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ANDRE D.

BACCHI

A BULA DAS
BULAS
Um guia de bolso para navegar
nas bulas dos psicofármacos

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ANDRE
BACCHI
A Farmacologia Básica da Bula

Como você pôde notar ao ler a “anatomia da bula” nas páginas anteriores,
há dois principais itens nos quais as características farmacológicas dos
fármacos são descritas: a farmacodinâmica e a farmacocinética.
Podemos dizer que a farmacocinética é o movimento que o fármaco faz no
organismo, do momento da sua administração, até o momento da sua
excreção, passando muitas vezes por transformações durante este
processo. Já a farmacodinâmica se refere à ação do fármaco, mediada por
sua interação com estruturas celulares que funcionam como receptores
farmacológicos mediando, em última análise, o efeito terapêutico.
Tanto o entendimento da farmacocinética, quanto da farmacodinâmica são
essenciais para a interpretação da bula, uma vez que ela trará, de forma
resumida, informações específicas sobre estes dois grandes processos
relacionados ao medicamento em questão. Para complementar este tópico,
eu gravei um vídeo de vinte minutos resumindo os principais pontos da
farmacocinética e da farmacodinâmica. Você pode assisti-lo sempre que
quiser CLICANDO AQUI.

Entendendo os termos básicos


Uma das coisas que mais confunde o profissional de saúde (e também o
paciente) é a confusão que podemos fazer por não entender
adequadamente alguns termos importantes. Por isso, vamos elucidar os
principais deles nos tópicos a seguir.

1) Você sabe a diferença entre remédio, medicamento, fármaco e


droga?
Um remédio é qualquer substância ou recurso terapêutico. Dessa forma,
esse termo amplo e coloquial engloba medicamentos e outros recursos
como radioterapia, por exemplo. Dizemos até mesmo que “rir é o melhor
remédio”. Já o medicamento é um produto farmacêutico, tecnicamente
elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de
diagnóstico. É um produto final que contém um ou mais fármacos e
também adjuvantes (como conservantes, corantes, aromatizantes, veículo
etc.). Todo medicamento é um remédio, mas nem todo remédio é
medicamento.
Já o princípio ativo que está presente no medicamento é chamado de
fármaco. Um fármaco é uma substância de estrutura química conhecida,
capaz de modificar funções fisiológicas existentes, usado com intenção
terapêutica. Nesse mesmo contexto, droga é uma substância química que
modifica funções fisiológicas, com ou sem intenção terapêutica. Sendo
assim, todo fármaco pode ser considerado uma droga, mas nem toda droga
pode ser considerada um fármaco. Tanto é assim que existem drogas que
são usadas com finalidade recreativa ou abusiva, bem como é possível se
intoxicar com uma droga ou fármaco. Neste último sentido, tanto droga
quanto fármaco podem atuar como agentes tóxicos, ou seja, como uma
entidade química capaz de provocar danos ao organismo, em doses
inadequadas. O termo “veneno”, por sua vez, segundo alguns autores, seria
reservado aos agentes tóxicos de origem animal (p.ex. cobra, aranha,
escorpião).

2) O que é Farmacocinética e quais são seus principais conceitos?


Farmacocinética é o “movimento” (cinética) que uma droga percorre no
organismo, desde a sua entrada por meio de uma via de
administração/exposição, até a sua saída. Engloba os processos de
absorção, distribuição, biotransformação e excreção. A absorção é
caracterizada pela passagem do fármaco ou droga do seu local de
administração para o sangue, cruzando barreiras biológicas. A fração da
droga que foi administrada que efetivamente chega até a circulação
sistêmica, ou seja, está disponível para ser distribuída aos tecidos, é
chamada de biodisponibilidade. Já a distribuição é o processo inverso da
absorção: a passagem do fármaco ou droga do sangue onde está sendo
transportado para os diversos tecidos, cruzando barreiras biológicas. É
dessa forma que os fármacos chegam aos locais nos quais exercem seu
efeito.
Mas um fármaco não pode permanecer para sempre em nosso organismo.
Sendo assim, a biotransformação (também chamada de metabolização) é o
processo de transformação da droga ou do fármaco, geralmente por meio
de ação enzimática, em outras substâncias (que serão chamadas de
metabólitos). De modo geral colabora para o processo de desintoxicação
do organismo, mas em alguns casos pode gerar substâncias mais ativas ou
tóxicas. O principal órgão biotransformador é o fígado e as enzimas mais
importantes neste processo são as chamas CYP, enzimas que compõe o
sistema enzimático chamado Citocromo P450. A etapa farmacocinética
final é denominada excreção, que consiste na remoção do fármaco ou
droga (e seus metabólitos) do organismo por diferentes vias, sendo as
principais a via renal (urina) e biliar (fezes).
O tempo necessário para que a concentração de uma droga caia pela
metade no sangue é chamado de Tempo de meia-vida e está diretamente
relacionado com o tempo de permanência da substância no organismo.

