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IX SIMPÓSIO NACIONAL DE PRÁTICAS

PSICOLÓGICAS EM INSTITUIÇÕES
- ATENÇÃO PSICOLÓGICA: FUNDAMENTOS, PESQUISA E PRÁTICA

VISITA DOMICILIAR COMO UMA DAS


MODALIDADES DA PRÁTICA DO PSICÓLOGO NA
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL EM SAÚDE MENTAL

Prof. Dr. Nilson Gomes Vieira Filho / Mestrado em Psicologia /FAPSI /UFAM.

Josemary M. de Souza, Fabíola Carvalho, José Otonei Nóbrega, Graduandos em


Psicologia/FAPSI/UFAM.

Introdução
Esse trabalho se inscreve na continuidade de publicações do autor sobre práticas psicológicas em
instituições (Vieira Filho, 2005; Vieira Filho, Rosa, Vidal, 2008), principalmente aquela
diretamente ligada a esse texto (Vieira Filho, Nobrega, 2004). Nesta última, a prática terapêutica
em rede social é colocada como fundamental para o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em
saúde mental, micro-organização territorial, que funcionaria dentro de uma rede articulada e
solidária de unidades sanitárias no Sistema Único de Saúde (SUS).
Nessa prática de cuidados deve existir variabilidade de intervenções no trabalho de equipe (p.ex.
individual, grupal, familiar, visita domiciliar), a possibilidade de variações no enquadre
(terapêutico, preventivo, promoção à saúde), bem como relações dialógicas entre interlocutores.
A visita domiciliar se situa num espaço de cuidados instituído, extensão das atividades do CAPS
no território, marcado por uma simbólica institucional da reforma psiquiátrica, de escuta da
subjetividade e inter subjetividade de quem sofre e da possibilidade de ações de saúde e de
caráter sócio-assistencial.
Concomitantemente, essa pratica de cuidados está situada historicamente no processo de
desconstrução institucional do circuito hospitalocêntrico (Barros, 1994) que se reflete nas
atividades cotidianas do CAPS, sobretudo, concernente o sujeito/usuário egresso do hospital
psiquiátrico. A dinâmica do trabalho em rede implica mediações dialógicas nas relações de
cuidados, intra e inter institucional, que seriam facilitadoras desta desconstrução, como também
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contribuiria para a inserção social do sujeito/usuário. Veremos mais adiante quanto que essa
problemática esta presente nas visitas domiciliares de um CAPS (saúde mental, adulto) no
Amazonas.
O objetivo deste trabalho é estudar a visita domiciliar como uma das modalidades de cuidado do
psicólogo inserido numa equipe interdisciplinar na atenção psicossocial em saúde mental,
funcionando como prática terapêutica em rede social. As exemplificações indicam um material
oriundo de estágio curricular de estagiários em psicologia de uma universidade publica do
Amazonas.
A visita domiciliar como resposta instituída da equipe a uma “demanda”
No contexto da reforma psiquiátrica (Barreto, 2005), a visita domiciliar é um tipo de modalidade
de cuidados em saúde mental, integrada à atenção psicossocial, onde se destaca a freqüente
participação do psicólogo na equipe interdisciplinar. Essa atuação não mais seria em unidades de
saúde mental umas separadas das outras e sem conexões efetivas ou com co-responsabilidade nas
intervenções terapêuticas ou preventivas como ocorre no sistema manicomial hospitalocentrico.
Ao contrário, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) (MS, 2002), de caráter comunitário ou
territorial, deve funcionar no interior de uma rede integrada de serviços de saúde/ saúde mental,
principalmente os serviços de Saúde da Família (MS, 2004, 2006), no Sistema Único de Saúde
(SUS). E, as várias intervenções previstas neste Centro, inclusive a visita domiciliar, deve
trabalhar as conexões interativas tanto no interior da unidade de saúde quanto inter
institucionalmente, assim como na rede pessoal significativa do sujeito/usuário.
Operacionalmente, esta visita é um tipo de atendimento domiciliar que faz parte integrante do
repertório de intervenções da equipe do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), cujo objetivo
principal é a atenção de cuidados seja, emergencial, terapêutica e/ou preventiva ao
sujeito/usuário em experiência de sofrimento (Amarante, 2003, p.59; Barus-Michel, 2004).
Esse tipo de atendimento domiciliar é entendido como um tipo de resposta instituída e dialógica
a uma “demanda” de cuidados à saúde mental, seja proposta pelos familiares ao CAPS, pelo
próprio sujeito/usuário, por uma instituição ou órgão do judiciário etc. A variabilidade destas
“respostas” depende então do tipo de demanda de cuidados à saúde mental, das condições
concretas de intervenção da equipe interdisciplinar e dos recursos disponíveis para efetivá-la.
