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UNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E MUCURI

Paulo Henrique de Lacerda Cardoso

Memória, História e Fontes Orais


‘LÍNGUA DOS CUETE’:

O SEGREDO DO DIALETO DA TABACA EM BOM DESPACHO (MG)

DIAMANTINA
Introdução:

A complexidade da formação da sociedade brasileira, se deu por diversas


origens de sociedades provenientes de vários continentes e que ajudou a constituir uma
memória coletiva herdada por diversos processos de socialização históricas e políticas.
A alta percentagem de uma população negra no país perpassa pelo processo de tráfico
de negros escravizados por mais de trezentos anos. As narrativas das milhares de
famílias que trouxeram em sua memória e em seus costumes uma cultura concebida na
sua terra natal sofreu por muito tempo um processo de silenciamento. No entanto,
diversos traços desse saber adquirido das tradições africanas foram reproduzidos por
gerações posteriores e que moldaram os comportamentos sociais que até hoje carregam
a herança de um conhecimento secular.

O trabalho apresentado aqui provém da história do surgimento de um dialeto que


ficou popularmente conhecido como “Dialeto da Tabatinga”. Para uma melhor
contextualização sobre o tema escolhido, é necessário situar-se na pequena cidade de
Bom Despacho, que é encontrada interior de Minas Gerais. Muitos moradores de longa
data dessa localidade já são familiarizadas com a presença da língua que muitos
atribuíam à origem africana, ademais, ao referissem à esse tipo de linguajar como algo
inteligível e indecifrável pôde-se constatar um certo interesse e curiosidade sobre o seu
significado. O morador dessa pacata cidade do interior que recorda dessa espécie de
idioma, não esquece de mencionar onde residiam àqueles que falavam o dialeto por
inteiro. A Rua Tabatinga e a Cruz do Monte eram as regiões dos que eram considerados
os primeiros a carregarem essa língua. Os primeiros habitantes da região da “tabaca”
(nome atribuído à rua tabatinga), sendo um subúrbio construído em meados do século
XX, constitui-se por casas de capim, ocupando a zona periférica da cidade de Bom
Despacho. Em sua maioria, os nascidos na Tabatinga ou Cruz do Monte, eram homens
solteiros, católicos, tinham idade na faixa dos 11 a 30 anos, sendo de maioria uma rua
ocupada por moradores negros e mulatos, compondo mais da metade dos falantes
(QUEIROZ, 2018).

Em linhas gerais, a pesquisa se apoiou em informações recolhidas por


entrevistas de duas pessoas que residiram na cidade e também na obra de Sônia Queiroz
em seu livro intitulado: “Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga”.
Sendo uma obra que se debruça nas referências históricas, linguísticas, culturais e
sociais que estão inseridas sobre as influências do dialeto.

Metodologia:

Foram utilizadas fontes orais, que se deu a partir da execução de entrevistas


com duas pessoas, a primeira é moradora da cidade de Bom Despacho até os dias atuais
e a segunda saiu de sua terra natal aos 21 anos de idade. Utilizou-se também um livro
de autoria da pesquisadora Sônia Queiroz.

Justificativa:

O pretexto utilizado para este trabalho tem relação com a explicação entorno do
elo estabelecido pelos moradores da tabatinga que ajudaram a corroborar para a
formação de uma memória local que é repassada pelos antigos moradores dessa rua. A
partir das entrevistas realizadas, foi possível entender que, muitas das tradições
religiosas tiveram influência de moradores da tabatinga. Outra questão vincula-se com
o processo de disseminação da língua para outras regiões da cidade e a forma com que
se popularizou como mecanismo de resistência.

O contato da língua com antigos moradores da cidade:

O primeiro escolhido para essa entrevista possui uma ligação afetiva com o
passado dos moradores da tabatinga. José Raimundo dos Reis de 62 anos, possui
diversas lembranças da sua juventude na rua. A conversa não trata apenas de uma língua
pois essa memória repercute nas tradições que até hoje estão presentes naquela
localidade. Diante disso, os moradores as festividades e o dialeto são elementos que
estão coesos e fortemente ligados na fala de Zé Raimundo, que é bastante conhecido na
cidade. Os nomes e apelidos de vários daqueles que compunham a comunidade são
mencionados em sua fala:

