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História
Antonio Gramsci
Antonio Gramsci é o fundador do Partido Comunista da Itália. A história das suas lutas,
do seu martírio no cárcere e das vitórias póstumas do seu espírito é leitura edificante
para os adeptos do credo político que foi o seu. Mas suas atividades de altiva
independência em parte só agora reveladas, também o tornam caro a todos os que
apreciam a heresia, the right to dissent , em suma: a liberdade. A recordação de Gramsci
deve ser igualmente cara a todos os que reivindicam a verdadeira democracia, contra as
hipocrisias do elitismo. Sua obra de grande intelectual — um dos maiores do século XX
— inspira respeito até aos adversários do seu credo: inspirou respeito também ao
intransigente Benedetto Croce que “só com reverência e com afeto” se permitiu falar
desse morto, desse símbolo vivo de uma resistência inquebrantável nos cárceres mais
escuros da tirania. Antonio Gramsci foi um mártir e quase um santo. Sua história é um
exemplum vitae humanae .
A vida de Gramsci! Seria um livro para todos. Mas não pretendo escrevê-lo. Em parte
porque minha intenção é outra; em parte porque os fatos já são bem conhecidos, de
modo que basta recordá-los.
2. Seria esta a vida de Antonio Gramsci: de um homem morto há 29 anos e que não
acreditava na ressurreição dos corpos. Acreditamos, por nossa vez, no preceito
evangélico que manda deixar aos mortos o mister de enterrar os mortos. Importam os
vivos. No túmulo de Keats, perto daquele de Gramsci, o poeta infeliz mandara gravar as
palavras: “Eis um cujo nome foi escrito na água”. Mas na verdade tinha escrito os
versos imortais em língua inglesa. Quando Antonio Gramsci foi, em 1937, enterrado, o
que ele tinha feito e pensado também parecia “escrito na água”. E hoje sua
personalidade está mais viva que jamais e o poeta Pier Paolo Pasolini, no colóquio com
o sepultado do Cemitério dos Ingleses que abre o volume Le ceneri di Gramsci , pode
acrescentar “às fadigas, contradições, pensamentos, atos, lutas e vitórias” a homenagem
de una luce poética . A personalidade de Gramsci continua uma força viva.
Pois qual tinha sido o “crime” que levara Gramsci para o cárcere? Não penso em pintar-
lhe o retrato como de um anjo inocente, condenado sem culpa nenhuma. Foi ele homem
de ação revolucionária, disposto a subverter pela força e pela violência a ordem
estabelecida. Mas apenas estava disposto para tanto, sem chegar a realizar seus projetos,
ao passo que o ditador fascista tinha realizado a subversão, colocando-se a si próprio
acima de todas as leis humanas e divinas e atribuindo-se o direito de punir com
requintes de crueldade, e inapelavelmente, o crime político que ele próprio perpetrou.
Alega-se salvar a democracia ou a civilização ocidental, destruindo-se a democracia e
violando-se a civilização. Compreendemos, hic et nunc , aqui e agora, a situação de
Mussolini na ditadura e a de Gramsci na prisão. É uma atualidade que continua e
percebemos que Gramsci, embora postumamente, venceu.
3. Mas não vamos antecipar nada. Ainda estamos em 1926: Gramsci na prisão, e os
democratas italianos de todas as nuanças perseguidos e no ostracismo. Como se
comportar, nessa situação aparentemente sem saída? Comportavam-se como se todos
estivessem, com Gramsci, na prisão. Esperavam um milagre: pela marcha inexorável
dos acontecimentos históricos. O preso, dentro dos muros da Penitenciária de Turi,
sabia disso; e discordou. Reconheceu, sim, naquele fatalismo passivo uma fonte de
fortalecimento moral em tempos de opressão. Definiu a fé em certa razionalità della
storia como sucedâneo da fé dos cristãos na Providência divina. Mas rejeitou a analogia,
exigindo a permanente tomada de consciência, única fonte possível — naquelas
circunstâncias — do futuro ativismo revolucionário.