Mas, essa modalidade só é geralmente praticada nos CAPS quando há transporte disponível e/ou
quando a residência do usuário não se mostra muito distante do serviço.
Cada demanda supõe alguma solicitação que o profissional necessita decifrá-la criticamente para
não correr o risco de “ir na onda” do imediatismo. Exemplo de uma pessoa da família que queira
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manipular a situação para responder ao seu desejo de contenção do “comportamento desviante”
do usuário visto como “doente/louco”, reproduzindo o velho esquema manicomial. O risco do
profissional estaria em responder apressadamente essa demanda que camufla uma “comanda”,
isto é, uma solicitação objetificante para os sujeitos implicados, susceptível de efeitos
iatrogênicos de conteúdo manicomial no sujeito/usuário.
De fato, o profissional confronta-se geralmente na prática com situações psicossociais referentes
aos conteúdos sócio-culturais que remetem à “instituição difusa” manicomial (Basaglia et al.,
1977/2005) que faz sentir um imaginário cultural marcado pela periculosidade e incapacitação
social, com efeitos possíveis de rejeição, isolamento, humilhação em relação ao dito “doente
mental/louco/deficiente”.
Essas visitas não visam, portanto, à contenção comportamental ou situações semelhantes de
estilo manicomial, ao contrário, busca potencializar a autonomia e auto-estima do
sujeito/usuário, bem como estimular o respeito mútuo, a desconstrução de estigmas manicomiais
e processos de exclusão social. Esse atendimento participa assim do processo de
desinstitucionalização contribuindo para a “promoção das conversões das demandas advindas
das instituições totais, gerando um novo circuito de demandas e intervenções mais condizente
com o processo de subjetivação, liberdade e cidadania dos usuários” (Vieira Filho, Nóbrega,
2004).
A visita domiciliar pressupõe um plano-ação de intervenção
Cada atendimento domiciliar, enquanto resposta instituída a uma “demanda”, pressupõe, ao
menos, um plano-ação mínimo de intervenção de caráter terapêutico (emergencial ou não),
preventivo e/ou de promoção à saúde. Esse plano pode ser construído seja, como parte do projeto
terapêutico do usuário em tratamento, como plano de atendimento emergencial sem que o
usuário esteja em tratamento no CAPS, como plano de atendimento para o usuário que tem
dificuldade de seguir ou comparecer às atividades terapêuticas no espaço do CAPS, como plano
de atendimento ao usuário que necessita de cuidados e que se recusa freqüentar o espaço do
CAPS, assim por diante.
Em todo caso, se os profissionais da equipe têm, ao menos, algum plano intencional em mente
este vai se deparar com a dinâmica relacional concreta do ambiente residencial, sobretudo,
referente à rede pessoal significativa do sujeito/usuário mais diretamente implicado. Deve-se
estar atento em perceber esta rede pessoal e sua dinâmica interna, no interior do processo
dialógico entre interlocutores (Vieira Filho, 2007) que tenderia potencializar a criação ou a
estimulação de uma rede de apoio ao sujeito/usuário em situação de sofrimento e que tenha
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relação com sua inserção social. Essa rede de apoio teria a possibilidade de se articular, se for o
caso, com outras redes (informal, popular e profissional) (Helman, 2000) no sentido de qualificar
esse atendimento.
A prática de visitas domiciliares em um CAPS urbano no Amazonas
A reforma psiquiátrica no Amazonas vive um dilema sem resolutividade política até o momento.
Um fato positivo é que não há hospital ou clinica privada em psiquiatria em todo Estado.
Entretanto, há apenas um hospital psiquiátrico em Manaus que não recebe novos pacientes há
vários anos. Continua funcionando com cerca de quarenta pacientes, cronificados pelo
manicômio, que aí residem sem poder usufruir de residências terapêuticas até o momento.
O que funciona com estilo administrativo manicomial é a emergência psiquiátrica no referido
hospital, com poucos leitos, e interagindo com o ambulatório de mesma perspectiva. São poucos
os CAPS no Estado e esses estão com importante parcela da clientela oriunda das internações
psiquiátricas. Situação dramática e desafiadora. De um lado, há necessidade de se trabalhar
constantemente a desconstrução da reprodução da lógica e efeitos negativos das instituições
totais e de outro lado, os poucos CAPS existentes funcionam com certa precariedade e com uma
fração importante de sua clientela oriunda deste circuito manicomial.
