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DA PREGUIÇA DA FORMA

Guy Amado

Sobre arte processual enquanto categoria artística: bem, toda arte


envolve processo, seja de ordem mental, intelectual, criativa, temporal,
ideológica, física e/ou prática/formalizadora, e por aí vai, mas sempre alguma
instância processual. Assim como a vida, aliás – uma sequência de eventos
mais ou menos encadeados, por vezes pontuados por incidentes e fatos
ordinários e extraordinários, que nada mais são do que um processo. Ao pé da
letra, tratar-se-ia portanto de um exercício de redundância, referir uma
determinada modalidade como “arte processual”: como deixaria de sê-lo?

O fato é que por “processual” me refiro aqui a uma vertente artística da


atualidade que tende a remeter à sua própria condição de arte enfatizando sua
práxis por meio do desenvolvimento de “propostas em aberto” e estratégias
congêneres em que a ideia de resultado se mostra geralmente tênue,
mostrando-se não raro subsumida pelo discurso e pela natureza fugidia das
proposições. Uma característica freqüente na produção ligada a esta
modalidade é a de um baixo grau de formalização, quando não inexistente. Ou
seja, arte que a título de valorizar uma ampla noção de processo pode
prescindir de uma instância de materialização final, ou, em outras palavras, de
constituir-se como arte num plano mais terreno. Vê-se aqui e ali propostas
consistindo em enunciar elegantemente um quase nada, a acontecer ou não
em um lugar qualquer, confortando-se em elencar uma determinada linha de
procedimentos vagos e descomprometidos quanto a uma instância mais
concreta de efetivação. É a estas manifestações eu atribuo certa “preguiça da
forma”; não no sentido em que a forma é classicamente nomeada na estética
[aquela intrinsecamente ligada ao que é próprio da linguagem ou aos princípios
gerativos e constitutivos da obra, etc], mas simplesmente de carecer de um
grau maior de compromisso com a práxis artística, em última análise. Preguiça,
enfim, de se apresentar como arte de um modo mais convincente – e coerente.

Lançada essa provocação, cabe ressaltar que não se trata aqui,


obviamente, de desqualificar propostas artísticas pelo simples fato de não
apresentarem “suficiente materialidade”, o que seria um purismo tolo e
descabido. Como é amplamente sabido, ao menos desde a trilha aberta por
Duchamp há incontáveis casos de trabalhos exemplares na história da arte
recente que só existem enquanto ideia, proposição ou registro [ações,
intervenções, peças efêmeras, etc], e que no entanto se afirmam como arte
sem a necessidade de maiores questionamentos. Basta pensar em ações de
Yves Klein, a plataforma mais orgânica de ação do Fluxus e, claro, obras de
conhecidos expoentes da seara da "desmaterialização da arte" (como
postulada por Lucy Lippard nos anos 1960) e da Arte Conceitual (Robert Barry,
Sol Lewitt, Art & Language, dentre outros) – além das atualizações destas
práticas até os dias atuais (a produção do coletivo francês Claire Fontaine e a
do performer Tino Sehgal, ainda que de modos diversos, ilustram bem o
ponto).

O que gera certa aflição são casos, na contemporaneidade, em que se


evoca a noção de arte processual de modo a servir como uma espécie de
verniz ou aparato de respaldo retórico-conceitual. Penso em produções que
assim se referem mas que no fundo parecem ser apenas pretexto para pulsões
de outra ordem – muito mais teórica que prática, por exemplo. Trabalhos que
passam a sensação de terem sido concebidos quase como a materialização
forçada de um conceito ou pulsão intelectual, e que em última [ou primeira]
instância poderiam ter prescindido disso.
Luigi Pareyson já afirmava que “a obra de arte é, antes de tudo, um
objeto sensível, físico e material, e que fazer arte quer dizer, antes de qualquer
coisa, produzir um objeto que exista como coisa entre coisas, exteriorizado
numa realidade sonora e visiva” 1. Por mais “antiquado” que isso possa
eventualmente soar em tempos de mídias e possibilidades plásticas tão plurais
e híbridas, na prática segue mantendo sua dose de pertinência. Há artistas que
parecem se valer da noção de processo para ali criar uma zona de conforto,
abrigados nas possibilidades permitidas por um rol de questões sempre
atualizado, discursos afiados e propostas práticas sempre em aberto, num
processo que não se fecha e mal se distingue sua consistência real.
É também comum nos depararmos com propostas, nessa linha de
atuação, em que se percebe um desejo vago de dar substância a uma ideia de
processo, o que pode ser externado como algo ligado à ação do tempo ou
pautado em “ativações” a serem feitas pelo público [de modo eventual ou
conclamado], ou mesmo sendo mantido na esfera do intangível. Ou ainda

