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©skript, 2020
Todos os direitos reservados

ORGANIZAÇÃO
ELLIE IRINEU
GABRIELA BORGES
GUILHERME SMEE
EDIÇÃO
GABRIELA BORGES
ARTE DA CAPA
LUIZA LEMOS
LAYOUT DA CAPA
GUILHERME SMEE
PROJETO GRÁFICO
JOHNNY C. VARGAS
REVISÃO
DIEGO MOREAU
GIULIA GEWEHR DE CARVALHO
CONSELHO EDITORIAL
DOUGLAS P. FREITAS
DIEGO MOREAU
JOHNNY C. VARGAS
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ELLIE IRINEU
GABRIELA BORGES
GUILHERME SMEE
ORGANIZAÇÃO
ROTEIRO E ARTE: FLÁVIA BORGES

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A MARCA DA RESISTÊNCIA
Com sua editora Marca de Fantasia e sua principal perso-
nagem Maria, Henrique Magalhães construiu um marco da
comunidade LGBTQ+ nos quadrinhos brasileiros.
por Dandara Palankof

A
cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, abriga um dos mais relevantes
projetos editoriais independentes do Brasil: a editora Marca de Fantasia,
capitaneada pelo quadrinista e professor universitário (agora aposenta-
do) Henrique Magalhães. Entre quadrinhos independentes e livros acadêmicos
(oriundos de trabalhos de conclusão de cursos de graduação, dissertações de
mestrado e teses de doutorado) sobre quadrinhos, cultura independente e áreas
afins, seu catálogo já conta com mais de duzentos títulos. São livros impressos e
eletrônicos que Henrique edita e diagrama sozinho – aqueles em formato físico
também são encadernados por ele, de modo quase artesanal.
Apesar das tiragens limitadas e das dificuldades de distribuição, o que
define o projeto da Marca de Fantasia é a liberdade conceitual e temática. Henri-
que toca a editora com o intuito de dar espaço a tudo que considera importante e
que poderia não encontrar um lugar no mercado tradicional.
É por isso que a Marca de Fantasia oferece um foco privilegiado às
publicações de criadores LGBTQ+ ou voltadas a esse público. De acordo com
Henrique, é a editora brasileira com o maior catálogo voltado a esse segmento.
“Inicialmente, não havia essa intenção; o tema foi ganhando importância na me-
dida em que foram surgindo os quadrinhos e os autores e autoras viram a possibi-
lidade de publicar conosco”, conta Henrique. “Em pouco tempo tínhamos criado
um filão editorial, que reforçava nosso perfil libertário.”.
A Marca de Fantasia se constitui como uma espécie de oásis queer no
mercado editorial brasileiro, que segundo Henrique, sempre esteve aquém da
evolução social no que tange ao reconhecimento dos direitos de pessoas LGB-
TQ+e que ainda hoje não contempla essas questões com a devida importância.
“Houve avanços pontuais, como a questão homossexual ser tratada no universo
dos super-heróis; isso reflete bem a sociedade estadunidense e acaba refletindo
em outros locais do mundo. Mas no Brasil, caminhamos a reboque dos modis-
mos que vêm de fora”, pondera Henrique. “Salvo algumas edições do mercado
livreiro que tocam na questão, são os independentes que têm avançado no tema,
naturalmente por um fator identitário. O mercado, mesmo, desconsidera esse

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público talvez porque o considere pequeno, talvez pelo ranço conservador.”
Dentre as histórias em quadrinhos da Marca voltadas ao tema, estão re-
vistas de Katita (personagem lésbica criada por Anita Costa Prado); Camila, gibi
que aborda a transsexualidade, de autoria de Julie Albuquerque; um retrato do
universo dos “ursos” em Ber the Bear, de Rafael Lopes; além de Macambira e
sua gente, de autoria do próprio Henrique. Talvez um dos maiores destaques
fique por conta da coletânea Amores Plurais, com histórias de diversos autores.
O álbum foi resultado de um concurso temático, promovido pela editora
para estimular a produção no segmento. Entre diversos autores, há nele uma
história de Shiko, um dos nomes de maior reconhecimento dos quadrinhos bra-
sileiros na atualidade. “É um dos trabalhos mais relevantes que editamos, pela
diversidade de abordagens sobre a homossexualidade por autores nacionais e
mesmo internacionais”, disse o editor.
Porém, toda essa jornada teve início com uma personagem: Maria. A
maior protagonista das tiras e revistas que Henrique publicou ao longo das últi-
mas quatro décadas teve sua estreia em 1975, no jornal O Norte; depois, passou
a figurar nas páginas do diário A União – ambos paraibanos, de alcance estadual.
Maria nasceu pouco antes disso, quando Henrique tinha ainda 16 anos.
Era uma solteirona desesperadamente em uma busca de um marido – realidade
que o ainda aspirante a quadrinista observava, naquela época, entre as mulheres
na faixa dos trinta anos que o rodeavam: suas primas, tias e vizinhas.
Ao mesmo tempo, Henrique notava o papel secundário que as mulheres
ocupavam nos quadrinhos, “sempre a namorada ou a noiva dos heróis, vitimada
e fragilizada, dependente do empenho salvador do macho de plantão, resgatada
como troféu das garras insanas dos vilões”. Criar Maria era sua tentativa de dar
voz às mulheres nesse universo. Mas ela era também a voz do próprio Henrique,
inspirado pelo teor crítico das tiras que lia em jornais e revistas da época a uti-
lizar a subversão intrínseca ao humor para representar uma visão de mundo em
ebulição pelas inquietações da adolescência.
Porém, dois fatos foram determinantes para uma mudança crucial nos
rumos da personagem. O primeiro foi a entrada no curso de Arquitetura e Urba-
nismo da Universidade Federal da Paraíba, em 1976 (que posteriormente viria a
ser trocado pelo de Jornalismo), quando Henrique se viu imerso num ambiente
de discussões sobre raça, gênero e sexualidade – espaço que vinha sendo con-
quistado diante da abertura política do final da ditadura militar.
O segundo foi quando Henrique assumiu sua homossexualidade, aos
vinte anos. Ato esse que ele também via como sendo de militância e questiona-
mento. Pouco tempo depois, em 1980, foi dos fundadores do Nós Também – pri-
meiro grupo de militância LGBTQ+ da Paraíba.
Tudo isso trouxe a Henrique uma tomada de consciência que, para ele,
era inevitável que se refletisse em sua criação. “A política do cotidiano e a situa-

