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[…] o romance confunde-se com a canção de gesta,

a história e uma certa bagiografia; pinta aventuras


maravilhosas, quase sempre ligadas pelo processo da
busca e entretecidas de intrigas amorosas […] a
coerência da obra é assegurada segundo métodos de
composição numeral e temática , mais que por neces-
sidade drámatica.
Paul Zumthor, história literária da França
Medieval

Uma criação implica superabundância de realida-


De, ou por outras palavras, uma irrupção do sagra-
do no mundo. Segue-se daí que toda construção ou
frabicação tenha como modelo exemplar a cosmo-
gonia.
Mircea Eliade, O sagrado e o profano

Chegar ao mundoé tomar a palavra, transfigurar a


experiência em um universo do discurso.
George Gusdorf, A palavra

Axe primordial, le linga montre, en se joignant au


yoni, que l’Absolu se développe en pluralité, mais se
résout en unicité. L’ ensemble lingayoni précise I’an-
tagonisme des principes mâle et femelle - et il le
détruit dans une non-dualité tiomplante.
Max-Pol Fouchet, L’art amoureux des Indes

Tríadas e décadas se entrecem na unidade. O nú-


mero, aqui, não é mais simples esqueleto exterior,
mas símbolo do ordo cósmico.
E.R. Curtius, sobre a Divina comédia
(Literatura ,medieval e Idade Média latina)
A ESPIRAL E O QUADRADO

Antonio Candido

Como num relato de Borges, o modelo deste livro seria um poema, místico em
latim, de que se conserva apenas a versão grega da hipotética Biblioteca Marciana de
Veneza… O poema fornece o esqueleto de uma geometria rigorosa e oculta, que o
Autor revela numa espécie de guia metalinguístico do leitor, e que dá a narrativa um
movimento espiralado, sem começo nem fim quando tomado em si mesmo. O limite
está no fato de a espiral ser contida num quadrado, que por sua vez se repartee em
quadrados menores, cada um correspondendo a uma letra. O traçado da espiral vai
tocando sucessivamente as letras, e cada uma destas corresponde a uma linha da
narrativa, voltando periodicamente em segmentos cada vez maiores.
As linhas são oito, e o seu desdobramento se traduz na história de um homem
e das mulheres que amou: uma na Europa, uma em Recife e sobretudo, uma em São
Paulo, que de certo modo recebe a experiência amorosa vivida como nas anteriores.
As duas primeiras seriam passado, mas funcionando como presente; a última é um
presente que se forma a cada instante do passado. Toda a narrativa converge para a
plenitude amorosa, numa espécie de gigantesca câmara lenta, que concentrasse o
tempo no espaço limitado e no limitado instante em que a plenitude é buscada.
O que desde logo prende em Avalovara é a poderosa coexistência da
deliberação e da fantasia, do calculado e do imprevisto, tanto no plano quanto na
execução de cada parte. Falando do relógio de Julius Heckethorn (uma das linhas da
narrativa), o Autor diz que obedecia a “um esquema rigoroso”. E “sobre este rigor
assenta a idéia de uma ordem do mundo”. Mas “como introduzir, então, na obra, o
princípio de imprevisto e aleatório, inerente á vida?”. A execução do livro é a
resposta, fascinante para o leitor, á medida que este vai experimentando a precisão
geométrica do arcabouço, a minúcia implacável da descrição e a poesia livre que
rompe a cada instante.
SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS é uma frase inventada por um
escravo frígio de Pompéia, feita de cinco palavras, cada uma com cinco letras, que se
pode ler igualmente nos dois sentidos, e em cuja composição entram apenas oito
letras, que, distribuídas pelos quadrados menores, constituem as linhas narrativas. Nos
vinte e cinco quadrados que formam o quadrado grande, onde se contém a espiral, as
palavras se sobrepõem horizontalmente, mas também se estendem em colunas
verticais, pois a frase pode ser lida indiferentemente da esquerda para a direita, da
direita para a esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima, em diversos rumos.
Assim, na narrativa, o amor é visto do homem para a mulher, da mulher para o
homem, do presente para o passado, do passado para o presente, daqui para ali, dali
para aqui, numa reversibilidade vertiginosa que traz à baila a evocação da herma de
Jano e chega a uma mulher que é também homem, para um homem que poderia
eventualmente ser também mulher.
As reversibilidades prosseguem ainda noutro plano, quando o Narrador se
transforma periodicamente em Autor e a narrativa quebra a imagem do real, para
aprensentá-lo como fantasia composta. Neste romance, uma das linhas é precisamente
a da consciência crítica entrando a cada instante pela série ficcional, denunciando o
seu caráter fictício de empresa deliberada, igualmente reversível entre a representação
do real e o caráter ilusionista da representação. Daí um livro que não tem medo de se
apresentar como livro, como maquinismo montado, como não-realidade – mas do
qual jorram o fascínio de uma vida que palpita, o traçado do mundo exterior e a surda
potência das emoções.
Nada mais significativo desta mistificação demistificadora do que o fato de
um personagem não ter nome. Trata-se de terceira mulher, a mais importante,
representada no entanto por um signo meramente visual: ʘ. Abel amou/ama Ross,
amou/ama Cecília e finalmente ama/amou ʘ. Ela é espantosamente carnal e viva para
o leitor; mas é um ente mental do escritor, uma peça do jogo palindrômico,
representada simbolicamente pelo círculo fechado onde tudo começa e acaba, com seu
alvo fincado no meio. As pontas da espiral, desgarradas no infinito, unem-se aqui para
a consecução de uma plenitude que é toda a busca do livro.
Romance? Poesia? Tratado da narrativa? Visão do mundo? No universo sem
gêneros literários da literatura contemporânea, o livro de Osman Lins se situa numa
ambiguidade ilimitada. A começar pela linguagem, que varia também com o
movimento da espiral, indo da simplicidade das expressões até a paráfase do Cântico
dos Cânticos, do tom de arrolamento metódico aos vôos largos da poesia.
Para se encontrar nessa ambiguidade, o leitor deveria munir-se de um
sentimento duplo, que poderia ser chamado de sentimento do todo, ou da espiral, e
sentimento da parte, ou dos quadrados. Há uma visão do todo, que se desvenda
lentamente, custando a ganhar forma em nosso espírito. Não faz mal, porque o livro
parece feito para ser lido também nas suas partes. O sentimento da espiral leva a
buscar a concatenação e o contraponto dos fios, ao longo do tempo. Mas o sentimento
dos quadrados leva a tomar cada parte como um todo, bastante a si mesma e fora do
tempo, capaz de produzir um impacto completo de leitura. Daí o caráter poético e
geométrico do livro, que é uno e múltiplo, que carreia elementos narrativos do fundo
dos séculos, mas também se passa nalguns instantes, num quarto fechado, sobre um
tapete que se perde a cada momento no rumo do fantástico.
Avalovara representa na literatura brasileira atual um momento de decisiva
modernidade, porque o Autor (como diz a certa altura) exerce “uma vigilância
constante sobre o seu romance, integrando-o num rigor só outorgado, via de regra, a
algumas formas poéticas”.

R 1
ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES

No espaço ainda obscuro das ala, nesta espécie de limbo ou de hora noturna
formada pelas cortinas grossas, vejo apenas o halo do rosto que as órbitas ardentes
parecem iluminar – ou talvez os meus olhos: amo-a – e os reflexos da cabeleira forte,
opulenta, ouro e aço. Um relógio na sala e o rumor dos veículos. Vem do Tempo ou
dos móvies o vago odor empoeirado que flutua? Ela junto à porta, calada. Os
aerólitos, apagados em sua peregrinação, brilham ao trespassarem o ar da Terra.
Assim, aos poucos, perdemos, ela e eu, a opacidade. Emerge da sombra a sua fronte –
clara, estreita e sombria.

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A ESPIRAL E O QUADRADO

Surge onde, realmente – vindos, como todos e tudo, do princípio das curvas -,
esses dois personagens ainda larvares e contudo já trazendo, não se sabe se na voz, se
no silêncio ou nos rostos apenas adivinhados, o sinal do que são e do que lhes
incumbe? A porta junto à qual se contemplam ou avaliam, face a face, rodeados de
sons, cheiro de pó e obscuridade, é limiar de quê?
Ingressam ambos na sala e talvez, ao mesmo tempo, no espaço mais amplo,
conquanto igualmente limitado, do texto que os desvenda e cria.

R 2
ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES

As cortinas ocultam duas janelas amplas, com persianas de madeira e vidraças.


Permanece fechada a janela ante a qual ficam as descoradas poltronas de damasco, a
mesinha de centro e o sofa com forro de veludo ouro. A outra, aberta, ilumina a longa
mesa posta: sobre pequenas toalhas ovais – vermelhas, azuis e verdes -, entre a louça
e os talheres, dois castiçais, uma garrafa de vinho e o vaso com dálias amarelas.
Palavra e corpo, o rosto – fogo e seda – junto ao meu: . Afago seus cabelos, fartos,
fortes, duas cabeleiras confundidas. Que liga esta hora à visão da Cidade descendo
sobre o vale com um pássaro? Uma explosão longínqua faz tilintarem os pingentes
(faltam alguns) nos lustres de cristal. Também ouço o mecanismo, lento, cor de mel e
aço, do alegre vestido, alça-se um perfume lancinante. Os motivos geométricos, os
animais e as ramagens dos dois imensos tapetes diluem-se num rosa meio encardido.
Retirado o pêndulo, poderiam esconder-se uma criança e seu cão na caixa de madeira
do relógio.

S 2
A ESPIRAL E O QUADRADO

Crer que os dois personagens e a sala de um fausto declinante onde se


encontram tenham para o narrador mais nitidez que o texto – vagarosamente
elaborado e onde cada palavra se revela aos poucos, passo a passo com o mundo nelas
refletido – seria enganoso. Não haveria cidades sonhadas se não construíssem cidades
verdadeira. Elas dão consistência, na imaginação humana, às que só existem no nome
e no desenho. Mas às cidades vistas nos mapas inventados, ligadas a um espaço irreal,
com limites fictícios e uma topografia ilusória, faltam paredes e ar. Elas não têm a
consistência da prancheta, do transferidor ou do nanquim com que trabalha o
cartógrafo: nascem com o desenho e assumem realidade sobre a folha em branco.
Aonde chegaria o inadvertido viajante que ignorasse este princípio? Elaborar um
mapa de cidades ou de continentes imaginários, com seu relevo e contorno,
assemelha-se portanto a uma viagem no uniforme. Pouco sabe do invento o inventor,
antes de o desvendar com o seu trabalho. Assim, na construção aqui iniciada. Só um
elemento, por enquanto, é claro e definitivo: rege-a uma espiral, seu ponto de partida,
sua matriz, seu núcleo.

R 3
ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES

O parque de diversões, com as suas luzes perdidas na escuridão circundante,


ela e eu no carrossel que range em torno do eixo, rangem as tábuas do piso se passa
algum dos outros raros hóspedes; tento, sem conseguir, com faca afiada, cortar o olho
desorbitado de um boi; a mala de viagem tomba no assoalho, range o mar nas bocas e
nas barrigas dos peixes, ouço ou julgo ouvir, rosto contra rosto, um crepitar de
chamas, as pranchas de carvalho rangem sob nossos pés, não sei se realmente
pronuncia nomes inventados ou se dou forma a vozes que sua carne parece,
subsistem, propaga-se em ondas amplas o rumor do mar pela costa ainda meio inculta,
giramos abraçados no carrossel, range o leito vazio e o outro onde estamos; como
entender que tão duros instrumentos, os olhos, recuem, queimem-se, tornem sobre si
mesmos tal um pedaço de seda?; o vento espalha sem constância pelas casas pouco
numerosas da praia Grande a música estridente do parque e faz ranger a janela grossa,
com as aldravas pendentes, o calor do seu rosto advém talvez dos olhos tórridos,
desconheço o significado dos nomes que ela escande, de factícia sonoridade latina
(mas escande-os?), rangem os baús e a cômoda, as luzes inquietas ou circulantes da
festa em meio às quais rodamos refletem-se nas rugosas paredes e no seu rosto,
ninguém conhece este olhar que arde e não extingue, só eu e algum homem a quem
ela – em outro segmento do Tempo – deseje e ame, sua voz é uma aragem e queima-
me rangem em mim os ossos, rumor da mala sobre o assoalho no silêncio do ocaso,
aves noturnas passam ante a janela e rangem, escuras, rangem no ar.

S 3
A ESPIRAL E O QUADRADO

Desenhai, com auxílio de um compasso, se é de vossa índole ser cuidadoso, ou


a mão livre, se tendeis para as soluções mais fáceis, uma espiral. Atentai, com
cuidado, para as extremidades da linha, a interior e a exterior. Vereis, ao primeiro
olhar, que a espiral não nos transmite uma impressão estática: parece-nos, antes, vir
de longe, de sempre, tendendo para os centros, seu ponto de chegada, seu agora; ou
ampliar-se, desenvolver-se em direção a espaços cada vez mais vastos, até que a nossa
mente não mais alcance. A verdade é que, se a seccionamos nas extremidades,
arbitrariamente o fazemos; fazendo-o, guardamo-nos da loucura. Nem a eternidade
bastaria para chegarmos ao término da espiral – ou sequer ao seu princípio. A espiral
não tem começo nem fim.
A um olhar mais cândido, o que dissemos merece reparos. A espiral seria
infinda em seu exterior; interiormente, porém, há os centros ontem ela termina – ou se
inicia. Tal pensamento demanda retificação. Somos nós que impomos limite, em
ambas as extremidades, para a espiral. Idealmente, ela começa no Sempre e no Nunca
é o seu termo. Com o que chegamos a uma conclusão ainda menos trivial que as
anteriores, a saber: embora a vejamos traçada, no papel, em direções opostas, suas
extremidades (se realmente existem) em algum ponto misterioso, inacessível à nossa
compreensão empedrada, haverão de encontrar-se, exatamente como o círculo,
representação bem menos equívoca e perturbadora. Como, então, fazer repousar a
arquitetura de uma narrativa, objeto limitado e propenso ao concreto, sobre uma
entidade ilimitada e que nossos sentidos, hostis ao abstrato, repudiam?
R 4
ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES

Ajoelhado no tapete, descalço os sapatos de ʘ, descalço-os e beijo os pés


recurvos, pequenos, cavados nas plantas. As unhas esmaltadas luzem sob as meias
transparentes. Tomo nas mãos os seus pés, os dois (ela, no sofá, meio curvada,
afagando-me a cabeça), e descanso o rosto sobre eles. Nascem e abrem-se, nos pés,
dentro dos pés, entre os ossos finos, violetas invisíveis: sinto-as. A Cidade navega
pelos ares, em silêncio, pousa no vale. Face a face, eu e a Cidade, mudos. A quem
pertencem, realmente, estes pés sob meu rosto e dentro dos quais ouço vozes? Ela
repete meu nome, docemente: “Abel! Abel!”.
Dissipa-se o cheiro de pó com sua presença ou com o ar morno de tarde
entrando pela janela. Repetem as nossas línguas o jogo de avanços e recuos, próprio
dos amantes. Os incisivos vez por outra se tocam e então nossos músculos retraem-se.
Sugo, sucessivamente, sua língua e seus beiços de corte nítido. Ela faz o mesmo.
Nossas línguas incham e diminuem, avançam, expandem-se, tendem a ocupar
inteiramente a boca do outro. ʘ comprime a minha língua entre os seus dentes fortes,
delicadamente. Ave de forma imprecisa ou flâmula negra, cintilando na linha do
horizonte e aproximando-se, ampliando-se ondulante no céu puro – pássaro? – e de
súbito vejo delinearem-se torres, muralhas, o rio ou braço de mar. O odor do ar que
aspiro, tépido, das narinas de ʘ, alcança intensidade quase insuportável. Maior, ainda
assim, o prazer de sorvê-lo. Respiro sobre um vaso de vinho? Uvas esmagadas, vides
recém-podadas, folhas secas de parra queimando sob a chuva, lençóis de linho ao sol,
entre latadas altas e sarmentos, eis, dentre muitas outras, algumas das imagens
evocadas a esse hálito que ninguém mais possui e que ela própria, decerto, só em
raros momentos exala com igual intensidade. A língua quente e agitada, feita para
degustar os sabores da Terra, inverte esta função e faz-se alimento. Sabe a licor. De
quê? Bebo o suco sempre renovado desse fruto vivo. Embebo-me do rumoroso ser
abraço – e sinto, no meu peito, como se a mim pertencessem, crescerem seus peitos.
Não terão apenas o arredondado, mas também o colorido das rosáceas (duas grandes
rosáceas sobre rosáceas menores) e neles fulgem, estou certo, palavras pouco usuais.

S 4
A ESPIRAL E O QUADRADO

Sendo a espiral infinita, e limitadas as criações humanas, o romance inspirado


nessa figura geométrica aberta a que socorrer-se de outra. Há que socorrer-se de outra,
fechada – e evocadora, se possível, da janelas, das salas e das folhas de papel, espaço
com limites preciosos, nos quais transita o mundo exterior ou dos quais espreitamos.
A escolha recai sobre o quadrado: ele será o recinto, o âmbito do romance, de que é a
espiral á força motriz.
Concebei, pois uma espiral que vem de distâncias impossíveis, convergindo
para um determinado lugar (ou para um momento determinado). Sobre ela,
delimitando-a em parte, assentai um quadrado. Sua exisência para além dessa área não
será tomada em consideração: aí, somente aí, é que regerá com o seu vertiginoso giro
á sucessão dos temas constants do romances. Pois o quadrado será dividido em outros
tantos, idealmente iguais entre si. E a passagem na espiral, sucessivamente, sobre cada
um determinará o retorno cíclico dos temas neles esparsos, do mesmo modo que a
entrada da Terra nos signos zodiacais pode gerar, Segundo alguns, mudanças na
influência dos astros sobre as criaturas. Coincidirão, aduzamos, o centro do quadrado
e os centros da espiral, ou seja, o ponto imaginário onde – supondo que seja traçada
de fora para dentro – arbitrariamente a interrompemos. Tais os fundamentos da
presente obra.
Outros pormenores, a seu tempo, serão acrescentados. Por ora, temos de sustar
essa exposição, forçado pela rigidez do plano há mais de dois mil anos estabelecido.
Vindo a nossa espiral do exterior, são cada vez menores os seus giros. Inversamente,
por uma necessidade de simetria e de equilíbrio na concepção, ampliará sempre o
contrutor da obra, em progressão aritmética, o espaço concedido, cada vez aos vários
temas do livro, controlados no ritmo de seus reaparecimentos e na extensão dos textos
a eles referentes. A caprichosa ampliação desses temas constitui uma espécie de
réplica, às avessas, daquela espiral que se fecha. Serão eles, ao seu modo, espirais que
se abrem ou cones que se alargam. Exercerá assim o construtor uma vigilância
constante sobre o seu romance, integrando-o num rigor só outorgado, via de regra, a
algumas formas poéticas.

O 1
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Abraça-me este homem (para mim se dirige há tanto tempo que não mais se
recorda desde quando), uma serra mecânica corta tábuas de pinho, vai e vem no
relógio e o pêndulo em forma de sistro, um vento morno move as dálias sobre a mesa,
sobe da avenida um rumor confuso de veículos. Articulado na ausência e por mim
mesma descrito, de maneira caótica, incompleta e até certo ponto enigmática, nos dias
febris e de número impreciso em que minha boca parece saber mais do que sei, o
nosso encontro alcança agora a plenitude e o final. Abel!

R 5
ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES

Vamos por ruas que não conhecemos, ʘ e eu, interrogando o céu límpido,
ecaminando a luz do Sol no chão e atentos a todas as mudanças no ar. Vestido de
verão, cabelos soltos, sandálias enfeitadas com falsas gemas roxas. Não sei como,
nossas mãos se encontram, estamos de mãos dadas, ela aperta-me os dedos e mostra o
rastro no céu do primeiro foguete Nike-Tomahawk. São exatamente dez horas da
manhã. Rápido encontro sob as árvores, ao cair da noite, junto á estátua de Dante
Alighieri. ʘ dá-me o braço. Contornamos lentamente os fundos da Biblioteca
Municipal, protegidos pelas ramagens que diluem e fragmentam a luz das lâmpadas.
Nossos pés tornam-se pesados, tardos – e nós nos abraçamos. Sua boca, sempre um
pouco aberta, abre-se mais e ela morde-me a língua. Motores e buzinas, vozes
confusas, passos, silvos estridentes dos guardas de trânsito. Na sua garganta, nasce e
repete-se um apelo inarticulado, nasce e repete-se (a palavra, talvez, que devo
encontrar?), repete-se, ecoa entre as clavículas, grito sufocado (não, não é ainda a
palavra, a frase, o enunciado), nos sons sem forma e lacerantes eu reconheço meu
nome. O enterro atravessa a cidade de São Paulo ao sol do meio-dia, furando com
dificuldade os pontos de congestionamento. Vai para o túmulo o corpo negro e gasto
de Natividade. Não nos movemos e mesmo imóveis range a cama, dormem os
homens do parque nas barracas na bilheteria, nos bancos do carrossel, as ondas
morrem na areia noturna e o ruído que fazem mal se ouve pela janela cerrada.
ʘ acelera o carro ainda úmido da neblina noturna, dá a volta pela praça Roosevelt
assustando os pombos, os sinos da Consolação vibram solenes na bruma da manhã e
ela ri. O calçamento lavado cheira a peixe, o bagaço de laranjas. A câmara ultravioleta
motada por Edwind D. Aldrin no exterior da cápsula especial e voltada para o campos
de estrelas Sírio e Veoloum busca informações sobre a idade do Universo. Números e
nomes, nesses campos, florescem. Percorremos lentamente as longas ruas desertas de
Ubatuba. Paredes encardidas das casas, com platibandas e decorações de massa,
jardins com pérgulas meio destruídas, calçadas gastas mato nascendo nas telhas e
beirais. Os eventos são enigmáticos e quase nunca se apresentam íntegros. Um texto
que cem bocas pronunciam, cada boca profere três palavras, quarto, uma, cada boca
ignora as palavras que emitem as outras bocas, ignoram inclusive onde as outras
bocas falam, quantas são e se existem. Pode uma boca falar e não sabe o quê. Nós sob
o lençol na escuridão do quarto, estendidos, de mãos dadas, rígidos e mudos, nus. A
cegueira dissipando-se e uma planta medrando no centro do meu corpo, acre raiz,
caule vermelho, folhas ásperas, rugosas, planta de chamas, urtiga.

O 2
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Meu marido, um vazio nele ou em torno dele, aproxima-se de mim, vejo-o


como mulher e também como criança, tira a minha grinalda, rasga meus dois himens,
deflora-me e ao mesmo tempo estupra-me, grito de prazer, de horror.
Não julgar que a existência humana, enquanto inconclusa, seja um poliedro
incompleto do qual a morte é o ultimo lado, não, o poliedro move-se e suas faces e
arestas proliferam, crescem conosco, mais ou menos brilhantes, assim é com todos e
mais ainda comigo, de vida dúplice, duas vezes nascida, com duas infâncias, duas
idades, dois corpos, de modo que as faces do poliedro se trespassam, umas em outras
se refletem: sou ensamblada, incrustada em mim.
Toda minha vida, pois, está aqui, neste instante, instante?, não há instante,
instantes, o que assim denominais é a vossa própria vida, poliedro de inumeráveis
faces transparentes, estas, as faces, são o que instantes nos parecem, um destes
comtemplai, uma destas faces, e vereis ser impossível ignorar as outras. Sob dúplice
óptica vejo o mundo e falo com a boca dupla.

A 1
ROOS E AS CIDADES

Através da noite, Annelise Roos e eu, silenciosos, nas ruas de Amsterdam.


Todas as casas com as janelas fechadas. Bicicletas nos passeios, ainda úmidas da
rápida chuva de maio. Ouvimos os nossos passos vagarosos e contemplamos o reflexo
das lâmpadas no calçamento. O braço de Roos pesa docemente e com indefinível
esquivança sobre o meu. Sou um recinto no qual penetrou e de onde logo irá embora
um pássaro fugido. Sob as pedras molhadas – ou em algum quarteirão remoto – vozes
de homens cantando, risos, rufar de tambores, tropel.

