar delle, mas
por razão de se entenderem, & significa-
rem melhor, conforme ao vso desta nossa
linguagem, assicomo, hum, hũa, hia, hi.
Porem tirando estes, muy raramente, ou
nunqua teremos necessidade em principio
de dição, vsar mais delle, saluo em algũs
vocabulos que o teuerem de sua origem,

fol. 17v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 35

assicomo, homem, honra, honestidade, hi-


storia, &c.

¶ DE QVE MANEIRA
& em que lugares se ha de vsar
desta letra I, & onde ha
de ser grego.

ESTA letra I, se ha de
escreuer de tres maneiras,
& de cada hũa se ha de
vsar nas partes onde for ne-
cessario, conuemasaber, j,
comprido, y, gregro, i, pequeno. Deste j,
comprido se vsarà, quando seruir de conso-
ante, quer em principio de dição, quer em
meyo, assicomo, jornada, sobeja, &c. Este y
grego se seguirá sempre ẽ meyo de dição, q̃ndo

fol. 18r
36 Pero de Magalhães de Gandavo

acontecer entre duas vogaes, & nunqua te-


ra pronunciação de consoante, assicomo, jo-
ya, mayor, moyos, &c. E noutra nenhũa
parte se deue vsar, nem sera sofriuel, sal-
uo se for em cabo de dição diante vogal,
assicomo, Rey, darey, foy, muy, &c. que
parece bem em semelhantes lugares, & não
offende â pronunciação da linguagem. Não
trato dos vocabulos que o tem de sua ori-
gem, porque esses de seu se está não lho ne-
garmos quando se offerecerem, & nos vie-
rem á noticia. E posto que aja opiniões de
algũas pessoas que sô nos taes vocabulos q̃
o teuerem de sua origem se ha de vsar del-
le, não faltão outras muitas (cujo parecer
he digno de grande authoridade) que affir-
mem auerse de vsar deste y, nos lugares q̃
digo, ainda que o não tenhão de sua origẽ,

fol. 18v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 37

assi pela necessidade que nesta nossa lingua-


gem temos delle, como por estar ja tão bem
recebido pelo costume, que pareceria estra-
nho querer vedallo, mayormente sendo tão
necessario como digo nas partes semelhan-
tes.
Este i, pequeno seruirá sempre em to-
das as mais partes que se offerecer.

¶ DOS LVGARES
onde se ha sempre de se-
guir M.

ANTE p, m, b, sempre se es-


creuerá m. Ante p, assicomo,
imperio, companhia, emparo,
&c. Ante m, assicomo, immenso, summo,
immortal, &c. Ante b, assicomo, Ambro-

fol. 19r
38 Pero de Magalhães de Gandavo

sio, ambição, embargo, &c. E noutra


nenhũa parte se seguirá ante consoante se
não n.

¶ DE COMO SE HA DE
vsar desta letra R.

QVANDO em meyo de
dição a pronunciação desta
letra r, for dobrada, sem-
pre se escreuerá com dous
rr, assicomo, terra, socor-
ro, ferro, &c. Saluo diante consoante se
seguirá hum só (como ja tenho dito) ain-
da que pareça que a pronunciação pede do-
us, assicomo, tenro, genro, &c. porque se
não sofrem duas letras semelhantes diante
consoante.

fol. 19v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 39

Nunqua se vsará deste R, maiusculo em


meyo de parte algũa, nem ainda em princi-
pio, como vsão muitos, saluo nos lugares on-
de se ouuer de vsar de letra maiuscula co-
mo a tras deixo declarado.

¶ DE COMO SE HA DE
vsar desta letra V.

SEmpre em principio de qual-


quer dição se vsarà deste v,
meão, & em meyo sempre
sera u, pequeno, ainda que
sirua de consoante, assicomo, viuua, viuer,
&c.
Outras regras não sinto ao presente que a-
qui possa trazer, nem de que deua mais par-
ticularmente fazer menção, porq̃ meu intẽto

fol. 20r
40 Pero de Magalhães de Gandavo

não foy tratar aqui, senão destas que boa-


mente se podessem entender dos que não sa-
bem latim pera com ellas euitar algũa par-
te dos muitos vicios & barbarismos que ne-
sta nossa linguagem se cometem. E por
isso pretendi ser nellas facil, &
passar por tudo isto com
breuidade.

