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ARQUITETURA

E URBANISMO
REVISTA BIMESTRAL — ANO III - JANEIRO E FEVEREIRO DE 1938

s U M R O
O SENTIDO PLÁSTICO DA ARQUI-
T E T U R A RELIGIOSA — Gerson Pompeu Pinheiro
O ARQUITETO MODERNO XIV Congresso de Arquitetos

A PLANTA BAIXA XIV Congresso de Arquitetos

RESIDÊNCIA Adhemor Marinho


RESIDÊNCIA Robert R. Prentice
RESIDÊNCIA Marcelo e Milton Roberto
RESIDÊNCIA Lucas Mayerhofer
EDIFÍCIO S. SEBASTIÃO F. F. Saldanha
RESIDÊNCIA Machado e Freund

RESIDÊNCIA Henri Sajous


DECORAÇÃO E MOBILIÁRIO — Daniel V. Garcia e Pierre Wolko
BAIRRO JARDIM F. Baptlsta de Oliveira

FOLHAS DE INFORMAÇÃO Adalbert Szilard


NOTAS ® COMENTÁRIOS ® INFORMAÇÕES

BOLETIM DO INSTITUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL


T R I B U N A L V R E Diversos

DIRETOR SECRETARIO TESOUREIRO

CIPRIANO LEMOS RICARDO ANTUNES RAUL CERQUE1RA

CONSELHO-TECNICO

CIPRIANO LEMOS — AUGUSTO DE VASCONCELLOS J.OR — PAULO NUNES PIRES


Suplentes: ADALBERT SZILARD — RICARDO ANTUNES

DIREÇÃO E PUBLICIDADE - QUITANDA - 21-RIO


. A direção não se responsabilísa pelas opiniões emitidas em artigos assinados ■ —' —
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' ARQUITETURA È URBANISMO
JANEIRO E FEVEREIRO DE 1938 1
TRIBUNA LIVRE
Esta secção 6 reservada para trabalhos de qualquer gênero cuia publicidade nos seja pedida. Ora, si a direção não se responsabl-
lisa pelo que for escrito em artigos assinados inseridos na parte editorial — como está dito no frontispício desta revista — é obvio que
nesta Tribuna Livre, como nos “A Pedidos" dos jornais, a liberdade de exposição 6 amplamente assegurada. A única cousa que não admiti­
remos são apreciações desalrosas a pessoas ou ás suas opiniões. C. L.

A CASA BRASILEIRA seu lar. Nele se afirmava o gênio da raça, recolhido,


sem espalhafatos, hospitaleiro.

