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DOI: 10.1590/1413-81232020255.

15832018 1897

Prevenção combinada do HIV? Revisão sistemática de

REVISÃO REVIEW
intervenções com mulheres de países de média e baixa renda

Combined HIV prevention? Systematic review of interventions


with women from low- and middle-income countries

Tonantzin Ribeiro Gonçalves (https://orcid.org/0000-0003-0249-3358) 1


Adriano Henrique Caetano Costa (https://orcid.org/0000-0002-1207-5320) 1
Mariana Silveira Sales (https://orcid.org/0000-0003-0641-3861) 2
Heloísa Marquardt Leite (https://orcid.org/0000-0002-5955-2294) 1

Abstract The scope of this systematic review was Resumo A revisão sistemática objetivou carac-
to characterize interventions for HIV prevention terizar as intervenções para prevenção do HIV
that included adult women and was conduct- que incluíam mulheres adultas e desenvolvidas em
ed in low- and middle-income countries after países de baixa e média renda após 1996, identif-
1996, identifying how they covered individual, icando como abarcavam as vulnerabilidades indi-
social and programmatic vulnerabilities. Data- viduais, sociais e programáticas. Foram acessadas
bases were accessed from 1997 to July 2016 and bases de dados de 1997 a julho de 2016 e selecio-
the studies selected included adult women, with nados estudos que incluíam mulheres adultas,
combined strategies or otherwise, only excluding com estratégias combinadas ou não, excluindo-se
biomedical or mass media interventions. Thus, intervenções apenas biomédicas ou de mídia em
72 interventions developed in 32 countries were massa. Foram selecionadas 72 intervenções desen-
selected, most of them in African countries and/ volvidas em 32 países, sendo a maioria africanos
or in the upper-middle income bracket, with 26 e/ou de renda média-alta e 26 só com mulheres.
focusing solely on women. Among the 64 inter- Entre 64 intervenções que avaliaram aspectos
ventions that evaluated results in behavioral, comportamentais, psicossociais, biomédicos, de
psychosocial and biomedical knowledge on HIV/ conhecimentos sobre HIV/IST e uso de serviços
STI and use of health services, 62 reported positive de saúde, 62 tiveram resultados positivos, mas
results, but also of no-effect (n = 52). Few of them também de não efeito (n = 52). Poucas relataram
reported a reduction in HIV/STI incidence (n = diminuição na incidência de HIV/IST (n = 9), no
9), in partner numbers (n = 12) and in stigma número de parceiros (n = 12), dos relatos de estig-
and violence reports (n = 7). The content analysis ma e de violências (n = 7). A análise de conteúdo
of the interventions revealed that the majority (n das intervenções mostrou que a maioria (n = 51)
1
Programa de Pós- = 51) considered only individual vulnerabilities. contemplava apenas vulnerabilidades individu-
Graduação em Saúde The need to strengthen preventive approaches ais. Discute-se a necessidade de fortalecer abord-
Coletiva, Universidade
do Vale do Rio dos Sinos. targeting structural determinants of the epidemic, agens preventivas que atuem nos determinantes
Av. Unisinos 950, São encompassing the social contexts of women in a estruturais da epidemia, abarcando os contextos
João Batista. 93022-000 relational and intersectional perspective of vul- sociais das mulheres numa perspectiva relacional
São Leopoldo RS Brasil.
tonanrib@yahoo.com.br nerabilities was discussed. e interseccional das vulnerabilidades.
2
Graduação em Key words HIV, Primary Prevention, Human Palavras-chave HIV, Prevenção Primária, Direi-
Biomedicina, Universidade Rights, Women, Review tos Humanos, Mulheres, Revisão
do Vale do Rio dos Sinos.
São Leopoldo RS Brasil.
1898
Gonçalves TR et al.

Introdução das pessoas ao adoecimento como a resultante


de um conjunto de aspectos não apenas indivi-
A epidemia do HIV/Aids é uma preocupação duais, mas também coletivos, contextuais, que
mundial e, em 2015, a estimativa era de 36,7 mi- acarretam maior suscetibilidade à infecção e ao
lhões de pessoas com o vírus. Apesar do aumento adoecimento e, de modo inseparável, maior ou
do acesso mais precoce ao diagnóstico e aos an- menor disponibilidade de recursos, de todas as
tirretrovirais (ARV), o que melhorou a expectati- ordens para se proteger de ambos”9. Tal conceito
va de vida dos infectados, ainda existem elevados foi útil para repensar as estratégias de prevenção
números de novas infecções e mortes relaciona- da doença, revelando os condicionantes de gêne-
das à aids por ano no mundo1. ro, raça e classe social.
Após 1996, os ARV reduziram drasticamente O aumento da incidência do HIV entre mu-
a mortalidade e morbidade associadas à doença e lheres se associa as vulnerabilidades particulares,
hoje são usadas na prevenção de novas infecções2. pois ter um parceiro fixo daria a sensação de pro-
A despeito da efetividade dos ARV na preven- teção contra o vírus em nossa sociedade10,11. As
ção pré-exposição3, a utilização destes, tanto no relações de gênero se articulam com situações
tratamento quanto na prevenção, acarreta altos de dependência socioeconômica e afetiva de al-
custos com os quais muitos países não têm con- gumas mulheres quanto aos companheiros e, em
seguido arcar. muitos contextos sociais, com o menor acesso
Assim, o uso do preservativo ainda é uma das à educação e empregos mais precários, além do
estratégias mais eficazes, baratas e de fácil em- status privilegiado da maternidade e a posição de
pregabilidade para a prevenção do HIV, embora “esposa” entre classes populares12.
intervenções para reduzir o risco sexual e promo- Ainda que em muitos países a epidemia siga
ver seu uso mostrem resultados contraditórios. concentrada em populações de homens que fa-
Uma revisão sistemática de 42 intervenções com- zem sexo com homens (HSH), trabalhadoras do
portamentais desenvolvidas entre 1991 e 2010, sexo e usuários de drogas é marcante o caráter
encontrou que o uso de preservativo aumentou heterossexual e a pauperização da epidemia em
e a incidência de IST e HIV diminuiu na com- países de baixa e média renda13. A resposta ao
paração com controles4. Contrariamente, uma HIV é complexa e exige a combinação de medi-
recente revisão de 55 revisões sistemáticas de alta das biomédicas, comportamentais, de redução
qualidade não apontou efeitos de intervenções de danos, a reestruturação e qualificação das po-
comportamentais na incidência de IST (incluin- líticas públicas e dos serviços de saúde, além da
do HIV) ou gestações não planejadas5. diminuição das desigualdades sociais na perspec-
O cenário epidemiológico e técnico da pre- tiva dos direitos humanos7,14. Apesar dos avanços
venção se soma a intensa estigmatização das no tratamento, a prevenção primária e o combate
pessoas vivendo com HIV (PVH) que associou ao estigma seguem sendo desafios. Assim, o pre-
a doença a populações já marginalizadas como sente estudo buscou mapear e caracterizar, por
homossexuais, usuários de drogas e profissionais meio de uma revisão sistemática, as intervenções
do sexo6. Na década de 90, com a rápida disse- em mulheres adultas para a prevenção do HIV
minação da doença via relações heterossexuais em países de baixa e média renda após 1996. Pre-
em países de média e baixa renda, tais parâme- tendeu-se ainda identificar os modelos teóricos
tros mudaram e a epidemia passou a afetar, cada que embasavam essas intervenções e como con-
vez mais, as populações pobres, amplificando as templavam dimensões individuais, sociais e pro-
vulnerabilidades postas pelo estigma. Permane- gramáticas da vulnerabilidade ao HIV.
ce a associação da doença com comportamentos
socialmente recriminados, como se a aids fosse a
“doença do outro”, o que dificulta a percepção de Método
susceptibilidade ao vírus e a adoção de práticas
preventivas. Estratégia de busca
Uma importante contribuição para a des-
construção da ideia de “grupos de risco” foi a A estratégia de busca priorizou a sensibili-
proposta da vulnerabilidade ao HIV, a partir das dade na captação de estudos, utilizando-se uma
discussões de Mann7. No Brasil, tal abordagem combinação de termos amplos: HIV prevention,
se radicalizou incorporando-se às políticas pú- HIV risk reduction, HIV/AIDS prevention, wo-
blicas no contexto da Reforma Sanitária8. A vul- men, female, woman e mother. Primeiro, a busca
nerabilidade postula que “a chance de exposição foi feita no título e/ou no resumo das citações,
1899