¶ Fim.

fol. 20v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 41

g SEGVESE HVM
Dialogo em defensaõ da lingua Portugue-
sa, sobre a qual tem disputa hum Portu-
gues com hum Castelhano, onde por
se tratar desta materia vsa ca-
da hum de sua lingua
gem na maneira
seguinte.
Interlocutores.

Petronio. Portugues.
Falencio. Castelhano.

Pet. LEmbrame, senhor


FaIencio, que os dias
passados nos acha-
mos em casa de Fla-
minio nosso amigo,

fol. 21r
42 Pero de Magalhães de Gandavo

onde reuoluendo certos liuros de


diuersas linguagẽs, a que menos
vos quadrou & mais vitupera-
stes, foy esta nossa Portuguesa de
que todos praguejaes, sendo ella
em si tão graue & tão excellente
assi na prosa como no verso que só
a latina lhe pode nesta parte fazer
ventagem. Quisera logo então
(como sabeis) prouaruos esta ver-
dade, & mostraruos per razões
claras quanto esta nossa excede á
vossa: mas porque o tempo nem
o lugar erão pera esta disputa, não
fomos com ella mais por diante.
Pelo que assentamos (se vos lem-
bra) de concluir esta questão o
primeiro dia que nos vissemos.

fol. 21v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 43

Falen. Por cierto señor Petronio que


no es poco de agradecer el amor
que en esso mostrais a vuestra na-
turaleza. Porque siendo essa opi-
nion tan contraria de todos, y
conoscida vuestra lengua por la
mas tosca y grossera del mundo,
quereis defenderla y sustentar el
contrario: lo que yo creo que
que no sera, sino con algunas ap-
parentes razones, o argumen-
tos sophisticos de que suelen vsar
los hombres sabios & de buenos
ingenios para que se juzguen por
buenas y verdaderas sus opinio-
nes.
Petro. Pouca necessidade tenho eu
senhor Falencio, de buscar pera

fol. 21r
44 Pero de Magalhães de Gandavo

esta disputa argumentos dessa qua-


lidade, auendo tantas & tão ver-
dadeiras razões que nesta parte
me fauorecem & com verdade
posso alegar. Mas ja que temos
mouida esta questão, & o tempo
nos dá lugar pera a concluir, ago-
ra vos peço me digais, qual he a ra-
zão que tendes pera julgar por tos-
ca, & grosseira esta nossa lingua,
que em estremo folgarey de a ou-
uir?
Fal. La causa señor Petronio, de vue-
stra lengua ser juzgada por essa
(no solo de todas las naciones del
mundo, mas aun de los mismos
Portugueses que la posseen) es por-
que en su principio como se pue-

fol. 22v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 45

de ver enel lenguaje de algunas hi-


storias y chronicas antiguas de Por-
tugal, vsauan muchos vocabulos
muy differentes y improprios de
su natural signifícacion y origen.
Y despues conosciendo los hom-
bres por el tiempo adelante la im-
propriedad, y poca policia deste
lenguaje, vinieron poco a poco ap-
purando lo con diriuar y compo-
ner vocabulos de diuersas lengu-
as ayuntando los ala suya: y ansi
con fauor delas agenas supplieron
muchos defectos que ella en si te-
nia. Por dõde se no puede llamar
verdadero Portugues el que agora
en estos tiempos vsais, sino el an-
tiguo que en principio se vsaua,

