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26/10/07 - por Equipe BeefPoint

“Varíola Bovina”: pecuária e saúde pública

A expressão “varíola bovina” é comumente utilizada para descrever uma enfermidade


vesicular e exantemática, caracterizada pelo aparecimento de lesões cutâneas localizadas no
úbere e tetos das vacas. Existem três diferentes tipos de poxvírus que podem estar envolvidos
na sua etiologia: cowpox e vaccinia (Orthopoxvirus) e o pseudocowpox (Parapoxvírus).
O cowpox vírus é considerado exótico no Brasil possuindo distribuição restrita ao
continente europeu. O vaccinia vírus foi utilizado nas décadas de 50 a 70 na campanha de
vacinação contra a varíola humana, sendo fundamental na erradicação do vírus da varíola
humana (smallpox) no mundo em 1980 (Foto 1 e 2). O pseudocowpox vírus é responsável
pela pseudovaríola, também conhecida como nódulo do ordenhador (Lewis-Jones, 2004).
Esses três poxvírus possuem um grande impacto na saúde pública e na atividade da
pecuária, devido ao potencial zoonótico e pelas perdas econômicas em surtos envolvendo
esses poxvírus.

Foto 1. Smallpox – Varíola humana.

Foto 2. Pesquisadores da Fiocruz na produção de vacinas antivaríola em 1954.

Sinais Clínicos
As enfermidades causadas pelos ortopoxírus (cowpox e vacccinia) e pelos
parapoxvírus (pseudocowpox) são bastante semelhantes, principalmente quanto à evolução
da sintomatologia. Entretanto, as infecções causadas por parapoxvírus geralmente são mais
brandas (Mazur et al., 2000).
As lesões causadas pelos ortopoxvírus são indistinguíveis e se apresentam nas formas
proliferativas, ulceradas ou em crostas. Quando os vírus atingem a pele, inicia-se o
desenvolvimento de um eritema cutâneo caracterizado pelo aparecimento de pequenas
manchas que evoluem para vesículas, podendo ulcerar, e crostas escuras nas tetas e mais
raramente no úbere, que terminam por cicatrizar dentro de 15 a 20 dias (Breman & Henderson,
2002).

Foto 3. Lesões ulcerativas com formação de crostas.

O vírus da pseudovaríola tem distribuição mundial e causa lesões clinicamente muito


semelhantes às produzidas pelos ortopoxvírus. As lesões encontradas na pseudovaríola tanto
nos homens quanto nos animais caracterizam-se por dor, edema, eritema, pequenas pápulas
na teta que evoluem para crostas vermelho-escuras. A lesão se espalha radialmente e
apresenta um centro umbilicado dando uma aparência anelar ou de ferradura. Raramente são
observadas úlceras.

Transmissão
Os poxvírus causadores da “varíola bovina” possuem uma resistência considerável ao
calor, a dessecação e são capazes de manter sua infectividade em restos celulares de crostas
por longo tempo. A penetração dos vírus se dá por soluções de continuidade em lesões pré-
existentes nas tetas e úbere das vacas (Fenner, 2000).
A transmissão destas enfermidades entre os animais ocorre principalmente através das
mãos dos ordenhadores ou equipamentos de ordenha mecânica (Trindade et al., 2003). Entre
fazendas, a doença é transmitida por introdução de animais doentes no rebanho e
ordenhadores que ordenharam animais doentes em outras propriedades. Acredita-se que a
manipulação de latões contaminados possa servir como fonte de disseminação. Trindade et
al. (2007a) relatam que roedores silvestres podem funcionar como reservatórios do vírus.

Perdas econômicas na pecuária


Lobato et al. (2005), em estudo de surtos ocorridos no ano de 2001 no Estado de Minas
Gerais, descreveram os principais problemas causados pela doença: queda na produção de
leite, que pode chegar até a 80%; ocorrência de infecção secundária, especialmente mamite
em até 50% dos casos; gastos com medicamentos; acometimento de bezerros que mamam
nas vacas doentes (Foto 4), levando a um emagrecimento desses animais; recursos humanos,
pois o ordenhador se afasta por mais de uma semana, necessitando da contratação de um
novo empregado.

Foto 4. Infecção secundária (mamite) e acometimento de bezerros.

Saúde Pública
Em 1796, o médico inglês Edward Jenner retirou pequena quantidade de sangue das
mãos de uma camponesa e inoculou em um garoto de oito anos, com o tempo, constatou-se
que a criança havia se tornado imune à varíola. Jenner realizou esse experimento após
observar que pessoas antes infectadas com vírus da varíola bovina (bem mais branda) nunca
manifestavam a varíola humana: estava descoberta a vacina contra a enfermidade. A própria
origem da palavra vacina vem do latim vaccinus, de vacca (vaca) (Ferreira, 2006).
A emergência ou reemergência desta zoonose após 30 anos do fim da vacinação contra
a varíola bovina certamente marca um ponto de declínio da imunidade contra os orthopoxvírus,
resultando assim em um importante problema na Saúde Pública. Também se mostra de
grande importância a dificuldade que clínicos e outros profissionais da saúde tem de
diagnosticar e lidar com essas infecções (Trindade et al., 2007b).
A transmissão dos animais aos seres humanos ocorre através do contato com as lesões
presentes nas tetas dos animais doentes. No homem as lesões são semelhantes às descritas
para os bovinos, localizadas principalmente nas mãos e mais raramente nos braços e
antebraços (Mazur et al., 2000). As lesões anelares características principalmente da
pseudovaríola recebem o nome de “nódulo do ordenhador” e são relativamente indolores,
apresentando geralmente um prurido intenso, mas autolimitante com cura de quatro a seis
semanas (Foto 5).