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ção da política de exceção passaram a predominar nas tiras que fazia, refletindo
minha transformação como pessoa e como autor”, ele conta. Foi assim que Maria
assumiu sua paixão pela amiga Pombinha, coadjuvante de suas tiras, tornando-se
uma das primeiras personagens abertamente homossexuais dos quadrinhos bra-
sileiros.
“Não posso afirmar com precisão, até para não cair na tentação da pre-
sunção, mas creio que não haja outra personagem brasileira antes de Maria a to-
car no tema”, observa Henrique. “Sem dúvida, Maria teve influência do Fradim
[do cartunista Henfil], que abordava eventualmente as questões feminista e de
gênero. Mas diferente dele, em que o tema era uma espécie de imersão tempo-
rária, uma licença poética do personagem, a homossexualidade passou a ser a
essência de Maria, algo intrínseco e indissociável, porque Maria também é uma
representação de mim.”.
Contudo, o quadrinista complementa que os conflitos sobre os quais Ma-
ria reflete não se restringem à sua sexualidade. O olhar de criador e criatura se
lançam sobre tudo aquilo que reflita os mecanismos de discriminação e opressão
da cultura patriarcal aos quais estamos submetidos. É uma personagem que evo-
lui de acordo com as transformações pelas quais passa a nossa sociedade.
Assim, Henrique nunca se deixou intimidar pelo machismo e preconcei-
to estruturais. Pelo contrário: era mais um incentivo para discutir, em suas tiras,
causas que ele (e Maria) consideram relevantes. Uma luta que, entretanto, não
foi travada sem percalços – como o fantasma da censura. “Os jornais aqui e acolá
alteravam o texto que lhe parecia inconveniente, o que me fazia protestar”, conta
o quadrinista. “Um deles cortou toda uma série de tiras que tocavam em conflitos
de terra. Era um tema proibido no estado. Fui banido do jornal.”.
A produção, conta Henrique, nem sempre foi contínua, mas era persis-
tente. Além das tiras de jornais, Maria também estrelou uma série de revistas
próprias, produzidas de forma independente por Henrique e distribuídas na Pa-
raíba e no Recife. Mais à frente, suas tiras também apareceram no jornal Correio
de Pernambuco, em 1980; e no semanário Algarve Região, de Portugal, entre
maio e novembro de 1995.
“É muito surpreendente que ainda hoje encontre pessoas que liam Maria
e falem dela com uma intimidade reconfortante. As pessoas dizem carinhosa-
mente que ainda guardam exemplares da revista, mostram aos filhos e perguntam
se ainda desenho”, comenta Henrique sobre a resposta do público. “Por outro
lado, há novas gerações que estão descobrindo Maria em postagens da internet, e
esses jovens leitores também se identificam com ela. Isso me faz achar que Maria
é atemporal e universal, o que corrobora minha pretensão autoral.”.
Henrique continua produzindo tiras de Maria – que são distribuídas por
uma lista de contatos, via e-mail e aplicativo de mensagens. E a loja online da
Marca de Fantasia continua disponibilizando os dez números publicados de Ma-
ria Magazine, sua revista mais recente, e cinco álbuns – inclusive os dois publi-

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cados pela editora Polvo, de Portugal. Um deles, Seu nome próprio… Maria! Seu
apelido, Lisboa!, lançado em 2015, garantiu a Henrique e à sua criação o prêmio
de Melhor Álbum Humorístico no Festival Internacional de Banda Desenhada de
Amadora, um dos mais importantes da Europa.
“Ter dois álbuns publicados em Portugal foi algo inusitado, mas muito
prestigioso”, refletiu Henrique sobre o reconhecimento d’além mar. “Demons-
trou que os portugueses valorizam a produção autoral de caráter inequivocamen-
te cultural, bem como foi uma prova de que os quadrinhos de Maria extrapolam
o contexto local e ganham importância internacional.”.
Mesmo com todo esse prestígio, Henrique sabe que algumas barreiras
dentro de seu próprio país ainda são difíceis de transpor. “Até hoje, Maria não
teve aqui mais que edições independentes, produzidas por mim mesmo. Embora
ela seja conhecida nacionalmente, nunca houve uma exposição ou lançamento
por editora comercial”, conta o quadrinista. “Este é um país que nutre um colo-
nialismo interno, que menospreza o que é feito fora do centro cultural do Sudes-
te.”.
Ainda assim, para aqueles os que conhecem a fundo o cenário de quadri-
nhos no Brasil, não há dúvidas sobre a relevância do trabalho hercúleo de Henri-
que Magalhães. Como editor e pesquisador, oferece um espaço livre de amarras
não só à comunidade LGBTQ+, mas a toda a produção independente nordestina.
E Maria, seu alter-ego, hoje encarna uma voz a qual, mais do que nunca, se soma
a todas as nossas.

Apoie até o dia 11/11 em:


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Após, adquira o seu na

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