fol. 23r
46 Pero de Magalhães de Gandavo

como ya tengo dicho. Y por esso


con razon llaman todos a esta len-
gua barbara, que en la realidad
dela verdad lo es, pues de si es tan
pobre, y tan poco polida, que
sin ayuda delas otras quedaria tan
ruda y tosca, que en estos tiem-
pos no se poderia oir, ni aun en-
tender delos mismos Portugue-
ses:
Petro. Nessa opinião não consenti-
rey eu, nem vos senhor Falencio
deuieis de ir com ella mais por di-
ante: porque aueis de saber que
esta nossa lingua foy inuentada
como forão as outras linguas. E
se algũa nesta parte a fauoreceo
foy a Latina, da qual todos estes

fol. 23v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 47

nossos vocabulos, ou a mayor par-


te delles trazem sua origem. E
assi a linguagem que nesse anti-
guo tempo se vsaua neste nosso
Portugal a que vos chamais tosca
& ruda, está claro em muitos
vocabulos ser mais chegada ao la-
tim que esta que agora vsamos:
porque hoje em dia ha neste Rei-
no lugares onde ainda se vsa del-
les como antiguamente. Pelo
que se póde affirmar com verda-
de q̃ não era outra cousa esta ma-
neira de falar senão hũ latim cor-
rupto. Mas como a gẽte pelo tẽpo
a diãte fosse ẽ crecimẽto, & os ho-
mẽs teuessẽ necessidade de exerci-
tarẽ esta lingua ẽ varios negocios,

fol. 24r
48 Pero de Magalhães de Gandavo

cada vez a forão mais appurando


descobrindo nella outros voca-
bulos que ainda que não saõ la-
tinos como estes antiguos que a-
tras deixamos, todauia soam me-
lhor aos ouuidos da gente polida,
& saõ mais proprios & accomoda-
dos pera significarem aquillo que
queremos, que outros que aja em
nenhũa lingua. Ora naquelles em
que seguimos o latim, não ha
que reprehender, pois claramen-
te se vé que quanto mais a elle
nos chegamos, tanto melhor pa-
recem & mais authorizada fica
nossa linguagem. Pela qual razão
se não pode negar ser este o natu-
ral, & verdadeiro Português que

fol. 24v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 49

agora vsamos: no qual se desapassio-


nadamente quiserdes pôr os olhos,
& notar a ethymologia & signifi-
cação de algũs vocabulos desta nos-
sa lingua, achareis que em muitas
partes faz ventagem á vossa, como
logo vos posso moftrar em hum
nosso vocabulo que agora me lem-
bra (allem doutros muitos que a-
qui não alego por escusar proluxida-
de) & he que dizemos olhar, &
vós mirar: pois se o instrumento
com que vemos chamamos olhos,
com razão dizemos olhar & vós cha-
maislhe ojos, & dizeis mirar. O qual
verbo não pode ser conueniente,
nem conforme a sua significação,
sem dizerdes ojar, ou chamardes

fol. 25r
50 Pero de Magalhães de Gandavo

aos olhos miros. Outras muitas


impropiedades de vocabulos ha de-
sta maneira em vossa lingua que
muy raramente ou nunqua se acha-
rão na nossa. E allem disso outros
temos cá de que vos lá careceis, sem
os quaes não podeis por nenhum
modo bem explicar aquillo que el-
les significão, conuemasaber, dize-
mos geito, saudade, lembrança, pra-
guejar, enxergar, agasalhar, &c. E
nos não carecemos daquelles com
que vós quereis significar estes & os
mais que ha. E por todas estas ra-
zões, & outras muitas que alegarey,
não se pode a esta nossa lingua cha-
mar pobre nem grosseira, pois na
realidade da verdade o não he, nem

fol. 25v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 51

pessoa que sentir bem della auera


que tal confesse.

FALENCIO.

¶ Bein se señor Petronio, que siem-


pre en vuestras razones y argumen-
tos os aueis mostrado hombre de
grande ingenio: mas aun que conel
pretendais escreuer las mias, no de-
xaré de sustentar esta opinion de
vuestra lengua ser la que digo, ha-
sta no ver contra my otras mas vr-
gentes que me obliguen a confessar
el contrario. Y por esso os suplico me
digais ya q̃ ella es tan dilicada y excelẽ-
te como dezis, y tiene tãta grauedad ẽ

fol. 26r
52 Pero de Magalhães de Gandavo

su estylo: qual es la causa porque


todas las naciones del mundo la a-
borrecen tanto, y la tienen en tan
poco.