S 5
A ESPIRAL E O QUADRADO

À altura do ano 200 a.C. reside em Pompéia, então no auge do esplendor, o


comerciante Publius Ubonius. Extremamente curioso, tente a especular sobre o
incompreensível, viaja sempre que pode (vende, inclusive, produtos hindus) e
hospeda mercadores em sua própria csa, como o único propósito de ouvi-los. Recebe,
através do tempo e das distâncias, diluídos, adulterados, talvez ungidos de magia,
resíduos da matemática egípcia, da astronomia babilônica e dos ensinamentos
pitagóricos.
Um servo, Loreius, sempre perseguido por sonhos enigmáticos, alguns
verdadeiros, outros talvez invetados para atrair a curiosidade fácil do amo, afigura-se,
a Publius Ubonius, o interlocutor ideal. Não rato, o comerciante esquece a esposa, os
filhos e os negócios, para entreter discusses com Loreius.
Acaba, em consequência de tantas e cada vez mais exaltadas conversas, por prometer
ao servo liberdade, se este descobrir uma frase significativa e que possa,
indiferentemente, ser lida da esquerda para a fireita – e ao revés. Não só isto:
sotopondo as palavras de que se componha, possa ser lida também na vertical, inicie-
se a leitura do ângulo esquerdo superior ou do inferior direito. Em qualquer sentido,
afinal, que se empreender a leitura da frase, deverá esta permanecer identical a si
mesma. Quer Publius Ubonius, incapaz, não obstante suas perquirições, de
concentrar-se no problema, representar a mobilidade do mundo e a imutabilidade do
divino. A imutabilidade do dibino encontraria sua correspondência na imutabilidade
da frase, com o seu princípio refletido no seu fim; enquanto a mobilidade do mundo
teria sua replica nas variadas direções seguidas para a leitura da mesma expressão e
também na possibilidade de criar, com as letras constants dessa frase imaginada, que
Ubonius não conhece mas deve existir, outras palavras.
Os sonhos de Loreius multiplicavam-se; suas vigílias são desesperadas. Antes
de tudo, decide a extensão da sentença, que deverá ter cinco palavras. Ultrapassar este
limite, parece-lhe uma ostentação; uma fraquesa contentar-se com menos. Além do
mais, o número abriga significados cabalísticos, para ele importantes, havendo, dentre
outras, a ilação entre o cinco e o pentágono estrelado, emblema universal da vida.
Sendo a frase composta de cinco termos, cada um destes, forçosamente, teria cinco
letras, de modo a possibilitarem, agrupados uns sobre os outros (se lidos no sentido
horizontal) ou lado a lado (se no vertical), as permutes exigidas pela obstinação de
Ubonius. Prepararam os dois homens, como se verá, e sem o saberem, o plano desde
romance onde ressurgem e do qual são colaboradores. Contempla-os, com gratidão, o
narrador, por sobre os dois mil anos que a eles o unem.

A 2
ROOS E AS CIDADES

Com que mal fundadas esperanças encaro esta viagem que eu e Roos,
Anneliese Roos, devemos fazer juntos! Os outros passageiros, na cabina, lêem jornais,
Ngô Dinh Diem na Casa Branca, jardim zoológico holandês vai adquirir mil
crocodilos, foto de Churchill, olho os montes de feno espalhados na planura verde,
iluminada pelo sol ainda tíbio de maio. Sob o signo de Roos, cujo símbolo parece ser
o círculo, a volta, o progresso ilusório, posso, ao invés de seguir rumo a Lausanne,
estar retornando à fria plataforma descoberta de gare de Lyon. Se Roos e tu, Abel, de
mãos dadas, girásseis entre as gavelas de feno! Teu coração talvez se aquietasse e
talvez entrevisses o que procuras em vão.
Engulo com uma bebida podre a sua ausência, a certeza de que vai no mesmo
trem, fazendo, afastada de mim, não sei em que vagão, esta viagem sem significado
aparente. Levantar-me-ei, irei ao seu encontro afinal. Dirá, com o ar de censura e sem
rigor: “Você prometeu não procurar-me”. Perguntarei: “Que aconteceu? Porque eu
não devia vir?”.
O 3
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Meu marido, inclinando-se, olha-me no fundo das pupilas, com atenção, volta
brutalmente meu rosto para a lâmpada. Exclama, trêmulo: “Você tem quatro olhos,
uns por dentro dos outros. Que olhos são esses? Como não os vi nunca?”. Cerro as
minhas pálpebras, as pálpebras infantis: contemplo-o apenas com os olhos adultos.
Apaga a lâmpada que pende do estuque áspero e deita-se. O mar percute nos lajedos.
Não lhe falarei – agora, nunca – dos meus dois nascimentos, dos meus dois corpos. À
luz da lamparina continuam visíveis – e distantes – as paredes, os três espelhos ovais
do psichê, a grinalda no cabide alto.
Vem, Abel. Penetra-me e acrescenta-me. Obsedam-me as esponjas, seres de
vida estreita, sempre a trocarem de sexo, ora expelindo óvulos, ora fecundando-os,
obsedam-me as esponjas, há quinhetos milhões de anos já existiam, hesitavam entre
um sexo e outro, é tudo o que faziam e fazem, assim continuam, essa conformação
imota me apavora.
Não viverei sequer mil anos, minha vida é rápida, risco no tempo, tal como um
peixe salta um dia acima da vastidão do mar e vê o sol e um arquipélago onde se
movem cabras entre as rochas, assim eu salto da eternidade, como todos, eis me no ar,
vejo o mundo dos homens, logo voltarei aos abismos marinhos. Este breve salto, esta
aspiração ao ato de voar é tudo que me foi concedido para ir da grafita ao grafito para
consumar o que os espongiários, em meio bilhão de anos, nem se quer esboçam
limitando-se a passar, continuamente, de um sexo a outro, de um sexo a outro. Vens?

R 6
ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES

Ubatuba, nesta quinta-feira de novembro lembra uma cidade morta ou da qual


fugiram os habitants. O rosto de ʘ, de perfil, adquire, à claridade fria da tarde, contra
os vidros molhados do carro, uma transparência que o faz intocável e distante. Ergue-
se nas mudanças de marcha do vestido: seus joelhos luminosos. Algumas casas
antigas e de aparência nobre, também estas malcuidadas, assinalam um período
ascendente e encerrado. Castelo Branco adia sine die a execução de novas cassações
de mandatos. Um ciclista, conduzindo varas de pescar, passa sob a chuva fina.
- Traí e ofendi. Se você conheceu o desespero, talvez concorde comigo, Abel:
o desespero, em suas formas agudas, não é abstrato.
A partir de Rio Grande, ao longo de uma reta que, erguendo-se do paralelo 32,
entre a lagoa Mirim e a lagoa dos Patos, alcança a cidade de Bagé, todos – vindos,
alguns, de países distantes – aguardamos o eclipse anunciado para esta manhã de
novembro, sem nuvens e sem vento. A nossa existência mesma nem sempre é
compreensível; isto por não ser, forçosamente, um evento completo. As narrativas
simulam a conjunção de fragmentos dispersos e com isto nos rejubilamos. Os eclipses
evocam-nas. A negra Natividade, estendida no leito de asilo, julga ser quase noite,
incapaz de ver, através da janela, a luz da tarde e ela pópria entre velhos, no jardim,
apoiada a um bastão. O carro mortuário, com o seu corpo, cruza as ruas de São Paulo
(escavadoras mecânica, serras, bate-estacas), lento. O quarto cheira a cânfora, a
toucinho, a palha de milho, a fogo de lenha, a tábua de lavar, a chão encerrado, a água
sanitaria, a goma, a orégão, a vinagre. Ela aproxima dos olhos as mãos meio
entrevadas.
- De súbito, a gente sente na carne de um corpo estranho e deseja arrancá-lo.
Nada abstrato, o desespero. Uma raiz, Um sexo aquecido, incrustados num ponto
qualquer do tronco. Um gato podre.
ʘ no centro do tráfego da rua São Luís, voltada para mim, o vestido e a pele
atravessados pelos incontáveis farois. Hesita? Todas as luzes da noite, globos da
iluminação pública, esmalte e cromado dos carros, faíscas brancas arrancadas pelo
trolley dos ônibus na rede elétrica, letreiros, sinais de tráfego, mármores polidos e
vidraças do Edifício Zarvos, letras efêmeras do jornal luminoso, LE MONTE
CONSIDERA EQUÍVOCA VITÓRIA DO GOVERNO DO BRASIL, faroletes
rubros e luzes dianteiras dos veículos em marcha, tudo liga-se e explode, fogo de
artifício, círculo girando e ela o centro do círculo, do fogo.
- Traí e ofendi. (Estas palavras, na sua voz temperada como um instraumento
ao mesmo tempo arcaico e sutil, rico em variações e às vezes rompendo em ruídos
rascantes, cada sílaba, irisada, o dorso de um escaravelho, soam desfiguradas.
Lâminas cortantes, de aço? Não, o molde das lâminas.)
Ressoa o mar nos vãos silenciosos da noite. Ela e eu, nus, de mãos dadas, no
leito. Rangem a cama e as tábuas do quarto com o pulsar violento do meu sangue e do
seu. Fere-me a língua uma agulha, fina. Cuspo a agulha no chão.
- Não há saída, Abel? Nenhuma?
- Para dizer a verdade, não vejo qual. Uma saída? A opressão infiltra_se nos
ossos e invade tudo.

O 4

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

No breve salto, neste espaço de relâmpago em que o peixe voa e vê as cabras


mordendo as pedras das ilhas, neste salto breve nos confunde a luz das interrogações,
que não são poucas. Emergimos do mar para indagar, Abel.
Quem fez meu corpo? Observo meus pais, demoradamente, comparo-os entre si,
comparo-os comigo e vejo: não foram eles. Tão de longe vem meu corpo que eles
esqueceram o que significa. Transmitem-no como um texto de dez mil anos, reescrito
inumeráveis vezes, reescrito, apagado, perdido, evocado, novamente escrito e
reescrito, uma oração clara, antes familiar, tornada enigmática à medida que transita,
em silêncio, de um ventre para outro, enquanto a língua original se desvanece. E de
falar, quem foi meu mestre? Ouço meus pais falarem, falam entre si com surda,
amável, clara violência e sei que não eles me easinaram a falar. Aos nove anos de
idade, ainda não falo. Não sinto a voz em mim. Pareço um cão humano ou uma
possessa infantil, uma criança carregando em si o demônio da compreensão e da
mudez. Tudo ouço — ventar, baterem as portas, risos, jato das torneiras, ordens,
pulsar o coração, veículos na rua, pássaros cantando —, tudo ouço, mas não me aven-
turo a repetir esses sons e tudo para mim é indecifrado. As palavras sobressaem-se do
meio dos ruídos, mas tão-só como fios de outra substância em um novelo
inextricável. Distingo-as, nem sempre com muita nitidez. Há um casal de crianças
maiores do que eu e semelhantes a mim. Ferem-me com alfinetes, jogam sal nos
meus olhos, molham minha roupa de dormir, batem-me na cabeça. Sei que haverá um
código, um sinal para chamar-me. Procuro descobri- lo no confuso ir-e-vir das coisas
que me cercam. Será um som, será um odor, será uma cor, uma claridade? Por vezes,
percutem um martelo, ou me deparo com a fachada de um prédio, ou vejo desenhos
num muro, ou cravo as unhas na pele. Fico perguntando se alguma dessas coisas é
meu nome: o soar do martelo, a parede brilhando, os riscos no cimento, a dor que
sinto. Assim vivo, nesta comunhão que me multiplica e atormenta, assim vivo, até
precipitar-me para baixo no meu velocípede, eu e o mundo, eu e as três rodas que
giram em derredor de mim, e tudo escurece e nessa escuridão eu sou novamente
formulada, eu, novamente sou parida, sim, nasço outra vez.

A 3

ROOS E AS CIDADES

Deixo Roos na esquina tentando apanhar um táxi e corro para o hotel; subo
voando a escada; apanho minha bagagem. Quando volto, ela está dentro do carro
frente ao largo toldo vermelho do Dupontpamasse e acena-me.
— Estação do Norte. Depressa.
Homens e mulheres sob as luzes dos restaurantes e bares (La Consigne,
Bretagne, Paris-Rennes), lugares onde me vejo em outras noites ante copos de vinho
ou cafés sorvidos devagar. Roos enxuga- me a testa com um lenço de gaze, bordado,
o odor de violetas que a envolve no começo da tarde revive dentro do táxi, dissipa-o o
vento noturno. Enfim um encontro feliz, horas tão alegres e harmoniosas que por
pouco não esqueço a viagem programada. Se, quando chegarmos à estação, o trem
houver partido? Londres é apenas uma cidade e em Anneliese Roos subsistem tantas!
A seqüência sonhada e inviável: Roos subindo comigo, de volta, as escadas do Hotel
Ste. Marie, sob o olhar resignado do porteiro, ajudando-me a repor nos lugares roupa
e livros, transformando com a sua presença o pequeno quarto onde o sol da manhã
atravessa a cortina refletindo-se nos vidros fronteiros.
A mão tépida — condescendência nova — não foge ao meu contato. Os dedos
quase sempre esquivos pressionam agora os meus e eu descubro, na sua voz,
entonações ainda não percebidas, algo de frágil, uma espécie de desordem.
Abro a porta do táxi frente à ampla marquise da estação do Norte. Nós em meio à
multidão, rápidos, sempre de mãos dadas.
Esvoaça em tomo dos seus ombros o lenço oferecido por mim: um grifo cercado de
borboletas.

S 6

A ESPIRAL E O QUADRADO

Não ignora Loreius que a palavra central da frase a ser descoberta — e que
servirá de suporte às outras quatro — deverá também, para desempenhar sua função,
ser lida indiferentemente em ambos os sentidos. Repassa, assim, nos banhos, nos
sonhos, só, em companhia, durante as representações teatrais ou ao longo de seus
habituais passeios às vertentes suaves do vulcão, todos os termos palíndromos de que
pode lembrar-se, acabando por, dentre todos, optar pelo que mais fascinante lhe
parece. Escolhe a palavra TENET, não apenas por ser um verbo indicativo de posse, de
domínio, fator de alta importância para ele, um escravo, como por subentender (tenet:
"conduz", "sustém"; mas quem conduz, quem sustém?) a existência de um terceiro,
um agente, alguém que age, desconhecendo-se porém a sua identidade e o que faz ao
certo. Também pesa em sua escolha a circunstância de que, escrevendo a palavra
duas vezes, em cruz, de maneira que o N sirva de ponto de intersecção, e eliminando
em seguida a sílaba pousada — ou plantada, ou cravada — sobre a palavra
horizontalmente escrita, evoque, a disposição das letras restantes, ampliado, o
desenho do T, início e fim do vocábulo.
Esta curiosidade não teria, para Loreius, maior importância se a cruz, a cruz em
T, não fosse o instrumento com que se supliciam os escravos fugitivos. No dialeto
dos seus pais, originários de Lâmpsaco, na Frigia, net, partícula que resta da palavra
tenet uma vez eliminada a sílaba inicial, significa "não mais", com o que entrevê o
imaginoso servo de Ubonius, nesse jogo com o TENET, uma espécie de logogrifo,
acessível apenas à sua compreensão de escravo. Assim se traduz o seu entendimento
da charada: "Loreius, caso descubra o que ambiciona o senhor, conduzirá livremente
a sua existência e não mais será crucificado se tentar fugir".
Estabelecida a preliminar do problema, resta ainda encontra quatro palavras, de
cinco letras cada e cuja letra central será inevitavelmente um E ou um T. Esta
limitação, por mais cerceadora que pareça, facilita a tarefa proposta. Loreius tem um
caminho. Com esta cruz central, formada pelo verbo TENET e que tão claramente
lembra os pontos cardeais, já não está perdido nos oceanos turvos, sem margens, das
palavras.
Chega assim, de experimento em experimento, à sua frase em ângulo, vista entre
espelhos invisíveis que ao mesmo tempo a cortam e a completam — e que, gravada
em pedra, reproduzida em pergaminhos, se difundirá pelo mundo, intrigando os que
com ela se defrontam e que inutilmente pensam em desmontá-la, alterá-la, subtrair-
lhe uma só letra, pois a frase nos fita como um olho, inviolável, circular na sua
quadradura, tão perfeita que tocá-la é ferir uma pupila a golpes de estilete.
SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. O sentido exato da expressão, tão concisa,
perder-se-á com o tempo, tornando-a ambígua. Aos contemporâneos de Loreius,
porém, a sentença é de uma grande clareza e o seu único mistério consiste numa
duplicidade de sentido. Diz-se: O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos.
E também se entende: O Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita. Esta
última significação, portanto, atende também aos anseios místicos de Ubonius. Sobre
um campo instável, o mundo, reina uma vontade imutável.
A 4

ROOS E AS CIDADES

O ritmo da vida e dos sinos de Eltville (aí nasce Anneliese Roos e aí vivem os
seus) repercute em tudo que faz: no andar, nos gestos, no falar. A língua de Racine,
que utiliza de um modo literário, digno e até elaborado, com uma pronúncia na qual a
exatidão constituiria a única falha, adquire, interposta entre idiomas diferentes — os
idiomas que cada um de nós traz do país de origem e que o outro não fala —, um
sentido mágico e benévolo: nós, sem ela, dois mudos. As vias que nos abre, contudo,
são limitadoras e mais para mim do que para Roos: raras vezes, e talvez nunca,
expresso com exatidão o que me esforço por dizer-lhe.
Assim, não obstante o meu fervor, nossas conversações, flutuando numa órbita
até certo ponto neutra, alheia igualmente à atmosfera da pequena cidade alemã onde
nasce Anneliese Roos e à parte do Nordeste que – sempre sem êxito – tento
descrever-lhe, ilustram, para meu desespero, as limitações da linguagem e mais ainda
as do escritor, egresso, com freqüência, de territórios pouco familiares.
Quanto, afastado, segundo a visão ordinária do tempo, desta aventura dúbia,
empreender falar de Roos, estarei repetindo, em certa medida, os nossos diálogos
insuficientes. Darei sem esforço os traços próprio de Roos que surgem em outras
mulheres: o sorriso fácil e a tendência a assumir sem transição uma atitude pensativa.
(Aflige-a alguma lembrança pesada e indesejável.) Poderei, entretanto, descrever as
cidades que flutuam no seu corpo como refletidas em mil pequenos olhos
transparentes? Como dizer que penetro nesses olhos – olhos ou dimensões – e
constato que as cidades, aí, são ao mesmo tempo reflexos de cidades reais e também
cidades reais? Inumeráveis, integras, eis as cidades de Roos, erigidas nos ombros, nos
joelhos, no rosto. Conheço, invasor, as suas ruas seus edifícios desertos, seus veículos
vazios, suas árvores, pássaros, insetos, flores e animais (nenhum ser humano), e os
rios sob pontes frágeis ou magnificentes. Haia, Roma, Estraburgo, Reims, Granada,
Hamburgo. Sim falar de tudo isso será refazer em outra direção com idêntico
malogro, os meus limitados diálogos com Roos.

O 5

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Cessa de beijar-me os peitos, desliza do sofá, ajoelha-se e, com mãos de


consertar relógio, de colher violetas, de pensar ferimento, de enfiar avelórios em
barbante, descalça-me os sapatos e contempla, através da meias transparentes, o
dorso dos meus pés, os dedos miúdos, as unhas polidas e que talvez recendam ainda
a esmalte. Será verdade o que diz? Que jamais viu pés tão delicados e calcanhares
mais tenros? Isto me diz e outras coisa amáveis no seu jeito nordestino de falar, as
inflexões de Inácio Gabriel, as mesmas conquanto menos acentuadas, menos
acentuadas, e além disto a sua voz comovida parece ocultar certo grau de zombaria.
(Como Inácio Gabriel, que te anuncia, sabes, saberemos, Abel, que as doações têm
exigência e que não é bastante abrir as mãos, os braços, as pernas, os olhos, boca,
ouvidos, não basta existir para bem receber, sabemos que receber é acolher, guarda,
multiplicar e também devolver, sim, sabemos.)
Chegam ruídos da rua e o relógio avança. Diversamente os ouço, dos meus
trinta e dois e dos meus vinte e três anos. Dúplice, em meus pés, o hálito da sua boca:
eu, uma mulher e duas, dois corpos unos que só eu conheço verdadeiramente e que
de dois pontos distintos, de duas idades, agem, contemplam e fruem. Cada vez, Abel,
que me beijas os joelhos, duas vezes o fazes. Serás capaz de ver as letras, as palavras
que, em certas horas, vejo ainda rastejarem sob a minha pele e que, decerto, nunca
silenciam? Ouço-as, dentro do meu corpo, ouço-as, vozerio distante, multidão
agrupada numa praça, não como se eu na praça estivesse, e sim como se fosse a
praça, o murmúrio das palavras ecoa em minhas coxas, nos meus peitos, no ventre,
flui e reflui, continuado, não sei se alegre, não sei se feroz, flui, como se os limites do
meu corpo fossem os limites da praça, e meus ombros e axilas fossem abóbadas onde
chegassem os últimos ecos das vozes, e os meus braços — que estendo — fossem
extensões da praça, avenidas também cheias de vozes.

Volta a sentar-se e recomeça a desabotoar-me a blusa, sempre com mãos sutis.


Talvez não fique bem em mim a musselina, talvez o meu corpo exigisse tecidos mais
espessos. Basta, no entanto, que a temperatura suba mais um pouco para que eu tire
do armário os vestidos leves. Apraz-me este esvoaçar de saias amplas, de golas
pregueadas, de mangas pendentes. Suspende o peso do meu peito, busca o mamilo
com as extremidades dos dedos, eu encolho as pernas. Minha mão direita, movendo-
se autônoma e por si, aperta seu joelho e sobe pela coxa. Desde quando caminhamos
para este momento? Ninguém sabe em que ponto do mundo os ventos são gerados,
quem os dá à luz ou à escuridão, quem é a mãe dos ventos e por quem foi criada. Os
começos jazem na sombra.

R 7

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Natividade examina as màos meio entrevadas. Duas velhas, uma de pé e outra


sentada à cabeceira da cama, a mão no ombro de Natividade, acompanham com
terror e coragem a sua plácida agonia, desatentas aos dois soldados de polícia, ao
marinheiro, ao arrombador e à criada que de boca fechada assistem à morte da mãe.
Nas têmporas de ʘ , no espessor dos seus ossos, de súbito, um nome resplandece,
intraduzível. Ouço, junto às embarcações em repouso, as vagas e a chuva leve no
metal do carro, nos vidros. Seu rosto acende-se contra o horizonte vago e os cascos
das barcaças: livro transparente, iluminado, numa língua além do meu alcance. O
som agudo e monótono de um sino chega da cidade, polido pela neblina.

Vi? Vejo: o tempo e o tempo, as duas faces. Tempos. Vejo e afli jo-me. não tenho meios
para expressar. Entretanto, mesmo sabendo ser inútil, devo tentar— um sinal —, pois ver e
nào dizer é como se não visse. Um sinal.
A afluência à praia do Cassino, onde se erguem as rampas para 7
o lançamento dos foguetes Nike-Tomahawk, Nike-Apache, Nike- Hadac e Nike-
Javelin, esvazia as ruas e as praças de Rio Grande. O rosto de ʘ, alegre e talvez um
pouco insubmisso, passa pelas sombras das árvores.

— Abel! Este é o manuscrito do livro que você quer publicar? A viagem e o rio,
ensaio.

Atraídos pelo eclipse, vindos eu do Nordeste e ela do Centro- Oeste, confluem as


nossas trajetórias na Terra de um modo não de todo estranho ao fenômeno celeste.
Que idade terá? Questão enleante. Seu rosto, animado por uma fugidia luz interior e
uma espécie de sede (observa com exaltação as réstias, as paredes, os sons, o interior
das casas), oculta outro ser, velado e pressentido. Outro ser: obstinado, multiplicador,
jacente, dilacerado, rumoroso, enigmático e que me contempla de outra clave do
tempo, açulando minha inclinação por tudo que gravita, como os textos, entre a
dualidade e o ambíguo. Presidem este encontro o signo da escuridão — símile de
insciência e do caos — e o signo da confluência: germe do cosmos e evocador da
ordenação mental. Terra, espaço, Lua, movimento, Sol e tempo preparam a
conjunção da simetria e das trevas. Marechal Costa e Silva apoia o voto indireto.

— Os iólipos nunca têm irmãos mais novos do que eles. Tornam para sempre
estéril o ventre onde são gerados.

Afago a mão de ʘ. Um enxame (de quê?) brilha agitado no seu torso. Ondula
entre nós um clamor, como se o vento trouxesse, meio apagadas, as vozes de uma
multidão reunida bem longe.