Ciência & Saúde Coletiva, 25(5):1897-1912, 2020


sem restrição de língua, nas bases de dados Me- dos estudos pré-selecionados foram obtidos para
dline (Pubmed), Central, PsycInfo, Lilacs, Web of leitura na íntegra, checando-se sua elegibilidade.
Science, Sociological Abstracts, CINAHL e So-
cINDEX. A busca compreendeu publicações en- Análise de dados
tre 1997 e julho de 2016, pois os ARV mudaram
o cenário da prevenção da epidemia após 1996. A análise se deu em duas etapas. Primeiro,
Depois, as listas de referências de outras revisões foram extraídos dados gerais como ano de pu-
sistemáticas localizadas foram revisadas em bus- blicação e execução do estudo, caracterização da
ca de estudos elegíveis. população-alvo, país de realização, número de
mulheres atingidas, objetivos das intervenções,
Critérios de inclusão e exclusão técnicas e modalidades empregadas, quem con-
duzia e onde eram realizadas as intervenções,
Incluiu-se estudos sobre intervenções para a delineamento do estudo, avaliação de resultados,
prevenção de HIV/IST para pessoas e/ou comu- desfechos avaliados e seguimento. Nesse momen-
nidades urbanas ou rurais. Os estudos deviam to, se classificava os países onde as intervenções
incluir mulheres adultas da população em geral foram realizadas em baixa, média e média-alta
entre os participantes e terem sido desenvolvidos renda15. Destaca-se que a unidade de análise era a
em países de renda baixa, média ou média-alta15. intervenção e não os estudos publicados, ou seja,
As intervenções podiam ter modalidades indivi- quando mais de um estudo se referia a mesma
duais, grupais, de casal/família e/ou comunitária, intervenção com a mesma população, as citações
combinando ou não, técnicas como aconselha- eram analisadas conjuntamente para a extração
mento e testagem voluntária anti-HIV (ATV), de dados.
treinamento de habilidades, disponibilização e Na segunda etapa foi realizada a análise quali-
promoção do preservativo, educação por pares tativa de conteúdo16 das intervenções para inves-
(EP), campanhas midiáticas e mobilização co- tigar os modelos e pressupostos teóricos que as
munitária (MC). Detalhou-se ainda estratégias embasavam e como se propunham a endereçar
de qualificação e reestruturação no cuidado e a vulnerabilidade ao HIV. Analisou-se os pres-
serviços de saúde (QC) que incluíam experiên- supostos que orientavam a escolha das modali-
cias de integração entre serviços, modificação na dades e técnicas das intervenções, a avaliação de
ambiência e nos processos de trabalho, suporte resultados quanto às relações de gênero e classe
programático e capacitação de profissionais e/ou social das populações alvo com base no quadro
educadores sociais. teórico da vulnerabilidade ao HIV e dos direitos
Foram excluídos estudos que, embora publi- humanos8,9,15,17. Após um estudo dirigido, dez dos
cados a partir de 1997, relatassem intervenções estudos incluídos foram sorteados para calibrar
realizadas até 1996. Excluíram-se também inter- a classificação entre os pesquisadores quanto ao
venções de mídia em massa, biomédicas exclusi- foco principal das intervenções tendo as três di-
vamente (p.ex., uso e aceitabilidade de diafragma, mensões da vulnerabilidade como eixos analíticos.
microbicidas, circuncisão e ARV para preven- Nesse estágio, as discordâncias foram consensua-
ção), que ofertavam apenas testagem, ATV para das e se estabeleceu que, quando pertinente, a in-
redução da transmissão vertical (TV) e aquelas tervenção podia ser classificada em mais de uma
focando populações específicas como profissio- dimensão. Por fim, as demais intervenções foram
nais de saúde, profissionais do sexo, moradores sorteadas entre os pesquisadores para a categori-
de rua, escolares, usuários de drogas e outras. zação, sendo eventuais dúvidas discutidas.

Seleção dos estudos


Resultados
As citações obtidas nas bases de dados foram
importadas para o software Endnote X7 onde, Selecionaram-se 72 intervenções descritas em 94
primeiramente, os títulos e resumos foram lidos estudos (Figura 1). Não foram encontradas inter-
de modo independente por dois avaliadores, que venções diferentes das já identificadas nas bases
pré-selecionaram os estudos conforme os crité- eletrônicas nas listas de outras revisões sistemá-
rios de inclusão e exclusão. Após, verificou-se a ticas. As intervenções foram desenvolvidas em
concordância entre os dois pesquisadores e even- 32 países, na maioria de renda média alta, e mais
tuais discordâncias foram solucionadas por um de 70% em países africanos. A metade focava a
terceiro avaliador. Por fim, os textos completos população em geral, em regiões exclusivamente
1900
Gonçalves TR et al.

urbanas ou rurais e 26 abordavam apenas mu- Tabela 1. Descrição geral das intervenções incluídas
na revisão (n=72).
lheres. Predominou o uso de técnicas individuais
como aconselhamento e sessões educativas, se- N %
guidas de abordagens grupais como EP, e ações Ano da publicação
de MC e QC. As intervenções foram realizadas 2001-2005 17 23,6
na maior parte em serviços de saúde e espaços 2006-2010 24 33,3
comunitários (Tabela 1). 2011-2016 31 43,1
A maioria empregou ensaios clínicos e/ou co- Continente*
munitários randomizados (ECR), estudos obser- África 55 70,5
vacionais pré e pós-teste ou transversais (Tabela Ásia 15 19,2
1). Onze intervenções usaram métodos qualita- Américas 8 10,3
tivos como entrevistas em profundidade, grupos Classificação da renda do País (n=32)
focais e observações, sendo que em dez tais técni- Baixa 9 28,1
cas foram aplicadas em etapas formativas de ECR Média baixa 10 31,3
ou de estudos observacionais quantitativos. Média alta 13 40,6
Em 64 intervenções cujos resultados foram População quanto ao sexo
avaliados, quase todas tiveram achados positivos Homens e mulheres 46 63,9
Apenas mulheres 26 36,1
População quanto ao recrutamento
Geral 36 50,0
Usuários de serviço de saúde/clínicas 23 31,9
Busca compreensiva Trabalhadores 9 12,5
resultou em 6.644 Estudantes/universitários 4 5,6
citações População quanto região
Urbana 19 26,4
1.690 duplicatas
Rural 19 26,4
excluídas
Rural e Urbana 10 13,9
Não especifica 24 33,3
4.954 citações
avaliadas por dois Técnicas**
pesquisadores de Individuais 49 68,1
modo independente Grupais 41 56,9
4.765 citações Comunitária 28 38,9
excluídas após Família/Casal 8 11,1
avaliação por pares Mídia em Massa 8 11,1
Locais das intervenções***
189 artigos revisados Serviços de saúde 33 45,8
na íntegra Espaços comunitários 23 31,9
Domicílios 10 13,9
94 artigos excluídos:
- 37: país de alta renda Local de trabalho 9 12,5
- 15: não envolvia Não se aplica (formativo ou em 11 15,3
intervenção de prevenção redes/políticas)
72 intervenções do HIV Avaliação de resultados da intervenção
incluídas - 13: envolvia populações Sim 64 88,9
(94 artigos) específicas (p. ex.
trabalhadoras do sexo,
Não 8 11,1
escolares, curandeiros) Delineamentos dos estudos**
- 8: intervenção iniciou Ensaio Clínico ou Comunitário 28 38,9
antes de 1996 Randomizado
- 7: pessoas com HIV Observacional/Transversal 29 40,3
- 6: intervenção biomédica
ou só de testagem
Pesquisa Qualitativa 11 15,3
- 4: só envolvia homens Coorte 8 11,1
- 4: intervenções de mídia Outros delineamentos**** 8 11,2
em massa *Duas intervenções foram desenvolvidas na África e Ásia; **As
intervenções podiam empregar mais de uma técnica e serem
avaliadas com diferentes delineamentos nos estudos; ***Doze
intervenções ocorriam em mais de um local; ****Avaliação
Figura 1. Processo de seleção dos estudos. econômica, quasi-experimentais, ecológicos e de revisão
sistemática sobre uma intervenção específica.
1901