3) O que é Farmacodinâmica e quais são seus principais conceitos?


Farmacodinâmica é o estudo do mecanismo de ação das drogas e fármacos
no seu sítio de ação. Em geral, drogas e fármacos ligam-se a receptores para
exercer seus efeitos. Um receptor é o “local” onde substâncias endógenas
ou exógenas (como drogas e fármacos) interagem para promover uma
resposta fisiológica, farmacológica ou toxicológica. Receptores podem ser
proteínas transmembrana, estruturas citoplasmáticas ou até mesmo
nucleares.
Em geral, nas bulas, é comum encontrarmos a informação de que o fármaco
é um agonista ou antagonista de um determinado receptor. Mas o que isso
significa? De modo bastante reducionista, podemos dizer que um agonista
é uma substância que se liga a um determinado receptor, favorecendo sua
ativação e produzindo uma resposta celular. Nesse mesmo contexto, um
antagonista seria uma substância que se liga a um determinado receptor,
ocupando-o sem ativá-lo, impedindo a ação do agonista.
A Psicofarmacologia da Bula

Duas coisas são fundamentais para entender o efeito dos psicofármacos:


noções de neurobiologia dos transtornos psiquiátricos e noções de
farmacocinética e farmacodinâmica aplicadas aos psicofármacos.
Seria ambicioso demais tentar contemplar tudo isso em um e-book
resumido. Por este motivo, vou deixar aqui alguns conceitos introdutórios,
para que você tenha um ponto de partida para os seus estudos.
Primeiramente, é preciso entender que nem todo psicofármaco é apenas
uma solução paliativa. Ou seja, nem sempre se trata de apenas atenuar
alguns sintomas ou “disfarçar” o transtorno, como algumas pessoas
acreditam ou propagam. Da mesma forma, é comum que haja bastante
reducionismo quando o assunto é a fisiopatologia dos transtornos
psiquiátricos. O que não falta é gente dizendo que depressão é falta de
serotonina, ou que esquizofrenia é excesso de dopamina, como se fosse
algo simples e pontual. Se fosse assim, as soluções seriam igualmente
simples e pontuais. Mas sabemos que o tratamento psicofarmacológico de
transtornos psiquiátricos é um processo complexo e que os psicofármacos
são apenas algumas das diversas ferramentas terapêuticas, como a
psicoterapia, que são necessárias ao cuidado multidisciplinar do paciente.
Psicofármacos atuam modificando processos neuroquímicos cerebrais,
alterando os níveis de neurotransmissores (como dopamina, ácido gama
aminobutírico (GABA), noradrenalina e serotonina) ou interagindo com
seus receptores (sendo agonistas ou antagonistas). Por um lado, as
alterações neuroquímicas provocadas por esses medicamentos podem
ajudar a regular alguns circuitos neuronais, melhorando os sintomas do
paciente. Por outro, é possível haver desregulação em outros circuitos,
levando a efeitos colaterais (um exemplo é a disfunção sexual associada ao
uso de antidepressivos).
O medicamento que é prescrito depende de muitos fatores relacionados ao
paciente, como: idade, outras condições de saúde/comorbidades, outros
medicamentos que são usados pelo paciente, histórico de uso de
medicamentos passados e/ou de abuso de substâncias, além, é claro, do
diagnóstico em si.
É importante frisar, para profissionais de saúde e pacientes, que nem todos
os medicamentos funcionam imediatamente. Cada um possui um
mecanismo distinto (daí a importância em estudar a farmacodinâmica).
Alguns, por exemplo, servem para uso pontual, para alívio rápido de
sintomas (como fármacos sedativos usados para insônia ou alívio de crises
de ansiedade). Outros necessitam do uso a longo prazo para promover
neuroadaptações importantes para a remissão dos sintomas (como
antidepressivos, estabilizadores de humor e antipsicóticos).