PETRONIO.

A causa desse aborrecimento, & des-


prezo (ou por melhor dizer inue-
ja) senhor Falencio, naceo de ella
ser em si tão difficultosa, que de ma-
rauilha vimos estrangeiro algum que
a podesse bem tomar, ainda que ne-
ste Reino andasse muitos annos, &
trabalhasse pela imprender quanto
humanamente fosse possiuel. E da-
qui vem a todas as nações aborrece-
rem na tanto, & não na poderem

fol. 26v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 53

gostar, por lhes ser (como digo) tão


pouco facil, & de tão ruim desistão.

FALENCIO.

¶ Luego si assi es, muy mejor es la


Castellana y mas vtil a todos: pues
no hay nacion enel mundo que no
la tome con mucha facilidad, y la
tenga en mucho mas estima que la
vuestra, la qual con razon se deue
llamar grossera y tosca, ya que es tan
escabrosa y difficil de tomar, que no
aprouecha a nadie el vso della sino a
sus naturales.

PETRONIO.

Antes hũa das prouas que eu tenho

fol. 27r
54 Pero de Magalhães de Gandavo

de ella ser melhor, & muito mais


delicada que a vossa, he por essa
difficuldade que vós lhe achais, por-
que vemos por experiencia que quã-
to as cousas em si saõ melhores, &
mais excellentes, tanto he mais tra-
balhoso & difficil ao homem alcan-
çallas. Quanto mais se esta nossa
lingua fora difficultosa por causa de
ser barbara, & grosseira, de crer he,
que a mesma difficuldade tiueramos
em tomar as outras linguas, que
tem os estrangeiros em tomar a nos-
sa. Mas pela contrario he ella tal,
& de tanta preminencia, que a to-
dos os naturaes habilita & dispoem
de maneira, que em pouco tempo
& com muita facilidade (como cla-

fol. 27v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 55

ramente se vé por experiencia) to-


mão qualquer lingua estranha, &
nisto fazem ventagem a todas as ou-
tras nações.

FALENCIO.

¶ Esso no niego yo, ni dexo de


conoscer, señor Petronio, 1a razon
que en essa parte teneis: porque he
visto muchos Portugueses en Casti-
lla hablar nuestra lengua, como si
fuera de su naturaleza suya. Y en
Italia por el consiguinte algunos vi-
de que en ella no diffirian delos
mismos Italianos. Mas esso tam-
bien se puede refirir a sus buenos

fol. 28r
56 Pero de Magalhães de Gandavo

buenos ingenios y habilidades que


tienen de su naturaleza, y no ala dis-
pusicion de su lengua.
Petronio.
Dizeime senhor Falencio, se hum
homem não for bom musico, & te-
uer ruim vóz, por muito habil, &
sentido que seja, poderá bem contra
fazer a outros quaesquer musicos
que ouça?
Falencio.
Esso mal podra ser, si el no tiene boz
que le ayude.
Petronio.
Pois de crer he, que se os Portugueses
teuerão ruim lingua, & fora tão gros-
seira como dizem, que não contra-
fezeram com ella também as outras

fol. 28v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 57

linguas, nem lhes aproueitára nesta


parte seu bom ingenho.
Falencio.
Pues señor Petronio, ya que essa gra-
cia es attribuida a la capacidad de vu-
estra misma lengua, y por virtud
della sois tan habilissimos en tomar
las agenas, qual es la causa porque
los mismos Portugueses siendo ella
suya la desdeñan, y por su boca con-
fiessan ser ella la mas tosca y barbara
del mundo?
Petronio.
A isso vos respondo, senhor Falencio,
que esta nação Portuguesa pela ma-
yor parte, he mais affeiçoada ás cou-
sas dos outros Reinos, que ás da sua
mesma natureza, cousa que se não