Ciência & Saúde Coletiva, 25(5):1897-1912, 2020


(n = 62), mas também de não efeito ou mesmo parte dos aspectos avaliados, com exceção dos
negativos (n = 52). Os tipos de desfechos avalia- achados quanto ao número de parceiros. O efeito
dos foram classificados em Comportamentais, das intervenções em aspectos como a testagem
Psicossociais, Biomédicos, Conhecimentos sobre de parceiros, a incidência de HIV/IST, a redução
HIV/IST e Uso de serviços. A maior parte das in- do estigma e do relato da violência física e psico-
tervenções foi avaliada com pelo menos um as- lógica foi menos saliente, já que a proporção de
pecto Comportamental, sendo os mais frequen- resultados era muito próxima da proporção de
tes a mudança no uso de preservativo, no número resultados negativos ou de não efeito descritos
de parceiros e no uso de drogas (Tabela 2). Já os pelos estudos.
aspectos psicossociais foram avaliados em pouco No geral, as intervenções atingiram uma po-
mais de um terço das intervenções, sendo os mais pulação que variou de 30 até mais de 60.000 pes-
comuns a autoeficácia e/ou intenção para o uso soas. Grande parte incluiu entre 100 e 500 (n =
de preservativo, a redução do estigma e do relato 26) ou entre 1.000 e 5.000 participantes (n = 21).
de violência física e/ou psicológica. Conhecimen- Mais de metade das intervenções (n = 38) não
tos sobre HIV/IST foram avaliados em 35,9% das declarou qualquer abordagem teórica.
intervenções, seguidos de desfechos biomédicos Foram usadas até dez diferentes estratégias
e do uso de serviços de saúde. Os resultados fo- numa mesma intervenção, sendo em média em-
ram predominantemente positivos na maior pregadas 2,5 estratégias e 13 utilizaram apenas

Tabela 2. Caracterização dos resultados das intervenções quanto aos desfechos avaliados (n=64).
Resultados Resultados
Intervenções*
Positivos** Negativos**
% (N) % (N) % (N)
Comportamentais 89,1 (57) 64,4 (67) 35,6 (37)
Mudança no uso de preservativo 53 33 20
Número de parceiros 26 12 14
Uso de drogas/álcool 8 7 1
Comunicação/negociação com parceiros sobre sexo seguro e/ 7 5 2
ou HIV
Outros (Uso de anticoncepcional, gravidez, sexo transacional, 10 10 0
risco sexual, compartilhamento de seringas, adiamento do
debut, abstinência sexual)
Aspectos psicossociais 35,9 (23) 78 (39) 22 (11)
Autoeficácia para o uso de preservativo 15 13 2
Intenção de reduzir comp. de risco 12 10 2
Redução do estigma 6 4 2
Autorrelato de violência psicológica ou física 5 3 2
Outros (Controle sobre vida sexual e sobre comp. preventivos, 12 9 3
avaliação de riscos, atitudes quanto à prevenção e às relações
sexuais, normas sociais de gênero, autoeficácia e participação em
prevenção comunitária, difusão social do preservativo)
Conhecimentos sobre HIV e outras IST 35,9 (23) 91,3 (21) 8,7 (2)
Aspectos biomédicos 29,7 (19) 63,6 (14) 36,4 (8)
Aquisição de HIV/IST 16 9 7
Uso de ARV como prevenção 6 5 1
Uso de serviços de saúde 29,7 (19) 77,3 (17) 22,7 (5)
Realização de testagem anti-HIV 11 8 3
Acesso aos preservativos 4 4 0
Testagem de parceiros 4 2 2
Outros (Aconselhamento, testagem para Sífilis, Planejamento 3 3 0
familiar)
*Cada intervenção foi contabilizada apenas uma vez quando avaliou a dimensão descrita; **Cada intervenção pode ter
relatado mais de um desfecho em relação ao aspecto descrito, sendo que resultados positivos e negativos foram contabilizados
individualmente.
1902
Gonçalves TR et al.