O CAPS (saúde mental-adultos) urbano onde estudamos a prática da visita domiciliar tem apenas
um transporte publico disponível, cujo horário de funcionamento é divido entre as atividades
administrativas e de visitas domiciliares que são geralmente planejadas com certa antecedência.
A solicitação de visita domiciliar é muitas vezes formulada, por pessoa da família ou ligada a
esta, pela intermediação da atenção básica/saúde da família ou outra instituição, e raramente pelo
próprio usuário. Refere-se freqüentemente às situações de sofrimento-crise de caráter
emergencial terapêutico, sendo poucas aquelas que estão integradas diretamente ao projeto
terapêutico do usuário que tem atividades de cuidados à saúde mental no estabelecimento do
CAPS.
A não ser em casos excepcionais, é de regra que um membro da equipe do CAPS se comunique
por telefone (residencial, telefone de contato ou orelhão) com alguém da residência do usuário,
solicitando se confirma ou aceita ou não aceita a visita domiciliar, anteriormente planejada ou
não. Nota-se que é muito raro não aceitarem este atendimento, sendo o(s) membro(s) da equipe
comumente bem recebido(s) nessa(s) residência(s).
Os poucos médicos, com formação psiquiátrica, alegam não terem tempo disponível para esses
atendimentos tendo em vista a sobrecarga de atendimentos no próprio estabelecimento do CAPS.
Portanto, as visitas domiciliares são efetuadas por psicólogo, enfermeiro, terapeuta-ocupacional,
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assistente social, estagiários, de acordo com a disponibilidade de horário e, em alguns casos, com
algum vínculo estabelecido com o usuário e/ou família anteriormente.
O diálogo entre profissional e usuário(s) e/ou pessoa(s) da casa segue uma linguagem mais
próxima do cotidiano e do contexto do sócio-ambiental da residência. Nessa vivencia o
profissional (ais) tenta(m) geralmente perceber o foco da problemática em saúde mental e a
urgência ou não de uma resposta de cuidados mais complexa.
Exemplificações:
Escolhemos três exemplos de visitas domiciliares participadas pelos estagiários de psicologia no
contexto acima relatado e que refletem solicitações cotidianas.
Visita domiciliar por solicitação de familiares
A demanda deste atendimento foi formulada por familiares, sendo a mãe a principal articuladora.
O usuário não aceita ir ao estabelecimento do CAPS para participar de atividades terapêuticas. A
alternativa encontrada foi a visita domiciliar que viabilizou mais adiante uma estratégia de
acompanhamento de cuidados à saúde mental domiciliar tendo em vista a situação de
precariedade, social e de saúde, a qual o usuário se encontrava.
Segundo foi relatado, o usuário, adulto, parece sofrer principalmente do impacto dos
atendimentos parciais e sem acompanhamento terapêutico adequado para o diagnóstico de
“esquizofrenia” no sistema manicomial há mais de dez anos. Seu atendimento psiquiátrico
continua ainda no ambulatório interligado com o hospital psiquiátrico. E, essa situação teria e
tem ainda contribuído para a construção de efeitos estigmatizantes em sua rede familiar e
incapacitantes em relação ao trabalho.
Abandonou o emprego de operário em uma fabrica e os estudos. Fica deitado no quarto o dia
todo, quase não verbaliza, quase não interage, conversa sozinho, se alimenta melhor à noite
quando não tem ninguém na casa. Quando vê a mãe, volta para o quarto, ali permanecendo até
que todos se recolham em seus quartos, apresentando também condições precárias de higiene.
Além de isola-se dos familiares, apresentava insônia, falava sozinho, tinha falta de apetite e
baixa auto-estima.
Percebeu-se no primeiro contato domiciliar com a família que havia um distanciamento entre
alguns membros do núcleo familiar e o usuário. Não parecia haver uma boa relação entre os
moradores da casa e destes com o usuário. Apesar da dedicação e preocupação da família, era
como se o sujeito/usuário tivesse sido esquecido, como se o fato dele não conversar com os
outros e agir de modo “diferente” fosse, de certa forma, excluído do convívio “normal” com os
familiares.
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Durante as primeiras visitas domiciliares o usuário encontrava-se deitado na rede, em seu quarto,
os membros da equipe do CAPS tentavam contato com ele, mas com pouca interação. Percebia-
se que o mesmo ouvia e escutava visto que reagia sorrindo em alguns momentos interativos.
Nesses atendimentos, havia reunião com a maioria dos membros da família, sem a sua presença,
onde se dialogava sobre a compreensão dessa situação de sofrimento familiar e do usuário.
