Você está na página 1de 6

UM DIA SEM ESTADO

*Dão Real Pereira dos Santos

Dentre as várias campanhas do tipo “Um dia sem carro”, “Um dia sem
impostos”, Um dia sem sacolas plásticas”, “Um dia sem isso”, “Um dia sem aquilo”,
lembrei de que talvez fosse interessante imaginar um dia sem Estado. A idéia não é
nova, nem é minha, mas a tomei de empréstimo de um colega ativista do programa
de educação fiscal de Porto Alegre que comentava, em evento na Feira do Livro,
que antes de se pensar em um dia sem tributos, deveríamos pensar num dia sem
Estado.
Retomo este tema, pois recentemente acompanhamos a situação quase
beirando ao caos, na cidade de Fortaleza, no Ceará, provocada por uma greve de
policiais militares e bombeiros. Em seis dias de paralisação, a cidade praticamente
entrou em pânico: motoristas de ônibus ameaçavam greve por absoluta falta de
segurança para trabalhar; lojas fechavam no meio da tarde; assaltos aconteciam em
todos os lugares; turistas desistindo de viajar para aquela cidade; etc.
Numa primeira visada fica até difícil imaginar que um dia sem Estado pudesse
provocar algum desconforto, pois na rotina do cotidiano das pessoas não se percebe
com clareza a presença e a importância do Estado. Além disso, já está meio que
incrustado no imaginário popular uma certa rejeição à idéia de que o Estado seja
algo necessário e imprescindível, e quem não usa diretamente os serviços públicos
tende a achar que o Estado mais atrapalha do que ajuda. Por um lado, isso é até
compreensível, haja vista a predominância de uma cultura midiática que
recorrentemente idolatra o que é privado e deprecia o que é público. Por outro, acho
que isso também decorre da natureza humana. Tem coisas que a gente só percebe
quando falta, como a saúde, a água, a energia elétrica, a visão, a vida, o ser amado,
a paz, etc. E só se percebe quando estas coisas faltam de uma hora para outra. Se
a falta se dá de forma lenta, nos acostumamos e não percebemos. É tão normal
contar com estas coisas, que normalmente estão presentes, que vamos aos poucos
perdendo a capacidade de reparar que elas existem. O Estado talvez esteja nesta
classe de coisas.
O exercício que estou propondo é de pura imaginação. Como seria Um Dia
Sem Estado?
Ao acordar pela manhã, certamente não perceberíamos muita coisa. Talvez
uma falta de energia elétrica ou de água. Até aí, nada de mais. Ao sair de casa,
como a falta de Estado já estava anunciada, somos assaltados na parada de ônibus,
pois sem Estado, não há polícia, e também não há Lei, e ,como todos sabem, o
crime é organizado e se organiza de forma muito rápida, pois não está preso pelos
controles nem pela burocracia.
Um dia sem Estado não deve ser interpretado como sendo um dia de
paralisação do Estado, mas um dia em que ele simplesmente não existe. Portanto,
ainda que o Estado volte a existir no dia seguinte, não poderia atuar sobre os fatos
daquele dia sem Estado. Então, neste dia, não há Lei e, portanto, ninguém poderá
ser punido por atos que tenha praticado.
Muitos não poderão sair de casa, pois sem escolas públicas e sem as creches
populares, não haveria com quem deixar as crianças. Outros, sabendo que não
haverá Estado, vão se organizar para deixar as crianças com quem já não tem
trabalho.
Os crimes, ou seja, aquilo que era crime quando o Estado existia, certamente
se multiplicarão, e de forma muito rápida, pois sem o Estado, o único elemento
restritivo aos abusos individuais será a consciência de cada um. A chance de voltar
para casa sem ter sido vítima de roubo ou de alguma agressão é muito pequena.
Quando conseguir pegar um ônibus, já que poucos circularão por falta de
segurança, as passagens certamente estarão bem mais caras. Não havendo
fiscalização, as empresas aproveitarão o dia sem Estado, sem regulamentação,
portanto, para tentar melhorar sua situação financeira. Não se sabe quando o
Estado voltará a existir, portanto será importante ganhar o máximo possível.
Ah, também não haverá passagem livre para idosos, nem passagem
subsidiada. No trânsito, sem controle público, acidentes ocorrerão por toda parte.