uma. O ATV foi a mais utilizada (n = 35), segui- Ainda, dentre as 23 intervenções que usavam
da pela EP (n = 34), distribuição de preservativos ATV, 17 utilizaram duas ou mais estratégias com-
(n = 18), ações de educação em saúde (n = 16) e binadas (*7-*23). Quatro objetivavam também a
construção de habilidades (n = 16). Foram me- prevenção da TV, sendo conduzidas em popula-
nos utilizadas ações de MC (n = 12), QC (n = ções de gestantes (*4,*7,*13,*14). A intervenção
12), mídia em massa (n = 10) e oferta de trata- SISTA (Sisters Informing Sisters about Topics on
mento para HIV/IST, tuberculose ou prevenção AIDS), desenvolvida na África do Sul para mulhe-
da TV ou circuncisão (n = 9). Poucas interven- res de 18 a 35 anos da comunidade Xhosa, ilustra
ções relataram estratégias como apoio psicológi- esse subconjunto. A mesma foi adaptada de outra
co ou social, planejamento familiar, visita domi- realizada com afro-americanas nos EUA, baseada
ciliar, microcrédito, redução de danos e serviço na Teoria da Cognição Social e de Gênero (*10).
itinerante (Tabelas 3 e 4). Envolvia ATV, além de sessões grupais e ativida-
Na análise de conteúdo, verificou-se que a des de escrita e leitura sobre as experiências das
maior parte das intervenções contemplava apenas mulheres. Duas mulheres treinadas da comuni-
vulnerabilidades individuais ao HIV, oito abarca- dade lideravam discussões sobre gênero, orgulho
vam vulnerabilidades sociais, quatro programáti- étnico, estigma e comportamentos de risco, além
cas e nove abordavam duas ou as três dimensões. de treinar habilidades de uso de preservativos e
A seguir, as intervenções são descritas conforme comunicação com parceiros.
tais dimensões. As referências das intervenções Outras 18 intervenções (*24-*41) tinham
incluídas encontram-se sinalizadas numerica- como estratégia principal sessões educativas so-
mente, precedidas por asterisco (*) no texto e nas bre comportamentos sexuais de risco. Porém,
Tabelas 3 e 4, e podem ser consultadas no link: em comparação com as intervenções que usaram
https://www.dropbox.com/s/twfgdfi6zydl90f/ ATV, nessas houve maior uso de recursos infor-
REFER%C3%8ANCIAS%20PREVMULHER.do- mativos e ilustrativos como vídeos, clipes e técni-
cx?dl=0. cas de role-play, para auxiliarem no treinamento
de habilidades comunicativas com parceiros e
Vulnerabilidades individuais para o uso de preservativos. Algumas ainda dis-
tribuíam preservativos ou treinavam educadores
Neste eixo foram classificadas intervenções (n pares. No geral, essas intervenções possuíam uma
= 51) cujo enfoque predominante era a promo- implementação muito similar, variando apenas
ção de aspectos individuais e/ou subjetivos para no número de encontros e materiais usados. To-
a prevenção do HIV, tais como conhecimentos, das consistiam em pelo menos um encontro edu-
construção de habilidades, oferta de aconselha- cativo focando questões individuais da prevenção.
mento e testagem, dentre outros. Identificaram-se Muitas eram divididas em módulos, compostos
três subconjuntos de intervenções: a) as que utili- por uma parte informacional-educativa sobre o
zaram de modo exclusivo ou não a abordagem de HIV e outra de mudança comportamental e/ou
ATV (n = 23); b) as que usavam de modo central treinamento de habilidades. Duas intervenções
enfoques de educação em saúde e mudança com- desenvolvidas pelo mesmo grupo de autores na
portamental (n = 18); c) e as que envolviam estra- África do Sul (*33,*34) buscavam ainda reduzir
tégias de marketing social e treinamento comuni- o uso do álcool em contextos sexuais entre usuá-
tário, mas cujo foco permanecia nas habilidades e rios/as de uma clínica de IST e frequentadores de
conhecimentos dos indivíduos (n = 10). comércios informais de bebidas, respectivamente.
Muitas intervenções (n = 23) utilizaram ATV, Dentre essas intervenções, onze mencionaram
sendo que seis (*1-*6) a empregaram como úni- embasamento teórico, predominando teorias
ca estratégia e apenas seis citaram algum emba- motivacionais, comportamentais e da cognição
samento teórico (Tabela 3). A aplicação do ATV social. Ilustra esse subconjunto de intervenções a
consistia basicamente na oferta de testagem Partners, que era um programa de prevenção do
anti-HIV e de sessões de aconselhamento pré e HIV por pares para mulheres em assentamentos
pós-teste, sendo suas principais mensagens de na África do Sul baseado no modelo de influências
pré-teste focadas na mudança de comportamen- sociais (*38). Os pesquisadores capacitaram mu-
to quanto ao uso de preservativo, redução do lheres dessas comunidades para conduzir oficinas
número de parceiros e testagem do parceiro. Nas de educação sobre HIV. Elas também distribuíam
sessões pós-teste, priorizava-se mensagens de mensagens de prevenção, demonstravam o uso de
apoio, testagem do parceiro e encaminhamento preservativos masculinos e femininos e estimula-
para tratamento, se necessário. vam práticas de saneamento e higiene adequadas.
Tabela 3. Descrição das intervenções classificadas na dimensão de vulnerabilidade individual/subjetiva quanto à população, estratégias, técnicas e modelos teóricos, listadas em conforme a data de
publicação (n=51).
Autor/ano País Rendaa População Mulheres Estratégias usadasb Locais envolvidos Teoria Técnicasc
VULNERABILIDADES INDIVIDUAIS/SUBJETIVAS
Desgrees-du-Lou (2009) Ditrame Costa do Marfim M 702 702 ATV Serviço de Saúde NI 1e4
Plus *1 *81
Samayoa (2010) *2 Guatemala M 144 82 (57%) ATV Serviço de Saúde NI 1
Wanyenze (2013) *3 Uganda B 2.066 1.186 (57%) ATV, cuidado Serviço de Saúde NI 1
integrado com HIV
Cremin (2010) *4 Zimbábue B 27.395 16.096 (59%) ATV Serviço de Saúde móvel NI 1e3
Mola (2006) *5 Moçambique B 1.220 601 (49%) ATV Serviço de Saúde NI 1
Kiene (2010) *6 Uganda B 245 126 (51%) ATV Serviço de Saúde NI 1
Villar-Loubet (2013) África do Sul MA 478 239 (50%) ATV, CH, EP Serviço de Saúde Cognitivo-comportamental 1e2
PARTNERPLUS*7
Maman (2014) *8 África do Sul MA 1.480 1.480 ATV, ES, ApS Serviço de Saúde NI 1e4
Roux (2014) PIP*9 África do Sul MA 1.238 1.238 ATV, TTO, VD Residências NI 1e3
Wingood (2013) SISTA*10 África do Sul MA 342 342 ATV, CH, EP Espaços comunitários Cognitivo Social/ Gênero e 1e2
Poder
Hammet (2012) *11 Vietnã M 232 232 ATV, EP, TTO, PF, RD Serviço de Saúde NI 1e2
Cottler (2010) *12 Índia M 100 100 ATV, ES Residências NI 1e2
van der Straten (2010) Zimbábue e B e MA 801 801 ATV, DP, TTO Serviço de Saúde NI 1e2
MIRA *13*79*80 África do Sul
Callegari (2008) *14 Zimbábue B 394 394 ATV, DP Serviço de Saúde Cognitivo Social 1
Rugpao (2008) *15 Tailândia MA 1.350 1.350 ATV, DP Serviço de Saúde NI 1
Corbett (2007) *16 Zimbábue B 4.316 518 (12%) ATV, RD Local trabalho NI 1e4
Arthur (2007) *17 Quênia B 400 192 (48%) ATV Serviço de Saúde NI 1e2
Solomon (2006) *18 Índia M 500 250 (50%) ATV, EP, DP Serviço de Saúde RRC 2e3
Wong (2005) *19 Camarões M 966 966 ATV, DP Serviço de Saúde NI 1
Jones (2004) *20 Zâmbia M 150 150 ATV, ES, DP Serviço de Saúde e espaços Cognitivo-comportamental 1e2
comunitários
Xu (2002) *21 Tailândia MA 779 779 ATV Serviço de Saúde NI 1
Mulogo (2013) *22 Uganda B 759 526 (69%) ATV, VD Serviço de Saúde e ABC 1
Residências
continua
1903

Ciência & Saúde Coletiva, 25(5):1897-1912, 2020


Gonçalves TR et al.
1904

Tabela 3. Descrição das intervenções classificadas na dimensão de vulnerabilidade individual/subjetiva quanto à população, estratégias, técnicas e modelos teóricos, listadas em conforme a data de
publicação (n=51).
Autor/ano País Rendaa População Mulheres Estratégias usadasb Locais envolvidos Teoria Técnicasc
VULNERABILIDADES INDIVIDUAIS/SUBJETIVAS
Reed (2013) The Women’s CoOp África do Sul MA 720 720 ATV, ES Espaços comunitários NI 1e2
*23*74
Lin (2010) *24 China MA 300 300 ES, CH Local de trabalho PMT 1, 2 e 3
Shrestha (2016) *25 Nepal B NI NI ES, CH Espaços comunitários IMB 1e2
Darbes (2014) *26 África do Sul MA 350 175 (50%) ATV para casais Não informado Interdependência 1e4
Adam (2014) ICL*27 Quênia B 182 NI EP, ES Espaços comunitários ABC 2
Thato (2013) *28 Tailândia MA 392 210 (53,3%) EP, CH Serviço de Saúde e espaços IMB 1e2
comunitários
Bogart (2013) *29 África do Sul MA 130 68 (52%) CH, EP Local trabalho NI 1, 2 e 4
Saad (2012) *30 Nigéria M 235 60 (25%) EP Espaços comunitários IMB 2
Essien (2011) *31 Nigéria M 346 346 EP Local trabalho e espaços IMB 2
comunitários
Pereira (2011) *32 Venezuela MA 540 540 ES Serviço de Saúde NI 2e3
Kalichman (2008) *33 África do Sul MA 353 236 (67%) EP, CH Serviço de Saúde Cognitivo Social 1e2
Kalichman (2007) *34 África do Sul MA 143 21 (15%) EP, CH Serviço de Saúde Cognitivo Social 1e2
Terry (2006) SHAPE *35 Zimbábue B 869 388 (45%) EP, CH Espaços comunitários NI 1
Simbayi (2004) *36 África do Sul MA 228 77 (34%) EP, DP Serviço de Saúde IMB 2
Vieira (2004) *37 Brasil MA 165 165 ES Serviço de Saúde NI 1e2
Murdock (2003) Partners *38 África do Sul MA 480 NI EP Espaços comunitários Influencias sociais 2e3
Ronald (2003) PEHAPP *39 Botsuana MA 439 131 (30%) EP, DP Local trabalho NI 2e3
Klimovski (2001) *40 Argentina MA 117 117 EP, DP Serviço de Saúde NI 2
B ES, incentivo
Packel (2012) RESPECT*41 Tanzânia 2.399 1.207 (50%) Não se aplica BCC 1
financeiro
Adelore (2006) *42 Nigéria M 180 27 (15%) MS, EP Residências NI 1e3
Gregson (2011) *43 Zimbábue B 4.047 NI MS, ES Serviço de Saúde NI 2
Ssali (2005) *44 Uganda B 84 84 DP, QC Espaços comunitários NI 2e3
Agha (2001) JeitO *45 Moçambique MA 5.142 NI MS, ES Residências NI 1, 2 e 3
Bogale (2010) *46*77 Etiópia B 30 30 MS, EP Espaços comunitários Cognitivo-comportamental 2
B Residências e espaços Crenças em Saúde/ Gênero e
Cummings (2006) MARCH *47 Etiópia 94 52 (55%) MS, EP 1, 2 e 3
comunitários Poder
continua
1905

Ciência & Saúde Coletiva, 25(5):1897-1912, 2020


Técnicasc
Tabela 3. Descrição das intervenções classificadas na dimensão de vulnerabilidade individual/subjetiva quanto à população, estratégias, técnicas e modelos teóricos, listadas em conforme a data de