Um sinal. Sim, um sinal, sim. Como o rastejador que diz: "Aqui passou uma rês perdida
". Sabe a cor da rês? Não. Conhece a marca da rês, a ferro e fogo gravada? Não, isto o rastro
não revela. Mas ele sabe, o rastejador: "Aqui, perdida, passou uma rês".
A carne desmemoriada da negra avança sobre as unhas, finas e brilhantes na sua
juventude, apesar das tarefas brutas, retrai-se descobrindo a implantação dos oito
dentes que restam e desponta na esclerótica, incorporando-se às sombras que nos
seus olhos escurecem o mundo. Sobre o guarda-roupa vazio — a sua roupa e o par de
sapatos cabem na gaveta inferior do móvel —, numa caixa de chapéu, estão
guardadas as suas lembranças. Fotografias dos patrões, da criança que ajuda a criar e
vê crescer, folhas secas, conchas, seixos, um prisma, lápis de cor meio usados e sem
ponta, frascos de remédio, barbantes, um anel de latão, cacos de um jarro, estampas
de santos, um dobrão de prata. A escuridão que invade o mundo e o coração de
Natividade tritura essas lembranças. Ela não reconhece a negra alta, de branco, que
se curva na areia ante o mar resplandecente e apanha algumas conchas que esconde
no bolso do vestido, para não esquecer, para jamais esquecer a alegria e a beleza
dessa manhã.
O 6

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Beija-me. Seus olhos nadam e mergulham nos meus. Caçadores de ostras.


Mergulham fundo nos olhos da minha juventude, nos da maturidade, passam de uns a
outros — e com duas bocas beijo-o, com duas línguas sugo a sua língua, duas vezes
desejo-o, eu e eu.

Pus de lado o velocípede, que enfeitei com fitas coloridas: pendem do guidom
e enlaçam os raios das três rodas. Estou no terraço do edifício, estendida junto à
caixa-d'água. Ninguém me vê abrir a porta do apartamento, tomar o elevador, descer
no último andar, puxar escada acima o velocípede, deitar-me no cimento áspero, ao
sol. Cobre-me um céu de luminosas nuvens brancas. Uma ave, bem no alto, faz
evoluções. Voa tão longe que por vezes torna-se invisível, perdida entre as nuvens e
o azul fulgurante. Com os lábios, de leve, Abel aflora meu rosto, a penugem do meu
rosto, contorna a linha das fontes, desliza pela face, busca-me a curva do queixo, sua
respiração dobra-me os ossos, movo rápida a cabeça, mordo a sua boca. A ave
solitária cresce e cada vez perco-a menos de vista. Custo a perceber que as suas
evoluções são rigorosas. Voa com disciplina, traça uma espiral descendente, que se
reduz em direção a um vértice. Esse vértice funde-se com o ponto em que estou
deitada, vejo isto com clareza, como se a noção de cone me fosse familiar, funde- se
comigo o vértice do cone, o fundo da espiral e pela primeira vez sinto a distância
entre mim e as coisas. Ao mesmo tempo, contenho um sobressalto: aquele vôo talvez
seja o meu nome. A ave ainda está longe, posso ver que é negra, a cabeça vermelha,
mas não ouço baterem as suas asas e ainda está longe quando sinto no centro do meu
corpo, o ponto. Na cicatriz do ventre. Não é uma dor. É um ponto, sim, um ponto, o
início de um ruído, como se ali um pequeno cálice vibrasse. Fecho os olhos, cruzo as
mãos sobre o peito, ouço o rumor das asas, asas imensas, sinto deslocar-se o vento
em torno do meu corpo, voarem minha saia curta e meus cabelos, sucede-se um
silencio, eu abro os olhos, nenhuma ave me contempla ou voa, nenhum vestígio de
vento, nenhum vestígio. Duas pequenas borboletas negras, pousadas no guidom do
velocípede, abrem e fecham as asas. Começo a rir e as borboletas voam. Rolo no
cimento, rindo, duas garras me prendem pelos ombros, erguem-me, grito de terror e
logo de alegria. Minha mãe, chorando, leva-me de volta.

Solta Abel as presilhas da meia e desnuda-me, paciente, a perna direita. Apóio


em seu joelho o pé esquerdo, tiro devagar a outra meia, jogo-a rindo no seu rosto.
Bate o relógio algumas pancadas, trecho incompleto da frase musical que — dizem
— só de tempos cm tempos pode ser ouvida. Ponho um disco na vitrola: Catulli
Carmina. A penumbra da sala parece iluminar-se com a entrada imediata do coro.
Eis aiona! Eis aiona! tui sum. Nos pés descalços sinto os fios dos tapetes, os fios,
poderia dizer que sinto os seus desenhos, cores, flores, motivos geométricos. Eis
aiona! (Sempre, eternamente, sempre, a ti pertenço) Tui sum. Caminho para ele. Sem
dar tempo a que me aproxime, levanta-se, avança para mim, abraça-me. Seus joelhos
dobram-se, abraçado a mim ele tomba devagar, abraçado a mim, ajoelha-se, beija-me
o vestido à altura do sexo, também as minhas pernas cedem, pesadas, ficamos de
joelhos um em frente do outro, presos pelas mãos, outra vez nos abraçamos, outra
vez, tombamos no tapete.

A 5

ROOS E AS CIDADES

Somos, eu e Roos, residentes temporários da Aliança Francesa. Vejo-a com


freqüência, no restaurante onde uma divisão de vidro separa a multidão de clientes
ocasionais dos que — como nós — habitam o casarão do boulevard Raspail. Na ala
destinada aos hóspedes, sempre mais tranqüila, compartilhamos algumas vezes a
mesa e esboçamos, não sem cerimônia, conversas descontínuas. Põe ao seu lado a
chave do quarto, uma pequena bolsa e, ocasionalmente, a gramática francesa de
Mauger. Com os olhos povoados pelos bandos de africanas, brancas e asiáticas que
duas vezes por dia enchem o refeitório, algum tempo decorre até que todos esses
rostos se diluam, sobrenadando apenas três ou quatro, entre eles o de Roos. As
qualidades mais valiosas de um livro são como que secretas e se revelam aos poucos,
sempre com parcimônia. Apreendo lentamente (texto concebido e realizado com
rigor?) a beleza de Anneliese Roos, o elaborado encanto do seu rosto, e, mais ainda,
seus dons secretos, acessíveis tão-só ao meu olhar vigilante e corrosivo.

Acertos e enganos (assim como surpresas e acontecimentos esperados) tecem a


nossa vida — e elaboram as narrativas. Ignoro ainda que Anneliese Roos também
segue, em outro ônibus, nesta excursão de Páscoa ao vale da Loire. Deixo-me ir, sem
amigos, só como um cachorro, atravessando, na região adornada de residências
principescas — idênticas às que ilustram livros lidos na infância, deitado em algum
quarto do chalé — e conservadas como exemplares raros da arquitetura civil no
período entre a Idade Média e os grandes descobrimentos marítimos, paisagens
campestres ou pequenas cidades que nem de nome conheço (Étampes, Cheuilly) e
que me fazem indagar, esquadrinhando os seus perfis e traçado: "Será aqui?".

Vejo Anneliese Roos quando nos detemos ante a profusão de torres, chaminés e
lucarnas de Chambord e os passageiros dos dois ônibus, conduzidos por um único
guia, se misturam. Acenamos de longe um para o outro ante a grande escadaria e
logo nos perdemos de vista misturados com os outros visitantes. Prosseguimos
viagem, favorecidos pelo límpido domingo de abril. No Recife, o dia está nascendo e
o céu vermelho se reflete na areia das praias. Uma dúvida começa a perturbar-me:
passei, realmente, por uma aldeia de casas pequenas e velhíssimas, tetos pontudos,
com tamancos vermelhos e amarelos sobre paredes escuras — ou apenas a imaginei,
adivinhei-a, entrevi-a num rosto? Passam crianças, em trajes de primeira comunhão.
Um casal almoça no meio de um trigal ainda verde, a mulher sentada e o homem
reclinado. Aparece em meio à plantação, de braços dados, um casal de noivos, os
acompanhantes dançam, alguém toca uma rabeca cujo som não chega ao ônibus. O
casal que almoça acena para os noivos.

S 7

A ESPIRAL E O QUADRADO

Durante os meses em que Loreius, imerso em especulações, busca resolver o


problema imaginado por Publius Ubonius, as conversas entre ambos giram
interminavelmente em torno do assunto. O escravo, porém, à medida que julga
aproximar-se de uma solução, torna-se evasivo. Ubonius interpreta o seu ar reticente
como incompetência e passa a restringir as atenções com que o distingue. Chega
mesmo a negligenciá-lo.

Na manhà em que Loreius, ao despertar, vê-se aliviado do problema, resolvido


enquanto dormia (do mesmo modo que um furúnculo, tratado com emplastros nas
horas em que estamos despertos, estoura durante a noite), seu primeiro impulso é
correr para Publius Ubonius, transmitir-lhe a solução e assim liberar-se. A caminho,
decide não ir. Agora, que vir a ser livre depende de um simples gesto, de algumas
palavras, um prazer talvez superior à libertação é adiá-la. Mais: no seu íntimo, já não
se considera nem se sente escravo.

Ubonius, agastado com a sua altivez, passa a adverti-lo. No começo, Loreius se


diverte com essas reprimendas que passam através dele. Um dia, excedendo-se o
senhor, rebela-se e exige:

— Trate-me como a um homem livre. Na verdade, eu já não sou seu escravo.


Descobri as palavras.
— Então diga-as.
— Não. Só as revelarei quando bem me aprouver.
O senhor (será ainda o senhor?) dá-lhe as costas e põe-se a refletir. É verdade o
que diz o (talvez não mais) escravo? Se for, e se o maltratar, o enigmático frígio será
bem capaz de, por vingança, preferir manter-se na servidão a revelar o segredo.
Também pode ser que ele nada tenha descoberto e a afirmativa não passe de um ardil.
Sua propensão a refletir indefinidamente acerca de um assunto, não importando qual,
leva-o a emaranhar-se em prognósticos, hipóteses, cálculos, suspeitas, precauções,
conjeturas, subconjeturas e irradiações de todos esses atos intelectuais, multiplicando-
os de tal modo e com tanta constância, que vem a torna-se, em espírito, escravo do
seu escravo. É como se jogasse com ele uma partida cega de xadrez e aspirasse a
esgotar, mentalmente, todos os possíveis lances do adversário, bem como as
conseqüências destes.

Ignora um pormenor que torna vãs sua cogitações: o comportamento de Loreius


não dependerá de qualquer injunção exterior: está decidido a só na hora da morte
revelar a sua descoberta, determinando que as cinco palavras assinalem a sua
sepultura. Em conseqüência dos intérminos jogos mentais de Publius, que hoje o avil-
ta para favorecê-lo amanhã, oscila entre a fartura e o despojamento.
A vaidade perde-o. São freqüentes, em Pompéia, as tavernas. Num balcão de
mármore serve-se vinho aos passantes. Por trás desta sala, existem outras, destinadas
aos jogadores, com inscrições nas paredes e pinturas que são réplicas das cenas
ambientes: jogadores em torno de uma mesa, quietos ou em luta; salsichas, queijos e
atados de cebola pendem sobre eles. No andar superior, nem sempre com entrada
ostensiva, alcovas para os encontros íntimos. Numa destas casas, buscando
engrandecer-se aos olhos de uma cortesã de quem a tradição conservará o nome,
Tyche, Loreius revela o estranho embuste e a frase mágica. Tyche percebe a van-
tagem que pode colher do segredo e transmite-o ao homem a quem ama, um
vinhateiro. O vinhateiro, habilmente, vende a Publius as cinco palavras do escravo.
Loreius, ao ver-se defraudado, e reconhecendo haver perdido a única oportunidade de
ser livre, grita pelas ruas de Pompéia, afirmando havê-la descoberto, aquela frase que
as crianças logo riscam nas paredes e os bebedores, com vinho, nos balcões das
tavernas, dirige-se ao quarto de Tyche sem que o vinhateiro tenha forças para o
impedir, brada ainda uma vez as palavras da sua perdição e, desembainhando um
punhal, mata-se diante da mulher.

A 6

ROOS E AS CIDADES

Estamos em Amboise e os participantes da excursão se dispersam. Se, em vez de


pôr-me a vaguear nas imediações do castelo, estimulado pelo frio deste meio-dia
luminoso, eu me dirigir ao restaurante, nunca verei realmente Anneliese Roos.
Voltando-me, como faço, para a esquerda, e não para a direita, enveredo por uma das
encruzilhadas possíveis do meu destino e enredo-me, de maneira inapelável, nas
tramas da sua beleza — ou da sua magia. Escolheria, acaso, rumo diferente, ainda que
o encontro com Roos me levasse à morte?
Nas espáduas um casaco azul-marinho que realça a alvura do seu colo e o
amarelo-canário do suéter. A saia cinza atenua esse contraste de cores. Favorecida
ainda pelos ondulantes verdes das elevações e o azul-desmaiado do céu na linha do
horizonte, sustém Roos um ramalhete à altura do queixo, como se aspirasse o seu per-
fume, conquanto só a rosa, fresca e vermelha, tenha algum para mim: serão também
olorosos as papoulas e os gerânios? As flores refratam suas púrpuras no rosto de
Roos, que me parece invulgarmente vívido em sua meditação.
Receio perturbar, aproximando-me, a feliz conjunção de cores, linhas e volumes.
Sobressai, no centro da paisagem ensolarada, a figura solitária de Anneliese Roos,
como, nos museus, certas obras de preço, colocadas longe das demais, de modo a
serem contempladas em sua integridade, sem dividir com outra, com nenhuma, o
espanto do observador. Sei, no entanto, que ela em breve será abordada, sairá do
lugar ou moverá o braço.
Baixando a mão, olha-me, desvia o olhar e distancia-se alguns passos. Sigo-a e
com sintaxe escolar digo não saber qual merece contemplação mais prolongada ou
atenta: se ela ou a rosa que tem entre as mãos. O vocabulário precioso torna a frase
impessoal. Apenas deixando entrever que me ouve, e imitando, no seu andar va-
garoso, a cadência dos versos, Anneliese Roos começa a declamar num tom de
salmodia:
La Rose est le charme des yeux.
C'est la Reine des fleurs dans les printemps écloses.
Vejo, num relance, sem neles prender a atenção, tetos cinza- rubros e noto que
um sino começa a bater. Pensar que tantas vezes, à mesa do refeitório, falamos da
questão de Suez e de como chove em Paris, quando ela é capaz de repetir sem erro
versos de Anacreonte! Movido pelo interesse que de mim se apodera, evoco, eu
também, outro fragmento do poeta, proclamando talvez a súmula deste curto instante,
quando Anneliese Roos, distante, não reencontrável — aprisionada numa juventude
imune aos carunchos do tempo —, emitir, sugerida num texto, o seu halo:
Sa vieillesse même est aimable,
Puis qu'elle y conserve toujours
La même odeur qu aux premiers jours.

Assim, a sombra de um lírico grego, vertido para uma lingua que não é a de
Goethe nem a de Camões por um tradutor do século XVIII, lido por mim numa
edição de mil setecentos e tantas cheirando a fumo e a vestidos velhos, em voz alta,
junto à cisterna do chalé, enquanto soam apagados os risos da Gorda e as vozes dos
meus vários irmãos, fala pelas nossas bocas a dois milênios e meio de distância e
estabelece entre nós um liame provisório, mas não frágil.

O 7

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

EIS AIONA, EISAIONA. Assim como um tecido poroso absorve a umidade, vai o
meu corpo bebendo, permeável, os desenhos do tapete. Projetam-se, em minha carne
e ossos, ângulos brancos, barras, franjas fulvas, ramos, gamos rubros, coelho, flores,
pássaros, folhas de cor imprecisa. Um bosque abstrato, onde as coisas surgem,
crescem, mas não vivem: não bramam os gamos, as flores não recendem.
No fim do século, o naturalista Wilhelm Bolsche publica um livro sobre os
animais. Nele se lê que as estrelas-do-mar podem partir-se em duas; e que, com isto,
todos os seus órgãos se dividem. A terrível ferida não tarda a cicatrizar. Com o
tempo, cada metade do Asteróide cresce e toma outra vez a forma de estrela. Então
perguntam Bolsche e seus contemporâneos até quando a estrela-do-mar pensa como
uma unidade e a partir de que momento adquire a noção, rudimentar, de sua dupla
existência. Pergunta inquietante e ociosa, que a poucos interessa e a que não se pode
responder, ainda que se viva experiência idêntica.
O pequeno cálice, o som em meu umbigo, o som, o cálice vibrante continua a
soar por muitos dias. Quando afinal as vibrações esmaecem, há uma presença em
mim, uma presença. Algo semelhante a um besouro, não, a uma aranha de
movimentos lentos. Logo, não é mais uma aranha e sim um pássaro de asas curtas,
sem bico, os pés cortados, um pássaro cinzento, mais tarde um peixe quadrúpede,
aflito e inquieto, nadando com esforço em meu útero verde. Abro a janela e os olhos
do peixe se iluminam, choro e o peixe entristece, tenho sono?, adormece, corro e suas
pernas se agitam, assusto-me e ele se encolhe, alegro-me e as suas escamas res-
plandecem. Sem que eu saiba, há em mim uma cisão, de mim mesma estou nascendo,
invado-me. Já não é um peixe, mas um cão, um cão ornado de plumas, com grandes
barbatanas, que me ocupa. Tem pés e mãos. Às vezes estende a perna, com o pé fura-
me o ventre, o baço, eu me contorço de dor. Ergue o punho e me fere o coração,
atravessa-o: surgem manchas roxas no meu corpo. Lambe- me a garganta e eu
vomito. Ligo tudo isto, aturdida, à ave que desce sobre meu ventre e, muitas vezes,
muitas, sondo as nuvens. Mas a ave não volta, nunca mais, nunca, não reaparece.
0lhando-se o tapete, não se vê entre as flores e pássaros o crocodilo. Este,
dissimulado na profusão de motivos, mais facilmente pode ser descoberto no reverso,
no lado sempre oculto da trama, onde se cortam os fios e dão-se os nós. Liberto dos
hábeis artifícios que o escondem, fazendo-o a um só tempo presente e invisível, o
crocodilo (absorvido como os motivos evidentes do tapete) passeia no tronco
estendido de Abel. O gamo rubro, de pé entre os nossos corpos abraçados, olha o
mostrador do relógio como se olhasse para o Sol, cauda e patas traseiras no flanco de
Abel, a cabeça e o peito no meu flanco. O crocodilo, escurecendo o torso de Abel,
tem a boca à altura do seu sexo e pressiona-me a coxa. Morde o bico do meu peito o
coelho, morde de leve, como se mordesse um talo tenro de capim.
Sei o que são outros homens, deito-me por cólera com eles, abro as coxas de
raiva, dão-me prazer e nada arrancam de mim, dão-me prazer, o prazer que se tem
quando se mata um cão raivoso a tiros, um gozo mudo e dilacerador, mas a ti eu quero
dar-me, Abel, de um modo novo e único, dar-me com alegria, hei de franquear à tua
intromissão minhas identidades, meus sexos, meus corpos, hei de receber-te nos
âmagos de mim e de dois modos te amar, com duplo desejo, ânsia dupla, duplo
assentimento, e não serás um intruso, um inimigo — e sim o hóspede, o invocado, o
aceito, eu te receberei com todas as portas do meu corpo abertas, eu, Asteróide
cindida e unificada, eu, eu, dual, eu, una. Morde me. Basia me.

R 8

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Detritos, jogados pelas maretas, batem nas paredes do pequeno cais em T, agora
pouco usado pelas canoas de pesca. Nos extremos do espesso paredão correspondente
ao traço sobre o qual incide a perpendicular da letra, duas lâmpadas, pendentes de
postes delgados e recurvos no alto (girassóis sobre hastes murchas), iluminavam à
noite as duas pedras rombas e escuras destinadas a amarrar os barcos. Uma das
lâmpadas (um dos girassóis?), a da direita, foi arrancada pelo vento que às vezes
sopra com força em Ubatuba. Este acidente atenua a simetria perfeita do cais,
brilhante sob a chuva leve. Isola-o um pouco do mundo a névoa pouco espessa que se
estende sobre a cidade, a praia e o mar cinzento.
— O pai de um iólipo, claro, pode ter filhos com outras mulheres. Isto, em geral,
nunca sucede. O iólipo é sempre o filho mais novo ou único. A mãe do iólipo nunca
volta a conceber.
Natividade ergue as mãos e diz às outras duas velhas: "Façam alguma coisa. Não
estão vendo toda essa gente no quarto? Vão buscar água e copos. Eles querem beber.
Muita sede". Quatro homens carregam o seu caixão. Quando o Sol, ao meio-dia,
escurece ʘ, e eu nos abraçamos, invasores de um firmamento ao qual somos
estranhos. Asas gigantescas cruzam a escuridão, sobe ao ar o Nike- Apache, o grande
ser alado faz zumbir os telhados, agita as árvores, levanta o pó da praça e desliza
sobre nós, com o seu canto rouco: pesadas pedras rolando num longo tubo metálico.

— Sabedoria alguma, Abel, afasta a convicção de que o corpo estranho está em


nós para sempre. Toda a nossa vida encontra aí a sua negação. Voltamo-nos contra a
presença intolerável.
— O modo exasperado e ostensivo como a opressão venera a Ordem faz-me
supor que disfarça uma filiação ao Caos.
À direita do T, sentado na pedra sob o poste sem lâmpada, o figurante abrigado
num plástico amarelo inflado pelo vento espera que algum peixe venha morder o
anzol. Outros vultos pescam no cais, todos silenciosos. As narrativas constituem
simulacros de uma ordem que intuímos e da qual somos nostálgicos.
— A ordem, para o opressor, é um reflexo degenerado das leis que regem o Cosmos:
rigidamente concebida, tende à petrificação.

O Sol poente, rubro, reflete-se nas águas da praia Grande — espada vertical de
chamas que, rompida pelas ondas, logo se recompõe. ʘ, com uma touca imitando
margaridas, ri, estendendo para os lados as mãos translúcidas e ágeis, quando o mar
se quebra à altura dos seus peitos: o maio vermelho, sob o sol vermelho, empalidece.
Damo-nos as mãos e, com as águas tornando imponderáveis os nossos corpos,
corremos lado a lado, corremos vagarosos, devagar e sem peso, imitando essas
seqüências de cinema nas quais a câmara lenta, arrancando os personagens ao
compasso normal de suas vidas, assinala instantes singulares. A lâmina de fogo
fragmenta-se na superfície agitada das águas e nascem da espuma flores mais tênues
que as de ʘ. Corremos de mãos dadas, lentamente, num campo de papoulas e de
margaridas efêmeras.

Existe o Pai? Nele e em torno dele: um rumor sem silêncios, cortiço ressoante de
abelhas, a Eternidade ressoando: em torno dele e nele. Abelhas zumbem imóveis soando: em
torno dele e nele. Abelhas zumbidoras, suspensas — não se movem — em toda a extensão do
Tempo e do Mundo. Muito havendo convivido com as águas e à força de ler na superfície, diz
o pescador: "Aqui há peixe". Onde? Quantos? Não sabe e o peixe é veloz: não pára ante o
anzol e as interrogações.
Natividade, viva e morta, vendo apenas o que vemos ou julgamos ver, nós os
cheios de trevas, e rompendo com a sua visão já sensível e ligeira os limites das
limitações, ergue as mãos entrevadas à altura dos olhos e fala: "Já estou morta. Por
que minha carne ainda não secou? Não entendo. Estou cheirando a vivos".
As mãos de ʘ, bem desenhadas e de palmas largas, sublinham o que diz com
gestos rápidos. Ergue-as, por vezes, entre uma frase e outra, afasta os cabelos das
têmporas. Assim como se vê, contra o Sol, a sombra fina dos ossos na asa desplumada
de um pássaro, acredito descobrir, nas suas mãos erguidas e embebidas na
transparência da manhã, outro par de mãos, secreto.

O 8
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Salta o peixe das vastidões do mar, salta o peixe e este salto nem sempre ocorre
no momento propício, nem sempre advém próximo à terra, às ilhas, aos arrecifes,
nem sempre há luz nessa hora, pode o peixe encontrar um céu negro e sem ventos, ou
uma tempestade noturna sem relâmpagos, ou uma tempestade de raios e relâmpagos,
assim o salto, o instante do salto, esse rápido instante pode coincidir com a treva e o
silêncio, pode coincidir com o mundo ensolarado, enluarado, o peixe no seu salto
pode nada ver, pode ver muito, pode ser visto no seu brilho de escamas e de bar-
batanas, pode não ver visto, pode ser cego e também pode no salto, no salto, no salto,
encontrar no salto, exatamente no salto, uma nuvem de pássaros vorazes, ter os olhos
vazados no momento de ver, ser estraçalhado, convertido em nada, devorado, e o
espantoso é que esses pássaros famintos representam a única e remota possibilidade,
a única, concedida ao peixe, de prolongar o salto, de não voltar às guelras negras do
mar. Mas não serão essas aves, seus bicos de espada, uma outra espécie de mar, sem
nome de mar?