Foto 5. Lesões nodulares nas mãos de ordenhadores.

Diagnóstico
Deve ser realizado em associação com os achados clínicos, histórico e anamnese,
sendo sempre associado com o diagnóstico laboratorial para uma confirmação definitiva, uma
vez que apenas os sinais clínicos isolados podem ser confundidos com diversas enfermidades
vesiculares como por exemplo: febre aftosa, estomatite vesicular, diarreia viral bovina,
herpesvírus bovino tipo 1 (IBR) e língua azul.
O diagnóstico laboratorial pode ser realizado a partir do isolamento viral, microscopia
eletrônica e sorologia e, em alguns casos, por técnicas de biologia molecular, como a reação
em cadeia da polimerase (PCR) (Trindade et al., 2003).

Controle e Prevenção
Não existe atualmente uma vacina comercial para o controle da “varíola bovina”. Após
a infecção com o vírus vaccínia e o da varíola bovina, os animais desenvolvem imunidade
duradoura. No entanto, o vírus da pseudovaríola parece ser menos imunogênico, e
reinfecções podem ocorrer após alguns meses. Infecção prévia com o vírus vaccínia ou da
varíola parece não proteger os animais da pseudovaríola (Kahrs, 2001).
Entre as medidas de controle que devem ser adotadas, destaca-se a separação dos
animais doentes, linha de ordenha e higiene da ordenha. Iodo glicerinado deve ser utilizado
nas lesões, que devem ser mantidas sempre limpas. O uso de luvas de borracha
antiderrapante deve ser incentivado. A desinfecção das mãos do ordenhador entre vacas
ordenhadas deve ser feita, podendo-se utilizar a “técnica dos três baldes”, que consiste em
lavar as mãos no primeiro balde contendo água, passar as mãos no segundo balde contendo
uma solução de água sanitária diluída (1 litro de água sanitária para três litros de água limpa)
e, finalmente, enxaguar as mãos no último balde, contendo água limpa.
A solução de água sanitária deve ser frequentemente trocada, pois a presença de
matéria orgânica e a evaporação do cloro ativo podem diminuir a eficiência do produto para
desinfecção. A introdução de animais no rebanho deve ser acompanhada por uma rigorosa
inspeção nas tetas dos animais, buscando lesões compatíveis com a doença. (Lobato et al.,
2005)
Deve-se tentar minimizar os traumatismos nas tetas, pois eles funcionam como solução
de continuidade para infecção viral e podem aumentar durante a época da seca, se a pele
estiver ressecada. Depois que a doença já se espalhou no rebanho pode-se apenas minimizar
as infecções secundárias e dar tratamento de suporte aos animais.

Conclusão
A necessidade da investigação e do acompanhamento de focos de “varíola bovina”,
assim como a implementação de programas de Educação Sanitária para as comunidades
inseridas nestes focos, tem como objetivo minimizar os grandes prejuízos econômicos, e a
ocorrência da doença nos seres humanos. Diante disso, há uma necessidade de uma efetiva
interação entre os órgãos de Saúde Pública e Defesa Sanitária Animal para que seja realizado
em conjunto atendimentos destes surtos com repercussão positiva na vigilância sanitária da
saúde humana e animal.

Referências Bibliográficas:

Breman, J.G.; Henderson, D.A. Diagnosis and management of smallpox. New Engl. J. Med., v.346,
p.1300-1308, 2002.

Fenner, F. Adventures with poxviruses of vertebrates. FEMS Microbiol. Rev., v.24, p.123-133, 2000.

Ferreira, P. Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Agência Fiocruz de Notícias. Disponível em:
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KAHRS, R. F. Herpes mammillitis and pseudo lumpy skin disease. Poxvirus infections of the teats. Viral
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Lewis-Jones, S. Zoonotic poxvirus infections in humans. Curr. Opin. Infect. Dis., v.17, p.81-89, 2004.

Lobato, z.i.p.; Trindade, G.S.; Frois, M.C.M.; Ribeiro, E.B.T.; Dias, G.R.C.; Teixeira, B.M.; Lima, F.A;
Almeida, G.M.F.; Kroon, E.G. Surto de varíola bovina causada pelo vírus Vaccinia na região da Zona
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Mazur, C.; Ferreira, I.I.; Rangel Filho, F.B. et al Molecular characterization of Brazilian isolates of orf
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Trindade, G. S.; Fonseca, F. G.; Marques, J. T. et al. Araçatuba virus: a vaccinia-like virus associated
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Trindade, G. S.; Drumond, B.P.; Maldonado, M.I.; Guedes, C.; Leite, J.A.; Mota, B.E.F; Campos, M.A.;
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