1, 2 e 3

1, 2 e 3
2e3
Especificamente, quatro das intervenções

vativos e outros insumo; EP: Educação por Pares; ES: Educação em Saúde; MC: Mobilização Comunitária; MS: Marketing Social; PF: Planejamento Familiar; QC: Qualificação ou reestruturação do Cuidado ou serviços de
NI: Não Informado. a B: renda baixa; M: renda média; MA: renda média-alta. b ApS: Apoio Social ou psicológico; ATV: Aconselhamento e Testagem Voluntária; CH: Construção de Habilidades; DP: Distribuição de preser-
desse subconjunto foram realizadas com estu-
dantes universitários em ações informativas de

Cognitivo-comportamental

Saúde/
Aprendizado Social/ Ação
EP, orientações para uso de preservativo, ativida-
des para construção de habilidades e outras vol-
Aprendizagem social tadas para os jovens (*27,*28,*30,*35). Por exem-

Aprendizado Social
Teoria

plo, a intervenção SHAPE (Sustainability, Hope,

em
Cognitivo Social
Action, Prevention, Education), desenvolvida no
Zimbábue por uma ONG objetivava a promoção

Racional
Crenças
da saúde e prevenção do HIV através do ensino,
pesquisa e advocacia para a igualdade de gênero

saúde; RD: Redução de Danos; TTO: Tratamento para HIV, IST, prevenção da TV ou tuberculose; VD: Visita domiciliar. c 1: Individual; 2: Em grupos; 3: Comunitária; 4: Familiar.
Residências e espaços (*35). Por fim, em contraste com as intervenções
de ATV e sessões educativas, a RESPECT (*41),
Locais envolvidos

Espaços comunitários

Espaços comunitários

Espaços comunitários

realizada para adultos de comunidades da Tanzâ-


nia almejava a mudança de comportamentos de
risco por meio de incentivos financeiros quando
comunitários

o participante tinha resultado negativo para IST


a cada quatro meses, após frequentarem uma ses-
são educativa.
Outras dez intervenções foram classificadas
VULNERABILIDADES INDIVIDUAIS/SUBJETIVAS

nesse eixo pois, embora pretendessem atingir


Estratégias usadasb

ES, EP, DP, CH, MC

normas e práticas sociais relacionadas à pre-


MS, EP, DP, TTO

venção, seu enfoque predominante se limitava


EP, CH, ApS

aos indivíduos (*42-*51). Quatros dessas inter-


venções não informaram modelos teóricos, en-
MS, EP

quanto as demais declararam modelos teóricos


cognitivo-comportamentais, da aprendizagem
social e uma se inspirava na Teoria do Gênero e
1.475 (52%)
Mulheres

774 (67%)

965 (46%)

Poder. Sete dessas intervenções envolviam ações


de marketing social e de mídia em massa com
607

mensagens de prevenção do HIV (programas/


jingles e séries de rádio e/ou televisão, teatro de
População

rua, panfletos, outdoors, cartazes, jogos) combi-


2.859

1.152

2.097

607

nadas com ações pontuais de educação em saúde


(EP, palestras, atendimentos individuais) e distri-
buição de preservativos. Por exemplo, a interven-
ção desenvolvida na Etiópia para mulheres anal-
Rendaa

MA

MA
M
B

fabetas, consistia em sessões de discussão de uma


série de três episódios de áudio com mensagens
de prevenção do HIV (*47).
Outras duas intervenções buscaram treinar
País

membros das comunidades para estimular com-


Camarões

Tailândia
Jamaica

Malawi

portamentos preventivos. A Traditional Healer


Training Intervention é um programa de trei-
namento para curandeiros de um distrito rural
de Uganda para promover a prevenção do HIV/
Figueroa (2010) PLACE *48*78

IST e o planejamento familiar entre suas clientes


Friend-to-Friend *49*75*76

(*44). A intervenção tinha caráter educativo e in-


cluía oficinas lideradas por facilitadores. Embora
Autor/ano

Tripiboon (2001) *51

buscasse incluir o sistema informal de cuidado


100% Jeune *50*82
publicação (n=51).

por meio da capacitação de médicos tradicionais,


Kaponda (2011)

Meekers (2005)

a intervenção se restringia a potencializar a infor-


mação e o acesso aos meios de prevenção de IST
e de planejamento familiar entre as mulheres. A
outra intervenção (*51), realizada em quatro vi-
1906
Gonçalves TR et al.

