Você está na página 1de 7

909

O processo de ensino-aprendizagem no canto coral, do ensaio ao concerto:


dimensões educativomusical, historicomusicológica e performática
Rita de Cássia Fucci Amato
FMCG
fucciamato@terra.com.br

Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar as atividades desenvolvidas na disciplina
Prática coral, junto a alunos de bacharelado e licenciatura em música da Faculdade de
Música Carlos Gomes (FMCG), em São Paulo-SP. Para avaliá-las, aplicou-se um questionário
semi-estruturado a 17 (dezessete) alunos. A pesquisa salientou a efetiva possibilidade de
integração entre o estudo historicomusicológico de repertório, a formação pedagogicomusical
e a atividade performática vocal em conjunto.
Palavras-chave: ensino de canto coral, educação vocal, ensino de música na graduação.

Introdução

O ensino do canto coral é, notadamente, uma prática educativomusical de extrema


relevância para a formação do músico na universidade. Os trabalhos com grupos vocais, por
meio de uma prática bem conduzida e orientada, podem efetivar a integração interpessoal, a
construção do conhecimento de si (de sua voz, da voz cada coralista, de seu aparelho
fonador), o prazer estético e a alegria de cada execução (FUCCI AMATO, 2007a, p. 77).
Em pesquisa realizada junto a estudantes recém-ingressos em cursos de bacharelado
e licenciatura em Música, Figueiredo (2005) mostrou que existe uma grande expectativa por
parte desse alunado em aperfeiçoar sua experiência musical por meio do canto coral. Para o
autor, a prática coral apresenta um caráter multidisciplinar, ao permitir o exercício de
habilidades rítmicas e melódicas, por exemplo, e une o conhecimento teórico à prática
musical.
Sob tal ponto de vista, este trabalho visa explorar o processo de ensino-aprendizagem
do canto coral no ensino superior, destacando os recursos musicais – pedagógicos,
historicomusicológicos e interpretativos – desenvolvidos por essa atividade educacional nos
discentes. Para tanto, aplicou-se um questionário semi-estruturado a 17 (dezessete) alunos,
que discorreram sobre a relevância da prática coral para sua vivência musical, a importância
do repertório trabalhado, os aspectos técnicos da apresentação do grupo, a importância do
concerto em sua formação e as preocupações individuais durante a performance.

A dimensão historicomusicológica
910

O trabalho desenvolvido na disciplina Prática Coral envolveu repertórios de


diversos períodos da história da música, visando a proporcionar uma visão abrangente da
história coral, dentro das limitações temporais da aula. O aluno 4 comenta que “a escolha de
um repertório eclético estimula o músico a conhecer e buscar novos materiais, como
aconteceu no meu caso”. Ademais, segundo o aluno 7: “O repertório foi muito bem
elaborado, partindo de obras do Renascimento até obras mais contemporâneas, como Villa-
Lobos, o que contribuiu para o conhecimento do repertório nacional, o qual muitas pessoas
ainda não conheciam”. Parte do repertório também foi constituída por cânones, que “foram
inspiração para séculos de evolução na música ocidental. Entendendo tais peças fica mais
fácil de compreender quaisquer obras que cruzem meu caminho de agora em diante” (a.8).
Também outras composições foram ensaiadas e destacadas pelo alunado, como um spiritual
norteamericano: “Acho de extrema importância trabalhar com esses diferentes repertórios,
assim como Steal Away, uma música de outra cultura e com uma harmonia interessante, que
exigiu mais atenção” (a.17). Salienta-se, por outro lado, que o foco das atividades
desenvolvidas foi o conhecimento das composições para coro de Villa-Lobos (1887-1959).
O enfoque sobre a obra de Villa-Lobos se justifica pela importância histórica das
atividades desenvolvidas por esse maestro, dentro do projeto de ensino de canto orfeônico na
escola básica brasileira (cf. FUCCI AMATO, 2008). Neste momento em que se discute a
reinserção da educação musical na escola regular, é fundamental informar os graduandos em
música (muitos dos quais licenciandos, que irão atuar no ensino musical escolar) acerca da
experiência villalobiana da educação coral, incluindo o repertório por este desenvolvido,
contido, por exemplo, em seus guias de Canto Orfeônico (VILLA-LOBOS, 1940; 1951).
Acerca da relevância das peças ensaiadas para sua formação e informação musical,
os discentes teceram seus comentários.