A música de Orff continua: coro dos jovens, das jovens, coro dos anciãos.
Proclamam os velhos a transitoriedade das paixões, IMMENSA STULTITIA, mas os jovens
contestam ferventes de esperança. Sem pressa, Abel me sujeita, morde meus seios
nus, toma-os entre as mãos, neles descansa o rosto, o paletó azul-marinho jogado
sobre uma poltrona, a mão esquerda (asa?) desce pelo meu flanco, um dos sapatos de
borco junto à cristaleira, sua mão alcança-me o joelho, outro sapato com o bico no
rodapé cinzento (parece um cágado que explorasse a parede), a mão domina uma
espécie de tremor, sobe entre as coxas, morna e cautelosa palma, cautelosa. "Estou
ouvindo seu coração bater. Bate como se eu ouvisse ao mesmo tempo a pancada e o
eco da pancada. Conheci dois pássaros assim. Dois canários.Um repetia o canto do
outro."

Volta-se para mim, apoiado num braço, a outra mão afagando- me a axila, volta-
se, quem sabe escutarei dentro em breve no meu corpo as vozes que só ouço pela
madrugada e que desde Inácio Gabriel têm sido neste mundo a minha companhia, a
única, tiro a sua gravata, lanço-a para um lado, começo a desabotoar sua camisa,
carros desfilam na avenida, lentos. Ouvirei aquelas vozes, o enxame de palavras que
jamais distingo e ainda assim me conforta? Faz calor nessas tardes de novembro. Meu
corpete negro, atirado longe por ele, pende de um bule de prata não polido, uma das
meias atravessada sobre os meus sapatos, não sei onde foi ter a outra, introduzo a mão
na abertura da camisa branca, sinto a sua pele, não, não a pele, antes uma força
existente sob a pele, um ímã, minhas mãos deslizam sobre o ímã e não podem
desprender-se, o coelho e o crocodilo saem lentamente do meu corpo, instalam-se no
seu, ele recomeça a falar e a sua voz vem através das lianas, das flores e animais em
que estamos ambos enredados: "Posso graduar as suas pulsações. Afasto-me de você;
elas se espaçam. Ponho as mãos na sua pele; as batidas tornam-se mais rápidas e você
respira mais depressa". Enquanto o ouço, enquanto a sua voz me envolve, enquanto
soergo-me, desato meus cabelos, movo a cabeça, movo-a, meus cabelos desenrolam-
se, frouxos, cobrem minha espádua.

— Lindas, essas cores. Mel e aço?


Toma entre as mãos as madeixas desdobradas, afaga-as delicadamente e não vê
que duas cabeleiras se mesclam no meu crânio, duas. "Prata e mel." Onde, no seu
rosto, os ganchos da virilidade? Na testa ampla, nos olhos claros, nos molares um
pouco salientes? O rosto vagamente mongol e o tom de âmbar descorado da pele.
"Que lindos, nesse instante, seus seios. Sabe o que eu vejo neles? Um mapa marítimo.
Um arquipélago de nomes." "Nomes de ilhas?" Não responde: fica sério, de um modo
que me assusta. E toca-me no peito, na cicatriz:

— O que é isto?
— Um furo de bala.
— Que tempo faz?
— Quase dez anos.
— Quem disparou?
— Eu mesma.
Emudecemos e os dois ficamos estendidos, lado a lado, presos pelas mãos, olhando o
lustre, nascem-me flores na língua, flores de caule espinhoso, e em minha garganta há
um rebanho de ovelhas tosquiadas.

A 7
ROOS E AS CIDADES

Seguimos lado a lado, no jardim, dando-me Roos a impressão de que considera


natural e mesmo inevitável a minha companhia — e logo outra presença, mais
prestigiosa que as ricas estâncias visitadas, que os versos de Anacreonte e a paisagem
da Loire (sem os pássaros, as árvores, o mormaço e a luz violenta do Nordeste),
realça a atmosfera por assim dizer emblemática com que se revela, em terra estranha
e sobrecarregado de elementos não absorvidos pelo meu olhar afinal de contas
bárbaro, este amor insensato — bem o sei — e tão fugidio quanto o seu objeto. Li que
Leonardo da Vinci, como Girolamo delia Robia, anda por estas paragens e aqui
morre. Anneliese Roos me pergunta se já visitei a sua tumba. Aqui estamos, frente a
frente, silenciosos (diríamos o quê?), eu contemplando-a e ela com o rosto pensativo,
os braços caídos, as mãos cruzadas, as flores à altura do sexo: contempla a lápide de
Leonardo. Emudeceu o sino; sons de vozes vindas do jardim entram amortecidos na
capela. Então, de súbito e por breve tempo, como numa queda ou numa vertigem,
entrevejo na cabeça de Roos uma cidade de ruas tortuosas, inóspita, fria e ventosa
apesar do sol que a inunda, porém com grandes e alvos templos revestidos de
mármore. Exclamo em meu íntimo: "É a pátria de Dante!".

Estamos ainda ante o pó ou a lembrança do pó dos testículos de Leonardo e dos


seus olhos — e nos alcançam, apagadas, as vozes dos que passam no jardim. Sinto o
cheiro do animal que desde a infância, sempre que interrogo coisas simples e
indizíveis como a superfície de um espelho e as paredes lisas, aparece atrás de mim
exalando a sua inhaca que significa: "Não consegues, Abel". Afasto, procurando
resguardar-me e enxotar o animal nunca visto, com o seu cheiro de excrementos e de
dentes podres, a visão repentina de Florença na cabeça pensativa de Roos, certo
entretanto de que não escaparei e de que, por mais que me esquive (não é o que
sucede ao chalé, com seus alpendres, e quartos, esboçado em cem textos ineptos?),
levarei anos e anos buscando aquele ponto onde se conciliam o arisco e o verbo:
tentando fazer visíveis Roos e as cidades que abrange. Assim, outra vez caminhando
ao seu lado sob o sol sem flama deste domingo de abril, quase acredito ser eu o
mesmo homem que sou antes de vê-la, calada, as mãos e as flores à altura do sexo, na
capela onde dorme o bastardo toscano, pintor, poeta, músico, planejador de engenhos
bélicos e de construções aquáticas, também ele perseguido pela ambição de arrombar
portas fechadas, com a vantagem de que as abre sempre ou quase sempre — como o
florentino cujos coices abrem o Paraíso. Ver é encargo tortuoso.

Um pássaro castanho, com manchas ferruginosas e duas listas brancas


atravessando as coberteiras das asas, pousa na relva. Qual o seu nome? Roos,
lentamente, dobra os joelhos. Na mão esquerda as papoulas, a rosa e os gerânios; a
direita estendida em direção ao pássaro. Algo de felino e de frágil desprende-se da
figura recurva, do rosto concentrado (onde cidade alguma transparece), dos olhos
quase negros, agora entrefechados e metálicos. As abas do casaco dobram-se na
grama. O pássaro, explorando o solo, aproxima-se da mão sem anéis e vazia. Age
como se a mão de Roos fosse um ramo, um bebedouro. Mas o bebedouro ou ramo,
com lentidão quase imperceptível, também vai reduzindo a distância.

Detém acaso a minha companheira algum poder secreto? Qual a afinidade entre
ela e a ave? Flui do seu corpo uma paz peculiar, adequada à natureza arisca dos
pássaros? Vejo-me sem governo, submetido à sua presença e seguindo-a como um
manto, uma sombra, vou em sua direção tal esse pássaro ferruginoso e é possível
tenha-me estendido Roos, sem que disto eu possa me certificar, outra mão, que não
vejo mas existe.
S 8

A ESPIRAL E O QUADRADO

O quadrado a que já nos referimos e que constitui, por assim dizer, o recinto
desta obra — a qual, sem isto, arrastada pelo galope incansável da espiral, perder-se-
ia por falta de limites —, subdivide- se em vinte e cinco: os vinte e cinco quadrados
com as vinte e cinco letras da frase que custou a vida de Loreius. Cada quadrado,
como as divisões do ano abrigam o nome de um mês, como os raios da rosa invisível
dos ventos abrigam a designação de um ponto cardeal ou intermediário, cada
quadrado, dizemos, abriga uma letra. Estas, conquanto sejam ao todo cinco vezes
cinco, longe estão de totalizar o alfabeto. Não passam de oito, sendo que o S e o P
aparecem duas vezes; e as demais — à exceção do N, que não se repete — surgem
quatro.

Tendes então a simples — embora não usual — estrutura do livro. A cada uma
das oito diferentes letras corresponde um tema, que volta periodicamente, sempre que
o giro cada vez menos amplo da espiral a ela retorna, depois de haver provocado o
aparecimento ou reaparecimento de outro, de outros. A espiral sobrevoa os vários
temas; e estes não voltam por acaso, nem por força do arbítrio ou da intuição do
autor, mas governados por um ritmo inflexível, uma pulsação rígida, imemorial,
indiferente a qualquer espécie de manejos.

Acentuaremos, para que se perceba com facilidade o nexo da concepção, que


ambiciona ser tão clara quanto possível, as relações entre a espiral e a frase de
Loreius. A princípio, uma e outra parecem imensamente afastadas entre si ou unidas
tão-só pela comum estranheza. Aprofundando o exame, descobrimos as mútuas seme-
lhanças, reais como as que existem entre um Z tipográfico c um Z manuscrito, e
evidentes para quem os mistérios da escrita são familiares, conquanto inacessíveis aos
que ainda não aprenderam a ler.

Vimos claramente: a espiral, parecendo avançar num determinado sentido, é na


verdade uma imagem de retorno, de vez que os seus extremos, por inconcebíveis,
tendem a unir-se. Seu princípio é seu fim e, além disto, quer como figura que
imaginariamente avança para os centros, quer como figura que deles se distancia, é
sempre uma espiral. A frase de Loreius tem o mesmo caráter de imutabilidade: pode
ser lida em qualquer sentido; por outro lado, em sua aparente abertura, cerra-se sobre
si própria. Acontece, às vezes, dois irmãos serem dessemelhantes. Pelo menos,
julgamos assim até conhecermos um terceiro irmão (ou uma irmã) com quem ambos
se parecem. Perceberemos melhor o obscuro parentesco entre a espiral e a sentença
mágica de Loreius se nos dermos conta das relações entre ambas e certas figuras
míticas com as quais também à primeira vista nada parecem ter em comum, como o
dragão com duas cabeças (sendo uma no lugar da cauda), a anfisbena e,
principalmente, com o deus Jano, possuidor ambíguo de dois rostos, um voltado para
a frente e outro para trás, de modo que não tinha espáduas, ou melhor, sua espáduas
eram também seus peitos. A frase de Loreius, tal esse deus (cujas insígnias, por sinal,
eram a vara e a chave, uma para afugentar os intrusos, outra para abrir as portas), não
olha em direções opostas? Não representa a espiral, igual a Jano, um simultâneo ir-e-
vir, não transita simultaneamente do Amanhã para o Ontem e do Ontem para o
Amanhã? Não se conciliam, em seu desenho, o Sempre e o Nunca? Também não se
deve esquecer que um dos símbolos preferidos pelos alquimistas era o do matrimônio
entre o Sol e a Lua, representados como um hermafrodita, um corpo dúplice,
apodrecendo num esquife. O pensamento que dominava esta representação — onde
se viam, num corpo, duas cabeças, como as de Jano — era o da morte seguida da
ressurreição.

Tanto a espiral como a frase que temos sob os olhos parecem tensas dessas
fusões de contrários. Existe um ponto, um centro, um N para o qual tudo converge. O
S de SATOR é o mesmo de ROTAS. No quadrado e na espiral, o Lavrador tem dois
rostos e vem em duas direções, vem das cercas do campo, cavando em rumos
opostos, sob estações simultâneas. Por último: não são todas, essas, concepções da
inquietude humana — deus, anfisbena, espiral, casal alquímico, dragão bicéfalo e
frase palíndroma — sem princípio e sem fim, ou cujo fim, se existe, coincide com
seu próprio início?

A 8

ROOS E AS CIDADES

Como escapar a este resíduo irracional que me induz a ler nas coisas, onde
tantas vezes penso decifrar (e já não leio em Roos?) representações da minha vida,
textos, grafados numa escrita esquecida e nos quais, entretanto, identifico o meu
nome? Ocorre-me, ante Roos e o pássaro fascinado, que o meu destino ou uma parte
dele — tão torto, apesar das ilusões da Gorda, quanto o de todos os meus irmãos e
irmãs, com os seus inúteis instrumentos de música — pende da cena que atento
observo: suba o pássaro à mão dessa estrangeira e estou para sempre enredado num
baraço. Sem tentar dominar-me, bato palmas, o pássaro esvoaça, foge, desfaz-se a
tensão no rosto mágico de Roos, ela se levanta e dá-me as costas.

Pouco retenho, ao longo da tarde, dos demais castelos visitados. Com o meu
gesto, desapareci — como o pássaro — dos olhas de Roos. Escreve Leonardo da
Vinci que os testículos "aumentam a audácia e a ferocidade dos bichos" e espanta-se
de que o homem cubra e esconda o pênis, "quando, na verdade, tal como se procede
com um ajudante idôneo, deveria adorná-lo e solenemente mostrá- lo". É isto o que
praticam, todas as manhãs, com Gargântua, as alegres governantas, enfeitando seu
"ramo de coral" com flores, fitas e outros arreios. Por que então não enfeito com
folhagens meu ramo de coral? Por que não exibo de uma vez a Roos e com
solenidade este ajudante idôneo? Escondo-o em todas as paradas da excursão, sem
que ela uma só vez me fale ou se volte para mim; o que faço é contemplá-la e
inquirir, calado, os seus espaços, vespas cravando o ferrão nas minhas costas, de sorte
que os salões, os pórticos, as escadarias, tudo percebo como que flutuando em sua
imagem e de mistura com a dor, com as vespas raivosas. Cruzam-se pedaços de frases
em várias línguas estranhas, cresce em mim uma espécie de pressão (introduzo num
cilindro de lata o eixo do pião japonês acionado a corda, introduzo-o com mãos
infantis e a mola escondida no cilindro, a mola, cuja ponta recurva sobressai, fisga
uma ranhura oval do pião, eu giro o cilindro e sinto a mola enroscada, pronta a
disparar, mas em vez de premir o eixo do pião e fazê- lo girar eu o aperto um pouco
— só um pouco — para sentir a força contida da mola, e agora é como se surgissem
em mim outros piões, trinta, sessenta, cem, presos em seus cilindros brilhantes, as
cordas apertadas, prontas a desprenderem-se por si) até que noite fechada, novamente
em Chambord, após esse dia febril e abundante em imagens, ouço aproximar-se um
ronco, um estrondo e me vejo envolvido pelos faróis de dezenas de motocicletas,
conduzem-nas rapazes com blusões de couro, moças nos porta-bagagens, enlaçando-
os, cruzam-se as máquinas em ziguezague, os motoristas, todos de negro, gritam uns
para os outros calcando os aceleradores, os faróis trespassam-se na noite, novos
veículos chegam, ninguém desliga o motor, o trovão vindo do ar e da terra me rodeia,
levanto os braços em meio ao turbilhão de pneus, luvas, rostos, canos de escape,
guidons e jatos ofuscantes — e brado, mãos nos ouvidos, o nome de Roos, um grito
longo, o mais longo que posso, no bojo do bramido provocado pelos setenta motores
de explosão e com tal violência que enrouqueço. Como se estivessem à espera deste
apelo, quase a um tempo só, os motores emudecem e os faróis começam a apagar- se,
quase a um tempo, e eu me vejo livre das vespas, dos seus aguilhões, mas fendido,
sem fôlego, só, rodeado de estranhos.

Sei que prosseguirá (ou prossegue?) o nosso encontro interrompido; apenas


desconheço, da seqüência, o modo e o ritmo. Como um indivíduo jurado de morte e
que espera a cada instante — de um penhasco, de uma esquina, de uma aroeira
perdida na caatinga — as balas que, mesmo não disparadas, já zunem em direção a
ele, aguardo para cada próximo minuto — nas curvas do já, do agora — o recomeço.
Através da vidraça, fechada ao vento ainda cortante, filtram-se as vozes das moças
que, de volta da Páscoa, expõem as coxas no pátio ao sol de abril. Procuro ler: o livro
parece ter sido copiado por mim, tanta é a carência de surpresas e de prazer que
encontro na leitura. Examino, com uma lente, os folhetos de turismo que se
acumulam no armário, separados por países e atados com barbante. Vem-me,
imperioso, o impulso de recomeçar a busca da Cidade. Deito-me e fico olhando para
o teto. Baratas negras surgem nos rodapés, sobem na cama, andam no meu rosto, no
pescoço, nas mãos. As vozes decrescem. Vão-se as baratas, com suas asas riçadas.

T 1

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Hermelinda e Hermenilda, assim nos chamam. Neste bairro ainda sossegado do


Recife, de nome denso e duro mas de existência precária, onde a velhice, sem dó,
macera a cera má que somos, poucos os capazes de dizer quem de nós Hermenilda e
quem Hermelinda. Quando pouca a luz, nós próprias nos confundimos. Gêmeas?
Não. Pensando bem, nem paridas e nascidas podemos afirmar que somos. A infância,
a juventude, frutas macias, nós desconhecemos, e somos ambas viúvas — mas sem
maridos mortos. Fio conduzido pela agulha são as vidas? Tua vida é agulha a costurar
sem fio?

Bairro de Casa Forte, estrada das Ubaias. Nós, duas velhas, vivemos das pensões
todo mês recebidas na delegacia fiscal e de alguma ajuda vária, rodeadas de gatos e
canários, tocando bandolim (uma de nós, apenas) com dedos meio surdos, tudo como
determinado. A agulha, caindo de ponta, mergulha na água: o vício de costurar.
Caindo de lado, flutua e prova ser a água um corpo sólido. Não nos desvanece a
função de conducentes. A agulha, artefato perfurante, fere? Também ajuda a coser.
Hermelinda, Hermenilda. Agulhas, nesta fábula fiada pela Morte.

O 9
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Transmudado o cão com barbatanas, o cào vestido de plumas. Tem orelhas


humanas, dissolve-se o focinho e revela-se um rosto de criança, porém de olhos
fechados. As barbatanas recolhidas ao seu corpo como se fossem costelas adejantes,
como se fossem línguas das costelas. Arredondam-se as patas dianteiras, estendem-se
as unhas, em garras, em dedos, erguem-se em direção aos ombros, sua postura
assemelha-se à de um crucificado.

Vou pedalando às vezes no meu velocípede e um súbito receio me detém.


Timidamente, aciono os pedais em sentido contrário, recuo. Para mim, verticais e
horizontais confundem-se, a altura não existe, inclina-se o que era o piso de uma sala,
verga-se, enruga-se, a distância entre as janelas e a rua parece transitável.
Empreenderia esse trajeto, a pé ou no meu velocípede, se todas as janelas do nosso
apartamento não fossem resguardadas, telas de aço que aos poucos enferrujam. Mas
não chegou a hora em que me precipito. A queda se prepara, espera-me, de nada
servem as telas cada vez mais ero- didas pelas chuvas de dezembro e de janeiro, pelo
ar sempre úmido, pelo envelhecimento, talvez pelos gritos, pelos ruídos constantes
que vêm dos arredores, pela trepidação da cidade. Não faltam, em toda parte,
abismos, fossos, não faltam, e quando faltam, se faltam, achamos dentro de nós um
vào onde cairmos. Para a nossa perdição?

Tomam-se providências: eu devo ser protegida. Nada sei e por isto devem
resguardar-me, resguardar minha vida. No entanto, fora, a poucos passos da porta
sempre fechada, a poucos passos das salas e dos quartos onde, manhãs e tardes,
rondando como um cão trespassado de cólicas as janelas guarnecidas com redes finas
de aço, giro e giro no meu velocípede, abre-se inúmeras vezes por dia a porta
gradeada do ascensor. Este é o lugar da queda. Aí devo precipitar-me, e não — como
estão certos — para morrer, antes para nascer. Gero-me para a queda, para isto
cresço, para esse lance amadureço enquanto os dias surgem, passam, surgem e
passam, os dias. Quem me pare outra vez? De quem sou filha, eu, na segunda vez em
que nasço? De uma palavra? Ordena alguém: "Nasce!", e então obedeço, sou nada?
Serei, em meu segundo nascimento, um ser como os outros nascido de mulher? Nado
de si mesmo? Nado no ar, do ar?

O cão com barbatanas e de mãos arredondadas está em mim, sim, está em mim,
contudo é um estranho. A luz inunda os olhos, na luz eles se banham, mas ante um
clarão muito forte se retraem, fere- os uma chama intensa e próxima. Esse corpo no
meu é intolerável, luz demais para mim, fulgor intolerável no meu corpo, no olho do
meu corpo. Invadido por ele o meu corpo se fecha, fecha-se mas dentro de si prende a
centelha, a chama, e anseia pela solidão, essa treva em que novamente encontrará a
paz. Anseio inútil. O esplendor incessante, doloroso e cada vez mais claro, só o
esqueço no sono.

Súbito, de algum ponto, voz subterrânea, a queda começa a atuar sobre mim.
Exerce sobre o meu ser sua atração, chama-me como o mundo exterior chama o
nascituro e eu não sou alheia a essa invocação. Minha inquietude agrava-se; deixo-me
cair vinte vezes por dia, do velocípede, da minha cama, da velha e rangedora cama
dos meus pais, da grande mesa redonda, subo nas cadeiras (têm o espaldar guarnecido
com um pequeno medalhão almofadado, de damasco azul-claro), faço-as oscilar, elas
tombam comigo, rastejo pelo chão, percorro as janelas e golpeio com os punhos, com
a testa, as telas de aço, olhando para baixo. Do corpo no meu corpo vem um cheiro de
laranjas maduras, mesclado com alfazema queimada e flor-de-enxofre. Apenas este
odor, sim, só ele me protege, parece resguardar-me de tudo, sinto-o tecer-se e
espessar-se em redor de mim hora após hora, um casulo que eu mesma segregasse.
Um casulo.

Estou no quarto do meu pai, quando o leque se abre dentro de mim. Não se abre
aos poucos, com a lentidão própria do mundo vegetal. Abre-se de um golpe, são asas,
os braços da criatura-em-mim abertos continuam, as mãos quase tocando meus
ombros, mas agora a revestem duas asas, estas asas revestem-na, cobrem a sua nudez,
uma espécie de manto, umerais, tectrizes e álulas são de um roxo-brilhante, as
rêmiges douradas, principalmente nas extremidades, enquanto as penas entre as zonas
dourada e roxa se alternam, umàs cor de sangue, outras azuis. Indistintamente, tanto
sobre as penas miúdas como nos remígios, cem manchas semelhantes a olhos (ou
serão olhos?) contemplam-se a si mesmas. Nada mais vejo, nada mais percebo, senão
as asas que escondo. Duram apenas segundos essas asas ornamentais e que nunca
voarão. Duram apenas segundos, ou, se maior é a sua duração, com tanta força me
atraem que os dias passam ao largo. Cerram-se os cem olhos das asas, elas se
desprendem, desfazem-se como se fossem de pó e um vento as levasse, desfazem-se e
o ser que antes circundam surge nu, corro à janela e esmurro a tela de aço, o céu está
escuro e os edifícios emitem uma fosforescência surda, fulge um raio, o estrondo e o
brilho me derrubam. Então, desaba o temporal. O Sol, envolto em nuvens, abre a
porta de Câncer.

R 9

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Deixa-se boiar nas águas ondulantes e cheias de reflexos, a espuma desfazendo-


se junto às axilas e em torno dos ombros opulentos. Mergulho, olhos abertos, sob o
seu corpo, deslizo sob o corpo que flutua e creio ver, meio ofuscado, entre os
reflexos, outro corpo: vejo, como se os reflexos das águas penetrassem-na, pontos
luminosos, roxos, verdes, brancos, não simples reflexos, signos. (Letras?)

— Empenhado na decifração e também no ciframento das coisas (embora, quase


sempre, sem êxito), recuso deter-me no que é visto e captado sem esforço. Investigo
aqueles planos ou camadas do real que só em raros instantes manifestam-se.

Eu e ʘ olhamos com atenção as réstias do Sol sob as árvores. À sombra das


copas, surgindo e apagando-se à mercê do vento, pequenos círculos claros
reproduzem o disco solar nas calçadas e nas ruas. A luz invade-o e isso manifesta-se
nas réstias, onde uma pequena sombra, quase imperceptível, insinua-se nos círculos.
Passa pouco das onze e o ar parece mais brando, como se já fosse morrer este dia de
novembro.