las rurais da província tailandesa de Chiang Mai, treinadas em liderança e, após, trabalhavam na
tinha um modelo de desenvolvimento comuni- prevenção do HIV e violência intrafamiliar nas
tário. A intervenção contava com a colaboração comunidades. A IMAGE melhorou a comunica-
de líderes comunitários, chefes e voluntárias da ção com parceiros, a autoconfiança e contribui-
saúde e das mulheres casadas, que eram a popu- ção financeira nos lares, a participação social e as
lação-alvo. O objetivo era aprimorar a autoeficá- atitudes quanto às normas de gênero. Após dois
cia, a autoestima, os conhecimentos sobre HIV, as anos, o risco de autorrelato de violência física ou
habilidades para negociação de sexo seguro e uso sexual por parceiro íntimo foi reduzido em mais
de preservativo. O chefe do centro de saúde era o da metade nas comunidades da intervenção.
mentor das voluntárias e ajudava o líder comuni- Já a Stepping Stones é um amplo programa
tário a distribuir preservativos e outros materiais de treinamento comunitário, inspirado em mo-
de prevenção. As voluntárias eram treinadas para delos Freirianos, visando à transformação dos
liderar encontros grupais com as mulheres, usan- papéis de gênero para prevenção de HIV em co-
do técnicas como confecção de pôsteres, jogos e munidades vulneráveis (*53). Foi adaptada para
role-play, além de manter a comunicação entre as 60 países da África e Ásia, com tradução para 16
mulheres e os líderes locais. O objetivo secundá- línguas e estudos publicados desde 2000. O nú-
rio era mobilizar a comunidade para prevenção mero de sessões grupais de pares, conforme faixa
do HIV, mas o estudo não detalhou como isso era etária e gênero, variava de 13 a 19 encontros de 3
implementado. horas de duração, sendo a intervenção manuali-
zada e coordenada por facilitadores. Apesar dis-
Vulnerabilidades Sociais so, na maior parte de suas aplicações, as técnicas
enfocavam diretamente apenas os próprios par-
Oito intervenções (*52-*59) focavam aspec- ticipantes, já que o componente de desenvolvi-
tos da vulnerabilidade social à infecção, visando, mento comunitário encarecia muito a interven-
principalmente, a MC e a modificações de nor- ção (*53,*60) e dificultava sua sustentabilidade e
mas sociais quanto à prevenção do HIV, mas tam- ganho de escala. Os resultados da Stepping Stones
bém o empoderamento das mulheres e a dimi- foram inconsistentes. O ECR mostrou redução
nuição de desigualdades de gênero (*53,*57,*58), significativa da incidência de herpes genital, mas
do estigma (*52,*56) e da violência (*52,*57). não do HIV. O uso de preservativo aumentou em
Em particular, uma intervenção também oferecia comunidades de dois países dentre oito avaliados
um componente de microcrédito para as mulhe- e houve redução no número de parceiros em um
res (*57). As intervenções se baseavam em teorias de dois países. O abuso de álcool diminuiu em
da difusão social, em modelos sociocognitivos, dois países dentre três e a comunicação sobre
ecológicos, da aprendizagem e ação participativa HIV melhorou em três países de sete. A iniqui-
e de mudança social. Um estudo não descreveu dade de gênero reduziu apenas na Índia, dentre
embasamento teórico (Tabela 4). outros cinco países, e o estigma diminuiu nas co-
Duas intervenções ilustram esse eixo. A IMA- munidades de quatro países avaliados (*53).
GE (Intervention with Microfinance for AIDS and
Gender Equity) foi desenvolvida para mulheres Vulnerabilidades programáticas
em comunidades rurais na África do Sul por meio
de um ECR comunitário (*57). O objetivo era Quatro intervenções focavam apenas aspec-
aumentar o bem-estar econômico das famílias, tos programáticos, duas desenvolvidas na Ásia
empoderar as mulheres e reduzir a vulnerabili- (*61,*62) e duas na África (*63,*64). Todas en-
dade para violência intrafamiliar. O microcrédito volviam a implementação, reestruturação e/
era conduzido por uma ONG e mulheres adultas ou qualificação da oferta e do acesso a serviços
mais pobres de cada vila eram convidadas. Gru- de saúde relacionados à prevenção do HIV/IST.
pos de cinco mulheres serviam como garantia do Uma intervenção enfocava gestantes (*61), en-
empréstimo uma das outras e se encontravam a quanto as demais enfocavam a população em
cada duas semanas para troca de experiências e geral (Tabela 4). Nenhuma dessas intervenções
supervisão. Paralelo a isso, o Sisters-for-Life era informou bases teóricas e todas tinham deline-
um módulo de EP e MC para prevenção do HIV amentos observacionais de pré e pós-teste, com
e promoção da equidade de gênero, do qual qual- exceção de uma que era ecológica (*64).
quer mulher podia participar. Na segunda fase do A intervenção testada na Etiópia propunha
programa, se incentivava a MC, envolvendo jo- a integração do planejamento familiar aos ser-
vens e homens. Para tanto, mulheres-chave eram viços de ATV, treinando profissionais de saúde
Tabela 4. Descrição das intervenções classificadas nas dimensões de vulnerabilidade social, programática e múltiplas quanto à população, estratégias, técnicas e modelos teóricos, listadas em
conforme a data de publicação (n=21).
Autor/ano País Rendaa População Mulheres Estratégias usadasb Locais envolvidos Teoria Técnicasc
VULNERABILIDADES SOCIAIS
Abramsky (2014) Uganda B NI NI EP, MC Serviço de saúde, espaços Modelo ecológico da 1e3
SASA!*52*83 comunitários Violência
Skevington Índia, Gambia, África M, B, MA, 14.630 NI EP, CH, MC Espaços comunitários Modelos Freirianos de 1, 2 e 3
(2013) Stepping do Sul, Etiópia, Angola, MA, B, B reflexão crítica
Stones*53*60*84 Tanzânia, Uganda e Fiji e MA
Rotheram-Borus (2012) China, Índia, Peru, Rússia MA, M, 3.912 2.137 (55%) ATV, EP, CH, MC Local de trabalho e espaços Difusão de inovações 1e3
CPOL *54*85*86 e Zimbábue MA, MA comunitários
eB
Taylor (2010) África do Sul MA 1.294 868 (67%) MS, EP, QC, MC Espaços comunitários e Cognitivo Social/ Ecológica/ 1, 3 e 4
Lovelife *55*87-*89 mídia Difusão de inovações
Khumalo-Sakutukwa Tailândia, Zimbábue, MA, B, B 14.657 7.837 (53%) ATV, ApS, MC Serviço de saúde e espaçosDifusão de inovação/ 1, 2 e 3
(2008) Accept *56 Tanzânia e África do Sul e MA comunitários Mudança Social
Kim (2007) *57*90*91 África do Sul MA 833 833 MC, EP, Microcrédito Espaços comunitários Aprendizagem 1, 2 e 3
IMAGE participatória
Erulkar (2004) Quênia B 2.736 1.471 (54%) MC, EP, QC, Subsídio Serviços de saúde e espaços NI 1, 2 e 4
Nyeri Youth Health *58 para uso de serviço comunitários
Welsh (2001) IEC *59*92 Quênia B 1.929 1.929 MC, DP, ES, PF Serviço de saúde, local de Aprendizagem Social/ 1, 2, 3 e 4
trabalho e mídia Mudança Cultural
VULNERABILIDADES PROGRAMÁTICAS
Delvaux (2011) LR *61 Camboja M 64.000 NI QC, ATV Rede de saúde NI 1e3
Sgaier (2014) *62 Índia M NI NI QC Rede de saúde NI 1e3
Gillespie (2009) *63 Etiópia B NI NI QC, ATV, DP, PF Rede de saúde NI 1e3
Van Schalkwyk (2013) Suazilândia M NI NI QC, ATV, TTO Rede de saúde NI 1e3
*64
MÚLTIPLAS VULNERABILIDADES
Liambila (2009) *65 Quênia B 538 538 QC, ATV, PF Serviços de saúde NI 1e4
Vermund (2013) HPTN África do Sul e Zambia MA e M 52.500 NI QC, ATV, TTO, DP, Serviços de saúde, NI 1, 3 e 4
071 *66 VD residências e espaços
comunitários

continua
1907

Ciência & Saúde Coletiva, 25(5):1897-1912, 2020


1908
Gonçalves TR et al.

e distribuindo preservativos e anticoncepcionais

Técnicasc
Tabela 4. Descrição das intervenções classificadas nas dimensões de vulnerabilidade social, programática e múltiplas quanto à população, estratégias, técnicas e modelos teóricos, listadas em

1, 2 e 3

1, 2 e 3

1, 2 e 3
orais, o que qualificou e ampliou o acesso a esses

1e3

2e3
1e4
2

preservativos e outros insumo; EP: Educação por Pares; ES: Educação em Saúde; MC: Mobilização Comunitária; MS: Marketing Social; PF: Planejamento Familiar; QC: Qualificação ou reestruturação do Cuidado ou
atendimentos (*63). Já na Suazilândia se avaliou

NI: Não Informado. a B: renda Baixa; M: renda Média; MA: renda Média-Alta. b ApS: Apoio Social ou psicológico; ATV: Aconselhamento e Testagem Voluntária; CH: Construção de Habilidades; DP: Distribuição de
o impacto da implementação do programa na-
cional para prevenção e tratamento do HIV e
da tuberculose a partir de dados secundários de
1997 a 2010 (*64). A ATV passou a ser ofertada

CASCADA (teoria
Teoria

comportamento)
em todos os serviços de saúde, o que ampliou a

Cognitivo Social

de mudança de
cobertura de testagem e reduziu a mortalidade e

serviços de saúde; RD: Redução de Danos; TTO: Tratamento para HIV, IST, prevenção da TV ou tuberculose; VD: Visita domiciliar. c 1: Individual; 2: Em grupos; 3: Comunitária; 4: Familiar.
incidência de HIV.
O The Linked Response visava fortalecer o sis-

TTM
tema de saúde de Camboja, Vietnã, e aumentar o
Serviços de saúde e espaços NI

NI

NI

NI
acesso a serviços de prevenção, educação e trata-

QC, MC, MS, EP, CH, Serviços de saúde e espaços


de trabalho e comunitários
Serviço de saúde, espaços

mento em HIV por meio da descentralização da


Locais envolvidos

Espaços comunitários

testagem de HIV e Sífilis em qualquer serviço de


residências e espaços

pré-natal (*61). Lançada em 2008, foi uma das


Locais de trabalho
Locais de trabalho

Serviços de saúde,

primeiras experiências de integração entre servi-


comunitários

comunitários

comunitários
ços de saúde sexual e reprodutiva e de HIV/IST
do país. Após 18 meses, verificou-se alta cobertu-
ra de testagem do HIV e da Sífilis entre mulheres.
Houve melhora também na cobertura de pelo
menos uma consulta de pré-natal, no número de
Estratégias usadasb

atendimentos em serviços públicos e no uso de


DP, TTO, serviço

1.675 ES, Microcrédito


NI QC, MC, EP, CH
55.000 QC, ATV, TTO

contraceptivos. A taxa de TV diminuiu, embora


DP, ApS, TTO
812 (37%) QC, ATV, EP,

42 (13%) EP, ApS, CH

a mortalidade materna e infantil na população


itinerante

403 MC, EP

HIV+ tenha permanecido alta.


