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3 Corpo e voz em movimento: os caminhos da pesquisa

Esta tese define-se, do ponto de vista metodológico, por uma pesquisa de


abordagem qualitativa, dado o seu universo investigativo, de natureza descritiva (com
relação aos objetivos) e experiencial (no que diz respeito aos procedimentos), conforme
apresentam Flick (2013), Stake (2010). Aproxima-se também do método cartográfico tal
como apresentado por Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia (2015) e
outros pesquisadores, uma vez que este permite percorrer caminhos, acompanhar os
movimentos dos personagens envolvidos e fazer escolhas à medida que se avança no
percurso. A cartografia é um método processual que se consolida na ação, no encontro entre
pesquisador e campo. O que está em destaque não são os conhecimentos pré-existentes, mas
as construções que se desenvolverão na experiência do processo. Por meio da prática
cartográfica, o pesquisador problematiza um plano em movimento, concentrando sua
atenção nas transformações que ocorrem durante os processos e, ao mesmo tempo em que
intervém no campo, produz conhecimento. O método se constitui caso a caso, na prática,
buscando detectar pistas de processualidades51 em movimento, pistas essas que são como
“referências que concorrem para a manutenção de uma atitude de abertura ao que vai se
produzindo e de calibragem do caminhar no próprio percurso da pesquisa” (PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 13).
O projeto desta pesquisa obteve parecer favorável pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da UNESP em abril de 2018 (ANEXO 1). O detalhamento dos instrumentos de
pesquisa encontra-se no APÊNDICE B52.
Tendo em vista o objetivo central desta pesquisa e as questões que a norteiam, o
trabalho de campo foi realizado em dois contextos de prática coral/vocal no formato de
Oficinas, em momentos sucessivos e delineado nas seguintes etapas:

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Em capítulo do livro citado, Barros e Kastrup (2015) destacam dois significados distintos para a palavra
processo. O primeiro remeteria à ideia de processamento, que evoca a concepção de conhecimento como
informação e de pesquisa como coleta e análise destas informações. O segundo, coração da cartografia,
remete à ideia de processualidade, de processo já em curso quando do início da pesquisa uma vez que o
momento presente carrega uma história processual e o território presente, uma espessura processual. “A
espessura processual é tudo aquilo que impede que o território seja um meio ambiente composto de formas a
serem representadas ou de informações a serem coletadas. Em outras palavras, o território espesso contrasta
com o meio informacional raso” (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 58).
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Também constam dos apêndices: os roteiros que guiaram as entrevistas e grupos focais (APÊNDICE F); o
detalhamento e fundamentação da textualização, análise e categorização do material produzido (APÊNDICE
C); e as listas de temas e subtemas criadas para a análise (APÊNDICES D e E).
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Etapa 1: Planejamento da ação: elaboração dos roteiros53 de preparação vocal
com foco no corpo como unidade psicofísica, que foram experienciados e avaliados nas duas
Oficinas, campo empírico desta pesquisa. Os roteiros foram construídos com base nos
princípios da Educação Somática e nos procedimentos de quatro práticas: a Antiginástica de
Thérèse Bertherat; o Método Bertazzo; o Método GDS de Cadeias Musculares e Articulares;
e a Técnica de Alexander. Minha experiência anterior com o grupo Vocal UFC também foi
referência na elaboração dos roteiros.
Etapa 2: Implementação da ação: esta fase trata da experienciação dos roteiros
criados em duas Oficinas, visando à construção da proposta de preparação vocal. A ação foi
realizada em dois momentos e contextos diferentes na cidade de São Paulo no ano de 2018,
caracterizados como oficina54 que comportou encontros ao longo de três meses. O primeiro
momento ocorreu no âmbito do projeto didático de extensão vinculado à Universidade
Federal de São Paulo denominado Oficina Vocal, projeto dirigido pelo maestro Eduardo
Fernandes; durou de abril a junho e contou com cerca de quinze participantes que se
inscreveram para o projeto. O segundo ocorreu de agosto a outubro de 2018 na Oficina
Dando corpo à voz criada especialmente para esta pesquisa, realizada no Instituto de Artes
da UNESP e coordenada por mim, sendo composta por cerca de doze participantes
interessados, que serão apresentados em seção posterior.
Etapa 3: Análise dos dados produzidos: este foi o momento da avaliação e
interpretação dos dados produzidos nas Oficinas: roteiros de condução dos encontros,
transcrições das entrevistas individuais e dos grupos focais, registros em áudio e vídeo e
diários de observação das práticas; e da avaliação dos processos realizados nos grupos para
a elaboração dos resultados da pesquisa.
Uma síntese do trabalho de campo encontra-se no quadro 1.