Agora, a lembrança dos moradores da tabatinga, eu tenho a lembrança muito


forte da descida do morro, como a gente fala, na descida ali mesmo em que
morava a família Jovi. A gente falava Jovi, o nome verdadeiro a gente nem
sabia porque aqui a gente tem o hábito de conhecer as pessoas, pelo primeiro
nome ou pelo apelido. Na descida do morro saindo da rua Flávio Cansado, a
gente já caía na casa do Seu Lucas que é o pai do Batista né, hoje eles falam
Batista que conserta televisão, essas coisas tudo. Mais pra frente, (inaudível)
cê encontrava a casa da Dona Zilda ou a Zilda do (inaudível ) depois o sô
Zeca Paiva e assim por diante até chegar na casa do Bastião Foiero, que era o
tião Gostinho, que era meu avô, lá pra frente morava o seu Aristides que
também do pessoal da comunidade mais negra era o sô Aristides e a família
do lado direito, a família baiana, que chamava Maria Baiana que é que veio,
que eles dizem que introduziu o dialeto, esse dialeto da tabatinga, que ele é,
segundo alguns historiadores, alguns que pesquisaram, veio da tribo dos
bantos lá da África. (José Raimundo)

Toda essa sensibilidade presente nos seus dizeres reafirmam um encontro entre
passado e presente pela ideia da ‘vivacidade’ encontrada nos seu discurso. Uma
determinada experiência que é narrada de forma tão viva é um traço que encontra-se
com a fonte oral, de acordo com a historiadora Verena Alberti:

Em muitos casos a entrevista oral nos acena com a chance ou a ilusão de


suspendermos um pouco que seja, a impossibilidade de assistir a um filme
contínuo do passado. Quando isso acontece é porque nela encontramos a
“vivacidade” do passado a possibilidade de revivê-lo pela experiência do
entrevistado. (ALBERTI, 2004, p.15)

A pergunta que leva em questão a “língua dos cuete”, “língua do cativeiro”,


“dialeto da tabatinga” entre outros nomes, é respondida pelo entrevistado de maneira
que, explica o processo de socialização desse linguajar em sua infância. No entanto,
percebe-se que há uma problematização acerca das condições sócio-econômicas da
época e a forma com que o trabalho informal ganhou forças na cidade.

É um segredo que num queria que passasse pra ninguém, parece né há um


conto dessa fase que o pessoal que o povo da tabatinga era pro povo não
saber o que que o outro tava falando. Só que, muitos precisava de trabalhar os
jovens precisavam buscar mercado de trabalho ou alguma coisa, ou na
informalidade. O que aconteceu, eu mesmo fui um desses fui engraxate na
praça e muitos moradores da minha época foram pra essa praça da matriz ser
engraxate, ou era na praça ou era na rodoviária, ou era na porta do bar igual
foi no bar do Jaú e esses engraxate o que que eles falavam já comunicava
com os outros sem perceber no dialeto da tabatinga, por exemplo, “oh cuete
vamo engraxar o tiploque” quer dizer vamo passar uma graxa aí no sapato,
era assim. “A urunanga do cuete”, quer dizer, olha a roupa dele como que
ele tava bem vestido ou mal vestido, “isso é coisa de cavingueiro” “opa,
cheio dos cobre”. É, a ingura era a avura. Ou “ih ingura catita” não precisa
pegar o sapato não que ele não vai te pagar. Era assim, então era mais uma
forma de comunicar entre eles engraxate, mas o outro ia lá escutando e foi
pegando aquilo. (José Raimundo)

Outro fator que converge e reforça sobre as questões das condições de trabalho,
especificamente dos moradores da Tabatinga foi discutida por Sônia através de um
levantamento feito pela pesquisadora. Durante a elaboração de sua pesquisa, foi
realizado um levantamento das ocupações profissionais dos moradores e entendeu-se
que a maioria deles eram empregados de baixa remuneração. Pela tabela, e por outros
dados que também são expostos em seu livro, constata-se que foi feito um esboço do
perfil dos falantes dessa língua, que reflete na caracterização da localidade dessa rua,
remetendo a ideia de subúrbio. Junto com isso, forjou-se um imaginário concebido pelo
próprio morador da cidade, àquele que não habitava a rua, enrijecia o estigma designado
àqueles habitantes da tabatinga. Ou seja, muitos daquelas pessoas carregavam o fardo de
morar em um local perigoso.