Por último, a qualificação do programa de
prevenção do HIV no estado de Karnataka, Índia,
11.448 6.702 (59%)

cobria a população geral e priorizava populações-


Mulheres

chave, buscando impactar na incidência geral de


HIV (*62). A proposta se baseava no outsourcing
de conhecimentos e habilidades do setor privado
55.000

2.154

325
403
1.675
NI
População

e sem fins lucrativos, prática comum na Índia,


para constituir Unidades de Apoio Técnico vi-
sando a dar suporte rápido e flexível em: plane-
jamento estratégico; monitoramento e avaliação;
MA, MA,

supervisão apoiadora; treinamento; e informa-


Rendaa

MA

MA
MA
M

M
B

ção, educação e comunicação. As Unidades de


Apoio Técnico funcionavam como unidades de
gestão técnica incorporadas aos programas esta-
duais de prevenção de HIV, compondo-se, cada
Andersson (2013) – BVV Botswana, Namíbia e

uma, de sete especialistas. Em 2008, o sistema


iniciou em Karnataka, um dos estados indianos
com maior prevalência de HIV no país e onde as
África do Sul

África do Sul

Suazilândia
conforme a data de publicação (n=21).

ações de prevenção atingiam apenas 5% da popu-


Botswana

Uganda

lação-chave. Os achados mostraram o aumento


Índia
Haiti
País

dramático no número de intervenções entre 2009


e 2013, especialmente na oferta de ATV e serviços
Wagman (2015) SHARE

de IST para profissionais do sexo e HSH, o que


Burnhams (2015) *69

Spielberg (2013) *71


Williams (2003) *68

elevou o uso de preservativos nessas populações.


Walton (2004) *67
Autor/ano

Norr (2004) *70


Mothusimpilo

Múltiplas dimensões de vulnerabilidade


*72*94

*73*93

Nove intervenções abordavam mais de uma


dimensão de vulnerabilidade ao HIV: quatro
1909

Ciência & Saúde Coletiva, 25(5):1897-1912, 2020


envolviam aspectos individuais e programáticos de ATV adaptado para auxiliar na prevenção da
(*65-*68), três focavam aspectos individuais e violência intrafamiliar associada ao diagnóstico
sociais (*69-*71) e duas intervenções os três eixos de HIV+ e para ajudar mulheres em situação de
de vulnerabilidade (*72,*73). Três destas inter- abuso a negociar sexo seguro. Durante a inter-
venções tinham base comportamental, duas re- venção, os serviços de prevenção e tratamento de
feriram se basear em evidências científicas e nas HIV forneciam preservativos livremente e foram
demais não houve nenhuma indicação. Cinco in- instruídos para realizar a abordagem sindrômica
tervenções foram estruturadas como ECR comu- das IST, oferecer cuidado médico geral, ações de
nitários, três como estudos observacionais pré educação e prevenção do HIV, monitoramento,
e/ou pós-teste e outra com delineamento quasi tratamento e apoio a PVH.
-experimental. Sete foram realizadas na África, e Dentre as quatro intervenções que abarcavam
apenas uma no Haiti e outra na Índia (Tabela 4). vulnerabilidades individuais e programáticas de
As duas intervenções que incluíam as três di- homens e mulheres, todas visavam diminuir a
mensões se baseavam em teorias de mudança de incidência do HIV/IST, com exceção de uma que
comportamento e objetivavam a prevenção de buscava ampliar a testagem para HIV entre mu-
HIV/IST e da violência de gênero, partindo da lheres (*65). Todas ofereciam um componente
premissa de que empoderando as mulheres, estas de ATV e alguma forma de QC para prevenção.
teriam mais chances de evitar doenças e contri- Dentre as ações programáticas destacaram-se:
buir na diminuição da violência nas suas comu- oferta de ATV domiciliar ou itinerante; provisão
nidades (*72,*73). A intervenção Beyond Victims universal de ARV; oferta de tratamento preventi-
and Villains-BVV (*72) foi desenvolvida em Bot- vo para IST e capacitação dos profissionais; inte-
swana, Namíbia e Suazilândia voltada para jovens gração do cuidado de HIV na atenção primária e
entre 15 e 29 anos. Envolvia a capacitação de ser- oferta de circuncisão; integração de ATV em ser-
viços locais, profissionais da saúde e curandeiros viços de planejamento familiar; e manejo da tu-
para atingir jovens com reduzida capacidade de berculose. Duas ainda distribuíam preservativos
escolha, a identificação e capacitação de atores e uma desenvolvia ação de EP. Duas intervenções
locais para liderar ações de EP e a MC quanto à apresentaram resultados mistos. A intervenção
violência de gênero, difundindo amplamente um desenvolvida para mulheres usuárias de serviços
áudio-drama e promovendo sessões de discussão. de planejamento familiar no Quênia ampliou sig-
As mulheres mais vulneráveis participavam de nificativamente a taxa de testagem de HIV com a
uma semana de treinamento de habilidades de oferta integrada de ATV, mas não afetou o uso de
comunicação, negociação, assertividade e auto- preservativos na população estudada (*65). Já a
estima, além do empoderamento econômico por intervenção Mothusimpilo (“trabalhando juntos
meio da discussão de alternativas de geração de pela saúde”) (*68) enfocava mineradores, traba-
renda e do apoio para desenvolver planos e apli- lhadoras do sexo, homens e mulheres de uma co-
cação dos lucros. A intervenção foi planejada para munidade na África do Sul. Não houve efeito na
durar três anos e não havia análise de resultados. incidência de sífilis, gonorreia e clamídia, embora
A SHARE (The Safe Homes and Respect for tenha aumentado o conhecimento sobre HIV e
Everyone) (*73), desenvolvida para homens e o uso de preservativos com parceiros casuais na
mulheres de 15 a 49 anos de Rakai, um distri- comunidade, além da diminuição do consumo
to rural de Uganda, se baseava na ideia de que de álcool entre mineradores. A porcentagem de
o gênero e a violência intrafamiliar são centrais testagem de HIV não foi impactada na população
na epidemia de HIV e oferecia um leque ainda em geral e o consumo de álcool aumentou entre
maior de ações em nível comunitário e individu- profissionais do sexo e entre os mais jovens.
al. A proposta, implementada ao longo de qua- Por fim, das três intervenções focadas nas
tro anos, incluía: estruturação e capacitação da vulnerabilidades individuais e sociais, duas
rede de saúde local e de ativistas comunitários; (*69,*70) foram desenvolvidas em locais de
informação de gestores e lideranças; oferta de trabalho, sendo uma delas apenas para mulhe-
materiais especiais de publicidade e divulgação; res (*70). Ambas buscavam prioritariamente
campanhas e programação de eventos em datas sensibilizar para os riscos da infecção pelo HIV
especiais; programas de EP para jovens casados; e construir habilidades de proteção dos parti-
programa de lições e plano de ação para homens cipantes, mas também promover um ambiente
e meninos liderados por ativistas comunitários; social favorável à diminuição do estigma e busca
oferta de pontos comunitários de apoio psicoló- de ajuda no trabalho. Já a intervenção realizada
gico; treinamento de profissionais em protocolo em aldeias na Índia (*71) buscava construir redes
1910
Gonçalves TR et al.