PERÍODO ATIVIDADE
3 de abril a 26 de junho de 2018 Oficina Vocal (UNIFESP) – 9 encontros
3 de julho de 2018 Entrevista individual – regente da Oficina
Vocal

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“Roteiro” foi o termo que utilizei nos diários de campo para a sequência sugerida de movimentos na
preparação de cada encontro das oficinas desta pesquisa.
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Para Paviani e Fontana (2009), “oficina” é uma forma de construir conhecimento com ênfase na ação sem
perder de vista a base teórica. “Numa oficina ocorrem apropriação, construção e produção de conhecimentos
teóricos e práticos, de forma ativa e reflexiva” (p. 78).
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3 de julho de 2018 Grupo focal – Oficina Vocal
13 de agosto a 29 de outubro de 2018 Oficina Dando Corpo à Voz (UNESP)
5 de novembro de 2018 Grupo focal – Oficina Dando Corpo à Voz
– 12 encontros
Novembro de 2018 a janeiro de 2019 Entrevistas individuais – participantes da
Oficina Dando Corpo à Voz
Quadro 1: Datas e atividades realizadas durante o trabalho de campo.

3.1 A experiência das oficinas

Esta seção trata do processo de desenvolvimento e elaboração da proposta de


preparação vocal para cantoras e cantores coralistas. Aqui desenvolvo a narrativa que relata
a história de como a proposta foi construída através da estruturação dos roteiros das oficinas
e das percepções dos participantes, bem como das minhas próprias percepções na condução
e observação.

3.1.1 Oficina Vocal: a primeira experiência

Realizei a primeira experiência na Oficina Vocal55, na qual não havia nenhum


tipo de seleção para entrada. Além disso, seu público habitual era composto por pessoas sem
experiência formativa em música ou canto, o que para mim era importante devido ao caráter
da proposta que eu tencionava desenvolver. Durante o período em que atuei com eles (três
meses e nove encontros), o grupo era composto por cerca de treze pessoas, cinco homens e
oito mulheres entre estudantes, funcionários da universidade e comunidade, adultos entre 19
e 52 anos. Os encontros aconteceram às terças-feiras das 18:00h às 19:30h, e neles eu tinha
apenas os 30 ou 40 minutos iniciais de cada encontro para trabalhar com os participantes.
No restante do tempo, o regente conduzia atividades voltadas para a educação musical, que
podiam envolver percepção melódica e rítmica, aspectos teóricos de notação musical,
aprendizagem de repertório para o canto coral, questões técnico-vocais e percussão corporal.

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De acordo com a página do projeto de extensão Oficina Vocal
(https://www.coral.sites.unifesp.br/site/cursos), nos encontros “são abordados aspectos de técnica vocal,
percepção musical e prática de repertório buscando o aprendizado teórico da música por meio da prática do
canto coral”.
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Em apenas um dos encontros, o sexto, eu fiquei responsável por todo o tempo disponível por
solicitação do regente. Percebi que ao longo dos três meses em que trabalhamos juntos o
regente foi desenvolvendo uma maior confiança no meu trabalho. Minha percepção se deve
ao fato de que, a cada encontro, ele me dava mais tempo para a preparação vocal dos
participantes. Quanto ao grupo, foi importante ter contato com pessoas que estavam em
busca de um trabalho de canto coletivo em um coral, tendo em vista que esse é o público ao
qual esta pesquisa se destina.
Descrevo a seguir como estruturei os roteiros que guiaram essa primeira oficina.
Esses roteiros, bem como as mudanças que aconteceram da primeira para a segunda oficina,
serão mais bem explorados ao longo deste e do próximo capítulo.