Uma mudança importante. No dia de seu aniversário membros da equipe do CAPS levou um
bolo para comemorar seu aniversário. A alegria do usuário surpreendeu a todos, comeu o bolo,
bebeu refrigerante e depois voltou para o quarto. Apesar de seu silencio percebeu-se que aquela
comemoração contribuiu para melhorar e reforçar o vinculo com os membros da equipe do
CAPS.
Seu reconhecimento social como sujeito, comemorando o dia de seu nascimento, teria
modificado significativamente sua relação com os membros da equipe do CAPS e com seus
familiares. Pois, nas outras visitas ele já saia da rede de dormir, sentava-se e conversava. Os
familiares também observaram que ele estava procurando interagir mais com as pessoas da casa.
Conversava com os irmãos (embora muito pouco), já passeava pela casa e se alimentava pela
parte da manhã, sem precisar se esconder dos familiares.
A relação terapêutica construída com o usuário, durante esses atendimentos, foi baseada na
reciprocidade e dialogo, respeitando sua visão de mundo, evitando atitudes preconceituosas e
autoritárias por parte dos membros da equipe do CAPS, procurando compreender as suas
necessidades vitais enquanto sujeito-social, tentando responder a sua demanda implícita de
reconhecimento social.
Visita domiciliar por solicitação da vizinha
A demanda deste atendimento foi formulada pela vizinha que parece ser pessoa de confiança da
família, exercendo certa autoridade em relação ao usuário, adulto. Trata-se aqui de uma primeira
visita domiciliar que teve por finalidade tentar o retorno do usuário ao CAPS. Ele já freqüentou
algumas vezes este estabelecimento acompanhado desta vizinha, porém sempre demonstrou
resistência em participar de alguma atividade terapêutica. Naquele momento só estava tomando a
“injeção quinzenal”, isto é, neurolético de efeito prolongado, insuficiente para seu tratamento na
atenção psicossocial.
O usuário tem em seu histórico várias internações na emergência psiquiátrica, estando suscetível
a recidiva e com a possibilidade de reinternação neste micro-sistema manicomial. Obviamente, o
contraste na condução e concepção dos atendimentos entre essas instituições e a dificuldade de
superação deste dilema é evidente, pois o CAPS ainda não funciona em regime de CAPS III que
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proporcionaria a internação do usuário, quando necessária. Ele parece ressentir essa situação
como confusa e dilemática, dificultando assim sua adesão ao tratamento no CAPS.
Durante a visita o usuário ficou deitado na rede, mas conversava com os membros da equipe do
CAPS. Comentou seus problemas de saúde e de exclusão social. Não estava dormindo bem,
acordava várias vezes durante a noite. A vizinhança não gostava dele, quando passeava pela rua,
os vizinhos do bairro o chamavam de marginal e outras palavras pejorativas.
Parece que para compensar desses problemas ele buscava um suporte no mundo espiritual
místico-religioso onde se sentia muito bem, segundo ele. Assim, quando olhava para o céu
durante o dia fica maravilhado com o sol que trazia a imagem de Deus. E, toda vez que olhava
para o sol fica arrepiado da cabeça aos pés. Conversava com o espírito de Deus que é o sol,
conseguindo ver os olhos de Deus na parede da própria casa. Consultou dois Pastores sobre as
visões que tinha. O primeiro disse que era coisa do “diabo”, mas o segundo Pastor disse que era
o “Espírito Santo”, obviamente ele concordou com esse último religioso.
O usuário comentou que gostava de ouvir música e que tinha em casa um violão, mas não sabia
tocar. Contudo, pediu para cantar uma música de sua autoria sendo aceito pelos membros da
equipe do CAPS. Sua mãe pediu várias vezes para que ele parasse de cantar. Finalmente ela
atendeu a sugestão dos terapeutas para que deixasse o filho continuar a cantar como forma de
comunicação até mesmo com a própria família.
Ao ser indagado sobre a participação dele no grupo de coral no CAPS ele não aceitou. Quando é
perguntado se ele gostaria de participar de alguma outra atividade nesse estabelecimento, ele
retrucou interrogando sobre a possibilidade de criar ovelhas aí. Enfim, recusava qualquer
possibilidade de realização de atividades terapêuticas no CAPS. Essa situação é preocupante,
pois ele não realiza atividades em casa, fica geralmente deitado na rede.
Visita domiciliar com consentimento prévio da usuária
A demanda de visita domiciliar foi proposta por um membro da equipe a própria usuária, jovem
adulta, que aceitou sem dificuldades quando compareceu ao CAPS para consulta no plantão de
acolhimento, acompanhada da mãe. Queixava-se que a filha apresentava comportamento
agressivo, delírios, insônia, irritabilidade.