O contato com a música folclórica e com a música do grande mestre que foi
Villa-Lobos deveria ser uma obrigação de todo músico brasileiro. A Ave
Maria de Villa-Lobos é belíssima, e eu não conhecia, e isso é bem relevante
para minha formação, conhecer a música de nossos grandes compositores.
(a.3)

Como futura professora, conhecer um repertório de um compositor brasileiro


tão importante como Villa-Lobos [...] é um conhecimento indispensável para
a formação acadêmica. Sair de uma faculdade de música sem o
conhecimento do repertório de Villa-Lobos seria no mínimo vergonhoso.
(a.10)

Como alunos de música, é esperado que nós conheçamos o trabalho de Villa-


Lobos. Porém, como alunos brasileiros, torna-se obrigatório conhecer obras
desse importante compositor com uma vontade grande de ensinar ao povo
911

brasileiro o que é necessário para que [se] possa conhecer mais da nossa
própria cultura e folclore. (a.16)

A dimensão performática e o concerto como momento de aprendizagem

No âmbito do ensino coral, pode-se entender o concerto não somente como um


momento de concretização e reconhecimento do trabalho musical e pedagógico desenvolvido,
mas também como uma oportunidade de aprendizagem para os discentes-coralistas. Segundo
estes, a apresentação compôs sua formação musical, com relevância para os detalhes
interpretativos a que se prestou atenção durante a interpretação.

Importante porque conhecemos o repertório. Cantamos as nossas músicas


sabendo a origem delas, [o que] nos trouxe mais cultura e informação a
respeito. Cantamos sabendo o ritmo delas, as mensagens que elas nos
trazem, o espírito musical. (a.11)

A regência do coro foi muito boa, as entradas, claras, intenções bem


definidas (forte/ fraco) e principalmente segurança passada pelo regente.

O grupo conseguiu um bom relacionamento entre seus membros em um


certo período de tempo. Fatores como afinação, leitura e percepção
melhoraram gradualmente, mas o grupo precisa se ambientar com a presença
do regente, que foi pouco aproveitado pelo grupo. (a.7)

Todos aparentavam segurança, os erros não abalaram o resto da


apresentação. (a.8)

[...] particularmente posso enfatizar a integração do grupo e a


espontaneidade na hora da execução. (a.9)

Foi minha primeira apresentação usando a voz: mesmo sem ter pretensão de
ser cantor, gostaria (motivado pela apresentação) de estudar mais o canto e
até integrar corais [...].
Sem dúvidas, a preocupação principal foi desafinar (podendo prejudicar o
restante do coro) ou esquecer alguma música pelo nervoso [...]. (a.2)

Foi minha primeira experiência de apresentação com coral, e foi [...] muito
satisfatória. (a. 3)

[Procurei] manter as notas afinadas, não cair o tom, tentar respirar pela boca.
(a. 3)

[Me preocupei com] a afinação, postura, não fazer barulho com a respiração
e controlar o nervosismo. (a.6)

É uma forma de apresentação diferente da qual estou acostumado. Depender


de um regente e tantas outras vozes, uma experiência valiosa. (a.8)
912

Não perder o andamento nem a afinação, e conseguir ouvir as demais vozes


do coro. (a.8)

A performance do grupo, as entradas no momento exato, a afinação, a


integração ou intimidade “regente-coralista”, a resposta aos movimentos da
regência e a postura. (a.9)

Muito importante, pois fizemos um trabalho em equipe e demonstramos os


frutos do esforço de cada um, pois nem todos são cantores e [conhecem]
técnica vocal. (a.12)