Tabela 1

Levantamento das profissões exercidas por moradores da tabatinga


Tabela retirada do livro: “pé preto no barro branco”- 2018

Além do testemunho de Zé Raimundo sobre a busca por emprego de muitos moradores


da Tabatinga. Sônia Queiroz identifica a utilização da gíria da tabatinga, principalmente,
em dois contextos:

Ressaltam nas entrevistas pelo menos mais dois temas importantes pela
ênfase que recebem e, conseqüentemente, por revelarem muito do universo
cultural dos falantes: a sobrevivência e a repressão. O primeiro deles aparece,
como é de se esperar, entrelaçado a três subtemas: a alimentação, o trabalho e
o dinheiro. [...] Quanto ao outro tema enfatizado nas entrevistas, a repressão,
liga-se, invariavelmente, como é comum entre nós, a dois elementos: a
violência e o policial. (QUEIROZ, 2018, p. 92)
Essas implicações mencionadas refletem na questão racial que também reforça a
ausência de uma intervenção do Estado sobre essa marginalização sofrida por grande
maioria dos moradores da tabaca, que tantas vezes foi mencionada pelo entrevistado.
Juntamente disso, em muitas ocasiões, o dialeto representava uma realidade sócio-
cultural marcada pela perseguição e pela imposição da autoridade policial. José
Raimundo relembra, que na gíria da tabatinga o ‘viriango’ era atribuído tanto para a
polícia e também para capitão do mato:

O Viriango. Isso é porque os negros usavam muito esse dialeto,


principalmente quando era perseguido. Quer dizer o capitão do mato, o dono
que tido como fardado pra poder nos capturar ou nos agarrar pra alguma
coisa, sabe ? então esse dialeto ele foi difundido assim né, hoje ele já não é
mais pertencente só a tabatinga muitas parte de bom despacho já sabe falar
esse dialeto. [...] Essa língua dos cuete a gente falava quando a polícia militar
precisou de homens, muitos que falavam do dialeto foram ser militares. Até
hoje tem lá o Zé Maria que é um pouco mais velho do que eu, e ele
dominava. O Zé Maria era neto do Zé baiano, que é irmão da Maria Baiana.
[...] Então o que acontece, aqui também na Tabatinga, como a população era
de muitos negros, eram assim, discriminado e muito. E eles falava, ‘ah o
nego da tabatinga’. Então tinha muito um racismo mesmo e a gente era mal
visto. (Zé Raimundo)

O segredo das gírias estão atreladas a diversos contextos que muitos moradores
da Rua vivenciaram em sua época. A construção identitária, que percebe-se tanto das
memórias individuais que vão para além disso, representam um imaginário coletivo. A
memória herdada de parentes, avós e bisavós, a esfera do religiosos é apenas uma
referência que coexistiu com diversos outros aspectos da memória coletiva daqueles
moradores da tabatinga. Em uma de suas entrevistas, Sônia Queiroz conversa com um
dos mais antigos moradores da comunidade, o seu Jesus, um dos descendentes de
Diguberto, aquele que, representa um dos introdutores do dialeto na tabaca:
Essa linguage é feia é por isso, que tem gente que num compreende ela. Às
vez eu canto aqui ó: Deus Maria, Deus Maria, Nazaré, São José... a muié
vizinha acha que eu tô falano mau dela. (...) Essa linguage é bonita demais...
ma é pra quem sabe, né? (Jesus Pinto)

A admiração pelo dialeto em sua fala é apenas entendido por ele e os demais falantes,
isto é, a ocultação do linguajar e o seu uso como espécie de código, situa-se como forma
de confrontamento sobre o olhar daquele que não compreende nem domina a língua.
Raimundo tem a lembrança de vários festejos populares e a forma com que se observava
o envolvimento da própria comunidade.
A congada que é o que nós chamamos aqui também de reinado ali na
Tabatinga era onde foi fundado praticamente o corte do penacho. O corte do
penacho foi seu Zé Feliciano (...) foi o fundador, ele a Maria Feliciana, a
Nair, a turma toda deles ali. Então tinha essa parte do congada, teve esse
corte, o corte do penacho que hoje tem aí outros né, depois veio o seu Altivo
e outros tentaram. E também, chegada a época de Dezembro, o mês de
Dezembro que vem o natal ali tinha muito e ainda tem né, a tradição da folia
de Reis e depois em janeiro quando entra, eles ainda tem o costume de tocar a
folia de são sebastião, ela começa no dia 6 e vai até o dia 20 de janeiro,
termina a de reis em janeiro, começa no natal e vai até o dia 6 e depois entra
a de são sebastião, apesar que, parece que não tem nada haver mas elas são
emendadas e o jeito de cantar e o de tocar são diferentes, são tudo folia né,
folia é a dança deles é a forma que eles buscavam, principalmente os negros
pra cultuar o seus santos né, os reis magos da folia de Reis aqui também,
principalmente na tabatinga. Hoje tem dois ternos de folia, o da Odete e o do
Seu Altivo que é do corte do Penacho, seu altivo faleceu mas tem os filho
deles dando continuidade. Mas isso tudo é da tabatinga. (José Raimundo)

A História oral e sua ligação com a memória, pode ser entendida como um ato
investigativo sobre a questão de muitos moradores alegam numa necessidade em se
manter viva àquela lembrança passada. No entanto, a importância em se ver a
pontecialidade da oralidade como elemento que fortifica a concepção de pluralidade da
narrativas memórias e perspectivas do passado.