Ha anos apareceu por aqui um arquiteto de nome Ao redor dessa reminiscencia solarenga, as arvores
arrevesado, israelita, russo ou polaco, e construiu para do pomar, da chacara, do parque, a sombra cariciante
um novo rico uma casa num bairro longínquo. Era um e amiga, o perfume da vegetação agreste, fonte de
edifício estranho, uma espécie de caixote envidraçado, saúde e de longevidade. Em tudo isso se sentia o con­
de paredes lambidas, sem graça de linhas e principal­ vite perene á união de parentes. A casa mantinha
mente sem conforto. Primeiro no gênero, despertou integra a instituição da família, o seu nexo, porque
curiosidade, e porque o dono anunciasse nas folhas a era doce viver-se nela, porque ela era o refúgio magní-
maravilha, houve romaria em visita ao bizarro habi- fico, a tranquilidade, o sedativo ao cansaço dos dias
táculo. A próposito, falava-se muito em retas, em apro­ trepidantes.
veitamento de espaço, em armários embutidos, em am­ Com a destruição da casa típica, passamos a
biente discreto. metade do nosso tempo na rua. Os ociosos deitam-
O tempo passou. Começaram a surgir os casebres se nas praias, queimando-se na canícula, com os ins­
de luxo, moradias de bonecos, com varandas exíguas, tintos inferiores á solta, as moças educândo-se no impu-
miniaturas de “bungalow" norte-americano. E em se­ dor de exibições de plástica, os rapazes cultivando a
guida o arranha-céu veio completar a obra dissolvente, brutalidade, em excessos de expansão física que atro­
erguendo-se em todos os cantos da cidade, conspur­ fiam o espirito.
cando a beleza da paisagem com as suas massas agres­ O arranha-céu é o autor da catástrofe. E’ o tra-
sivas no exterior e no interior com os seus insólitos re­ piche da mercadoria humana que nele estaciona para
gulamentos de casas de comodos. sair depressa. Nele a luz é escassa, a temperatura é
Não se devia perder um palmo de terreno, era o de frigorífico, os compartimentos parecem estanques.
estribilho dos pioneiros da monstruosidade. E’ preciso Não ha como alojar em tais baiucas mais de tres pes­
conquistar espaço para cima, acrescentavam. E iam soas e nelas não cabem os mobiliários de estilo, as bi­
amontoando cubículos fechados ao sol e ao ar, em de­ bliotecas, os dormitórios comodos e higiênicos. Tudo
zenas de pavimentos. minusculo, reduzido, porque o terreno é caro, e porque
A elegância frivola, foi, a pouco e pouco, desmon­ é mister utilizar as áreas rigorosamente sem desper­
tando as velhas vivendas aprasiveis e engaiolando- dício de um milimetro. E como essas teratologias ar­
se. Era “chic” residir em apartamentos ou melhor pou­ quitetônicas se multiplicam ao infinito, o animal huma­
sar, porque ninguém suporta a atmosfera confinada des­ no que não precinde do auxilio da natureza vai pro­
ses buracos e a eles se recolhe apenas para o sono. curar em outra parte o que lhe falta no domicilio.
Mas o arranha-céu não é somente subversivo do
A familia, no entanto, é a casa. Sem esta aquela
ponto de vista estético. Ele é, também, o inimigo nú­
nao subsiste. Falta-lhe o apoio, a sedução, o recato,
mero um da família.
o afago dos objetos, a ternura das cousas estimaveis, o
A casa foi em toda as épocas o sustentaculo da
arranjo envolvente das mil miudezas que agradam aos
sociedade doméstica. Ela era o “domus", o ninho do
olhos e prendem o coração. Vida moderna I Dinamis­
repouso e da vida em comum, o reduto de convergência
mo! Vencer o tempo! Palavras inventadas pelo ma-
de pais e filhos em torno da mesa grande para as ter­
terialismo para ruina do espiritual, para o massacre
túlias intimas, as confidências e os conselhos, os planos
do corpo. Prova de vocação para o suicídio, é que
de trabalho, as boas leituras em vóz alta, á luz da lam-
é essa enervante arrancada, caricatura dos vícios da
pada. Dentro em seus muros nas salas amplas, se for­
civilização, em vez de tirar da civilização o que ela
javam caracteres para a luta quotidiana e as gera­
ções aprendiam o culto dos antepassados na imita­ nos proporciona, em complementos ao que nos legou
ção de modelos edificantes e na admiração das vir­ a clarividência dos nossos ancestrais.
tudes dos avoengos. A casa brasileira precisa ser defendida. Nada jus­
Nessas moradas classicas viveram patriarcas de tem­ tifica nem explica que possuindo, em qualquer dos nos­
peras de bronze, varões austeros que perpetuavam na sos aglomerados urbanos, território capaz de abrigar
prole a sua nobreza de sentimentos, o seu. rigor de dez ou quinze vezes a sua população, copiemos servil­
costumes, o seu amor pelas cousas da Pátria. Ricos, re­ mente os lugares super-lotados, onde a “cabeça de
mediados, pobres, cada um na medida de seus recur­ porco” é um dos imperativos da miséria da terra.
sos tinha o seu lar armado ao sabor das suas tendên­
cias e das suas possibilidades financeiras mas tinha o CARLOS MAUL

ARQUITETURA E URBANISMO
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