fol. 29r
58 Pero de Magalhães de Gandavo

acha nas outras nações: porque to-


das engrandecem sua lingua, & fa-
zem muito pelas cousas que qua-
drão nella, sós os Portugueses pare-
ce que negão nesta parte o amor á na-
tureza. E daqui vem a muitos dize-
rem mal de sua lingua, & consenti-
rem na opinião dos estrangeiros, o q̃
realmente se póde attribuir mais a
ignorancia, que a razão algũa que a
isso os moua. Porem os homẽs de
bom juizo que bem a sentem, não
podem deixar de engrandecer mui-
to, & confessar comigo que a ella se
deue mais louuor que á vossa.

Falencio.
¶ Creo yo señor Petronio, que de-

fol. 29v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 59

uen ser muy pocos o quiça ningu-


nos, los que quieran assentir con
vós en essa opinion. Porque hom-
bres Portugueses muy principales y
de grandes ingenios, escriuieron, y
aun oy dia escriuen sus obras en Ca-
stellano por ser lenguage mas appa-
zible y dulce, y sonar mejor a los
oydos que la vuestra: y esto es tan
notorio y manifiesto, que hasta los
niños vuestros naturales conoscen y
confiessan esta verdad.

Petronio.

¶ Não he bastante razão essa que a-


legais pera que vossa lingua por esse
respecto mereça ser prefirida á nossa,

fol. 30r
60 Pero de Magalhães de Gandavo

Porque aueis de saber que cada lin-


gua per si tem hum estylo mais pro-
prio, & em que melhor parece, co-
mo he, a Grega nos versos, a Latina
nas orações, a Toscana nos sonetos,
a Portuguesa nas comedias em pro-
sa & no verso heroyco, a Castelhana
nas trouas redondas & garridas que
naturalmente parecem feitas & in-
uentadas pera ella. E daqui veo a
muitos Portugueses vendo quã bem
parecia neste estylo, & que nella se a-
chaua mais facilmẽte cõsoantes pera
verso, exercitarem na por seu passa-
tempo em eglogas, canções, elegias,
& cantos pastorijs que saõ materias
leues, & accomodadas ao estylo da
mesma lingua. Mas cousas graues,

fol. 30v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 61

& de importancia, não me dareis ne-


nhum Portugues antiguo nem mo-
derno que as tratasse nem escreuesse
em vossa lingua. E se quereis sa-
ber quam pouca necessidade temos
della, vede o estylo das comedias &
dos versos do nosso verdadeiro por-
tugues Francisco de Sâ de Miranda,
que foy o primeiro que nesta nossa
Lusitania o descubrio com tamanha
admiração, que de todos em geral
ficou confessada esta verdade. Vede
a Asia daquelle famoso & excellen-
te escriptor Ioam de Barros que por
ella em Veneza está prefirido a Pto-
lomeu. Vede a primeira & segunda
parte da Imagem da vida Christãa
daquelle doctissimo varão Frey He-

fol. 31r
62 Pero de Magalhães de Gandavo

ctor Pinto que agora em nossos dias


sahio a luz: Vede o estylo da lingua-
gem de Lourenço de Caceres, de Frã-
cisco de Moraes, de Iorge Ferreira,
de Antonio Pinto, & doutros illu-
stres varões que na prosa tanto se as-
sinalaram, descobrindo com seus in-
genhos peregrinos o segredo da graui-
dade & fermosura deste nosso Portu-
gues. Pois se no verso heroyco vos
parece que a vossa lhe pode fazer ven-
tagem: vede as obras do nosso famo-
so poeta Luis de Camões de cuja fa-
ma o tempo nunqua triumphará, ve-
de a brandura das daquelle raro espi-
rito Diogo Bernardez: vede finalmẽ-
te as do doctor Antonio Ferreira de q̃