3.1.2 Movimentos, componentes e sequência: elementos estruturantes da proposta

Para organizar e estruturar o roteiro do trabalho de preparação vocal


desenvolvido na primeira oficina, guiei-me pela estrutura sugerida por Thérèse Bertherat
para a Antiginástica – um caminho que seguisse em direção a um objetivo pré-definido (um
movimento central, no caso da Antiginástica, ou uma sonoridade vocal, no caso deste
trabalho). De início me propus a criar alguns termos que me ajudassem a organizar as ideias
contidas no roteiro. Embora algumas práticas somáticas utilizem o termo “exercícios”, todas
elas desaprovam sua utilização corriqueira, qual seja a de uma atividade realizada de modo
repetitivo e sem consciência ou presença naquilo que se está executando. Por este motivo
recorri ao termo movimentos, para deixar mais clara a diferença entre o que eu estava
propondo e a ideia desse exercício não consciente56. Ao conjunto de movimentos orientados
ao redor de determinada região do corpo, chamei componentes; e ao conjunto de
componentes sugeridos em cada encontro para um objetivo, sequências. Fiz uso destas
palavras a partir do quinto encontro da primeira oficina; até ali eu tinha usado os termos
“tópico” e “subtópico”, “partes” ou “trabalhos” para denominar os conjuntos de movimentos.
A adoção destes termos me ajudou a organizar a criação dos roteiros que guiaram os
encontros.

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Com a mesma intenção Thérèse Bertherat chama, aos movimentos que sugere ao final de seu primeiro
livro, preliminares, para os quais o mais importante é a consciência, e não a ânsia em acertar, a quantidade de
repetições ou a necessidade de realizar todos os movimentos sugeridos, um após o outro (BERTHERAT;
BERNSTEIN, 1977).
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da escuta, de improvisos, da conscientização do corpo no espaço, de experiências sonoras
que se transformam em música”60.
Foram oferecidas 20 vagas para esta oficina. Como tive muitas respostas à
chamada de inscrições, optei por convidar 25 pessoas, escolhidas por ordem de inscrição, e
criar uma lista de espera, imaginando uma possível evasão. O número máximo de
participantes foi pensado com base em aspectos como o material necessário, a sala
disponível para a realização dos encontros e um número mínimo de pessoas que
possibilitasse a formação de um grupo com as características de um coral. À medida que um
participante comunicava que não compareceria mais aos encontros, eu convidava a pessoa
seguinte da lista de espera. Esse procedimento se repetiu até o quarto encontro, quando
completamos um mês de atividades semanais e julguei não ser mais interessante para os
resultados da pesquisa inserir novas pessoas no processo.
As inscrições foram realizadas pela internet entre os dias 30 de julho e 10 de
agosto de 2018, via formulário da Google. O único pré-requisito mencionado no texto de
divulgação da Oficina era que os participantes deveriam ser maiores de 18 anos.
Compareceram em média doze participantes por encontro; concluíram o trabalho doze
pessoas, cinco homens e sete mulheres61, que apresentarei a seguir.

3.1.5 Os participantes da pesquisa

Apresento aqui os doze participantes que concluíram a segunda oficina. Cada


um deles foi entrevistado individualmente. Apresento a seguir uma pequena biografia
autorizada e revisada por eles, que também escolheram o pseudônimo que os identifica no
início de cada parágrafo.
Cadabra Brandão é um ator de 22 anos, que tem experiência com o teatro desde
criança. Faz aula de canto particular, lugar onde começou a descobrir sua voz. Atua em
espetáculos como transformista, e está começando agora a descobrir uma voz grave que pode
deixar presente também seu falsete estilo Pablo Vittar (Entrevistas, p. 13). Também trabalha

60
A chamada pode ser vista em: https://www.facebook.com/events/201813173840371 Uma cópia desta
página encontra-se no Apêndice H.
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Havia no grupo uma menina de oito anos, filha de um dos participantes da oficina. No primeiro encontro
ela esteve presente com o pai, e se interessou em participar do trabalho de auto-observação com o qual
iniciamos as atividades. Como o pai estava presente, eu permiti que ela participasse; ela permaneceu com o
grupo até o final do período da oficina.
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