Imaginem um desses acidentes em que vários veículos se chocam e diversas
pessoas ficam feridas na rua. Algumas mortes, inclusive. Levará horas até que os
feridos sejam socorridos. Não haverá serviço público de socorro. A SAMU não
existirá neste dia. Os particulares é que deverão ajudar os feridos e isso dependerá
da boa vontade de cada um. Também não haverá perícia, nem IML para remover os
corpos dos que morrerem. O trânsito será um verdadeiro caos. Não haverá
fiscalização e cada um seguirá segundo sua pressa. Os semáforos e controladores
de velocidade, mesmo funcionando automaticamente, não produzirão qualquer
efeito, pois não haverá penalidades a serem aplicadas nem Estado para aplicá-las.
Os hospitais públicos estarão fechados e servidores públicos não existirão
neste dia. Então só restará aos acidentados e aos doentes em geral o socorro pago.
Quem conseguir chegar a um hospital e tiver condições de pagar será atendido.
Quem não conseguir ficará à sua própria sorte. Não haverá distribuição gratuita de
medicamentos nem SUS.
Um incêndio num edifício ficará ardendo até que a última chama resolva se
exaurir por falta do que queimar. Por mais que as pessoas tentem,
voluntariosamente, apagá-lo, com seus baldes de água, extintores e mangueiras,
sem os bombeiros organizados e equipamentos públicos adequados, as chamas
serão implacáveis.
No centro da cidade, onde a população insiste em se concentrar todos os
dias, arrastões se sucederão propagando pânico entre as pessoas. Os
estabelecimentos comerciais fecharão suas portas. As pessoas serão roubadas até
seu último centavo.
Velhas rixas serão resolvidas em verdadeiros campos de batalha. Diversos
assassinatos sem prisões. Sem Lei, não haverá crime nem punição. No dia sem
Estado, os presídios ficarão desguarnecidos. Será cada um por si.
As fronteiras ficarão escancaradas. Uma oportunidade que rapidamente será
aproveitada por milhares de contrabandistas e traficantes nacionais e estrangeiros
que resolverão abastecer o mercado interno de produtos piratas, produtos
falsificados, produtos que não atendem as condições sanitárias, armas e drogas,
tudo para atender ao mercado interno por um grande período de tempo. Será
momento de fazer estoques. A enxurrada de produtos sem impostos e sem qualquer
regulamentação ou proibidos, sem dúvida, colocará em risco a economia doméstica,
a saúde pública e a segurança por um longo período.
Não podemos esquecer que no dia sem Estado, não haverá forças armadas.
Então não se poderá cogitar em colocar o exército nas ruas e nas fronteiras para
garantir a ordem. Além disso, aquelas partes do território nacional, que sempre
foram cobiçadas por nações estrangeiras, poderão ser ocupadas sem qualquer
resistência. Talvez até surjam focos de conflitos internacionais para decidir quem
terá precedência nesta ocupação. Quando o Estado voltar a existir, a situação já
estará posta, e só uma guerra poderá fazer voltar ao que era antes.
O controle de tráfego aéreo não existirá e cada companhia terá que assumir
os riscos de voar ou não. Algumas, por questões de segurança, cancelarão seus
vôos e os aeroportos ficarão abarrotados de gente aguardando a volta do Estado.
Como no dia sem Estado será perigoso sair às ruas, a maioria das pessoas
ficará em casa, faltará ao trabalho e cancelará seus compromissos. Outros sairão
desesperadamente atrás de algum trabalho que lhes garanta pelo menos mais um
dia… Vá que o Estado não volte amanhã! Muitas indústrias não funcionarão por falta
de funcionários ou por diversos outros motivos. Outras, no entanto, conseguirão
transportar seus empregados de casa até as fábricas sob escolta para protegê-los
de assaltos e arrastões e manterão sua produção funcionando. Claro que o custo
deste transporte e segurança será descontado dos salários. Aliás, no dia sem
Estado, o próprio valor do trabalho também será renegociado, pois salário mínimo
também é coisa de Estado.