O marinheiro, o soldado, a criada, o servente de obras, o arrombador e também


agora, um pouco recuada, coberta de pintura, puta ordinária, a filha de Natividade,
possível e única, aproximam-se da cama. Ouve-se um bater de roupa, de tapetes, de
portas, de louça, de bilros, de talheres e a voz de Natividade cantando, voz alegre e
forte, indo e vindo. Os filhos que deixa de ter, desfiando, em troca do destino deles,
apagado e difícil, o seu próprio destino solitário, ajoelham-se entre as duas velhas
aterradas. Rezam e olham a agonizante, todos, menos a puta: de costas para o grupo,
olha o vulto que atravessa devagar o jardim ensolarado, de vestido branco, uma
criança negra, chapéu de palha e à mão uma peneira. Sobe a menina os degraus do
alpendre, vê-se no leito de morte e contempla os adultos, receosa, como se rogasse a
compaixão de todos. A puta dá um passo em direção à criança, descobre a sua cabeça
e afaga-a. Pesa-a, mesmo assim, com olhos vingativos. Natividade, pela última vez,
tenta erguer as mãos.

As frontarias úmidas e as janelas cerradas, flâmulas imóveis e descoradas no


posto Esso deserto, gaivotas sobrevoam a enseada cinzenta. Dois pesqueiros
ancorados à distância e oscilando de leve rompem a superfície uniforme do mar. A
chuva afasta os dois pequenos barcos, separa as colinas em gradações de cinza e acen-
tua a letargia em que vive Ubatuba a maior parte do ano. Delineia- se contra a
paisagem marítima e como trespassado pela chuva fina, pelas gaivotas, pelos cascos
harmoniosos das canoas emborcadas na areia, o rosto de ʘ, meio encoberto pelos
cabelos. A linha do nariz, implantado com firmeza e talvez no extremo limite do equi-
líbrio, a ponto de romper a harmonia dos seus traços, reflete, visto de perfil, a reta da
fronte, em extensão e rigor. O espaço entre as narinas e os lábios um pouco salientes,
de corte preciso e que ela tende a sempre conservar descerrados, como se lhe faltasse
o ar, é restrito. Tão nítido quanto os lábios, revela mais brandura o queixo, sobretudo
quando ri. Não fala sem que projete os lábios para a frente e então observo, entre eles
e a ruga (breve curva ascendente) que prolonga as comissuras, um jogo discreto,
variado e festivo.
Vacilo entre contemplar, como um surdo, esse mover de boca e ouvir como se
nada visse a sua voz rica em tons, agora calma e fresca, quase de criança, com rápidos
acentos ásperos. Há em todo o seu rosto, apesar da força que sugere, uma atmosfera
infantil. (Em que coleção de brinquedos antigos fita-me espantada, a cabeleira cor de
aço e cobre caindo frouxamente sobre a nuca, uma cabeça de boneca semelhante à
sua?) Pequenas rugas concentram-se nas pálpebras e uma sombra parece adulterar sua
juventude: ela sorri. Nos olhos claros, de cor indefinida, dentro deles ou mesmo coin-
cidindo com eles, outros olhos — com outra idade e decerto olhos de outro rosto —
me fixam, esteja ou não voltada para mim, fixam-me com avidez. Sob a pele
transparente, à qual afluem ondas de sangue ao mínimo estímulo, pressinto — como
quem procura recordar — a face escondida e que, mesmo sem ver, contemplo.
— Os textos, de certo modo, existem antes que sejam escritos. Vivemos imersos em
textos virtuais. Minha vida inteira concentra-se em torno de um ato: buscar, sabendo
ou não o quê. Assemelham-se um pouco às de um desmemoriado minhas relações
com o mundo. Caço, hoje, um texto e estou convencido de que todo o segredo da
minha passagem no mundo liga-se a isto. O texto que devo encontrar (onde está
impresso ou se me cabe escrevê-lo, não sei) assemelha-se ao nome de uma cidade: seu
alcance ultrapassa-o — como um nome de cidade —, significando, na sua concisão,
um ser real e seu evoluir, e as vias que nele se cruzam, sendo ainda capaz de per-
manecer quando tal ser e seus caminhos estejam sepultados.

O 10
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

— Eu mesma disparei. Não quero que me despreze por isso.


Abel, sem responder, sem voltar-se para mim, cinge mais forte — e não sem brandura
— os meus dedos. Qual a idade da mão que dispara? Vinte e três anos? Catorze? No
sofá, convalescente, eu reclinada; toco a cicatriz, a pele tenra e ainda sensível,
acaricio-a. Reluto em levantar-me. Se o faço, estendo-me em seguida na cama ou
passo horas sem fim ante o espelho, penteando os cabelos, penteando-os. Que mão
empunha a arma? Poderia uma impedir que a outra concluísse o gesto, a pressão —
tão leve — no gatilho? Questões inúteis.
Beijo de manso seus ombros, debruçada sobre ele, de modo que meus peitos e
cabelos o afaguem, cubram-no. Sua pele recende a silêncios e manhãs. Mais frágil, o
torso, do que faz prever sua cabeça; frágil, pobre de músculos, um torso de alguém
pouco afeito a exercícios e sombreado de pêlos cor de cobre. Não fossem os pêlos,
seria o tronco de um adolescente. Beijo os bicos escuros, ele se volta aos poucos,
beijo-lhe as costelas, fica de borco e eu beijo-lhe a cintura, as vértebras, as omoplatas,
a nuca. "Em ti, em ti, em ti", protesta o coro dos jovens, "residem toda a alegria, todas
as doçuras, todas as volúpias." Beijo-lhe o ouvido e trinco a pele do seu ombro (em
ti), vou cerrando os dentes como quem aperta um parafuso, aos poucos {Basia me!),
ele fica tenso, mordo com mais força, os animais do tapete correm alvoroçados entre
os nossos corpos {Morde me!), eu deixo de morder, passo a língua sobre a marca
vermelha dos meus dentes, mordo-lhe o pescoço e introduzo a língua no seu ouvido
esquerdo, aí verto sem dizê-las algumas das palavras que anseio por dizer, ele torna a
mover-se e fica novamente voltado para mim. Em ti!
Levanto-me do chão, olho o temporal através da janela gradeada. Fico à espera
de que o raio e o trovão derrubem-me outra vez. Estremece o espaço e as paredes
luzem, azuis, sob os relâmpagos. Raios cindem os ares; os trovões estalam como se
fossem arrancados do chão com os alicerces. Acelera-se o vento, zunindo nas quinas,
nos tetos, nas antenas e nos anúncios fincados sobre os prédios. Parece um eco dos
trovões ou seu prolongamento. Sento-me no velocípede e giro, regiro em torno da
mesa, a mesa de centro, na sala (sobre a mesa há um vaso de metal sem flores, baço),
giro devagar entre as cadeiras, e o vaso niquelado, posto sobre um velho pano de
croché, é o centro do meu giro, o centro. Sempre mais forte, açoitada pela ventania,
cai a chuva. Minha mãe aparece, de pantufas, com um velho roupão de seda negra, à
cabeça um chapéu rubro de abas muito largas e na mão um chapéu branco, ornado de
flores. Passa pela sala (não me vê?), passa, deixa atrás de si o perfume intenso e
cáustico de que vive embebida. A vidraça está molhada e por todas as brechas sopra o
vento, por todas, em todas as direções, com ímpeto, uiva e sacode-se, cão invisível.
Espectros de forma cúbica, os edifícios, apagados pelas águas, têm a mesma cor e
parecem adquirir consistência idêntica à das nuvens. Ratos são expulsos dos buracos,
correm estonteados no assoalho, surgem baratas de asas levantadas, sobem nas
cadeiras e esvoaçam. Todas as pessoas desapareceram; nas ruas alagadas e desertas,
só alguns veículos trafegam. Avançam devagar. Ouço três badaladas, três, lúgubres e
como que sem vida, o sino de São Bento, e em redor do vaso meu giro continua.
Bátegas de chuva golpeiam vidros e esquadrias. Amiúdam-se os relâmpagos, murros
nos meus olhos; parecem queimar o papel marrom da peça, crestar suas flores encar-
didas.
De súbito, de súbito, tudo se unifica: em direção oposta ao giro do meu
velocípede, a ave negra de cabeça vermelha está girando, gira sobre a cidade e a
tempestade, desce, imperturbável, voa através de ventos e relâmpagos, seu giro (cada
vez mais baixo, cada vez menor) opõe-se ao meu e também responde ao meu giro e o
completa. Desce e restringe-se. Instigada, alargo a minha órbita, afasto-me do vaso,
da mesinha, passo por trás das cadeiras, do sofá, alargo a minha órbita. Em algum
ponto da casa a mulher põe-se a gritar: gritos compassados, numa sucessão aterradora.
Pedalando mais rápido, saio da sala, a porta da saída está aberta, escuro o saguão,
ouço atrás de mim passos e brados, asas agitadas, brilha um relâmpago, entrevejo num
relance, também aberta, a porta gradeada do ascensor, aberta para o poço, para o oco,
o oco dos enigmas.
Da minha garganta, até então silente, durante anos silente, sai um grito, acelero o
velocípede e atiro-me, nasço, precipito-me, precipitamo-nos eu, rodas e gritos, já não
sei se meus, não sei se da mulher, não sei se nossos, ou ainda do pássaro, não sei,
precipitamo-nos.
A mulher, sentada junto ao leito, mãos sobre os joelhos, bem aberto no colo o
roupão de seda negra. Reconheço-a e também a desconheço. Todas as coisas são
novas e simultaneamente familiares; eu e o mundo, tendo mudado, continuamos os
mesmos. Ela se ajoelha, descobre o seio, aproxima-o do meu rosto. Murmura sem
cessar, um som monótono. Tomo o seio entre as mãos, sugo-o, o leite (ou o seio?)
desce-me pela garganta, um fio insere-se entre mim e as coisas, entre uma coisa e
outra, sugo o peito, o leite, o murmúrio continua, e eu ingresso em um ciclo de que
não suspeitava, tenho acesso ao ciclo da identidade, da delimitação — no murmúrio
da mulher junto à cama reconheço o meu nome e mergulho outra vez na escuridão.

T 2
CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Tenho dezesseis anos: meus olhos furam sombras. Mesmo assim, mal vejo as
minhas mãos e braços, refletindo surdamente, à borda da cisterna, as parcas luzes de
Olinda. Nenhuma estrela. O farol, rítmico, revela de relance a superfície da água, os
limites das coisas, o ondular da tarrafa mal lançada por mim. Uns sessenta passos
separam-me do chalé. As luzes do alpendre e as que jorram, ambarinas, das
numerosas janelas, não descem até onde estou; o teto de zinco, que protege a cisterna
em quase toda a extensão, intercepta-as. Afluem, misturados com a respiração do mar
e o rumor — agora menos forte — de suas investidas na praia dos Milagres, sons
imprecisos de clarinete, de flauta, de viola, o pigarro com que o Tesoureiro se impõe,
vozes joviais dos meus irmãos e irmãs, doze; na cadeira de balanço, a Gorda,
instigada pelo bicho, dobra a risada. Sinto de maneira mais intensa, a intervalos, o
cheiro de umidade. Apurando o ouvido, posso distinguir, nesses segundos, dentre os
rumores vagos, algum salto de peixe. Faz calor: dezembro se aproxima. Dentro de
casa, formigas de asa giram em redor das lâmpadas, anunciando chuva.
Jogo outra vez a tarrafa, ouço o chapejar soturno dos anéis de chumbo e dos
fios encerados. O peso dos anéis não está bem calibrado, a trama fecha-se lenta e os
peixes — pouco numerosos — fogem a tempo. Assim escapa, entre as malhas da
busca, o que procuro e cuja natureza ainda desconheço. Mas cuidado, Abel. Atenção
para a rede. Seguram-na? Não há, embaixo, ganchos ou ferrolhos em que possa ter-se
emaranhado. Que, então, prende-a dentro da água escura, multiplicando por mil ou
por dez mil os seus pesos de chumbo? Sustenta-a algum espírito lodoso? Arrasta-a,
maligno, para o fundo cimentado? Verá com quem. Seguro-a com a mão esquerda e
com a outra vou abrindo rapidamente a camisa. Estes fios no fundo da cisterna, presos
nos cornos das trevas, vêm interferir, como um ruído importuno ou a vinda de
estranhos, em meu trabalho secreto, a procura cega de uma indicação (o onde, o
nome, o porquê) que aplaque em minhas veias o castigo de buscar. Enxergo mais do
que pretendo e suporto. Por que, então, não vejo o que procuro?

A 9

ROOS E AS CIDADES

Residentes apanham a correspondência no grande quadro de madeira, com


subdivisões numeradas, entre o primeiro andar e o térreo. Retiro as duas cartas que me
esperam e sigo para o refeitório. Roos almoça sozinha numa das mesas ao lado da
extensa vidraça, o rosto pensativo voltado para o dia claro, o casaco azul-marinho no
espaldar de uma cadeira vazia. Termina o mês de abril e, embora as árvores
reverdeçam, o tempo continua frio. Sento-me longe de Roos. Abro a carta da Gorda:
comunica o noivado de Estêvão com uma viúva sem meios e mãe de filhos. "Imagine,
vinte e um anos, quase seis mais moço que você. Sabe a idade da tal noiva? Trinta e
nove nos costados e varizes até no olho da goiaba. Esses seus irmãos, meu filho!"
Decresce em mim, enquanto aqui estou, a certeza de que, embora não suspeita, uma
palavra ou um fato, a mim destinados, jazem em tudo que Roos pensa ou realiza,
mesmo no gesto de levar à boca um copo d'água. "Aquela pessoa que sabemos esteve
aqui ontem, alegre demais", leio ainda, "com a notícia de que você passou no
concurso, perguntou quanto era o ordenado e beijou o Tesoureiro. A mim ela não
beija. Formiga sabe que roça come." Roos passa por mim como se não me visse.
No meu quarto, abro a outra carta e reencontro a caligrafia miúda e sinuosa, as
curtas e eficazes orações onde a ausência de lamentos ou censuras parece instilar a
afirmação de que eu, Abel, sempre acabo saldando as minhas contas, tudo isso
misturado com alusões a fatos que nos são estranhos, como o calor que tem feito, a
primeira missa a ser rezada em Brasília ou a situação dos transportes coletivos. As
páginas recendem um perfume evanescente e irreconhecível.
Guardo na gaveta essa carta e respondo a da Gorda. Assalta-me, em meio a
uma frase, a convicção de que eu e Roos iremos em breve defrontar-nos — e que tudo
será acionado. Concluída a carta, escrevo outra, fria, para o Tesoureiro, pedindo
informar-me quando expira a validade do concurso e, portanto, até quando poderei
adiar a posse. Soam — e nem sempre atendem às chamadas — telefones nos quartos
próximos.
Ponho as cartas na caixa do correio perto da Aliança, contorno o quarteirão,
sigo a calçada do Luxemburgo. Mulheres vendem flores ante o portão do jardim e as
pontas amarelas das grades brilham sob o céu esverdeado. Afasto a idéia de antes do
jantar fazer uma visita aos Weigel. Examino, mais uma vez, os objetos expostos numa
esquina da rua Vaugirard, todos anteriores a 1930: bonecas de caras semelhantes às
que sorriem nos cartões-postais da época, locomotivas, latas de chá, cartas de baralho,
jogos infantis, livros para crianças (Bobine chez les Fauves, Aristide et Bobine),
cartazes, rótulos, frascos de remédio pertencentes a mortos e ainda com restos da
poção. Gritos repercutem na vitrina. Uma mulher, não longe de mim, insulta um
homem; sem responder, ele espanca-a, corta-lhe as palavras com mão lenta e firme. A
mulher veste um manto de cor parda, sem botões; o parceiro, uma longa e endoada
gabardina. Curva-se, este, para apanhar a boina que caiu; a mulher atinge-o nas
costelas com o bico do sapato, corre e abre os braços em frente a um automóvel, que
se desvia e segue. Está grávida de uns sete meses. O homem avança, arrasta-a e bate-
lhe no queixo — com tal precisão que ela gira duas vezes antes de voltar a equilibrar-
se. Algumas pessoas, ao longe, observam. Sem calcular as implicações da minha
decisão e alheio à circunstância de estar em chão estranho, posto-me diante do
homem. Vejo-o enfiar a mão sob a gabardina (meu irmão Eurílio assassinado a tiros
numa tarde nublada e sufocante, em 1953, com dezenove anos incompletos, num
bordel do Recife) e pergunto se acaso não me engano ao situar em Roos o
acontecimento que espero ao longo de dez dias e do qual seria o alvo. Ouço, a meu
lado, os soluços da mulher. Não, não é este o momento, há outra coisa, em outra parte,
à espreita: meu portão ou alçapão está em Roos. Dou um passo, o desconhecido
move-se também, cruzamo-nos, seguimos devagar em rumos opostos. A mulher
irrompe em maldições.
Atravesso, sem incertezas ou conjeturas, o refeitório iluminado e ecoante de
risos, Roos sozinha à mesa lê uma revista, apresso-me, ninguém senão eu deve fazer-
lhe companhia, chamam-me, finjo não ouvir, sento-me diante dela.
Antes que eu fale, põe a revista de lado e indaga se conheço a Holanda.
Oferecem-lhe uma oportunidade, recepcionista em Amsterdam, na MACROPACK-57,
viajará dentro de dois dias, passará sete ou oito, talvez mais. "Sem erro possível,
reconheço o instante: é este. Uma fulguração. Aguardo-o incerto e agora ele salta
sobre mim, inconfundível, estou ante um traço divisório. Cerro as mãos e:
— Roos, quero seu endereço em Amsterdam. Vou à Holanda, fazer-lhe uma visita.
Posso?
Há, em minha voz, autoridade e súplica.

S 9
A ESPIRAL E O QUADRADO

Em seu giro contínuo rumo a um centro ou centros ilusórios, a espiral que


governa este livro seguidamente passou por sobre o R, o A, o T, sobre outras letras
ainda, e assim alguns temas da obra sur-\ giram e desenvolvem-se. Enquanto isto, o
Sol avança nos degraus estelares do Zodíaco, sendo oportuno, sendo indispensável
evocar esse fenômeno: rege o nosso romance uma mecânica que se pretende tão rígida
quanto a que move os astros.
A idéia de rigor e a de universo estão presentes na frase que tão caro custou ao
escravo frígio de Pompeia: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. O lavrador mantêm
cuidadosamente a charrua nos sulcos. Ou, como também pode entender-se: O
Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita. Difícil encontrar alegoria
mais precisa e nítida do Criador e da Criação. Eis o lavrador, o campo, a charrua e as
leiras; eis o Criador, Sua vontade, o espaço e as coisas criadas. Surge-nos o universo,
evocado pela irresistível força dessa frase, como uma imensa planura cultivável, sobre
a qual um vulto, com soberano cuidado, guia a charrua e faz surgirem, brilhantes, para
em seguida serem incendiadas, ceifadas ou esmagadas sob patas sanguíneas de
cavalos, as suas lavouras: plantas, heróis, bichos, deuses, cidades, reinos, povos,
idades, luzeiros celestes. Idêntica é a imagem do escritor, entregue à obrigação de
provocar, com zelo, nos sulcos das linhas, o nascimento de um livro, durável ou de
vida breve, de qualquer modo exposto — como a relva e os reinos — aos mesmos
cavalos galopantes. Apesar desta certeza, desta ameaça, nenhum descuido é aceito.
Sustém-se, com zelo e constância, a Charrua no seu rumo.
Estão menos presentes, na espiral, as idéias de universo e de exatidão?
Podemos concebê-la, traçada século após século, com mão firme e ignota. Seus
começos perdem-se num abismo aquático, infestado de sereias, de peixes cantores,
grandes hipocampos alados e aves que não pousam, assim como acabavam, para os
antigos, o mundo então conhecido e seus mapas imperfeitos. A precisão da espiral é a
sua alma; sem isto, a espiral enovelar-se-ia, jamais nos alcançando. Desta
eventualidade, a de transformar-se a espiral numa rede, veio provavelmente a idéia de
labirinto. Se os examinamos bem, que são os labirintos, senão espirais que perderam o
rumo e se fragmentaram, de tal sorte que o homem, preso em suas malhas, nada mais
sabe a respeito dos seus próprios passos? Mas a espiral só se emaranha por um
malévolo artifício humano. Tão rigorosa quanto as vinte e cinco letras que aludem ao
lavrador e à sua obra, nunca se enleia; e sempre nos traz, a cada um e a todos, no seu
sulco.
Outras ilações pressentimos ainda entre as fugidias naturezas da espiral e do
quadrado mágico, dissecados aqui com instrumentos pouco agudos. Entanto, não as
captamos. Se bem possamos ler, com outros olhos que não os de turvar o visível, as
cinco palavras latinas nas conchas dos moluscos, nos ciclones, bem como em chifres
de caprídeos, de ovídeos e de antílopes, muitas relações permanecem além de nosso
alcance, como uma música que, meio adormecidos à margem de um rio, ouvimos,
noite alta, cantada por alguém numa canoa que desce a correnteza. Nossa mente
assegura-nos que a melodia continua, sem que os sentidos confirmem tal certeza.
Descobrimos, sim, uma diferença a guardar: o quadrado suscita a idéia de
espaço; a espiral, a de tempo. A esse respeito, não deixa de ser curioso que os
relojoeiros, em suas tentativas de aperfeiçoar os medidores de horas, tenham
imaginado uma tênue peça em forma de espiral, o cabelo, coração dos relógios. Cerra-
se também em espiral a mola que os impulsiona.
Conclui-se que a idéia básica do livro assenta sobre elementos claros, nítidos e
nem por isto menos esquivos. Imita, em seus pontos principais, antigo poema
moralizante. Busca, porém, descrever apenas relações entre várias mulheres e um
homem, delineando-se por esta via profana um trajeto que o protagonista ignora e
cujo significado, para o autor, não está ainda definido. Tendo presentes a espiral e o
quadrado, um ponto evidencia-se, iluminando as criações do romance com um pó que
as transfigura. Aí estão, homem e mulheres, inventados para ajudar o autor a
desvendar uma ilha do mundo — e tudo, personagens e fatos, vem de um começo
inalcançável. Nos seus gestos, triviais ou mesmo obscenos, eles buscam decifrar um
enigma. Têm de fazê-lo. Vibra dentro deles uma presença que não se pode negar ou
esquecer. "No fundo da cisterna", diz o poema em que o livro se inspira, "olho através
das águas e entrevejo o Todo. Sol e peixes misturam-se."
Com a função de tornar bem claro o plano da obra, encimam as subdivisões do
texto, além do título, uma letra e um número: a letra para situar o tema no quadrado; o
número para indicar se o tema está sendo introduzido ou voltando (pela quinta, pela
décima, pela vigésima vez). Quanto à natureza dos temas, em número de oito,
correspondentes às vogais O-E-A e às consoantes P-R-S-T-N, qualquer palavra seria
excessiva.