fol. 31v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 63

o mundo tantos louuores canta: &


em cadada hum destes autores acha-
reis hum estylo tão excellente, & tão
natural & accomodado a esta nossa
lingua, que forçadamente aueis de
vir a deceruos de vossa opinião, &
confessar comigo ser ella indigna
desse nome que vos lhe dais. Pois
se quereis ver a lingua de que he
mais vizinha, & donde manou,
lede a arte da grammatica da lin-
gua Portuguesa que o mesmo Ioam
de Barros fez, & o mesmo podeis
ver no liuro da antiguidade de E-
uora de Mestre Andre de Resende,
onde claramente se mostra, que cõ
pouca corrupção deixa de ser Latina.

fol. 32r
64 Pero de Magalhães de Gandavo

Enfim que se algũa com razão se po-


de chamar barbara he a vossa, a qual
toma da lingua Arabia, & a mayor
parte dos vocabulos falais do papo
com aspiração: & assi fica hũa lin-
guagem imperfecta, & mais corru-
pta do que vos dizeis que a nossa he.
Falencio.
Pues señor Petronio, ya que con el
arteficio de vuestras razones quereis
ahogar, y confundir las mias, y pien-
sais quedar vencedor, y triumphar
de my opinion: agora os quiero pro-
uar en como la nuestra lengua es mas
propinqua al latim que la vuestra,
con algunos vocabulos que aqui
offereceré, conuieneasaber. Dezis
hontem, nos hayer, el latin heri.

fol. 32v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 65

Dezis engenho, nos ingenio, el latin


ingenio. Dezis dores, nos dolores, el
latin dolores. Dezis cores, nos colo-
res, el latin colores. Dezis calmas,
nos calores, el latin calores. Dezis pai-
xões, nos passiones, el latin passiones.
Dezis pessoa, nos persona, el latin per-
sona. Enfim otros muchos vocabu-
los ha en nuestra lengua, que diffe-
ren muy poco, o quasi nada dela la
latina, delos quales la vuestra es muy
remota, como en estos os tẽgo mo-
strado. Pues como la lengua Latina
sea madre delas otras lenguas, y mas
copiosa y excellente de todas quantas
hay (como sabemos) aquella q̃ mas
semejãte y propinqua fuere a ella, essa
serâ mejor y mas singular q̃ las otras.

fol. 33r
66 Pero de Magalhães de Gandavo

Petronio.
¶ Se cõ essa razão vos parece, senhor
Falencio, que tendes concluido, ain-
da vos prouarey que a nossa he mais
chegada ao latim que a vossa, como
se pode ver em outros muitos voca-
bulos nossos de que a vossa tambem
se desuia: algũs delles são estes que se
seguem. Vos dizeis lengua, nos lin-
gua, o latim lingua. Dizeis pluma,
nos penna, o latim penna. Dizeis tẽ-
prano, nos cedo, o latim cito. Dize-
is lexos, nos longe, o latim longe. Di-
zeis años, nos annos, o latim annos.
Dizeis daño, nos damno, o latim dã-
no. Finalmente que se quantos me
occorrem vos quisesse aqui dizer, se-
ria cousa infinita de nunqua acabar,

fol. 33v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 67

porq̃ (como digo) a mayor parte dos


vocabulos pronũciaes cõ aspirações,
por onde fica vossa lingua muito ma-
is remota, & desuiada do latim que a
nossa: & se não vedeo nestes que ago-
ra vos direy. Vos dizeis hembra, nos
femia, o latim femina. Dizeis hierro
nos ferro, o latim ferro. Dizeis hiel,
nos fel, o latim fel. Dizeis hado, nos
fado, o latim fato. Dizeis huir nos fu-
gir, o latim fugere. Dizeis hazer, nos
fazer, o latim facere. Pois daqui pode-
is inferir quanto melhor, & mais gra-
ue he a nossa lingua: & se quiserdes sa-
ber quanto nesta parte excede não só-
mente á vossa, mas ainda ás outras de
q̃ não tratamos, a este proposito vos
contarey, que hum dia em Paris se a-