Antes da metade do dia, as ruas já estarão abarrotadas de lixo. Cada um vai
querer se livrar do seu, o mais rápido possível. Como a situação de falta de Estado
pode não cessar, embora a proposta inicial fosse de apenas um dia, pois o amanhã
é futuro e futuro não existe, exceto como expectativa de hoje, cada um resolverá
seus problemas segundo suas próprias condições físicas e materiais. Assim, os
comerciantes que tiverem condições contratarão sua própria segurança e poderão
explorar seu negócio, enquanto os problemas de acúmulo de lixo, de saneamento,
de falta de abastecimento de água e de energia elétrica não tornarem as condições
insustentáveis. Tendo que arcar com todos os custos envolvidos muito poucos
negócios subsistirão. Claro que os preços também serão aumentados para cobrir
estes custos. Filas se formarão para aproveitar a grande liquidação de produtos
estrangeiros contrabandeados que rapidamente chegarão às grandes cidades.
E se o Estado não voltar mais? A falta de perspectiva quanto ao futuro
significa também não haver garantia de previdência para a velhice. Até os serviços
privados de saúde, de segurança, de educação, etc, ficarão precários, pois inclusive
estes, que constituem alternativa ao próprio Estado (embora alguns pensem que
seja o contrário), para funcionarem, necessitam de transporte público para seus
funcionários, trânsito controlado, energia, água, segurança, saúde, assistência,
previdência, saneamento, etc, etc. Cada um terá então de encontrar sua forma de
sobreviver e de garantir a sobrevivência dos seus.
A produção nacional diminuirá, o comércio formal ficará prejudicado, não
haverá trabalho, não haverá garantia de lucros, não haverá garantia de salários. Só
o comércio dos produtos contrabandeados é que terá condições de se desenvolver,
claro, enquanto existir alguma reserva de recursos nas mãos das pessoas. Quem se
sentir prejudicado não poderá recorrer à justiça. Então, na lei do cada um por si,
predominará, sem dúvida, a lei do mais forte. Quem tiver mais, quem roubar mais,
quem explorar mais, terá uma sobrevida maior. Esta será a percepção que orientará
o comportamento das pessoas neste dia sem Estado.
Sem a garantia de que amanhã haverá Estado e tudo voltará ao normal,
muitos resolverão abandonar o País e emigrar para o exterior. No entanto, os países
vizinhos antevendo este problema, fecharão suas fronteiras contra estes novos
refugiados. A população ficará aprisionada em seu país sem Estado, pelos outros
países com Estado.
A iluminação pública não funcionará. À noite, no escuro, a cidade será
território dos bandidos, daqueles que fugiram dos presídios, daqueles que viviam
contidos pela presença do Estado, mas também daqueles que encontrarão na
expropriação alheia a sua própria sobrevivência.
Não faltarão líderes para tentar reorganizar as pessoas no enfrentamento das
dificuldades produzidas pela falta de Estado, pois, como todos sabem, não há
espaço vazio. Onde o Estado não existe, alguém fará a vez. Sem Lei, também estas
lideranças disputarão seus territórios e cada um conquistará mais adeptos e
simpatizantes quanto mais vantagens e segurança oferecer às pessoas, quando não
se impuserem pela força de seus bandos e pela subjugação. Afinal, armas não
faltarão no mercado.
Pintada dessa forma, a situação parece muito mais caótica do que seria na
realidade. Até porque um único dia sem Estado pode passar mais rápido do que o
tempo necessário para que tudo isso pudesse acontecer ou ser percebido. No
entanto, a falta de expectativa de seu retorno, certamente potencializaria os efeitos
negativos da falta de Estado, na medida em que cada um será impelido a garantir,
por si, o seu futuro, e quando o valor em questão é a sobrevivência, outros valores
certamente sucumbem.
Posso, no entanto, estar absolutamente enganado na leitura dos efeitos que
este exercício de imaginação propõe, e nada disso acontecesse, pois os valores
humanos, sociais e morais das pessoas, como a solidariedade, espírito público,
responsabilidade social e respeito ao próximo, já estão suficientemente arraigados
para evitar que a falta de Estado signifique o retorno à barbárie.
Mas, claro, e antes que eu esqueça, no Dia Sem Estado ninguém pagará
impostos.
*integrante do Instituto Justiça Fiscal

Você também pode gostar