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INSTITUTO DE PSICANÁLISE KOINONIA

Filiado à Sociedade Psicanalítica Miesperanza

PSICANÁLISE e RELIGIÃO

INTRODUÇÃO

A psicanálise, concebendo o sujeito enquanto faltoso, nos convoca a pensar na religião enquanto aquilo que
oferece o complemento desta falta constitutiva do sujeito. Concebendo o desejo como impossível de ser satisfeito
completa e permanentemente, a religião, seria um convite à ilusão da consistência, da completude. A psicanálise vem,
então, para denunciar a retirada da responsabilidade e autonomia do sujeito religioso e sua alienação na figura do
Outro, enquanto portador de um suposto saber do qual o próprio sujeito desconhece.

COMPLETUDE X INCOMPLETUDE

Tanto Freud como Lacan partem da ideia de que ao ser humano falta algo – algo este que podemos dar vários
nomes, como a falta, a coisa, a castração, a ferida narcísica, etc. – e de que seu desejo para ser completo é sempre
impossível de ser satisfeito plena e permanentemente. Assim, o sujeito da psicanálise é finito, limitado e faltoso. Se,
por um lado, a psicanálise é o que retifica a absoluta inconsistência e incompletude do se humano, a religião é o que
me alude à completude, é o que me ilude.
A religião, portanto, é como uma das mais fortes sugestões de que posso ser salvo, de que posso se completo,
de que posso ser consistente comigo mesmo.

COMPLEXO PATERNO

Foi em 1910 que Freud, com a obra Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, estabeleceu pela
primeira vez uma ligação entre o complexo paternal e a crença em Deus. Para Freud, a “a religião é a neurose
obsessiva universal” (Freud, 1907, p. 109). Isso significa que a religião busca obsessivamente o pai idealizado da
infância, todo poderoso, onipotente, garantia de completa segurança.
A ideia de Deus nos remete a um Outro que me protege da minha necessidade de amparo, da minha situação
de impotência. É a figura da onipotência que trata de recobrir a angústia.

RELIGIÃO X ESPIRITUALIDADE

Aqui estamos num ponto importante, em que é preciso distinguir religião e espiritualidade. Podemos usar a
definição de Koenig (2001), que conceitua religião como um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e
símbolos projetados a fim de auxiliar a proximidade do indivíduo com o transcendente. Já a espiritualidade seria uma
busca pessoal por respostas sobre o significado da vida e, talvez o mais importante, abarcaria o próprio
relacionamento com o transcendente. Aqui se trata, portanto, de uma especificidade da religião, que transmite uma
verdade na qual o sujeito deve se encaixar para ser auxiliado na busca pelo transcendente, enquanto que o conceito de
espiritualidade traz intrinsecamente algo do próprio sujeito, algo da busca por sua própria verdade, abarcando,
inclusive, a própria experiência religiosa do sujeito.

Com essa distinção de conceitos, poderíamos pensar se a instituição religiosa não distorceria o caminho do
próprio sujeito em sua busca eterna pelo transcendental, uma vez que o insere num sistema já organizado, sistema este
que, ao mesmo tempo em que permite a libertação, prende-o á marra de crenças previamente definidas. Com isso,
poderíamos concordar com o Leonardo Boff (2000), quando diz que enquanto instituições religiosas separam, a
espiritualidade reúne. Isto porque a experiência mística que a última proporciona transmite a possibilidade de uma
experiência da verdade de cada um.
RELIGIÃO X SUJEITO

Se Freud defende a ideia de que a crença em Deus é uma busca pela figura de um pai, figura esta que me
garante segurança e proteção de doenças e da morte, por outro lado a queda na realidade nos livra de um Pai tirânico,
distante, rigoroso e onipotente, que deseja sacrifícios a todo custo.

Assim, a religião sugere um encontro com Deus, um encontro com o Todo-Poderoso, onipotente,
enquanto que, de outro lado, ao final de uma análise bem sucedida há, pelo sujeito, a aceitação não de um Pai
idealizado, mas a de um pai que que foi o possível, de um pai humano, demasiadamente humano.

Um dia Freud, dirigindo-se a Breuer, a quem seu pai no leito de morte transmitira a tarefa de cuidar do
filho, disse: “Chega um dia que temos de abdicar de todos os pais e se por de pé sobre os próprios pés”. Uma alusão à
autonomia, ao sujeito constituído na responsabilidade pelos seus próprios atos.