Esse ativismo é bem marxista. Ou então, para defini-lo mais exatamente: é marxista-
leninista. Mas Gramsci não encontrara os argumentos para refutar o fatalismo nem em
Marx nem em Lenin. Sua doutrina da consciência como fonte de ação — que lembra, de
longe, pensamentos de Lukács e Ernst Bloch — é herança do seu mestre ou ex-mestre
Croce. Como discípulo do filósofo de Nápoles, exigiu Gramsci um marxismo
humanista, base etica del nuovo Stato . Como discípulo de Croce, Gramsci não podia
imaginar a revolução política e social sem a consideração devida dos fatores culturais.
Mas esses pensamentos e raciocínios todos não seriam tipicamente revisionistas?
Bem ortodoxamente exigiu Gramsci, antes de tudo, a unidade doutrinária. Mas para
justificá-la apelou, mais uma vez, para Croce: como este, citou o exemplo da unidade
doutrinária do catolicismo. Anticlerical, como sempre foram os intelectuais italianos,
Gramsci não é, no entanto, anticatólico. Venera, de longe, a Igreja à qual não pertence.
Pretende aproveitar a milenar experiência moral da instituição de Roma. Exige que os
comunistas preservem a disciplina intelectual e moral de um clero. É assim que ele
entende o Partido.
Nessa altura, Gramsci parece leninista dos mais ortodoxos. Mas leninista, sim, e não
stalinista. Citando trechos menos citados do pensador-revolucionário russo, Gramsci
rejeita ou parece rejeitar a ditadura do proletariado, admitindo apenas a hegemonia do
proletariado numa fase de transição (ver Fabrizio Onofri, ex-membro do Comitê Central
do PCI, em seu artigo “La via sovietica alla conquista del potere e la via italiana aperta
da Gramsci”, Nuovi Argomenti , 23/24, 1957). Este Gramsci é o pai do comunismo
libertário e da democracia operaia , o fundador dos consigli di fabbrica , que estavam
destinados a ocupar, explorar e administrar as empresas industriais. A esse respeito é
Gramsci o precursor da organização industrial hoje em vigor na Iugoslávia, começo de
uma evolução que ainda não terminou. É bem possível que esse “revisionismo” de
Gramsci se transforme mesmo em “ortodoxia”. E o mesmo vale quanto às atitudes
democráticas de Gramsci dentro do seu partido e dentro da III Internacional de então.
Gramsci como mentor do “caminho italiano para o socialismo” parece confirmar aquilo
que poderíamos chamar de “italianismo essencial de Gramsci”. Sua vida e seu
pensamento só são compreensíveis como parte de determinada fase da evolução
política, social e cultural da Itália; suas idéias continuam idéias de Croce, embora
invertendo-as; italianos são todos os seus pontos de referência, a começar com
Maquiavel. O italianismo de Gramsci culmina em sua crítica dos intelectuais italianos,
da intelligentsia italiana, pois são fenômenos, estes, diferentes em qualquer uma das
nações modernas, dependentes da história, da evolução social, da evolução literária e até
da formação da língua. Não seria possível aplicar à intelligentsia francesa ou russa ou
espanhola as lições tiradas das experiências históricas, muito diferentes, da intelligentsia
italiana. No entanto, justamente através do italianismo fundamental de Gramsci revela-
se seu universalismo.
subdesenvolvido da península. Essa última idéia parece, mais uma vez, especificamente
italiana, nascida de circunstâncias históricas. No entanto, mais uma vez, o italianismo de
Gramsci se revela como de validade universal.