1 Pareyson, Luigi. Os problemas da estética, São Paulo: Martins Fontes, 1984.


casos em que o processual é entendido e trabalhado em chave mais literal,
seja valorizando-se a matéria em decomposição ou aspectos como
efemeridade e impermanência. Nesse sentido, é arte tautológica, que morde o
próprio rabo como para se convencer de que é mesmo arte, ou para enfatizar
tal condição. Por conseguinte, é (potencialmente) arte com baixo índice de
convicção acerca de seu estatuto enquanto arte.
Esta postura “meta-arte” já foi importante por permitir o estabelecimento
de um novo estatuto filosófico para a arte, como observa Arthur Danto com
categoria em seu After the end of art: contemporary art and the pale of history2.
Mas incorporar esse dado auto-referente ou auto-reflexivo nos termos
estimulantemente niilistas aventados por Duchamp ou na chave ontológica de
Danto é diferente de fazer uma arte que parece ter preguiça de ser arte. Ou
que não quer se confundir com outra determinada produção. Ou ainda, para
definir posicionamentos sobre qual tipo de arte certa produção não queria ser,
ou não se parecer com – vide a anti-forma de final dos anos 60 e as
proposições em land art, happenings e performance de Morris, Smithson,
Heizer, Burden etc., produção classicamente referida como arte processual,
bem como os desdobramentos que se seguiram.
Uma coisa é uma plataforma poética onde se vislumbra uma ideia de
“forma-processo” que é elaborada naturalmente ao sabor das pulsões que a
constituem, ou daquilo que Pareyson chamou “o processo enquanto invenção
do modo de fazer arte”; outra é o processual tornado fetiche e pensado ou
invocado como fator legitimador e potencializador de “poéticas do quase nada”,
confortado por discursos, causas e motivações díspares.

Mais recentemente, a plataforma teórico-prática da chamada Estética


relacional de Nicholas Bourriaud colaborou na atualização de uma
reassimilação dessa noção de processual, inclusive no registro de seu

2 Em After the end of art: contemporary art and the pale of history , Danto vê esse ponto de
inflexão na leitura que faz da produção artística dos anos 60, especialmente da pop art, mais
especificamente a partir das Brillo Box de Warhol. É a partir daí, sustenta ele, que se demarca
na arte um novo paradigma, o da “arte pós-histórica” [subentendendo o fim de um projeto
estético e das grandes narrativas, sendo a modernista a última delas]; uma arte que introduz a
capacidade de se fazer pensar filosoficamente, ou capaz de uma “auto-reflexão filosófica”, em
suas palavras.
entendimento que vejo aqui como bastante distorcido em relação às já citadas
práticas dos anos 60/70, bem como do conceito de escultura social de Beuys.
A E.R. se mostra fortemente interessada num adensamento das relações
humanas na arte, do artista com seu entorno e com seu público, nas
experiências e repertórios individuais que propiciariam uma “construção de
significados coletivos”. Uma definição de metas instigante mas um tanto vaga,
e que, mesmo que não se possa afirmar que se constitua num corpo coeso ou
uniforme de práticas artísticas, certamente se presta a seguir alimentando uma
parcela de “trabalhos processuais”. Podem ser proposições de cunho poético,
político e/ou sócio-assistencial inteligentes e repletas de boas intenções, por
exemplo, mas que justamente pela natureza inatacável de suas premissas [o
teor tangenciando causas humanitárias, por exemplo] tendem a solicitar, já de
saída, um grau de adesão que torna quase deselegante, digamos, a cobrança
por uma formalização posterior mais consistente [enquanto obra de arte].

Valoriza-se um componente ético e uma abordagem multicultural de


uma maneira tal que tornam alguns trabalhos razoavelmente impermeáveis à
crítica, na medida em que ressalvas ou observações mais rigorosas
equivaleriam a "falta de sensibilidade" – dada a causa em questão – ou coisa
do tipo. E assim disseminou-se no Brasil e no mundo uma prática que no geral
se oferece como possível municiadora para uma certa “preguiça da forma”,
com todo o aparato discursivo e “atitudinal” para sua perpetuação. Sendo que,
é importante lembrar, um país como o Brasil tenha tido representantes
gloriosos no quesito informal e processual nos anos 60 e 70: só para ficar no
óbvio, difícil não pensar em casos em que a ideia de processo seja tão
autenticamente fundadora como os de H. Oiticica e Lygia Clark, e tal linha de
atuação siga como mote de muitos bons artistas.

Talvez um modo de minimizar o problema esteja em ser mais claro e


chamar as coisas pelo que são – ou pelo que procuram (não) ser, ou pelo que
não chegam a ser. E talvez definir melhor aquelas práticas que estão por
demais hesitantes em ser arte – ou pior, ansiando por essa condição mas
esforçando-se para se diluírem em qualquer outra coisa, refugiando-se em
interpretações confortáveis do mote “arte e vida”. Afinal, como se diz por aí,
vivemos tempos em que qualquer coisa pode ser arte, mas arte não pode – ou
não deve - ser qualquer coisa.

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