No paraíso, segundo a Bíblia, tudo é suprido sem demandar qualquer esforço; lá Adão e Eva, numa
dependência completa de Deus. Como castigo pela desobediência, Deus sentenciou o homem a existência. A dão e
Eva foram, portanto, condenados a uma existência própria, á percepção de si mesmos, de sua finitude.

A partir daí, a religião se apresente como aquela capaz de atender ao desejo de retorno ao estado de
dependência. É diferente se um facilitador de ser um provedor do que se supõe seja a necessidade do outro; essa
última posição está fadada ao fracasso, à desobediência e à ingratidão de quem recebe e, por consequência, á
frustração do provedor. Contudo, o fracasso dessa última posição proporciona também a individuação do homem, que
passa a sentir-se sujeito responsável por seus atos.

RELAÇÕES ARQUETÍPICAS

Em seu livro ‘’Crer depois de Freud”, Carlo Eduardo Morano, psicanalista, teólogo e filósofo espanhol,
fala-nos, mencionando inclusive diversos estudos realizados entre religiosos, que, embora a apresentação seja a da
figura do pai/padre, é a relação com a mãe que está por trás da escolha religiosa. Diz ele “Essa escolha desempenha
muitas vezes a função psicológica de excluir qualquer tipo de compromisso sexual, de modo a manter o sujeito
apegado, infantil e inconscientemente, à sua mãe. Trata-se de mães presentes, cuidadosas e pais distantes e omissos
que são posteriormente internalizados pelo superego – em dissonância com o pai real – com as características de
perfeição e onipotência que lhes foram atribuídas na primeira infância. Em contrapartida, a prolongação da simbiose
com a mãe traz a igreja como sua substituta, mantendo uma relação de infantilização do sujeito neurótico, na qual
vigora o vínculo de necessidade permanente de cuidados e incapacidade de agir por si mesmo ou de enfrentar o
mundo.

O EFEITO COLETIVO

Quanto à neurose obsessiva, as demandas feitas pelos fiéis ao apelarem repetidamente ao sacerdote pelo
perdão de suas transgressões, com este último no papel de pai bondoso e provedor incondicional, carrega consigo o
desejo de vê-lo fracassar alguma vez nas tentativas de livrá-los da culpa. Seguia-se de novas transgressões da parte
deles, claramente em desacordo com princípios e valores morais cultivados pelo sacerdote, numa provável tentativa de
que em algum momento ele não mais os perdoassem e eles viessem a se constituir sujeito de seus próprios atos.

ASPECTOS POSITIVOS

Se por um lado Freud nos mostra como se dá a articulação entre a religião e a neurose, por outro ele
não deixa de notar como a religião pode mesmo nos proteger do desencadear de um processo neurótico: “o aumento
extraordinário das neuroses, desde que decaiu o poder das religiões, pode dar-lhes uma medida disso”.
(1910/1976, p. 131).
Ao lado da religião como um sintoma neurótico, cuja origem remonta à extrema desvalia da criança,
em seus momentos iniciais, em face das adversidades do mundo externo, em particular no contexto das relações
parentais, há uma outra religião traduzida na ação de missionários nas lutas contra a dominação e a injustiça e pelo
exercício da cidadania e do direito, sobretudo, entre as populações menos favorecidas. Essas práticas, longe de se
constituírem uma deturpação política dos textos religiosos, são, também, uma tradução deles. Trata-se de um Deus
mais próximo do humano; os seus seguidores são admitidos em toda a sua potencialidade e capacidade de transformar
o mundo a partir de suas forças, mas que, ainda assim, por si mesmos, sozinhos, não serão capazes de tudo, não
encontrarão todas as respostas e necessitam se sentir protegidos.

A história de Adão e Eva contém essa visão mais abrangente da religião: à medida que, ao colocar o
homem diante da responsabilidade por si mesmo, Deus não o abandona.

CONCLUSÃO

O vazio existente no homem é o que causa a constante busca. Possivelmente, a pulsão de morte com
sua missão de colocar fim ao desprazer, sirva de combustível para sua busca constante. Também é possível que o
afastamento de Deus seja a causa do vazio angustiante do qual bisca se livrar. A religião por si só, ilude com a
possibilidade de preenchimento. Essa ilusão, por sua vez, traz a realidade e torna o homem responsável por seus atos,
único capaz de escolher e responder por suas escolhas. Cabe a espiritualidade a responsabilidade de promover o
desapego desse homem ao seu objeto externo e leva-lo a transcendência e ao amor, verdadeira essência de Deus.

Data 10 de agosto de 2021

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