“Todos concordamos quanto a potencialidade da história oral em permitir o


acesso a uma pluralidade de memórias e perspectivas do passado. Creio,
contudo que devemos evitar polarizações do tipo ‘memória subterrânea’
versus ‘memória organizada’ ou ainda história ou memória ‘oficial’ versus
história ou memória ‘popular’.”( ALBERTI, 2004, p. 4.)

Cabe destacar nessa passagem que a simplificação de uma memória popular de


forma muito genérica e simplificada, de certa forma, pode se mostrar insuficiente para
compreender a subjetividade daquela estrutura que compreende o conhecimento daquela
comunidade.
O segundo entrevistado Valdir Cardoso, 67, não foi um morador da rua, mas
relata toda a sua convivência com aqueles que residiam na Tabatinga Fica mais evidente
durante a entrevista, a forma com que foi caraterizada alguns dos moradores que chegou
a conhecer em sua infância:
Tabatinga e Cruz do Monte praticamente são a mesma coisa, sé que,
uma descia a outra subia. É, a rua Cruz do Monte conhecida por ter uma
capela, a história da cidade está ligada à essa capela. Coisa de colonização
portuguesa. Enfim, não sei muito sobre a história dessa capelinha não. Agora,
com relação a Tabatinga era tipo a folclórica da cidade. Lá viviam pessoas
muito simples, muito humildes, por exemplo a Fiotinha, Paquinha, Vicente
Linguiça, o tião Foiero. O Tião inclusive era o cara que fazia as canequinha
pra gente com as lata de massa de tomate e lá maioria era amigo da gente,
porque eu morava na rua Flávio cansado era final da Flávio Cansado e a
Tabatinga iniciava logo depois. Então lá na tabatinga e Cruz do Monte é que
eu tinha os meus amigos de jogar pelada, a gente reunia e jogava na pracinha
são josé, jogava no campinho da areia no campinho do padre principalmente,
eu tinha o meu time, time do Dirinho, que jogava muito com o time do
Pururuca e os meus amigos também perto da pracinha, o Tati, o Poti que
morava na mesma rua, o Taquinho , Zé Cardoso, Dimas, Alfredo, então a
gente vivia nessa região. Rua Tabatinga, Rua Flávio Cansado filho e rua Cruz
do Monte. Era o principal grupo de amizade e de atividade a noite reunia pra
fazer jogos. (Valdir Cardoso)

O aspecto de uma memória afetiva com a antiga rua onde residiu na infância,
marca a ideia de um pertencimento ao passado e reforça uma certa relação de
proximidade entre os moradores de ruas vizinhas. A noção de coletividade reforça uma
certa ideia de memória coletiva e suas intencionalidade em reforçar questões vividas e
suas experiências.

Conclusão:
De maneira Geral, por meio da realização das entrevistas e com os
embasamentos teóricos levantados por historiadores que utilizam da fonte oral como
ferramenta de pesquisa, foi possível perceber como a memória resgata aspectos que os
entrevistados revelam em suas falas. Um desses aspectos faz referência a um passado
próximo que continua vivo, no entanto, o recurso da oralidade e suas implicações
metodológicas de pesquisa incitam para além do aspecto da sensibilidade e da
afetividade, que se revela pela questão da pluralidade de narrativas e seus aspectos
identitários. A memória herdada e que foi passada por gerações, transfere juntamente
com a cultura e tradições, os reflexos sociais e políticos, numa forma subjetiva que não
está de forma concreta apenas no dialeto da Tabatinga e sim na forma de organização da
comunidade e os valores que nela estão presentes.

Referências:

ALBERTI, Verena. O Lugar da História Oral: o fascínio do vivido e as possibilidades


de pesquisa. In: Ouvir e Contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.

QUEIROZ, Sônia. Pé Preto no Barro Branco: a língua dos negros da Tabatinga.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

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