A 10

ROOS E AS CIDADES

Bonés de ferroviários, chapéus masculinos, gorros numerados de carregadores,


cabeleiras soltas de mulheres, Anneliese Roos está no Hotel Beethoven, frases
incompreensíveis cruzam-se, entrego a bagagem no depósito, saio para a tarde frígida
e ainda clara. Beethovenhotel, Beethovenstraat, 49. Estudo no mapa de Amsterdam o
percurso dos transportes urbanos, tomo um bonde e vou acompanhando as suas voltas,
com os olhos no mapa e nas placas das ruas — essas constelações que confirmam a
indicação do mapa —, atravesso jardins e quarteirões sempre mais próximos do meu
destino, avanço, simultaneamente, através de uma cidade e de uma língua que
desconheço, e de súbito, em letras luminosas, verdes, o nome do hotel.
Ainda não voltou da MACROPACK. Deixo um cartão, agora tomo um táxi, volto
à estação, apanho a mala, hospedo-me no primeiro hotel que encontro.
A voz de Roos, vindo até mim através dos canais ladeados de olmos, das igrejas, dos
estabelecimentos bancários, das oficinas de lapidação de diamantes:
— É você mesmo? Não pensei que viesse.
— Jantamos juntos?
— Esta noite, sim, estou livre. Não é sempre que posso sair. Sabe? Trabalha-se até
tarde na Exposição.
À porta do Chevalier d'Or, uma armadura dourada, o elmo descido: um
cruzado irresoluto, extraviado entre os clientes, que entram salpicados de chuva.
Ecoam as vozes de um lado a outro do salão, intraduzíveis. Soariam deste modo as
vozes dos invasores — Joost van Trappen ou Caspar van der Ley —, os militares e
mercadores flamengos que aportam a Pernambuco no século XVII? Roos, num vestido
cinza de lã, o colo abrigado em um lenço amarelo, dirige-se ao garçom e eu não sei
qual das palavras que diz corresponde ao peixe, aos legumes, ao vinho. Isolado, com
ela, na ilha idiomática comum, ouço-a e — procurando com zelo os termos precisos
— conto-lhe a viagem, atento ao modo como a sua pele, tecido brando e, em certo
sentido, ilusório, absorve a claridade. As lâmpadas, o reflexo nos pratos e no metal da
baixela, o vinho aromático — tão dourado quanto a armadura —, tudo parece instigar-
nos a expansões. Fala-me Roos (de mapas e tesouros?) no seu francês composto e
neutro, e, da mesma forma que os pavões ostentam as cores da cauda, logo ocultando-
as, as cidades que abriga — todas radiosas nesta noite em que, extasiado, esqueço o
peso do mundo — tornam-se visíveis, sem que ela interrompa a frase iniciada e sem
que gesto algum me autorize a concluir que a revelação é voluntária.
Vestimos os casacos, apertamos a manopla oca da armadura, saímos e logo
compreendo que os ruídos e as cintilações do salão falam por nós. As lâmpadas, do
alto dos postes, refletem-se nas ruas molhadas e nós vamos lado a lado, trocando
frases banais. Grandes coroas de flores postas nos passeios — nomes de fuzilados nas
fitas ainda úmidas da chuva — alternam-se com bicicletas estacionadas. "Pode tomar
meu braço, Roos." Vívida impressão de que um cortejo nos segue, invisível — mas o
tênue e compassado rumor dos nossos passos dissolve-se no silêncio. "Você escreve,
Abel?" "Sim. Mas publiquei tão pouco até hoje! Um ou dois contos. Só. E já tenho
quase vinte e oito anos. Sou dos que custam a amadurecer e talvez não amadureça
nunca. Sinto e ajo como se tivesse vinte ou vinte e um anos. Creio que já era tempo de
ter escrito alguma coisa válida." Um vento inesperado traz o som de vozes, homens
cantando. Marinheiros bêbados? Os caixilhos brancos cias janelas, as pardacentas
fachadas realçando as molduras. Todas as luzes apagadas nos interiores. O leve, o
alado peso do seu braço no meu. Qualquer coisa de íntimo nesta confiança, mas a
pressão, de tão leve, preocupa-me, é como se o braço estivesse suspenso por pássaros
em vôo. Sinto gerar-se a fuga e finjo ignorá-la: um gesto precipitará o fim. "Não sei se
amanhã posso livrar-me da MACROPACK. De qualquer modo, se puder, será somente à
noite. Telefonarei." Já estamos próximos ao seu hotel. O passeio termina e talvez só
em Paris eu volte a encontrá-la. Nossas palavras tornam-se mais raras, mais surdas,
mais lentos nossos passos. — Roos, amo-a.
Detemo-nos. Seu rosto, claro como se o luar o iluminasse, volta-se para mim.
Pela primeira vez, com leveza idêntica à do seu braço no meu, beijo-a. Ouço um rufar
de tambor, é um grande tambor, surge do chão brilhante o cortejo invisível que nos
segue, um estandarte sanguíneo ondulando entre lanças de metal sobre os chapéus de
feltro cónicos, de abas amplas, um clarão (vindo de Roos?) põe em relevo os rostos
vivos dos homens, ornados com perucas que descem até os ombros, destaca as golas
engomadas e lisas, as vestes da mulher que se insinua entre eles, a caixa do tambor e,
principalmente, o ataviado personagem que vem à testa da ronda. Lanças
entrechocam-se, avulta o bater ritmado do tambor, esse rataplâ nas ladeiras de Olinda,
cada vez mais próximo o tropel das botas com polainas de batista, vozes, risos,
risadas, barulho de colares, estalar de línguas, roçar de tecidos, somos atravessados
como a própria rua pelos homens, pela mulher que os segue, os tambores vibram em
nossos flancos, o estrépito das botas (o mesmo que estremece as paredes do Recife)
repercute forte em nossos pés, o latejar dos seus sangues pulsa em nós e ouvimos
sobre nossas cabeças descobertas o adejar do imenso estandarte cor de vinho.

T 3

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Se passo horas na sombria umidade da cisterna e se lanço a rede até não poder
mais, não é com apanhar algum dos poucos peixes aí prisioneiros: procuro fazer, deste
ato ocioso e que executo mal, um eixo em torno de onde giram, nunca chegando a
termo, minhas indagações sem cabeça. Só, sob a cobertura — estalam as folhas de
zinco, nas noites mais quentes —, vou jogando a rede, colhendo-a e indagando.
(Onde? O quê? Por quê?) De respostas, nem sinal.
Estou sem camisa, jogo no chão os sapatos e desfaço-me das calças. Ouço,
como em outro ponto do tempo ou da memória, o vozerio e as risadas — do
Tesoureiro, da Gorda, de Leonor, de Augusto, de Mauro, de Cenira, de Cesarino, de
Isabel, de Janira, de Lucíola, de Damião, de Eurílio, de Dagoberto, de Estêvão, a
dispersão e o desacerto já instalados entre nós, sem que ninguém perceba o seu odor
nas roupas, nos hálitos e atrás das portas. A decisão de saltar, mergulhar na água
sombria e desprender a rede, empurra-me. Ordem enérgica ante a qual não ouso
refletir. Mais uma vez puxo a rede, que não cede, e enrijeço o corpo para o salto. É
quando um quem, um quê ou um ninguém me segura pelos rins e desarma o impulso
iniciado. Está mergulhando para o Nada, Abel? Hein? Em pagamento de quê? O mar
desfaz-se nas pedras. Mais uma vez a asa luminosa e leve do farol. Ajoelho-me, nu, à
borda da cisterna. Vejo-me (como quem toma um revólver, faz girar o tambor (roleta-
russa: há no tambor uma bala), volta a boca do cano para a fronte, arrepende-se e
aponta para longe, aperta o gatilho, ouve o tiro), vejo-me nas águas negras, entre os
peixes, emaranhado na rede, tentando vir à tona sem poder. Quem ajunta esse peso
aos chumbos da rede é a Morte. Penso isto e o sortilégio, se há, rompe-se — a rede se
desprende e eu recolho-a. Um peixe se debate entre as malhas. Tateando, apanho-o. O
corpo rabeando com aflição em meu punho. Atiro-o à água e me deito no cimento,
exausto, como se na verdade houvesse mergulhado, lidado com o Não, escapado.
Vozes e sons de instrumentos musicais rolam pelo declive. A flauta de Eurílio,
músico precoce, Leonor com o seu bandolim, os dedos infantis de Janira ou Isabel no
piano meio rouco. Gorda e alva, minha mãe na cadeira de balanço, as solas dos
sapatos já um pouco delgadas. Impressão de ouvir passos mortos afastando-se. Os
passos da Leve! Acaso não serei o quem, Abel? O onde? O porquê? Não é a mim que
procuras? Estendido ainda à beira da cisterna, inventando estas perguntas e
percebendo esses passos, não me acodem expressões ou idéias de terror, de gratidão,
de alívio. Volto-me de borco e um nome escorre, cuspe grosso, entre meus dentes cer-
rados: Cercírlia. Cercília? Ercília, talvez? Cecília? Nesta noite, Cecília e eu não nos
amamos ainda. Ainda desconheço-a. Conheço, entretanto, uma Ercília. Tenho nove ou
dez anos e alguém me impele na sua direção. De luto, sentada na sala, junto ao piano
e envolvida num halo pesado de abandono, ela me olha séria. "É Ercília, a viúva do
seu tio Abel. Ele morreu afogado. Lembra-se?" Beijo os dedos de Ercília, frios, com
este mesmo cheiro de cisterna, limoso e úmido. Anda por onde? Não torna a visitar-
nos, sua figura é esquecida, seu nome é esquecido. Meu tio Abel arrastado pela
correnteza. Temos o mesmo nome, ele e eu.

O 11

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

O seio da mulher, esfera alva e pejada, desfaz-se num sabor tépido. Penetra-
me o espesso perfume que a envolve. Vejo-a pela primeira vez e ao mesmo tempo a
reencontro. Ela não sabe que a vejo. Pálida, parece ainda mais pálida em seu
esgarçado roupão de seda negra. Negra ou escarlate? Na penumbra do quarto, tudo é
igualmente vago e nítido, familiar e estranho. Já não contemplo no meu corpo a
criatura-em-mim, já não existem escamas, plumas ou asas temporárias; pés, tronco,
mãos e rosto, inseridos nos meus, pertencem-me; tenho nos meus olhos os seus olhos,
aos meus incorporados. Vejo sabendo e vejo sem saber, vejo tendo visto e vejo sem
ter visto nunca: inauguro este dúplice olhar nunca fundido num só. Sugo, sôfrega, o
peito da mulher, ela murmura. Em minhas mãos, vejo deslizarem (réstias?, pequenas
salamandras fluidas?) enxames delicados de manchas para mim ainda indecifráveis.
Mergulho outra vez na escuridão, na fuligem. Atravesso lentamente as noites,
noites sem dias, montada num cavalo. O cavalo tem um chifre brilhante entre as
orelhas e no casco esquerdo traseiro há um ferimento, ele marcha com três patas,
soluçando, aos saltos. Nas intermináveis noites, passa de tempos em tempos uma
estrela cadente e eu vejo à luz da zelação que o animal é verde. Passamos por cidades
escuras, rios de lama negra, galgamos montes de trevas e descemos encostas ainda
mais sombrias. Uma das cidades, situadas neste caminho que não sei se é reto ou
sinuoso, cheira a frutas; todas as pessoas, fechadas nas casas, comem em silêncio, sem
nada ver, safras de laranjas, de abacaxis, de melões; dentro das casas ou nos seus
quintais há pessegueiros, pereiras, macieiras, árvores pesadas de frutos. Num dos
vales invisíveis alguém martela um ferro, não seguidamente, mas a largos espaços e
uma pancada é igual à outra. Acende-se na noite (em que noite?), extraviado, sus-
penso, sob esta neblina de quinze anos além, um anúncio luminoso, branco e
vermelho, um escudo com estrelas, imenso, sobre grandes letras. Acende-se e apaga-
se. Uma pulsação. Atravesso outra cidade — não tem perfil, não tem nome, nenhuma
é visível, nenhuma tem nome —, todas as portas batem, portas e janelas, as distantes e
as próximas, batem, já estou longe e ainda escuto-as, batem.
Sobre mim, apenas o vestido, os anéis, as pulseiras, o colar e os brincos. Abel,
os pés nus, toca nos meus, suas mãos e seu hálito desarmam-me. Em meu corpo
invadido, que governo ainda? Crocodilo e coelho correm no meu sangue, correm no
seu, passam dos seus ombros para mim, dos meus joelhos deslizam para os seus.
Dentre os motivos geométricos, dentre as negras ramagens, dentre as franjas e os
sossegados ramos, nascem cabras com chifres longos e recurvos, cabras de pêlos
brancos, no cio, cadelas com cabeça humana, leoas, todas sem vida, mas galopam e
saltam, berram as cabras, urram as leoas, as cachorras ladram, enfio a língua na boca
de Abel, enfio a língua entre as flores que brotam em sua boca, duas cabras famintas
sobem dos meus pés, sobem à minha língua, devoram as suas flores, ele diz que me
ama.
Equilibro-me, sustenho-me nos pés, insegura — e dou um passo. Que
estranho, o peso do meu corpo sobre o chão! São muitos pesos, pendem e oscilam —
dos braços, da cabeça, das pernas — em busca de um centro. Passo ante o espelho,
vejo um rosto infantil. Meu? Em certas circunstâncias (à grande maioria das pessoas é
vedada essa oportunidade), em certas circunstâncias, deitados, sob iluminação
apropriada, nem excessiva nem pouca, entrefechadas as pálpebras, pode-se ver a
membrana ante a pupila. Dispostas de maneira circular e com as extremidades
voltadas para o centro da íris, há cinco ou seis formas (impossível contá-las, devido à
rapidez com que se agitam) semelhantes a folhas, folhas ovadas, cujos pecíolos
ficassem ocultos. Dessas folhas sem cor e sem nervuras, só as bordas, constituídas por
uma espécie de luminosidade metálica, podem ser vistas; e movem-se, velozes, não
cessam de mover-se, como se uma força tentasse desfazê-las e toda a existência
dessas formas consistisse num embate para manterem íntegras a aparência de folhas e
a disposição circular. Vê-las, fascina, espanta e aterroriza: tem-se a impressão de que
o olho é habitado por serpentes. Vendo meu rosto ao espelho, idêntica é a minha
reação. Distingo uma ameaça tentando desfazer todos os meus traços. Meu rosto, a
cada instante, voltando a ser o que é, vários rostos batendo-se, rostos enfurecidos,
dotados de esporões, de garras, de dentes afiados, batendo-se entre si como as várias
cabeças de uma hidra. Minhas tranças, crescidas, presas com fitas de veludo azul,
tocam-me os ombros. Mais próxima do espelho, examino a risca ao longo da cabeça:
entre os cabelos, penteados em tranças, nasce agora uma penugem clara, cabelos
quase de recém-nascido, cabelos também meus. da outra cabeça, minha também,
incrustada na minha. Duas? Uma?
Ainda muda, evoco dia e noite o meu nome, intuído e buscado durante tanto
tempo. Pronuncio-o em mim, faço-o correr em mim, rolar em mim. Pedra cheia de
arestas, arredonda-se, seixo. Logo se dilui, dilui-se em mim, anilina, um matiz.
Descubro a palavra boca; eu, o pronome; o verbo ser, uma partícula, em. Dois termos
permanecem magicamente iluminados em meu novo mundo de limites, impossível
que é elucidar se designam uma fração do mundo ou o mundo inteiro: aqui; lugar.
Aposso-me da aditiva e, com seu dúplice poder de unir e separar, e então me divirto
em encontrar e confrontar noções afins: ir e voar, veia e impulso, cão e látego, centro
e espera, eu e vós, eu e eu. Meus dentes caem. Nascem outros, menores e mais frágeis
que os anteriores. Conquanto ainda não fale, vou armando em mim palavras que ainda
não existem. Tenderna é essa luz que evoca a porcelana e que vemos no quarto antes
do amanhecer. Lanstoso: o ar da pessoa que deseja agredir-nos e não o faz por temor.
Emarame-. ato de ir e vir ao mesmo tempo; e também o duplo, o indissolúvel
movimento, ante o espelho, de um corpo refletido em seu cristal, desde que ambos —
corpo e reflexos — sejam contemplados por alguém.

R 10

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Dos lóbulos corados das orelhas, rentes à cabeça e talvez um pouco largas na
curva superior, pendem brincos de forma variada, que tira e repõe. Os cabelos, quase
sempre, avançam sobre o rosto. Joga-os para trás com as mãos translúcidas e um
erguer de cabeça que realça a linha saliente dos seios.
— Muitas vezes mais dolorosa que os partos comuns, por mais difíceis que
sejam, a expulsão do Iólipo. Nada, entretanto, faz a gestante supor que traz em si uma
variedade tão rara da espécie humana. Sabe-se que o número de iólipos, em cada
geração, não chega a seis no mundo.
Quase ao pé do cais em T, planta-se, sentada à esquerda, uma velha de
aparência rude; o chapéu de feltro desabado cobre parte do seu rosto; tendo dobrado
as pernas, abriga-as com a saia ruça — roxa ou negra — e tão encardida quanto a
blusa vermelha. Com gestos mecânicos, substitui seguidamente as iscas do anzol; não
consegue fisgar um único peixe. Ainda desse lado, mas na asa do T, perfila-se um
segundo pescador, munido de luvas e agasalho de lã. No extremo direito do cais, sob
o poste cuja lâmpada o vento com certeza arrancou, o pobre homem mal abrigado
num plástico amarelo — com tão pouca sorte quanto a velha — sustém resig-
nadamente a sua cana. Entre ele e o homem de luvas, mais perto dele que do outro,
vemos o quarto figurante do quadro, de costas para nós, os pés pendendo sobre as
águas: tira e repõe a intervalos o chapéu, um chapéu incomum, azul e cónico.
Rege esses pescadores e os demais elementos da cena — as silhuetas delgadas
dos postes a um lado e outro do T, as pedras de atracação fincadas junto dos postes —
-, rege tudo isto um ritmo preciso e claro, uma simetria que, sabemos, o acaso nunca
oferece e que os leves desequilíbrios existentes fazem ainda mais tensa.
Eu e ʘ, aturdidos ante a coerência do que vemos, esperamos definir-se o
evento já em elaboração, peça a ser executada e anunciada na disposição caprichosa
desses elementos, sua introdução ou abertura. Aqui, através dos fios e dos nós sempre
emaranhados das coisas, aqui, fragmentos dispersos associam-se e entre si estabele-
cem um nexo que evoca a seu modo as narrativas. As narrativas e os eclipses. Um
barco a motor passa à distância com uma figura de pé na proa, faz um desvio junto
aos dois pesqueiros ancorados e avança, o compasso abafado do motor espraiando-se
no silêncio da tarde e parecendo separar com um traço a cena do cais, estática, das que
devem seguir-se.
Natividade ante a sua almofada de rendeira, quatro bilros nas mãos. A pia,
limpa, cheira a potassa e as panelas brilham sobre os azulejos das paredes. Natividade
prefere fabricar nessa hora da tarde suas rendas, quando a quietude do apartamento
sucede-se às tarefas matinais e a posição do Sol torna a copa mais clara, favorecendo
os seus olhos que começam a ver menos. Vai mudando sobre o risco os alfinetes e
cruza em torno deles as linhas, os bilros de madeira estalando um contra outro,
sempre quatro a quatro, um par na mão esquerda e um par na direita, abandona-os,
toma outros dois pares entre muitos da almofada, trança-os. O rumor seco e breve das
cabeças dos bilros, polidas pelo uso de anos, ressoa alegremente no silêncio.
Natividade acha-o parecido com o dos corrupios ao vento e com o barulho de um fio
d'água entre seixos. Põe-se a cantar em voz baixa. O menino em quem concentra toda
a sua carga de amor — e que às vezes assusta-a com os seus olhos ao mesmo tempo
rapaces e neutros — entreabre a porta, teso e sem elegância, duro, o uniforme cinza
com vermelhos no quepe: "Mamãe está dormindo no sofá. Não cante". Ela interrompe
a canção e a porta se fecha sem ruído. Estalam menos rápidos os bilros.
Dois novos personagens se aproximam do cais, um de roupa escura, com botas
de borracha e gordo; outro de calção azul e camiseta branca, abrigado sob um velho
guarda-chuva. Vêm devagar, conversando, as varas de pesca na mão. Hesitam um
pouco sobre a plataforma, olhando em torno, sem que nenhum dos outros se volte
para eles. Caberá ao Congresso decidir se as eleições de 1970 serão diretas para
governadores e presidente da República. O cenário em que ingressam já tem as suas
leis: há, entre objetos e homens, um equilíbrio tão preciso e claro, que a indecisão de
ambos, creio, dissimula uma recusa, resistem a ocupar, no cais, os lugares para os
quais um ritmo subjugante impele-os. Afinal, o de botas apanha dois caixotes, avança
resoluto e os dispõe lado a lado, mais ou menos no centro do cenário, entre o tipo de
luvas e o de chapéu cónico. A simetria, evidente, também aqui não é perfeita. Há,
entre o burguês à esquerda e o primeiro caixote (onde se senta o homem de guarda-
chuva), intervalo um pouco maior que o observável entre o caixote da direita (senta-se
nele o de botas) e o obscuro figurante que, mais uma vez, tira e repõe o estranho
chapéu azul, sem voltar-se para os lados. Move ʘ a cabeça e olha-me, as narinas
acesas: sua mão forte aperta-me a coxa. O duplo baque dos caixotes, soturno, acaba
de demarcar, assim como a passagem, ao largo, do barco a motor, mais uma unidade
da composição que, à semelhança de um texto, ante nós se organiza e da qual somos
parte (pois não seria incompleta e, em certo sentido, perdida, inútil, se aqui não
houvesse alguma consciência que, contemplando-a, apreendesse o sentido que contém
— ou, ao menos, simula conter — e a seu modo o traduzisse?). A mancha amarela do
plástico afia ante o mar fosco.

O 12

HISTÓRIA DE ʘ NASCIDA E NASCIDA

Incerto, sopra o vento entre as antenas e os altos anúncios sobre os edifícios.


Dourado rumor de abelhas, semelhante a uma chuva, desce do Sol sobre a cidade em
decomposição. Abel diz que me ama e exalta meu corpo. As frases que murmura:
triviais, antigas (oh, meu amor! tão redondos e brandos teus joelhos), palavras sem
engenho — lisonjeiras, contudo —, e proliferam, desdobram-se, atam-me sem que ele
as pense ou pronuncie, atam-me. Guirlandas. És bela e desejável. Quando transitas em
meio à multidão, ouço teu rosto, como se fosse um cântico, um solene e jubiloso
cântico alçando-se da brutalidade. Mesmo sem te ver, sei que te aproximas. Mesmo os
distraídos, mesmo os corretores, ouvem a tua beleza. Amo-te. Teu corpo é uma
câmara sombria e acolhedora, cercada de miasmas. Afluem a este recinto, purificados
(ou apenas evocados?), o hálito nauseante dos pregoeiros da Bolsa, o negro oxigênio
expirado pelas fábricas, as exalações dos mortos e dos automóveis, o odor de sepulcro
que flutua ante os cofres abertos e as caixas registradoras, o pó das demolições, o suor
dos oprimidos, as fezes revolvidas nos esgotos pelas escavadoras mecânicas, tu
mesma abrigas algumas podridões, mas em ti o mundo transfigura-se. Como em um
texto onde ecoem as penúrias do mundo, mas denso e rítmico, e escrito amanhã. És
bela. Estar contigo é um dom como o de ver, como o dom de ouvir. Insensato seria
estar junto de ti e não fruir o que és. Se ouço, devo agir como surdo? Não deverias
nunca perdoar-me se, conhecendo-te, não te desnudasse e unisse o meu ao teu corpo
eleito. Eu te amo. Tua língua, pelo desejo aquecida, recende a almíscar. Este é o odor
com que a mariposa aquerôntica chama o companheiro. Conserva, pois, tua língua
escondida em minha boca. Não vão as mariposas em busca de fêmea invadir a sala e
unir-se à tua língua recendente, certas de que o fazem a um novo espécimen, rubro e
ágil. Não vá a tua língua preterir-me em favor de alguma mariposa evocadora da
morte. Como eu te amo! Perfeita em sua nudez é a vastidão celeste. Nem por isto é
excessiva ou reduz sua beleza a presença das nuvens passageiras. Perfeita em sua
nudez é a folha de papel ainda nâo escrita. As palavras com que as escureço não
restringem ou diminuem a sua perfeição. Assim, também, os adereços que trazes em
teu colo, em tuas orelhas, em teus dedos, em teus pulsos: nuvens na altura, palavras na
alvura. Há tanto eu te desejo! Teus peitos, alvos e nédios cordeiros, vagarosamente
passeiam em minha pele. Tilintam, quando se movem, seus bicos acobreados. Ouço-
os: guizos delicados.
Tomo em minha mão seu sexo alteado, sinto pulsarem a glande acetinada e as
veias. O sangue pulsa, pulsa no seu sexo, no coração do sexo — esse pássaro. Um
frêmito: é como se tentasse fugir, escapar à pressão das minhas unhas. Um marco, o
centro do corpo. Afago-o, afago docemente este obelisco, este arpão ereto e elástico,
com seu focinho de lobo. Sondo, com as pontas dos dedos, dentro da carne, o seu
começo ou seu fim e não o encontro, ele continua para dentro, para dentro do ventre,
por mais que eu cave com os dedos não o perco, ele continua (onde começa? onde?),
impressão de que prossegue pelo corpo adentro, enreda-se em caudas, dá voltas, uma
planta, arbusto rijo e vibrátil incrustado no corpo deste homem, com flores nas raízes,
flores e frutos, flores de um verde carregado, frutos de um rubro semelhante ao dos
figos.
A luz se decompõe nos prismas? Assim suas palavras. Ele me fala e as suas
palavras, dentro de mim, se desdobram em outras, não articuladas. Querida! Enlaça-
me em teus braços macios. Enlaça-me em teus braços ternos. Ao teu lado, meu corpo
já não sabe como expressar o seu contentamento e enche-se de asas inquietas. Prende-
me em teus braços perfumados, para que a minha alegria, alada, não me arranque à
minha alegria. Meu amor! Teu ventre é cálido. Pedra ao Sol. Teu ventre é fresco.
Pedra sob a água. Eu te desejo. Como deslizam em teu sexo meus dedos! Escondido,
sob impalpável penugem, entre as nádegas boleadas e ondulantes, teu ânus. Violeta
ausente. A maciez das tuas ancas é silenciosa. O mel do teu deleite umedece-me a
palma e cheira a rosas. Teu sexo me chama. Chama-me do fundo do teu ventre, é um
apelo claro e tão imperioso como o que nos vem, às vezes, em sonhos. Teu sexo me
chama e proclama seus dons: "Sou feito de bocas, de lodo na sombra, de mãos, de
flores, de peixes ávidos, de tardes estivais, de lagar-tas-de-fogo. Verás como hei de
com dez bocas sugar tua virilidade, verás como deslizas entre ladrilhos úmidos,
limosos, verás como hei de com inúmeros e ajuizados dedos esmagar teu pênis (como
quem esmaga uvas, mas teu pênis será um racimo esmagado e sempre renovado) e
como tentarei com os mesmos dedos fazer com que a tua bolsa viril, mais valiosa que
uma bolsa de pérolas, mais valiosa que todos os alforjes de ouro e diamantes, com que
a tua bolsa, esse tesouro zelosamente escondido, inunde-me, inunde meu útero com o
tépido caldo do teu sangue, verás como hei de fazer-me em pétalas e que brandura
haverá em torno desse invasor, verás como nada haverá de magoá-lo, como o cingirei
com flores amarelas e vermelhas, como choverão, sobre o hóspede, botões-de-ouro,
azáleas, brincos-de-princesa e digitalis, como morderei a tua isca e como, para não vir
à tona, arrastarei com ânsia, para o fundo, cada vez mais, a isca, o anzol, a linha, a
vara, o pescador e a tarde, verás o brando calor com que o cingirei, um calor de chão
ensolarado, de mormaço, verás como apesar de tudo haverei de em minhas
pregueadas sedas envolver teu sexo e queimá-lo, fazê-lo arder no meu fogo, no meu
fogo, sem jamais o consumir". Amada, teu sexo me chama e articula, com doce
veemência, todas as letras do meu nome. És linda. Amo os teus cabelos, teu
semblante, os caracóis do teu púbis, tuas coxas opulentas, amo a formosura que
ostentas. Mais do que tudo, porém, amo teus pés delicados: eles trouxeram-te a mim.
No côncavo da mão, sopeso docemente os seus grãos e ocorre-me que
sustento, no côncavo da mão, a sua voz. A voz que me fala, que me enlaça, que exalta
a minha pele, o esplendor da minha carne, tudo nasce aí, nessas sementes, sim, não
apenas o desejo, a força que elabora as palavras e as destila, mas também o timbre
dessa voz, sua sonoridade, a voz, essa voz de bordões. Amado meu, amor, meu sexo
te chama, invoca o teu, esse deus pulsador e cercado de chamas. Verás como haverá, a
tua salamandra, de crescer dentro de mim, expandir-se em mim, tomar-me o ventre, as
ancas, invadir meu corpo, ser meu corpo, reinar em mim, em mim reinar, em mim.
Morde me.