A apresentação [...] foi de suma importância para mim, pois tive a


oportunidade de cantar em público e observar o quanto é difícil. Temos que
estar muito atentos ao regente, à afinação, ao som do grupo e ao mesmo
tempo controlar nossas emoções. Valeu muito a experiência. (a.13)

Foi muito importante, pois tivemos a oportunidade de nos conhecermos e


sabermos [...] o quanto precisamos evoluir. (a.14)

Os discentes também destacaram algumas dificuldades interpretativas que surgiram


durante a apresentação, como a afinação, identificando, assim, fatores a serem trabalhados
pelo grupo para seu crescimento musical.

A dimensão educativomusical

No que concerne aos procedimentos didáticos do ensino coral, seguiu-se um


conjunto de atividades essenciais para o trabalho com o repertório (FUCCI AMATO, 2007b):
vocalizes básicos de aquecimento e preparação vocal visando às peças a serem executadas e
atividades referentes à afinação das vozes, ao ajustamento de timbres de cada naipe, aos
detalhes de fraseado, de articulação e de dinâmica. A importância da prática coral para sua
vivência musical foi reiterada pelos discentes:

Muito importante, uma vez que está diretamente ligada a minha atividade
profissional, pois ministro aulas de canto em grupo. (a.1)

A prática vocal individual e em grupo, aprender a ouvir as outras vozes,


aprender a diferenciar dinâmicas na voz (forte/ fraco), [...] e aprender como
se portar diante de um público quando se faz parte de um coro, nenhum
indivíduo (a não ser o solista) deve aparecer mais que os outros. (a.2)

O contato com repertório vocal, a prática do solfejo, aprender a entoar os


intervalos, aprender onde respirar, além de cantar em grupo, [o] que é uma
prática satisfatória. (a.3)
913

Considero a disciplina prática coral como fundamental na formação do


músico, junto a disciplinas como percepção e instrumento complementar (no
caso, piano). Deve ser uma disciplina obrigatória e com mais semestres de
duração. (a.4)

A prática coral tem grande importância em minha vida, pois sempre fará
parte da minha vivência, amo cantar em coro, canto no coral de minha igreja,
ajudo a ensaiar os naipes e rejo um coral infantil na escola onde trabalho.
(a.5)

A melhora da condição vocal, a prática de conjunto na maneira de uns


ouvirem os outros, a concentração e disciplina, além da melhora da afinação
(a.6)

A prática coral é fundamental para o músico, não importando para este se é


ou não cantor. O canto, além de ser uma referência para o músico, é melhor
empregado quando utilizado em conjunto, como o canto coral, que, além de
ter um papel importante na socialização, ajuda no desenvolvimento da
leitura, afinação e independência vocal, já que o cantor tem que seguir a sua
linha de naipe e não se confundir com os outros. (a.7)

Qualquer músico que se preze deve saber solfejar uma partitura. A prática
coral ajuda-nos nessa tarefa. É também o primeiro trabalho em que eu tive
contato com a figura de um regente. (a.8)

Muito importante. O treino da voz para mim é essencial, já que estou sempre
cantando com meus alunos, tanto na musicalização quanto de instrumento
(solfejo dos exercícios). (a.10)

É importante porque aprendemos a lidar com a voz, saber utilizar as técnicas


vocais, aprendemos a cantar. Com o canto, aprendemos a ter impostação de
voz, a ter afinação, noção de tempo e nos ajuda a entendermos mais as
músicas que ouvimos e apresentações [a] que assistimos; [também nos ajuda
a] fazermos uma avaliação crítica [...] da peça [musical]. (a.11)

A prática coral é importante para o conhecimento corporal, a desenvoltura e


a socialização. O aprendizado na percepção de se ouvir e escutar os outros
colegas. (a.12)

Enquanto aluno, [a prática coral] me ajudou muito em percepção [...],


enquanto professor de saxofone mais ainda, pois procuro cantar a lição ou a
música antes de tocá-la, e isso tem me ajudado muito no aprendizado dos
meus alunos [...]. (a.13)

Entendo ser de suma importância para nossa vida profissional, em se


tratando de questões técnicas como respiração, postura e concentração.
(a.14)

Como cantora, essa matéria me ajudou a ouvir os outros melhor e trabalhar


com grupos, que é algo que cantores geralmente não enfrentam, pois além
914

dos instrumentos, raramente temos outras vozes dando suporte e interagindo.


