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E URBANISMO
REVISTA BIMESTRAL — ANO III - JANEIRO E FEVEREIRO DE 1938
s U M R O
O SENTIDO PLÁSTICO DA ARQUI-
T E T U R A RELIGIOSA — Gerson Pompeu Pinheiro
O ARQUITETO MODERNO XIV Congresso de Arquitetos
CONSELHO-TECNICO
Ha anos apareceu por aqui um arquiteto de nome Ao redor dessa reminiscencia solarenga, as arvores
arrevesado, israelita, russo ou polaco, e construiu para do pomar, da chacara, do parque, a sombra cariciante
um novo rico uma casa num bairro longínquo. Era um e amiga, o perfume da vegetação agreste, fonte de
edifício estranho, uma espécie de caixote envidraçado, saúde e de longevidade. Em tudo isso se sentia o con
de paredes lambidas, sem graça de linhas e principal vite perene á união de parentes. A casa mantinha
mente sem conforto. Primeiro no gênero, despertou integra a instituição da família, o seu nexo, porque
curiosidade, e porque o dono anunciasse nas folhas a era doce viver-se nela, porque ela era o refúgio magní-
maravilha, houve romaria em visita ao bizarro habi- fico, a tranquilidade, o sedativo ao cansaço dos dias
táculo. A próposito, falava-se muito em retas, em apro trepidantes.
veitamento de espaço, em armários embutidos, em am Com a destruição da casa típica, passamos a
biente discreto. metade do nosso tempo na rua. Os ociosos deitam-
O tempo passou. Começaram a surgir os casebres se nas praias, queimando-se na canícula, com os ins
de luxo, moradias de bonecos, com varandas exíguas, tintos inferiores á solta, as moças educândo-se no impu-
miniaturas de “bungalow" norte-americano. E em se dor de exibições de plástica, os rapazes cultivando a
guida o arranha-céu veio completar a obra dissolvente, brutalidade, em excessos de expansão física que atro
erguendo-se em todos os cantos da cidade, conspur fiam o espirito.
cando a beleza da paisagem com as suas massas agres O arranha-céu é o autor da catástrofe. E’ o tra-
sivas no exterior e no interior com os seus insólitos re piche da mercadoria humana que nele estaciona para
gulamentos de casas de comodos. sair depressa. Nele a luz é escassa, a temperatura é
Não se devia perder um palmo de terreno, era o de frigorífico, os compartimentos parecem estanques.
estribilho dos pioneiros da monstruosidade. E’ preciso Não ha como alojar em tais baiucas mais de tres pes
conquistar espaço para cima, acrescentavam. E iam soas e nelas não cabem os mobiliários de estilo, as bi
amontoando cubículos fechados ao sol e ao ar, em de bliotecas, os dormitórios comodos e higiênicos. Tudo
zenas de pavimentos. minusculo, reduzido, porque o terreno é caro, e porque
A elegância frivola, foi, a pouco e pouco, desmon é mister utilizar as áreas rigorosamente sem desper
tando as velhas vivendas aprasiveis e engaiolando- dício de um milimetro. E como essas teratologias ar
se. Era “chic” residir em apartamentos ou melhor pou quitetônicas se multiplicam ao infinito, o animal huma
sar, porque ninguém suporta a atmosfera confinada des no que não precinde do auxilio da natureza vai pro
ses buracos e a eles se recolhe apenas para o sono. curar em outra parte o que lhe falta no domicilio.
Mas o arranha-céu não é somente subversivo do
A familia, no entanto, é a casa. Sem esta aquela
ponto de vista estético. Ele é, também, o inimigo nú
nao subsiste. Falta-lhe o apoio, a sedução, o recato,
mero um da família.
o afago dos objetos, a ternura das cousas estimaveis, o
A casa foi em toda as épocas o sustentaculo da
arranjo envolvente das mil miudezas que agradam aos
sociedade doméstica. Ela era o “domus", o ninho do
olhos e prendem o coração. Vida moderna I Dinamis
repouso e da vida em comum, o reduto de convergência
mo! Vencer o tempo! Palavras inventadas pelo ma-
de pais e filhos em torno da mesa grande para as ter
terialismo para ruina do espiritual, para o massacre
túlias intimas, as confidências e os conselhos, os planos
do corpo. Prova de vocação para o suicídio, é que
de trabalho, as boas leituras em vóz alta, á luz da lam-
é essa enervante arrancada, caricatura dos vícios da
pada. Dentro em seus muros nas salas amplas, se for
civilização, em vez de tirar da civilização o que ela
javam caracteres para a luta quotidiana e as gera
ções aprendiam o culto dos antepassados na imita nos proporciona, em complementos ao que nos legou
ção de modelos edificantes e na admiração das vir a clarividência dos nossos ancestrais.
tudes dos avoengos. A casa brasileira precisa ser defendida. Nada jus
Nessas moradas classicas viveram patriarcas de tem tifica nem explica que possuindo, em qualquer dos nos
peras de bronze, varões austeros que perpetuavam na sos aglomerados urbanos, território capaz de abrigar
prole a sua nobreza de sentimentos, o seu. rigor de dez ou quinze vezes a sua população, copiemos servil
costumes, o seu amor pelas cousas da Pátria. Ricos, re mente os lugares super-lotados, onde a “cabeça de
mediados, pobres, cada um na medida de seus recur porco” é um dos imperativos da miséria da terra.
sos tinha o seu lar armado ao sabor das suas tendên
cias e das suas possibilidades financeiras mas tinha o CARLOS MAUL
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