fol. 34r
68 Pero de Magalhães de Gandavo

cháram nũa certa parte homẽs de di-


uersas nações, os quaes vierão a di-
sputar de suas línguas, & cada hũ fez
versos em latim buscando vocabulos
mais semelhantes á sua, & nenhũa se
achou que mais participasse do latim
que a nossa: porque dez ou doze ver-
sos se fezerão, q̃ não descrepão da lin-
gua Latina cousa algũa, nem da Por-
tuguesa: dos quaes me lembrão estes
que se seguem.
O quam diuinos acquiris terra triumphos,
Tam fortes animos alta de sorte creando.
De numero sancto gentes tu firma reseruas.
Per longos annos viuas tu terra beata.
Cõtra non sanctos te armas furiosa Paganos.
Viuas tu semper gentes mactando feroces,
Quae ethiopas Turcos fortes Indos dás saluos.
De Iesu Christo sãctos mõstrãdo Prophetas.

fol. 34v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 69

¶ Ficarão todos tão enleados quando


nestes versos virão a perfeição desta
lingua, que não podéram deixar de a
confessar por melhor, & mais chega-
da ao latim de todas. E assi tambem
vós senhor Falencio, diuieis de cair na
conta, & acabar de conhecer que por
todas as vias he ella mais polida & del-
gada que a vossa.

Falencio.

¶ Aunque con todas essas razones os


paresca que aueis prouado fuerça cõ-
tra las mias, con todo esso no creo se-
ñor Petronio, que totalmẽte sean ba-
stantes para deshazer my opinion.
Porque supuesto que en essos versos

fol. 35r
70 Pero de Magalhães de Gandavo

se muestre vuestra lengua tan cerca


del latin, tambien se de espacio pen-
sassemos en la nuestra, podria ser que
hallassemos vocabulos con q̃ hiziesse
mos otros tantos, o mas en nuestro
lenguaje, y tan latinos como essos q̃
aueis alegado.
Petronio.
Não me parece, senhor Falencio, que
sera possiuel achardes vocabulos tão
perfectamente latinos nem que tão
bem pareção em vossa linguagem, q̃
vos síruão ᵱa versos desta qualidade.
Falencio.
¶ Y que razon aura, señor Petronio,
para que tan perfectamẽte los no ha-
llemos en la nuestra, auẽdo entre am-
bas ᵭ vna ala otra tan poca differẽcia?

fol. 35v
Regras que ensinam a maneira de escreuer a orthographia da lingua portuguesa 71

Petronio.
Porque alem de as aspirações q̃ vsais
vos corromperem (como ja disse) a se-
melhança que a vossa lingua podia
ter com a Latina, tendes nella muitas
syllabas que se dobrão per duas letras
vogaes, que o latim nem nós nunqua
vsamos: como he, tierra, fuerte, muer-
te, fuerte, luengo, cierto, & outros in-
finitos vocabulos, nos quaes a nossa
segue o latim, & não descrepa delle
cousa algũa, & a vossa totalmente pa-
rece que nelles se esmerou em se des-
uiar delle, como se desta maneira fi-
casse mais perfecta.
Falencio.
¶ Ora senhor Petronio, vos lo teneis
muy bien hecho, y hasta aqui dispu-

fol. 36r
72 Pero de Magalhães de Gandavo

tado sabiamente como hombre de


grande ingenio, y que no dessea poco
engrandecer las cosas de su naturale-
za. Y por esso demos fin a nuestra di-
sputa, y seamos amigos como siem-
pre lo fuimos, que lo demás poco nos
importa.
Petronio.
Dessa maneira, senhor Falencio, ja q̃
contra minhas razões não tendes ma-
is q̃ arguir, & o campo fica por meu,
demos por concluida nossa questão,
que isto he tarde, & vãose fazẽdo ho-
ras. Por isso não me detenho mais, fi-
quaiuos embora que outro dia nos
veremos.

Fim.

fol. 36v

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