T 4

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Prostrado no cimento úmido da cisterna, o nome estropiado que articulo é


outro — não o de Ercília, a viúva do meu tio — e eu falo como de dentro da cegueira.
Um cego, ainda. Só quando prendo em minhas mãos o rosto de Cecília, ferida de
morte, só então vejo claro: é o seu nome, o seu e não o de Ercília, que desliza no
tempo e faz-se audível aqui entre meus dentes cerrados: é a sua vida, a sua, não a
minha, que recebe a sentença nesta noite; sou eu que marco a sua hora — e também o
lugar, e a circunstância — não me deixando colher, morrer, presa da minha rede.
Vultos que eu amo erijecem, emudecem no seu rosto, volto a sentir, contemplando-a,
este cheiro de cisterna, ouço um peixe saltando, ressoam ainda uma vez essas vozes
distantes e esses instrumentos já então em silêncio — e no fundo do meu ser
decomposto eu deploro não haver mergulhado, morrido afogado, enredado nos meus
fios. Eu a salvaria, com isto, para tão outras manhãs! O mar golpeia as pedras, avança,
corrói as fundações na praia dos Milagres. Cecília, a cidade de Olinda, o Tesoureiro, a
Gorda e meus irmãos, tudo a caminho do aniquilamento.
Hermelinda ou Hermenilda move-se entre os viveiros e gaiolas de canários, ao
sol. Da rede, olho a outra, a irmã, tirando o bandolim do estojo, lentamente. Gatos
passeiam no alpendre. Há dezesseis anos de permeio entre esta tarde de domingo na
estrada das Ubaias e a noite em que sou tentado a desembaraçar a tarrafa no fundo da
cisterna. (No casarão de Olinda pouco se reúnem ainda, incompletos, sob a chefia do
antigo Tesoureiro — com o pigarro insolente reduzido a uma tosse baixa de
humilhado e sempre de tesoura na mão, recortando o Diário Oficial —, os cantores e
músicos dos meus dezesseis anos.) Através do portão roído de ferrugem, com o
pequeno sino de cobre, vejo o sol batendo nas velhas frontarias e nas rótulas, do outro
lado da estrada. Um homem, acompanhando um casal de crianças, aponta algo à
distância, talvez um papagaio: estamos a duas semanas de agosto, mês de ventos e
ressacas. Hermelinda, sentada no banco de vinhático, o velho rosto inclinado, tem a
mão no ar, a direita, prestes a ferir seu bandolim. A irmã numa cadeira de vime, os
dedos cruzados entre os joelhos, inclina-se atenta para a irmã e me olha de viés, meio
sorrindo. São quatro e meia da tarde e a sombra do chalé já atinge os viveiros, as
cristas-de-galo e as dálias sem viço plantadas entre eles. Os pássaros dos viveiros e os
canários-do-império, nas gaiolas fixadas à parede ou às colunas finas do alpendre,
aguardam, os ouvidos ocultos na plumagem, que a palheta de Hermenilda desperte as
cordas tensas. No degrau do alpendre: um gato deitado; outro junto ao portão; dorme
um terceiro no peitoril da janela, a cauda pendente; à porta da sala de jantar, vindo em
nossa direção, outro ainda, uma das patas levantadas. O diálogo previsto já foi
pronunciado: "O senhor pode pensar que antes eu tocava muito melhor do que hoje".
E a irmã, as mãos entre os joelhos: "Isso mesmo. Passava do almargem. Hoje, com a
idade, os dedos não são aqueles. Mas posso estar mentindo".
Hermenilda rompe a imobilidade e fere com energia insuspeitada as cordas do
instrumento. O gato, na porta, pousa a pata no chão, o homem no outro lado da
estrada baixa o braço e vai-se com os meninos, saltam os pássaros presos, erguem os
bicos e de muitos modos soltam o canto, não só esses que eu vejo ou os que sei exis-
tirem, mas ainda outros de que não suspeito e que respondem a Hermenilda, de modo
que o chalé aumenta, expande-se, revelado pela voz dos cantores nele ocultos.
Pássaros cantam ainda no telhado e no quintal, sob as árvores frutíferas. Qual o
parentesco entre a velhice, a incongruência e o caos? Os fios soltos no mundo serão
mesmo o reverso do tapete a que se reporta um pensador? Quem pode garantir que
existe, oculta aos nossos olhos, a face do desenho? Predominam, vejo bem, a
senectude e o avesso. Mesmo assim, um ponto ou um ato existem no qual tudo se
ordena e começa. Não? A cantoria dos pássaros volta ao bandolim, volta a
Hermelinda, ela bate nas cordas com mais força e ânimo, a irmã bate palmas com suas
mãos de cortiça, sem fazer barulho, os gatos, bichos de ouvido fino, continuam
deitados ou se movem indiferentes, os cabelos brancos da bandolinista desarranjam-
se, distende-se a pele, as rugas mais rasas, ela fecha os olhos e com os molares que
restam vai mordendo a língua.

A 11

ROOS E ÁS CIDADES

Quanto desejaria encontrar a Cidade cuja imagem aparece-me uma tarde,


miniatural, vinda através de mares e estações, como o espectro de um pássaro ou de
um antepassado! Será possível, entretanto, reconhecê-la? Não deve ter-me chegado
completa. Torres e tetos, na sua migração, ruíram em parte e é possível que
vegetações, muros e até pontes lhe tenham sido acrescidos, extraviados quem sabe de
que outras cidades. Acredito, por exemplo, que as tríplices muralhas não existam:
podem ter sido capturadas pela Cidade ao longo da viagem, cingindo-a, uma grinalda.
Grinalda de pedra, com ameias e portões. Muitos exemplos existem de semelhantes
acréscimos e perdas. Quantas vezes evoca o Tesoureiro o episódio — nunca decifrado
— do seu parente que morre com os dois braços e ressurge mutilado anos depois? Na
cabeça, apanhado em não se sabe que belchior do Tempo, um chapéu que nunca
possuiu em vida, recoberto com penas de canário e posto um pouco de banda.
Um chapéu a mais e um braço a menos. Também conservo o recorte de jornal
com a história do gravador norueguês Helge Nielsen. Expõe Helge Nielsen em
Londres várias águas-fortes do quadrúpede visto por ele uma tarde de agosto, junto ao
muro da sua casa em Oslo, lambendo a pata esquerda. O naturalista Edwin C. Porter
identifica o espécimen, desaparecido há um milhão de anos, adiantando que algo
modificou sua conformação, faltando-lhe, na gravura de Nielsen, a cauda original,
além de pequenos outros pormenores, sendo inteiramente fora de propósito a espécie
de tromba que ostenta, por momentos, junto ao muro do artista. Desenhos encontrados
nas escavações de Enússia comprovam a afirmação de Porter.
Sim, a Cidade, certamente, não é igual à imagem que um dia me aparece e
logo submerge. Acredito, porém, que a reconhecerei — e assim busco-a. Não que
saiba com qual fim e por quê. Sim, sei. Vendo-a, encontrarei — e o verbo, neste caso,
em si mesmo termina, é como se eu dissesse: cantarei. Canta-se uma ária, uma
canção; disto não se pode fugir. Será preciso acrescer, para que se compreenda o
sentido do ato de cantar, o que se canta?
Contudo, é possível que eu venha a descobrir, na Cidade, alguma coisa — e a minha
atração por Anneliese Roos, meu interesse por ela, a continuidade com que me ocupa,
desde o domingo em Amboise, a mente e os sentidos, leva-me a perguntar, incerto, se
acaso não me espera, na Cidade procurada, a claridade — ou então um objeto, um ser
de que a claridade constitua a substância ou mesmo o avesso. Porque a claridade é a
marca de Roos. Uma claridade que não ajuda a ver e que talvez ofusque. Ainda assim,
Roos, essa cidade, impressiona-me por sua oposição às sombras. Imagino: ela
atravessa o mundo com o encargo de não deixar que a noite prevaleça. Na luz com
que Rembrandt assina os quadros ou no reflexo das chamas sobre uma peça de metal,
sobre uma garrafa, sobre um rosto, inclino-me a ver, é irresistível, ressonâncias de
Roos. Algo assim impulsiona o capitão de Melville. Entregar-se-ia ele a uma busca
tão obstinada se a baleia que o faz revolver sem descanso o Oceano fosse de uma cor
azulada como os demais cetáceos — e não branca?
São suposições que parecem confirmar-se enquanto vago entre os canais, as
ruas e os museus, cruzando o dia, este rio largo e ensolarado, oride na margem oposta,
na margem da noite, talvez reencontre Roos. Disp(em mil impressões)erso-me.
Misturo-me com apressados homens de negócio e despreocupados visitantes, ouvindo
o marulhar das águas e o motor do barco vejo passarem ante mim edifícios cujos
nomes (Rembrandt, Cornelis Ketel, Salomon Mesdach) vêm à deriva, Casa das
Cabeças Esculpidas, dos Medidores de Cereais, Arsenal Velho, acompanho um grupo
de escolares vestidos de vermelho, alguns soprando flautins, todos com flores
amarelas no peito (Frans Hals, Pieter Pietersz, W. van Valckert), contemplo os navios
que atracam, lentos, com gaivotas em tomo da mastreação, enquanto outros partem
com um grito de sereias (há delicadas cortinas nas janelas das casas e dos barcos),
estudo a evolução de Van Gogh, vagueio entre as mercadoras de flores (em muitos
peitoris florescem gerânios), observo o vôo dos pombos, as resplendentes águias
pousadas nos telhados (e as numerosas bandeiras hasteadas evocam sinos festivos).
Como se estas impressões não fossem numerosas, em duas ou três se concentram,
simplificando-se: pombos, gaivotas, flautas de metal, reflexos nos automóveis, nas
bicicletas, nas águas, cortinas rendadas, sol nas vidraças, nuvens algodoadas, tudo
forma uma só coisa, uma só palavra incompreensível e luminosa; a pintura de Vincent
evolui das trevas, da fuligem, para ofuscantes trigais e girassóis; a luz perpassa como
uma melodia através das mãos e das faces, nos quadros desses mestres holandeses,
reinando com tamanha eloquência sobre a escuridão dos trajes e dos interiores que se
tem a impressão de ouvir, mesmo em artistas menores, a mesma frase: "Pouco a
pouco avançamos para a vidência".
Em Roos, essas vertentes parecem confundir-se. Ela abriga, dentre todas as
cidades que em momentos propícios diviso no seu corpo (nas quais incursiono e me
perco, sabendo que em breve daí serei arrancado e que logo haverei de voltar à cidade
onde eu me espero, espero por mim, à sua frente), a que procuro e entre cujos muros,
quando menos supuser, ver-me-ei, solitário; ao mesmo tempo, flui da sua pele, como
se muitas velas a iluminassem de dentro, um esplendor — talvez a expressão visível
do que sonho encontrar na Cidade, de maneira concreta, assim unindo a expressão e o
seu objeto, tal como se durante anos eu houvesse lido, em palavras díspares— vida,
ave, uva, sonho, hoje, ver—, as letras esparsas, ainda não unas, da palavra vinho, mais
tarde a palavra vinho, antes que existisse o vinho — e um dia, de súbito, encontrasse o
vinho, e o bebesse, e me embriagasse, e soubesse que vinho era o seu nome, e que
nele também estavam os sonhos, o hoje, a vida, as aves, as uvas, o ver.

S 10

A ESPIRAL E O QUADRADO

No dia em que Loreius, desesperado, mata-se diante de Tyche, Publius


Ubonius, entre os sobressaltos de um sono agitado, sonha com o Unicórnio. Os seres e
objetos dos sonhos, segundo a crença geral, são impalpáveis. O espanto de Ubonius,
ao despertar, decorre desta incongruência: no seu peito esquerdo há um leve arranhão;
estrias bem visíveis, e que logo desaparecem, marcam em diagonal a palma da sua
mão direita. No sonho, ao ver o Unicórnio, ele passara a unha no peito, para certificar-
se de que não sonhava; depois, segurara com força o chifre da besta, numa tentativa
de rebelião contra as ordens que dela recebia. O chifre, não liso nem de uma só cor,
porém dourado e branco (dois fios paralelos, mais ou menos acerados, contornando-o
em espiral, à maneira das colunas salomônicas), deixara as suas marcas na mão
rebelde e temerosa de Ubonius.
Indícios tão pouco vulgares fazem com que o sonho do negociante seja
conhecido em todas as esquinas de Pompéia, cruze o mar Tirreno, o Mediterrâneo,
chegue ao Egito e seja transcrito em documentos. O Unicórnio dava ordens a
Ubonius. "O Quadrado Mágico é a Terra", dizia-lhe. "Move-te pois de onde sonhas,
gira dentro de N, dentro de Pompéia, invade o E, o P, o E, o R, novamente o E, ainda
o P, mais uma vez K, não te detenhas." As determinações do Unicórnio obrigam
Ubonius a caminhar sem trégua, não por exemplo em direção ao Norte, mas em
espiral, sobre um mapa jamais visto, demarcado pelas cinco palavras simétricas. Em
outros termos, condenam-no a mover-se pelo resto dos seus dias, buscando a cauda da
Eternidade, em cuja extremidade encontrará, fincada como numa lança, a cabeça do
escravo, único ser no mundo com o poder de perdoá-lo pelo mal de haver-lhe roubado
o segredo.
Publius Ubonius nào tem ilusões: a peregrinação será interminável. Decide-se,
mesmo assim, a empreendê-la, discutindo-a antes com todas as pessoas que encontra.
Um mercador de Lâmpsaco, a terra de Loreius, havendo debatido com Ubonius,
durante vinte horas seguidas, o seu sonho, e preocupado, não exatamente com a
ordem dada pelo Unicórnio, e sim com o fato de que este, criação de um sonho, desse
ordens, convence Ubonius de que tudo isto deve ser entendido de outro modo. O
Unicórnio, e muito menos um Unicórnio onírico, ainda que nos deixe na mão a marca
do seu chifre, não tem poderes sobrenaturais. Faça a distinção. Haver engendrado, em
sonhos, um Unicórnio que lhe dá ordens, significa que o homem — seja na vida, seja
na arte — tem de elaborar, juntamente com outras coisas, criações que regulem os
seus atos e as suas próprias criações.
Que sentido têm, por exemplo, tuas preocupações com a divindade, se não
alcançaste sequer uma moral? Qual a importância de especulares, como fazes, sobre o
incompreensível, a ponto de prometeres a liberdade a um escravo teu, caso ele
descubra uma frase que aplaque a tua fome de mistério, se és capaz de, desatento ao
mistério imediato das relações entre o homem e as suas descobertas, e sem respeito
algum pelo espanto do homem em face das suas próprias criações, roubar-lhe o que
naturalmente lhe pertence, violando-o em sua intimidade a ponto de o levares à
morte? O sonho, Publius Ubonius, significa que ainda não criaste o teu Unicórnio e
que precisas dele. Sem isto, és apenas um homem que dorme, embora fale dormindo.
As circunstâncias propícias acolhem estas palavras do mercador frígio. Vê
Publius Ubonius, num relance, a extensão dos seus enganos. Abandonando o hábito
de sobre tudo informar-se e de fazer perguntas sobre tudo, concentra as suas energias
em transpor para a vigília o Unicórnio do sonho. Uma manhã, ao despertar, o
Unicórnio está deitado junto à cama, olhando-o.
Pela última vez, a espiral desenhada sobre o quadrado mágico cruza a letra S.
Um dos temas do livro, o que confia ao leitor, com a permissão de Jano, as chaves
disponíveis sobre a organização do próprio livro, não será retomado. Essa
organização, fique em definitivo esclarecido, não foi inventada pelo romancista.
Imita, ponto por ponto, o longo poema místico, provavelmente escrito por um
contemporâneo de Ubonius, que o consagra ao Unicórnio. O poema ficou inconcluso
e o único exemplar existente, aliás numa versão grega, acha-se em Veneza, na
Biblioteca Marciana, com trezentos mil outros manuscritos, todos preciosos. Vêem-
se, aí, à maneira de Incipit, em belos caracteres latinos, agrupadas cinco a cinco, as
letras do quadrado mágico; sobre elas, com os centros no N, apagada em alguns
pontos mas bastante visível, uma espiral em cinabrio. O autor anônimo atribui a cada
uma das oito diferentes letras um significado místico: A é a Cidade de Ouro; T, o
Paraíso e a Unidade: aí o homem conhece a morte e é expulso; R, a palavra divina,
nomeadora das coisas e ordenadora do caos; E, a peregrinação humana em busca da
sabedoria; O, a natureza dupla (angélica e carnal) do homem; P, o equilíbrio interior e
o equilíbrio dos planetas, sendo o eclipse total sua expressão perfeita por representar o
alinhamento exato, embora temporário, de astros errantes; N representa a comunhão
dos homens e das coisas. Esses temas, no poema, são abordados ou retomados na
ordem em que a espiral cinabrina toca as respectivas letras. No presente livro, só a
organização daquele antigo poema é conservada. Esvai-se a grandiosidade dos temas.
Resta, quando muito, um halo nostálgico da ambição que inspirou o seu modelo, mais
de duas vezes milenar. E talvez a idéia, insistentemente repetida no velho manuscrito,
de que o Unicórnio circula entre estas páginas.

A 12

ROOS E AS CIDADES

Estendido no leito, a lâmpada acesa, espero, na outra margem da manhã, que


Roos me chame. O quarto é baixo, exíguo e a única janela dá para outra. O telefone
fica no corredor e vez por outra eu me levanto, desço as escadas íngremes, estreitas e
tão numerosas que custo a descobrir o caminho de volta, examino-o para ver se
funciona. Ainda não jantei. Tenho fome?
Quando me telefona afinal são mais de oito horas. Percebo com dificuldade a
longa explicação e custo a replicar. Uma coisa é clara: não nos veremos esta noite.
Sairá muito tarde e parece que o stand onde trabalha receberá a visita de
consignatários de Bonn. Haverá um jantar. Hoje? Amanhã? Indispensável que ela
esteja presente. Não irá pedir-me, é claro, que fique na cidade.
— Até que horas está aí?
— Dez, dez e meia, talvez um pouco mais. Em Paris nos veremos.
A sintaxe embaraça-me, agora mais rebelde, quando procuro
mostrar a incongruência: percorro quinhentos quilômetros, por via férrea, entre Paris e
Amsterdam, para ouvir que nos encontraremos no lugar de onde vim?
— Ouça, estou de serviço, tenho de ser breve. Sou grata pela visita, não acreditava
que viesse. Procure encarar as coisas de outro ângulo.
Novamente deitado, repasso a conversa. Saber até que ponto as alegações são
reais, interessa-me pouco. O que me preocupa é por assim dizer um diagrama. O
motivo condutor das nossas relações, como numa peça musical, acaba de ser-me
apresentado. Identifico-o: iremos de um extremo a outro, sem pouso nem encontro
verdadeiro. Disso estou convicto, como se os acontecimentos de que ambos
participaremos houvessem que nascer da minha própria invenção — e o Leitmotiv
intuído nesta espécie de abertura, por maiores aflições que me possa trazer, prende-
me. Tenciono resistir a essa entidade abstrata e anseio observar seu desenvolvimento.
Visto o sobretudo. Compro algumas rosas, vou à MACROPACK. Este homem de
ar perplexo, ante misturadoras de concreto, removedoras de terra, máquinas
tipográficas, guindastes, luzes fortes, painéis informativos, niveladoras, apetrechos
para indústria siderúrgica ou destinados a prospecções em jazidas petrolíferas, sem
falar nas mostras relacionadas com a arte da navegação, este sou eu. Quase não
reconheço Roos, com a sua maquiagem pesada de demonstradora. O setor onde
trabalha: fieiras de diamante para trefilação de metais, instrumentos destinados a
verificar a polarização dos raios luminosos ou a apartá-los em determinadas
substâncias, e também vidros, gemas naturais e artificiais, como o rubi hidrotermal e o
berilo revestido de esmeralda, além de estojos para jóias e caixas de ouro para
relógios.
Põe as rosas sobre um mostruário de pedras transparentes, diamantes, opalas e
obsidianas, protegidas por uma lâmina de cristal. Parece menos cansada do que diz ao
telefone (ou percebi mal o que disse?) e o nosso diálogo, não muito extenso e sempre
interrompido, gira em torno do seu próprio trabalho temporário. Esquecerei os dados
que fornece, com a neutra correção de sempre, sobre o fabrico das lentes para óculos,
como a temperatura e as outras condições a que são expostos a cal, a areia, o ferro e o
carbonato potássico; não prestarei grande atenção ao que me diz sobre as dificuldades
encontradas pelos especialistas para distinguir, nas pérolas negras, as falsas e as
legítimas. O que me prende é a sua explicação, concisa e ordenada, sobre
birrefringência ou refração dupla, descoberta primeiro na calcita, especialmente no
espato-de-islândia, mas verificável na maioria das pedras preciosas e em todas as
cristalizadas nos sistemas triclínico, rômbico e outros ainda.
Por isso estão as gemas separadas em duas séries. Aqui (indica as que jazem
sob as rosas, num gesto semelhante ao que faz para atrair o pássaro em Amboise) as
monorrefringentes. Na opala, por exemplo, um raio de luz incidente resulta num único
raio, refratado no interior.
Tento perguntar — e desisto, enervado, invocando um auxílio verbal que não
possuo — se atentou em Chambord para a dupla escadaria no centro do castelo. Duas
pessoas que usem ao mesmo tempo, Roos, essas duas escadas helicóides, vêem-se
mas não se encontram. Talvez ali esteja escrito, ou esboçado — eis o que desejo
dizer-lhe e não consigo —, o destino de muitos. O nosso, inclusive. Não iremos subir
a mesma escada, Roos, por mais que eu — e talvez até você — deseje o contrário.
Tanto uma escada como outra levavam a belos aposentos, com leitos baldaquinados.
Mas uma mulher e um homem só podiam ocupar a mesma cama se subissem a mesma
escada. Como dizer isto e acrescentar que eu desejaria esgueirar-me entre os
balaústres, unir-me a ela em todos os sentidos?
Às vezes — continua a explicar —, só se pode ver a dupla imagem com
instrumentos próprios. Como na andaluzita, onde a capacidade de birrefringência é
mínima.
Continuaria tão firme e despreocupada a voz se eu houvesse conseguido
interrompê-la?
Registro, enquanto sigo de trem para Antuérpia, suas informações, com as
minúcias de que posso lembrar-me. Relaciono, a seguir, além de Antuérpia, todas as
cidades que puder incluir, no trajeto, em minha busca. Pelo menos em dois pontos
levo vantagem sobre o infortunado herói de Melville: cidades são maiores que baleias
e não nadam com a mesma rapidez. Na maior parte dos casos, permanecem onde as
situam os mapas.
Passa de meia-noite, estou em Bruges, junto à porta de Ostende. Nenhum ser
vivo nas ruas, nos canais, nas pontes ou às janelas das mansões, todas cerradas e
escuras. A cidade, inteiramente deserta, lembra as que por vezes entrevejo em Roos,
todas vazias. Gélido, incessante, corta-a o vento norte. Hesito em dar um passo. Em
minha mente, há dois hotéis nos quais estou hospedado, idênticos, situados em
diferentes pontos da cidade, ambos construídos sobre fundações do século IX e no
local que foi, em outros tempos, estação da mala-posta. A única diferença entre eles é
ser um verdadeiro e ilusório o outro. Posso escolher, indiferentemente, qualquer dos
dois caminhos, o que hesito em fazer, receando tomar a direção falsa e, com isto,
extraviar-me de vez. Um hotel e um trajeto refratados em mim?
Em todas essas pedras (a mão de Anneliese Roos indica o mostruário), no
topázio, na ametista, o raio luminoso, incidindo, refrata-se em dois raios distintos. Na
titânia, no zircão, você pode observar o fenômeno a olho nu. Os dois raios implicam a
duplicação de qualquer imagem, seja luminosa, seja um objeto.