(a.16)

[...] nos faz trabalhar em conjunto e nos respeitar bem mais. (a. 17)

Conclusões

Este relato de experiência evidenciou, no caso focado, a real possibilidade de se


integrarem as dimensões historicomusicológica, performática e educacional no processo de
ensino aprendizagem do canto coral, conforme sintetiza a figura esquemática a seguir.

Dimensão histórico-
Dimensão
musicológica
performática
Ensino de
canto coral

Dimensão
educativo-musical

FIGURA 1 – Dimensões do ensino de canto coral

Assim, o canto coral tem uma importante função na formação do músico e do


educador musical como profissional capaz de realizar uma pesquisa musical historicamente
informada, de interpretar uma obra dentro de seu contexto musicológico e de desenvolver um
trabalho pedagogicomusical. Conforme comentou a aluna 16: “Acho que as pessoas deveriam
se conscientizar da importância do coral para músicos, não só para cantores, mas também
instrumentistas, que aprendem a lidar com um grupo maior que tem que se ouvir
constantemente [para se aperfeiçoar]”.
Quanto à formação do educador musical, uma sólida vivência de canto coral é
especialmente relevante. A maioria dos discentes entrevistados no presente trabalho frequenta
o curso de Licenciatura em Música e grande parte já atua ou poderá atuar junto à educação
musical escolar básica, âmbito em que o canto coral pode ser um dos meios ideais de
musicalização, por suas especiais e únicas qualidades de sociabilização, integração
interpessoal, baixa demanda de recursos materiais, desenvolvimento da voz e de qualidades
de expressão e comunicação dos discentes, orientação à saúde vocal, entre tantos outros
aspectos.
915

Referências

FIGUEIREDO, Sérgio Luiz Ferreira de. A prática coral na formação musical: um estudo em
cursos superiores de licenciatura e bacharelado em música. In: CONGRESSO DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
(ANPPOM), 15., 2005, Rio de Janeiro. Anais. Rio de Janeiro: UFRJ/ ANPPOM, 2005. p.
362-369.

FUCCI AMATO, Rita de Cássia. O canto coral como prática sócio-cultural e educativo-
musical. OPUS: Periódico da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
(ANPPOM), Goiânia, v. 13, n. 1, p. 75-96, 2007a. Disponível em:
<http://www.anppom.com.br/opus/opus-13/07/07-Amato.pdf>. Acesso em 15 jan. 2009.

______. Canto coral, educação musical e performance na universidade: o caso do IA-UNESP.


In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL
(ABEM), 16./ CONGRESSO REGIONAL DA INTERNATIONAL SOCIETY FOR MUSIC
EDUCATION (ISME) NA AMÉRICA LATINA, 1., 2007, Campo Grande. Anais - Educação
musical na América Latina: concepções, funções e ações. Campo Grande: Editora UFMS/
ABEM/ ISME, 2007b. p. 01-12.

______. Momento brasileiro: reflexões sobre o nacionalismo, a educação musical e o canto


orfeônico em Villa-Lobos. RECIEM: Revista Electrónica Complutense de Investigación en
Educación Musical, Madrid, v. 5, n. 2, p. 1-18, 2008. Disponível em
<http://www.ucm.es/info/reciem/>. Acesso em 15 jan. 2009.

VILLA-LOBOS, Heitor. Canto orfeônico (v. 1). Rio de Janeiro, Irmãos Vitale, 1940.

______. Canto orfeônico (v. 2). Rio de Janeiro, Irmãos Vitale, 1951.

Você também pode gostar