Ela teria recusado ser atendida quando percebeu que o médico do CAPS era o mesmo que a tinha
atendido no ambulatório de estilo manicomial. Sua primeira consulta neste ambulatório teria sido
motivada, segundo a mãe, pela viagem que fazia de barco para o interior para visitar familiares,
com pouco dinheiro e sem poder suprir suas necessidades de sobrevivência.

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Nesse percurso do barco teria havido uma crise psicótica: estaria sendo perseguida pelo FBI,
tentou se jogar do barco pensando que este iria afundar. Esta situação desagradável teria
desencadeado um “estado de pânico”, motivo pelo qual teria sido levada ao referido ambulatório
manicomial, onde teria sido medicada contra sua vontade, ficando com uma imagem negativa do
médico e do serviço, projetando provavelmente esta imagem para o CAPS.
A usuária não compareceu a primeira visita domiciliar. A mãe disse que a filha tinha ido praticar
esporte. O diálogo ocorreu com a mãe que relatou um pouco da história de vida da usuária e irmã
mais velha que não morava mais com a família.
Uma nova visita foi marcada para a semana seguinte a qual a usuária ainda não compareceu.
Novamente, os membros da equipe do CAPS conservaram com a mãe sobre suas duas filhas,
mas ela não entrou em detalhes sobre a filha em tratamento dizendo que a mesma era “muito
fechada” e não conversava muito.
Semanas depois foi realizada uma terceira visita na qual a usuária compareceu e conversou
bastante com os membros da equipe do CAPS. Explicou que estava bem de saúde e que o
episódio com o médico tinha sido um mal entendido. Estava tomando a medicação prescrita por
ele e tendo reações positivas.
Enfim, a jovem usuária já voltou às atividades cotidianas escolares e de trabalho e a praticar
esporte. A mãe reafirmou que agora a filha está bem melhor, acreditando que a medicação
poderia estar influenciando positivamente em relação ao comportamento agressivo anteriormente
apresentado pela usuária. Mesmo assim, os membros da equipe do CAPS se colocaram a
disposição da família para uma nova visita domiciliar desde que necessário.
Considerações finais
A visita domiciliar como uma modalidade da prática do psicólogo trabalhando em equipe
interdisciplinar na atenção psicossocial em saúde mental é entendida como fazendo parte do
repertório das praticas terapêuticas em rede social e em processo de desinstitucionalização
manicomial.
Nesse enquadre terapêutico, preventivo e/ou de promoção à saúde/saúde mental o foco principal
da intervenção domiciliar não é o transtorno mental reificado na malha do modelo reparatório
(Goffman, 1968) ou da simplicação da crise (Dell´Acqua, Mezzina, 1988/2005). Mas, o
sujeito/usuário na sua experiência existencial de sofrimento e/ou de adoecimento, em seu
percurso de vida e de espaço social na sociedade onde vive.
Nas exemplificações dos atendimentos domiciliares, nota-se de inicio a coisificação dos
pacientes nas malhas da instituição total do micro-sistema contextualizado envolvendo-o numa
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espiral de “doença/loucura” e exclusão social. Com as intervenções em desconstrução
manicomial esse mecanismo de coisificação vai se desvelando e dando lugar à emergência do
usuário enquanto sujeito, com sua subjetividade e história de vida para contar.
Percursos interventivos que não foram “tecnicamente” pontuais ou lineares, mas capazes de
perfazer no cotidiano as ritualizações graduais nas relações dialógicas entre interlocutores que
possibilitasse pouco a pouco e com paciência a expressão de sua fala, de sua voz e comunicação
humana relativas à sua experiência existencial de sofrimento e/ou de adoecimento.
Nesse sentido, a demanda de outrem na origem da visita foi pouco a pouco se transformando em
demanda do sujeito/usuário por intermédio da sutileza das relações de afeto e reconhecimento
social implícitas no processo dialógico entre interlocutores. Daí a importância, nessas
circunstancias de uma relação menos instrumental ou “técnica” e mais afetiva e com laços
sociais em reciprocidade, demarcando relações de poder implícitas não verticais.
Os familiares foram também se implicando positivamente nesse outro tipo de relação não
excludente abrindo espaços de sociabilidade no seio do núcleo familiar para o sujeito/usuário.
Primeiros passos para a construção de um projeto terapêutico que possa dar continuidade a um
acompanhamento de cuidados em saúde/saúde mental trazendo mais esperança de vida e
inserção social mais humana.
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