A divisão entre “classes”


Podemos dividir psicofármacos em cinco grandes classes:
• Ansiolíticos
• Antidepressivos
• Antipsicóticos
• Astabilizadores de humor
• Estimulantes
Mas cuidado! O nome da classe foi escolhido devido à primeira condição
que aquele medicamento foi capaz de tratar, mas nem de longe
representa todas suas possibilidades de utilização.
"Recebi a prescrição de um antidepressivo. Tenho depressão?"
"Recebi a prescrição de um antipsicótico. Tenho esquizofrenia?"
"Recebi a prescrição de lítio. Tenho Transtorno Bipolar?"
São perguntas que recebo todos os dias e que angustiam os pacientes que
não foram bem orientados pelos profissionais de saúde. No âmbito da
saúde mental, existe uma grande confusão entre o nome da classe de
medicamento utilizada e a condição/diagnóstico do paciente. A falta de
comunicação e de conhecimento básico em psicofarmacologia agrava esse
quadro. Isso contribui com a menor adesão ao tratamento.
Veja bem, os transtornos psiquiátricos geralmente são diagnosticados com
base no DSM, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.
Apesar de sofrer críticas, essa é uma ferramenta importantíssima que
norteia os critérios que ajudam a orientar um diagnóstico complexo que é
essencialmente clínico. Com base nesse manual, temos então o diagnóstico
de Depressão, Esquizofrenia, Transtorno Bipolar, etc (de maneira muito
mais especificada do que citei aqui, envolvendo subtipos etc). Mas aqui vem
a parte importante: os nomes das classes dos psicofármacos
acompanharam essa nomenclatura.
Ou seja, um fármaco que inicialmente mostrou eficácia em um quadro de
depressão, foi chamado de antidepressivo. Um fármaco que mostrou
eficácia ao controlar sintomas positivos de esquizofrenia, foi chamado
originalmente de antipsicótico, e assim por diante. Mas há um porém...
Nossos neurônios não fazem ideia do que é DSM e não se importam sobre
a forma que resolvemos classificar os transtornos por meio de um manual!
Nosso cérebro é organizado por circuitos neuronais e fármacos alteram o
funcionamento desses circuitos. Um antidepressivo, em geral, aumenta a
disponibilidade de serotonina (e noradrenalina). Isso ajuda tratar
depressão, mas também ansiedade. Pode melhorar também uma dor
crônica, por exemplo. Um antipsicótico antagoniza receptores de dopamina
(e pode antagonizar tipos específicos de receptores de serotonina). Isso
permite o controle de delírios e alucinações na esquizofrenia, mas pode ser
usado como estabilizador de humor ou coadjuvante na depressão. Em
outras palavras: um psicofármaco que seja antidepressivo não é
programado para combater a depressão diagnosticada pelo DSM. Ele
aumenta a disponibilidade de neurotransmissores de circuitos neuronais
envolvidos no controle do humor e isso pode ser benéfico na depressão.
Mas são os mesmos neurotransmissores que podem estar desbalanceados
também na ansiedade. E que são os mesmos neurotransmissores
envolvidos em vias descendentes de controle da dor. Por isso, deixe claro
ao paciente o diagnóstico e o motivo da prescrição do medicamento, pois
nem sempre há uma associação óbvia com o nome!
Ainda mais importante que isso: jamais tente adivinhar o diagnóstico de
uma pessoa pelo medicamento que ela toma. Além de não refletir
exatamente a sua condição clínica, isso apenas aumenta o estigma, a
farmacofobia e a psicofobia (aqui tem uma conversa interessante sobre
isso).
O medo do “vício”
Outra angústia importante de pacientes que recebem a prescrição de
psicofármacos é o medo de se tornarem dependentes a eles. Esta é uma
preocupação válida que acaba sendo alimentada exageradamente pela
ignorância de alguns profissionais e de pessoas não especialistas. Devemos
nos atentar para o fato de que nem todo psicofármaco provoca
dependência.
O fato de usar um medicamento por um longo período de tempo não
caracteriza necessariamente dependência. Não dizemos que uma pessoa
com hipertensão ou diabetes é dependente de anti-hipertensivos ou
hipoglicemiantes. Mas, ainda assim, o uso desses fármacos precisa ser
mantido para melhor controle do quadro e, se o uso for interrompido, deve
ser feito com cuidado, sob risco de recorrência dos sintomas. O mesmo
acontece com antidepressivos e antipsicóticos por exemplo (para entender
o que é, de fato, dependência, leia o Capítulo 6 DESTE LIVRO GRATUITO).
Já fármacos, em geral tarja preta, como benzodiazepínicos, podem
provocar dependência e, por isso, seu uso deve ser pontual e ainda mais
cuidadoso.
O paciente usa mais de um medicamento, o que pode
acontecer?