de microcrédito, pontes para os serviços de saú- contextos sociais, contribui para invisibilizar as
de e prevenir a infecção pelo HIV entre mulheres desigualdades e re(produzir) padrões hetero-
pobres e suas filhas adolescentes. Uma rede de normativos. Em uma cultura hegemonicamente
duplas treinava organizações locais de autoajuda sexista e heteronormativa, há muito se reconhece
para coordenar um programa de educação não- a importância do gênero para a vulnerabilidade
formal em finanças e saúde: Learning Games for ao HIV, pois a hierarquização de diferentes mo-
Girls. Resultados positivos avaliavam apenas des- dos de ser homem e mulher ocorre nos contextos
fechos individuais como conhecimentos, atitudes sociais20. Porém, poucas foram as iniciativas que
e comportamentos e não houve efeito no uso de endereçavam desigualdades socioeconômicas es-
preservativo, na testagem de mulheres e suas fi- truturais e normas sociais relativas ao gênero que
lhas e nem no nível de conforto das meninas em vulnerabilizam as pessoas de modo diferencial.
falar sobre prevenção. Chamou atenção que muitas intervenções
não declararam qualquer abordagem teórica. Se-
gundo relatório da UNAIDS21, intervenções para
Discussão prevenção do HIV são frequentemente imple-
mentadas sem modelos operacionais claramente
A presente revisão apontou que estratégias de conceituados. Isso é problemático, pois favorece
prevenção do HIV voltadas aos conhecimentos, uma aplicação apenas técnica das estratégias sem
habilidades e comportamentos de indivíduos da contemplar os diferentes contextos sociais e/ou
população geral continuam sendo a forma mais estruturas organizacionais dos sistemas de saúde.
recorrente de intervenção, sem endereçar as di- Ao mesmo tempo, quando presente, o enfoque
nâmicas sociais que produzem vulnerabilidades teórico mais recorrente entre as intervenções
diferenciais ao HIV, particularmente quanto ao era de inspiração cognitivo-comportamental,
gênero. Mesmo empregando estratégias baseadas sublinhando o predomínio da lógica biomédica
na teoria da influência social, como a EP, bastante nas intervenções revisadas, especialmente as que
citada nos estudos, em muitos casos, era usada abarcavam apenas vulnerabilidades individuais.
apenas para disseminar informações de modo A ênfase biomédica também foi constatada
mais adaptado ao público da intervenção, não pelo uso majoritário de ECRs e pesquisas quanti-
visando alterar normas sociais. Tal achado corro- tativas na avaliação de seus resultados, sendo que
bora a ideia de que intervenções comportamen- quando presentes, abordagens qualitativas tende-
tais com foco no indivíduo dominam o cenário ram a ter uma posição secundária no estudo. As
da prevenção do HIV, concentrando ações na evidências de efeitos de intervenções comporta-
distribuição de preservativos e na realização de mentais para prevenção de HIV/IST são diver-
palestras e capacitações18. gentes, com a maior parte dos resultados de meta-
Ainda que evidências sublinhem o papel dos nálises não indicando efeitos4,5 especialmente em
aspectos estruturais e sociais na epidemia de desfechos como a incidência de HIV/IST. Na pre-
HIV14,18, particularmente entre as mulheres10,17, sente revisão, os resultados foram massivamente
essas noções parecem ser tímida e lentamente ab- positivos em que pese a diversidade dos desfe-
sorvidas pelas propostas de intervenção, as quais chos, formas de avaliação e o caráter não-analíti-
pressupõem, na sua maioria, que os comporta- co desses achados. Resultados menos positivos ou
mentos de risco são decisões conscientes basea- de não efeito foram encontrados quanto à aquisi-
das em escolhas racionais. Apesar das críticas a ção de HIV/IST, à redução do número de parcei-
abordagens com mensagens únicas de preven- ros, ao estigma e ao relato de violências. Apesar
ção17, a presente revisão identificou intervenções de mudanças de comportamento e inovações so-
com esse propósito como aquela baseada no re- ciais serem altamente dependentes dos contextos
embolso financeiro a partir do resultado negativo locais de cultura e prática sendo, portanto, difícil
na testagem anti-HIV. Ainda que algumas sejam atestar sua efetividade apenas por meio de ECRs,
desenvolvidas em larga escala, intervenções com- argumenta-se que tais programas, se bem plane-
portamentais não impactam os contextos sociais jados e implementados, podem ter efeitos posi-
em que as decisões são feitas e, portanto, não são tivos, ensejando que esse ainda seria o método
consideradas abordagens estruturais19. mais rigoroso22. Tais posições parecem reforçar a
O destaque das intervenções focadas nas ênfase atual no acesso individual ao tratamento
vulnerabilidades individuais, muitas envolven- nas políticas globais de combate a aids, sem inte-
do homens e mulheres sem qualquer aborda- gração com políticas populacionais que garantam
gem que distinguisse particularidades de seus o direito à prevenção do HIV23,24. Tal tendência é
1911

Ciência & Saúde Coletiva, 25(5):1897-1912, 2020


preocupante se pensarmos que a prevenção vem não há “balas mágicas”, mas que é fruto de um
sendo cada vez mais medicalizada e que há uma esforço complexo e sustentado de caráter inter-
concentração massiva de financiamento e atenção setorial que oportuniza a construção de capital
nos testes clínicos de medicamentos, levantando humano na sociedade.
dúvidas sobre as condições do emprego, de fato A presente revisão ainda revelou algumas au-
combinado, de abordagens estruturais19. De certo sências que merecem ser destacadas. O estigma e
modo, esse movimento pode estimular a busca a discriminação quanto ao HIV foram pouco en-
individual pelas tecnologias de prevenção, acir- dereçados pelas intervenções. Ao entender o es-
rando ainda mais as desigualdades em saúde e tigma como parte de um processo mais amplo de
contribuindo para a manutenção de estigmas. exclusão social6, abordagens estruturais de pre-
É necessário um olhar mais complexo tanto venção do HIV deveriam contemplar ações nesse
sobre a proposição quanto sobre a avaliação de tais sentido. Ainda, foram localizados poucos estudos
intervenções. A partir da ótica da vulnerabilidade latino-americanos, incluindo o Brasil, o que pode
e dos direitos humanos8, pode-se inclusive ques- indicar tanto que as suas ações prioritárias têm
tionar a lógica de testar a eficácia de intervenções sido aquelas de cunho programático (p.ex., aces-
de mudança social e comportamental para pre- so universal aos ARV, ampliação da testagem),
venção do HIV que privem comunidades e pesso- mas também a carência de publicações científicas
as de benefícios relativos ao combate de aspectos na área da prevenção do HIV. Apesar da busca
solidamente apontados como potencializadores compreensiva e iterativa, cobrindo grande perío-
da epidemia, como a violência, a desigualdade do de tempo, a presente revisão não incluiu a li-
de gênero e a pobreza14. A referência dos direitos teratura cinza, o que pode ter limitado a inclusão
humanos permite analisar situações de vulne- de ações programáticas propostas por sistemas
rabilidade ao HIV no plano individual, social e públicos de saúde.
programático, além de orientar o planejamento, Conclui-se que a adoção de abordagens es-
organização e avaliação de serviços, situando as truturais como políticas ou programas que vi-
relações afetivo-sexuais no contexto das desigual- sem a mudança nas condições em que as pessoas
dades de gênero e classe social, da heteronorma- vivem deve ser fortalecida no plano da prevenção
tividade e do racismo. Na perspectiva do direito do HIV18. A implementação e avaliação de ações
à prevenção, as pessoas não devem ser tomadas programáticas em saúde, e não apenas programas
como objetos de técnicas de modificação de com- pontuais e focados nos indivíduos, possibilitaria
portamento e sim como cidadãs de direitos que a articulação com as políticas e serviços locais
podem, eventualmente, propor novos direitos17. no sentido de fortalecê-los e de serem susten-
Além do caráter individualizante das inter- táveis. Seria importante desenvolver estratégias
venções revisadas, há que se discutir a concentra- de monitoramento e avaliação dos resultados de
ção de estudos em países africanos. Isso nos faz políticas sociais e intervenções intersetoriais que,
pensar na colonização dos esforços de prevenção, associadas ou não a área da saúde, incidam nos
pautados pela ótica biomédica. Embora celebre- indicadores epidemiológicos do HIV, elevando
se a atenção crescente as desigualdades globais os padrões de cidadania e equidade. Por fim, a
em saúde e o influxo de recursos internacionais revisão apontou que a abordagem da vulnerabi-
para pesquisa e ajuda humanitária para países lidade feminina ao HIV deve avançar no sentido
pobres, deve-se estar alerta para aspectos ligados de incluir ações voltadas para a diversidade de
a governança, controle e impacto de intervenções seus contextos sociais e que incluam os homens.
verticais (para vetores como HIV, tuberculose e
malária) e pontuais nos sistemas de saúde na-
cionais25. Ou seja, a promoção do setor privado,
com o financiamento de ONGs, pode enfraque-
cer a estruturação de sistemas de saúde públicos Colaboradores
voltados para cuidados primários, gerando mais
desigualdades. Por outro lado, mesmo que repre- TR Gonçalves participou da conceptualização da
sentem experiências pontuais, as poucas propos- pesquisa, condução da estratégia de busca dos es-
tas que focavam as desigualdades de gênero de tudos, seleção dos estudos, extração, análise e dis-
modo mais nuançado, incluindo os homens e su- cussão dos dados, redação do manuscrito. AHC
perando o paradigma da vitimização feminina11, Costa, MS Sales e HM Leite participaram da sele-
foram realizadas, em grande parte, na África. Tais ção dos estudos, extração, análise e discussão dos
iniciativas apoiam a noção de que na prevenção dados, redação do manuscrito.
1912
Gonçalves TR et al.

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