4. As obras escritas por Gramsci no cárcere só podiam ser publicadas depois de 1945. O
primeiro volume que saiu compreende as 218 cartas que o preso escreveu entre 1926 e
1936 a membros de sua família: à mãe; aos filhos que viviam em Moscou com a mulher
do preso, física e mentalmente quebrada; e, sobretudo, à cunhada Tatiana, a pessoa lá
fora no mundo que melhor o compreendeu. Escritos sob a censura das autoridades da
Penitenciária, as Lettere dal cárcere falam pouco ou nada de política. Destinam-se,
sobretudo, à luta contra a solidão dentro das quatro paredes; à luta contra o progressivo
enfraquecimento físico, e, sobretudo, à luta pela sobrevivência espiritual: separado dos
seus para sempre, o encarcerado não quer ficar esquecidos por eles. Por isso, se dirige
Gramsci, nesse grande documento humano e obra-prima da literatura italiana, com
preferência a seus filhos nos quais espera sobreviver. Nessas cartas aos filhos não se
percebe o menor traço de sofrimento, de impaciência, mas uma maravilhosa adaptação
ao espírito infantil: no entanto, muitas vezes, as palavras têm duplo sentido, escondendo
atrás dos conselhos paternais, acessíveis à compreensão das crianças, confissões de
auto-introspecção do preso e propósitos dele para seu próprio futuro, tão limitado.
Penosamente, o epistológrafo procura reconstruir as caras, as vozes que ele já quase
esqueceu. Lembra-se para não ficar esquecido e não esquecer, é seu grande esforço.
Atrás da família surgem recordações de sua própria infância na Sardenha, inspiradas
pelo profundo amor cristão desse materialista aos pobres da sua terra. O estilo
rigorosamente sóbrio das Lettere dal cárcere não dissimula a emoção de quem as
escreve. Pela emotividade procura Gramsci superar o intelectualismo seco que ele
próprio censurara nos seus pares, nos intelectuais; e procura fortalecer-se para o
trabalho intelectual em circunstâncias monstruosamente difíceis.
“Eu sei”, diz Gramsci, “que bater com a cabeça contra o muro não destrói o muro, mas a
cabeça”. Não desespera. Mas escreve. Escreve furiosamente, cadernos, cadernos e mais
cadernos, que foram, depois de 1945, coligidos e ordenados pelos seus testamenteiros e
publicados pela Editora Einaudi: O materialismo histórico e a filosofia de Benedetto
Croce ; o escrito sobre Maquiavel; Os intelectuais e a organização da cultura ; Literatura
e vida nacional ; um comentário sobre o Canto X do Inferno de Dante; um estudo sobre
Pirandello; e a versão definitiva da Questione meridionale . É um output admirável.
Escrevendo e escrevendo, o mortalmente doente sempre repete em suas cartas: “Sto
bene, sto bene”. “Sinto-me muito bem”, porque o tirano não conseguiu realizar a
promessa do promotor, de “inutilizar por 20 anos esse cérebro”. A morte prematura foi a
coroa do martírio. Mas a cova debaixo da campa fascista ficou vazia. O espírito
ressurgiu.
“O espírito está disposto, mas a carne é fraca”, diz São Paulo. Vida, martírio e morte de
Antonio Gramsci desmentem vigorosamente esta frase, mas confirmam outras palavras
do apóstolo: “A fé, o amor e a esperança, esses três ficam, mas o amor é o maior entre
eles”. Grande foi, realmente, o amor de Antonio Gramsci a seu povo sofredor e
maltratado. Maior foi, porém, em seu caso, a fé que consegue transferir montanhas e
que para Gramsci abriu, espiritualmente, os muros da prisão. Mas a maior das virtudes
suas foi a Esperança. Pensamos: em 1926, quando Gramsci escreveu La questione
meridionale , o preso já não podia publicá-la; em 1930, quando em Paris se publicou o
escrito, só poucos o leram; e em 1937, quando Gramsci morreu, seu pensamento parecia
enterrado com ele na terra italiana, dominada talvez para sempre pela tirania fascista,
baseada em exército, polícia, hordas inumeráveis de milicianos armados, justiça
especial, dinheiro da grande burguesia, apoio do latifúndio, ajuda de potências
estrangeiras e apatia do povo exausto. Mas só poucos anos depois caiu como um castelo
de cartas todo esse edifício da tirania e o sintoma externo dessa queda foi, em 1945, a
segunda publicação da Questione meridionale numa revista editada na Via delle
Botteghe Oscure, em pleno coração da Roma libertada.
Mesmo no escuro da prisão que parece perpétua e é efêmera, a esperança não morre e “é
a maior das três”. Eis a vida de Antonio Gramsci.