É importante lembrar que drogas psicotrópicas podem interagir com outras


drogas, alimentos, álcool e produtos de venda livre. Esse fenômeno é
chamado de Interação medicamentosa. Trata-se do evento clínico no qual
os efeitos de um fármaco são alterados pela presença de outro fármaco,
droga, alimento etc. Existem diversas formas de classificação e várias
consequências. Vamos começar com a classificação mais intuitiva:
Um medicamento pode aumentar ou potencializar o efeito de outro. Isso é
chamado de Sinergismo. Quando um medicamento reduz ou "corta" o
efeito de outro, chamamos de Antagonismo. Isso tem a ver apenas com a
observação se o efeito final aumentou ou diminuiu. Não há juízo de valor
entre algo bom ou ruim. Um sinergismo pode ser bom se eu estiver
associando fármacos para aumentar a eficácia de um tratamento (ex:
amoxicilina + clavulanato). Ou pode ser ruim, se eu provocar um aumento
de efeito que leve a um efeito tóxico ou deletério (ex: hemorragia por
anticoagulante + aspirina). Um antagonismo pode ser ruim quando, ao
associar substâncias, uma "corta" o efeito da outra (como tetraciclina +
antiácidos) ou pode ser bom quando usamos um medicamento como
antídoto para uma intoxicação (naloxona pra superdosagem por morfina).
O "bom" ou "ruim" são relativos.
Além disso podemos identificar a origem dessa interação. É uma interação
farmacocinética? Ou seja, teve relação com a interferência nos processos
que mencionei anteriormente de absorção, distribuição, biotransformação
ou excreção?
É uma interação farmacodinâmica? Ou seja, tem relação com os receptores
nos quais esses fármacos atuam? Competem pelo mesmo tipo de receptor
ou é consequência da ação em receptores diferentes que culminam na
alteração do mesmo efeito?
Será que é uma interação farmacêutica? Ou seja, ocorreu "in vitro" ao
colocar substâncias incompatíveis no soro do paciente?
E frente a isso, é uma interação hipotética ou é clinicamente relevante? É
possível contorná-la ajustando a dose, ou é preciso suspender e trocar a
substância?
Essa é uma área complexa, mas importantíssima da Farmacologia e da
Psicofarmacologia.
Algumas das principais e mais frequentes interações medicamentosas
costumam vir descritas na bula, mas isso não significa que não existam
outras interações mais específicas ou que sejam importantes para o seu
paciente. Sendo assim, entender a psicofarmacologia pode ajudar a se
prepara melhor para isso e levantar hipóteses. Além disso, o uso de sites e
bancos de dados (como ESTE AQUI) são fundamentais para checarmos
essas possibilidades.
Epílogo

A escolha de um psicofármaco não pode ser feita com base em


uma ilusão de benefício ou medo irracional de um possível risco. Ela
deve ser racional, considerando os benefícios e riscos reais,
simultaneamente, visando o bem-estar do paciente. Interpretar
adequadamente a bula de um psicofármaco é o primeiro passo
para desmistificar um tratamento junto ao paciente.
Mas é preciso ir além: o conhecimento aprofundado da
neurobiologia dos transtornos psiquiátricos e da farmacologia dos
psicofármacos, somados ao entendimento epidemiológico e
baseado em evidências dos tratamentos clínicos disponíveis é o
que fará a diferença no momento de prescrever, dispensar e
administrar psicofármacos, além de orientar adequadamente os
pacientes contribuindo para a adesão e o sucesso terapêutico. Eu
espero que este material possa te ajudar a iniciar nesta jornada.
Esse é um dos focos do meu trabalho enquanto professor, cientista
e divulgador científico. Conto com você para que cada vez mais
possamos oferecer as melhores ferramentas terapêuticas para
nossos pacientes no âmbito da saúde mental!
O Autor

André Demambre Bacchi é Doutor e Mestre em Ciências


Fisiológicas com ênfase em Farmacologia pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL). É Graduado em Farmácia pela mesma
instituição. Desde 2010 atua como docente nas áreas de
Farmacologia, Toxicologia e, mais recentemente, também nas
áreas de Epidemiologia e Bioestatística. Atualmente é Professor do
curso de Medicina da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR),
na qual coordena o Grupo de Estudos em Medicina Baseada em
Evidências e Divulgação Científica. É autor/organizador dos livros 50
Casos Clínicos em Farmacologia, Desafios Toxicológicos:
desvendando os casos de óbito das celebridades e do livro infantil
Porque sim, não é resposta! Além disso, é criador do curso online
Psicofarmacologia Descomplicada e divulga ciência por meio de
podcasts, entre eles Synapsando, Scientia Vulgaris e Scicast, e
também pelo seu Instagram (@bacchi.andre) e Twitter
(@adbacchi).

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