T 5

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Hermelinda e Hermenilda trespassam-se entre si. Observo-as, todo princípio


de mês, ante os balcões de pedra da delegacia fiscal. Usam dentaduras postiças, sendo
uma guarnecida com caninos de ouro. Tanto metem na boca uma peça como a outra.
Vivendo sempre juntas, perderam, distraídas, o controle que exercemos sobre o corpo.
Ambas deixam-se invadir e invadem a irmã. Venha uma de brincos ou, em dias mais
frios, com um fichu em torno do pescoço. Basta que se cruzem no saguão, uma
através da outra — e já os brincos mudam de orelhas e o abrigo de espáduas. Não só
os brincos, nem só o abrigo, ou os anéis baratos. As orelhas que elas trazem em maio
aparecem em junho nas cabeças opostas; trocam de língua, de voz; seus quatro olhos
mudam sempre de órbitas: uma transmigração se cumpre, uma troca perpétua, entre
esses corpos mirrados mas ainda eretos. Arrisco-me a supor que os pesadelos de uma
assustam a outra.
Hermenilda? Hermelinda?... Constato, ao travarmos relações, que se
interpelam usando livremente aqueles nomes. Acabo não sabendo com qual das duas
falo. Apesar do que ambas revelam de pouco habitual, e por mais que deseje estudá-
las na intimidade, observo-as ao largo. São elas ("Qual? As duas?") que me abordam,
afáveis, junto à caixa, dão-me o endereço e instam para que as visite, não em
conseqüência de algum incidente — favor meu, gentilezas — que as lisonjeasse, mas
por lhes caber uma função: a de me desviarem — a mim, sobrevivente da cisterna —
de caminhos afastados de Cecília, pondo-me, para alegria nossa, meu luto e perdição
dela, aqui, onde a sua existência ser-me-á anunciada e onde ela mesma, afinal, surgirá,
abrirá o portão, ingressará no alpendre com seu andar de lavandeira.
Prossegue a música de Hermelinda, a que os pássaros respondem. Levanto-me
da rede. Olho de uma em uma as gaiolas de junco, fabricadas pelas velhas, algumas de
formato original, com suas aves cantantes (corto e cruzo nomes de pássaros: papa-
campinas, xeúnas, ós, galos-de-capins, rios, curinás, caxéus, sagrabiás); rodeio a mesa
na sala de jantar, entro na oficina: gaiolas não terminadas, o rústico instrumental, o
perfume silvestre de verniz e de madeira lixada; em toda parte a evocadora valsa de
Hermelinda, em toda parte as gargantas ativas dos pássaros; aventuro-me à peça onde
ficam o guarda-roupa, a grande cama de casal, a cômoda: em cima, o santuário,
frascos de remédio, um mealheiro; o soalho da casa, de ladrilhos vermelhos, deve ter
sido lavado nas primeiras horas da manhã; evitando, ociosamente, pisar entre um
ladrilho e outro, torno à sala de jantar e vejo sobre a mesa, vejo, no centro de um pano
redondo de filé, um álbum de fotografias. Não o percebera? Com decisão e rápido,
como se no alpendre e nos quartos andasse à caça do álbum, apanho-o. Volto para a
rede, examino-o.
Obras do tempo em que os fotógrafos, não captando o artifício existente na
impossível naturalidade dos modelos e ambicionando dar uma impressão de vida aos
seus trabalhos, fixam atitudes e gestos só aceitáveis longe da objetiva. O
amarelamento das imagens e os danos das traças contestam a dolorosa aparência de
ação.
— De quem são estes retratos?
— Pessoas. A maioria, aí, já conheceu a destra. Teve o beneplácito.
— Sempre se recebe o beneplácito?
— Depende dos malfairos e da contrição.
Dois meninos de joelhos, sérios, no dia da primeira comunhão. Homens de c
éu e bengal , lado a lado, uma pe na estendida e o o har distante, como se a câmara os
surpreendesse num escasso silêncio entre diálogos profundos; mulheres sentadas,
otovel apoiado numa esa de és etorcidos; fechando graciosamente um leq entre as ãos;
moças de meias n gras e longos vesti claros, grande ç branco nos cabelos, sustendo
um livro com uma frol entre as páginas e os o os voltados para mim; outras em meio a
pedras e almeiras reais refletidas no telão ao fundo; ao lado de cães; famí s reunidas,
cada qual olhando numa direção: no centro do grupo, um casal de crianças com
chapéus de al vestidos de mar , segurando um ar ... Em meio a essa galeria composta e
descorada, onde já inclusive se dissolve a identidade dos modelos, salta-me de súbito
entre as mãos uma foto pouco hábil, datada de um mês, tirada em algum espetáculo
circense: uma jovem sorrindo para a câmara, tendo nos braços um leão ainda novo,
amordaçado. No verso, em letras achatadas e vagamente pretensiosas, esta inscrição:
Cercília não tem medo de leões. 15, junho, 1962. Cortado, porém, o R do nome.
Ouço (na estrada?) sons precipitados, cruzados, rodas e eixos, uma estrutura
pesada desmembrando-se. O álbum estremece em minhas mãos. Movimento algum na
estrada: a mesma paz. Mas Cecília, a que não tem medo de leões — as grades e a
sombra vertical das grades barrando seu vestido amarelo —, abre o portão. Inicia,
abrindo-o, uma frase metálica: o tilintar da pulseira no antebraço frágil, com pequenos
astros e moedinhas de ouro, o ranger do ferro nos gonzos não lubrificados, o badalo
de bronze na campainha de cobre, suspensa de um arco flexível de aço. Cai a aldrava
no encaixe, pesada. O mesmo ruído, o mesmo, de uma jaula cer-rando-se. Cecília, a
Madona dos leões?
O 13

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Ainda não falo. Sem falar, desagrego as coisas, desmonto-as, separo umas das
outras, reorganizo-as em mim. Removo, do edifício, o nosso apartamento; o edifício
(chama-se Martinelli), removo-o do quarteirão; o quarteirão, isolo-o da cidade.
Instauro brechas e vãos. O mundo é uma constelação de espadas regirantes e todas as
manhãs, esta pergunta me assalta: "Como sobreviver?".
Meu pai é alto, claro e fala pouco, através de uma corneta de chifre, que traz
pendurada ao pescoço por uma corrente prateada. Introduz a corneta na boca e a sua
voz parece vir de longe, desfigurada e sem inflexões. Impossível ler o que dizem seus
olhos: fita-me, por vezes, longamente, como se eu não estivesse à sua frente, como se
ele contemplasse uma recordação. Sempre de boina. A boina, posta de banda, ajuda a
manter no lugar uma orelha postiça, rósea, de borracha. Seu estúdio, que também
serve de quarto de dormir, tem as paredes cobertas com fotografias de artistas líricos
dos anos 20 ou 30, quase todas com dedicatórias. Sobre um piano que jamais se abre,
vê-se também seu retrato, os cabelos ondulados, o queixo voluntarioso, os olhos fitos
um pouco à direita da objetiva, cheios de ardor e confiança, presos a realidades
ilusórias, o cândido e desassombrado olhar de quem não percebe o giro das espadas.
O rosto do tempo em que ensina piano e minha mãe é ainda sua aluna. Aí está ele, em
algum ponto do tempo, corrigindo, talvez com excessiva complacência, talvez com
excessivo rigor, a posição dos dedos dessa adolescente viçosa e arrebatada, com as
asas do nariz sempre vibrando e que o olha com insondáveis desígnios enquanto o
ouve falar de Stefania Doratti, de Del Nigro, das Corday, de Norma Bergantini
(seriam estes os nomes?), personagens brilhantes, trágicas e voluntariosas como as
das óperas, e com as quais ele priva, cujos perfumes sente e de quem possui
fotografias com dedicatórias. Participa de orquestras, move-se feliz em meio a uma
população fictícia de sopranos, baixos, tenores, contraltos, barítonos, maestros,
empresários, quase sempre estrangeiros, que se cruzam sob as bambolinas do
Municipal, sorriem para ele, recebem o pagamento e os aplausos com o mesmo fátuo
desdém, com uma espécie de untuoso desvanecimento rabiscam o nome nas
fotografias e vão-se. Não vê as espadas.
Um dia, de olhos baixos, no momento em que sente na sua a mão do professor,
corrigindo-a, minha mãe, sem voltar-se, pousa sobre os dedos do homem sua face
febril. Com esse gesto, traz para a família horas de desassossego e precipita-se,
podendo escolher dez outros caminhos, pois oportunidades não lhe faltam, precipita-
se em um labirinto de reflexos, onde, sempre na esperança de dias favoráveis, vai
morando em lugares cada vez piores e abrindo mão de tudo, nesse mundo de sombras,
de sonoros nomes fugidios. O que destrói fisicamente meu pai, além do tempo? Um
acidente? Alguma enfermidade? Animais famintos, em sonhos, roem a sua voz, a sua
carne? Não sei. O começo da destruição pode ser medido pelas datas das últimas
dedicatórias. Sem a orelha esquerda e tendo de falar por um chifre com aplicações de
prata, ele perde os alunos e não é mais aceito nas orquestras. Reduz-se a afinar pianos
(o único ouvido escuta por dois) e faz cobranças para uma casa bancária.
Minha mãe, para ver o efeito que causam os seus chapéus ou para transportar-
se por um gesto mágico às festas e solenidades em que serão usados, sempre tem à
cabeça, em casa, os que acaba de fazer ou os que está criando; e neles,
sucessivamente, experimenta um sem-número de fitas, flores de papel, miçangas,
plumas e alfinetes com pérolas ou vidros coloridos, antes de decidir-se. Frieza e
orgulho, mais que sofrimento, também um pouco de tédio, lê-se nos seus olhos. Os
chapéus, dentre outras coisas, servem de pretexto para que se esquive das obrigações
menos interessantes. Nossa alimentação reduz-se a ovos e conservas. O pó acumula-
se sobre os espelhos, os vidros das janelas e as olheiras das prima-donas.
As chaves, agora, permanecem nas portas e as telas de aço apodrecem nos
caixilhos. Da janela, vejo um prédio sendo construído. São três ou quatro da tarde e
um caminhão apanha madeira já utilizada. Um velho, as calças frouxas presas com
barbante, presta ajuda aos outros operários. Apanha com esforço uma tábua partida,
um sarrafo curto, vem arrastando os pés, joga a carga na carroceria e olha para os
lados. Tira o boné, passa na calva o punho da camisa. Um rumor na janela: pardais
furam com o bico a tela de arame, a tela fragmenta-se. Faço pressão com a unha, os
fios cedem, partem-se. Afasto-me, assustada. Posso mover-me à vontade no edifício,
nenhuma cautela existe mais em relação a mim. Exploro, solitária, no elevador ou nas
escadas, os longos corredores onde pendem do estuque globos de luz jaspeados, uns
sem lâmpadas e outros com lâmpadas de poucas velas. Do mesmo modo que se
empreende conhecer um bairro, eu empreendo a conquista desse pequeno mundo
vertical, quase sempre mal iluminado, de corredores, portas, salas, degraus, números,
esse mundo sem árvores, sem vento, sem horizonte, sem firmamento, um mundo
ecoante, repetitivo, onde cada andar, com alterações insignificantes, se superpõe ao
seu próprio reflexo ou imagem. Mas é um mundo. Encontro advogados nos seus
corredores, oficiais de justiça, prostitutas, famílias, no sexto andar há uma escola de
danças, um bilhar no décimo, um sindicato no décimo segundo, meu pai, aos
domingos, leva-me a passeio pela rua 15 de Novembro e tudo que vemos são fachadas
de mármore, placas de bronze, silenciosos pórticos de ferro, vai à praça da Sé, pessoas
tomam bondes para lugares que apenas imagino, numa cadeira de rodas, vendendo
loteria, aos gritos, encontro um aleijado que mora no edifício e afaga-me a coxa
quando vamos no mesmo elevador, uma velha, na sobreloja, suborna-me com
biscoitos para que eu a deixe untar com margarina meus dedos e o seu gato lamba a
margarina, faz-me rir a aspereza da pequena língua em minha pele, em algum ponto
há uma enfermaria, eterno odor de éter, consultórios de dentista (fenol), um
restaurante vegetariano, o hóspede do 128 discute sempre com as vozes do rádio, uma
adolescente é encontrada violada e morta no poço dum elevador e nem assim sou
impedida de abrir a porta quando quero e circular sem destino pelo Martinelli.
Contudo, e isto me intriga, ninguém sabe que sou outra desde a queda naquele mesmo
poço, ou que o mundo desde então é outro para mim, ninguém, e mesmo assim
nenhuma chave é retirada das fechaduras, as telas de aço originariamente destinadas a
impedir que me precipite das janelas se desfazem, não resistem sequer ao bico de um
pardal e eu vago sozinha, livremente, nesses corredores onde há um estuprador. Por
que não continuam a proteger-me?
Meu pai, numa poltrona da sala, as pernas estendidas, cola recortes num
álbum. Enredada em flores artificiais, fitas coloridas e chapéus femininos, minha mãe
ocupa outra poltrona. Olho para um e para outra. É domingo, a tarde está escura,
ameaça chover, decerto não vamos à praça da Sé. Levanto-me, olhando com suspeita
para os dois, abro a porta que dá acesso aos corredores.

R 11

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Vemos, então (na minha coxa a pressão dos seus dedos agitados), vemos,
contra o mar nevoento e perfilados no sentido da leitura, o poste com a lâmpada
apagada e a pedra romba não ocupada; de pé, o pescador enluvado; mais ou menos no
centro, o do guarda-chuva velho e o de botas, nos caixotes; o de chapéu azul, sentado
no chão; sobre a pedra da direita, o envolvido em plástico amarelo; o poste sem
lâmpada, termo final da seqüência.
A cor dos braços de ʘ não é idêntica à do rosto e nem mesmo à do seu colo.
Mais claros e tocados de uma leve penugem, visível apenas sob iluminação propícia
(anuncia, eriçando-se, as suas emoções), absorvem, estejam ou não expostos à alvura
solar, a luz reinante. Esbate-se nos pulsos, pálido, o azul das veias.
Cresce a irritação da velha à medida que substitui as iscas no anzol sempre sem peixe.
Distanciada dos postes, das pedras de atracação e dos outros pescadores, o seu
isolamento é enganoso. Motivo dissonante e solitário, concentra na sua figura terrosa
as linhas de força advindas das pessoas e das coisas, que de outro modo ficariam
soltas. Esta convergência integra-a — eixo de leque — na simetria do todo e torna-a
indispensável.
Imaginai uma viagem fluvial. O barqueiro, da nascente ao estuário, segue o
fluxo das águas. Esse percurso começa? Termina? O barqueiro acha que assim é e
assim vê: e na verdade há uma face do percurso onde o começo e o fim existem, onde
existe uma leitura ou execução da viagem. Há uma face da viagem onde passado e
futuro são reais; e outra, não menos real e mais esquiva, onde a viagem, o barco, o
barqueiro, o rio e a extensão do rio se confundem. Os remos do barco ferem de uma
vez todo o comprimento do rio-, e o viajante, para sempre e desde sempre, inicia,
realiza e conclui a viagem, de tal modo que a partida na cabeceira do rio não
antecede a chegada no estuário.
Serão atraídos para que lugar do cais, indagamos, o ciclista e a moça vinda no
quadro da sua bicicleta, ambos vestidos como a tarde úmida exige? Há, na disposição
das figuras entre os postes, uma distorção, uma inclinação, conquanto não ostensiva,
para o lado onde pesca o indivíduo coberto com um plástico amarelo: um verso onde
as tônicas, divididas igualmente entre os dois hemistíquios, pesassem mais nas
últimas sílabas. Apeando, dirige-se o casal ao pescador enluvado, sempre de pé à
esquerda. Não os conduz ainda, vemos bem, o misterioso impulso de obedecer às leis
do ritmo que governa a cena: conhecem-se. Mas logo os move uma força exigente.
Não só não permanecem em grupo, como não parece ocorrer ao ciclista ou à moça a
idéia de ocupar, imitando o do plástico amarelo, à direita, a pedra de atracação,
sempre disponível no extremo esquerdo do cais. Quebrariam, fazendo-o, a límpida e
tensa harmonia do que, em silêncio, contemplamos.
A partir de agora, muitas das questões e inquietudes que participam do meu
modo de ser ligam-se aos perfis, móveis ou não, sobre o cais. Leio no que vejo? Na
calma e implacável gestação de um evento ordenado? No ritmo e nas simetrias, leio?
Tais realidades falam-me diretamente — não como um escrito — e alcançam em mim
uma zona pouco acessível. Chegamos, eu e ʘ, através do mundo (erradios, os nossos
passos?), a este ponto de intersecção e aqui não há desordem. Estamos numa esfera de
milagres, onde os fragmentos se ajustam e refaz-se o uno. Nosso espanto é justo e
legítima nossa ebriez. Este frágil equilíbrio: lápis com a ponta sobre uma base plana, o
eixo de gravidade, mais delgado que um fio de cabelo, descendo ao longo da grafite e
incidindo sobre a exígua base. Vai inclinar-se e tombar, sabemos, e nunca mais,
sabemos, nunca mais. Coordena-se um texto, geométrico, dentre inumeráveis letras
desconexas.
As veias, meio ocultas nos pulsos, são de todo invisíveis no dorso lívido das mãos e
nos dedos de ʘ, fusiformes, de unhas ovais. Nas articulações entre as falanges, a pele
não escurece e cede em delicadas covas, quase sem enrugar-se. O casal, afastando-se
alguns passos do amigo comum e permanecendo na asa esquerda do T, toma posição
de frente para nós, sobre a parede do cais — que é espesso, uns três metros de largura
— oposta ao mar, compensando assim a leve sobrecarga do hemistíquio final. ʘ põe
mais uma vez os brincos, ri exultante e agita a cabeleira, que dá a impressão de um ser
com vida autônoma. O perfume fugidio e talvez misterioso que então perpassa vem
dos seus cabelos ou da sua exultação?
O cais, até aqui cenário de um jogo abstrato de forças e onde o único indício
de um embate é a impaciência da velha sentada sobre as pernas, enquanto os demais
pescadores, igualmente infelizes, sustém com resignação as canas, agita vagamente o
cais um imprevisto. Mal atira o anzol nas águas meio sujas e pouco ondeantes que
ocultam em parte os lodosos degraus nesse ângulo formado pela construção, o ciclista
fisga um peixe. Grita de alegria, arrancando do anzol a presa que se debate, escura c
sem brilho, quase da cor dos degraus, à luz morta da tarde. Os outros pescadores,
mesmo os que não se voltam, demonstram perceber o grito. Todos, menos a velha.-
imóveis o chapéu e os braços. Novos gritos do ciclista, sucessivos, anunciam sua
pescaria feliz.
Adorno algum na mão direita de ʘ. Move-a, entretanto, bem mais que a outra, onde
só o polegar não é guarnecido com anéis valiosos, dois e três, de prata e ouro.
A impaciência da velha, sentada a poucos metros do pescador afortunado e
entre os quais, por contraste, forma-se um eixo de tensão, vai ficando menos ostensiva
e talvez mais concentrada, uma raiva. Instaura-se, no raro equilíbrio de que fazemos
parte, uma dissonância. Outras forças estranhas e como arbitrárias (é apenas a perícia
que vai enchendo de peixes, seis ou sete, fisgados um após outro, o cesto a seu lado,
ao passo que os outros anzóis, ali bem antes dele, nada apanham?) insinuam-se.
Decreto do marechal Castelo Branco unifica sob a denominação de INPS os
institutos de aposentadoria e pensões. O barco a motor, na proa a figura impassível,
cruza em sentido contrário as águas cor de estanho.

O 14

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Meu pai, em silêncio, a cometa de chifre sobre o peito, cola clichês num
álbum. Sem mais acesso a atrizes e cantores que se apresentem no Municipal e não
podendo abdicar por completo desse mundo, não se desfaz do piano, instrumento que
jamais chega a tocar em público (na fotografia, empunha uma viola) e mantém um
álbum de celebridades, com retratos cortados de jornais. Minha mãe, às voltas com as
suas encomendas de chapéus, ocupa outra poltrona. Na penumbra da sala, escurecida
pelas nuvens espessas que se formam, suas pernas lustrosas. Suspicaz, olho para um e
para outra, vou à porta que abre para os corredores, para as escadas e os elevadores
desregulados. Dou volta à chave, saio. Dos dois, na sala, nenhuma palavra. Nenhum
gesto. Engano-me supondo haver pressentido, entre ambos, um rápido olhar de
expectativa? Vou até o elevador, o mesmo elevador em que me precipito com o
velocípede, chamo-o; não o utilizo; volto, fecho a porta e retomo meu lugar no sofá.
Ambos de olhos baixos. Meu pai tem nas mãos a fotografia que corta no instante em
que eu saio; minha mãe continua a prender no chapéu a mesma flor de cambraia
alaranjada. São meus pais? Ou são meus assassinos?
Olho-os, com o meu dúplice olhar, sinto-me protegida e ao mesmo tempo
irada, mas também trespassada de terror. Escondo a mão direita sob a coxa, movo-a
como se moesse uma rolha de cortiça. Trituro entre meus dedos, sob a coxa, os
indícios das últimas semanas. Mais do que outros, este: voltando de um passeio nos
outros pavimentos do edifício, encontro a porta fechada; calco o botão da campainha,
bato na porta com os pés, a porta custa a abrir-se, enfim abre-se, e minha mãe quando
abre não olha na altura dos meus olhos, olha três palmos acima dos meus olhos, na
altura do seu rosto, do rosto de um adulto. Por quê? Sou injusta em supor que
adivinho? Espera que venham trazer a notícia da minha morte. Os indícios coincidem,
as negligências: chaves nas portas e telas de aço que um pardal esburaca. Levo a mão
à boca e mordo esta certeza, este espanto, esta amargura, este ódio, esta ira, levanto-
me e decido-me, não guardarei silêncio, porei termo ao silêncio, vou falar, abro a
boca, mas não é fácil falar, tenho a língua e a laringe cheias de teias de aranha, aspiro
o ar e expiro-o, pela boca, com dificuldade, eles me olham, meu pai leva a corneta aos
lábios, crispam-se no chapéu os dedos de minha mãe e eu grito, cuspo, vomito em
suas caras: "Inrerno. Inrerno". O nome não é este, mas tenho de dizê-lo, o esforço me
exaure, eu caio de joelhos, perduram os movimentos convulsivos e eu tento outra vez
como quem tenta um salto, um mergulho, um passe acrobático, tento outra vez, agora
com mais força, com mais ódio, e grito: "Inferno!". É a primeira palavra que libero, a
primeira, volto a repeti-la, quatro, cinco vezes, de modo cada vez mais débil, depois
me curvo, toco o chão com a fronte e caio em pranto.
O me felicem!! A carroça do Sol roda conosco nos campos de Capricórnio.
Como sou feliz, que feliz sou, eu envolvida no meu júbilo, oh! eu, feliz? eis-me feliz,
o me felicem, o me felicem, Abel. Eu, feliz, ah! e te amo e estou nua, desprendidas as
minhas cabeleiras e despojada de anéis, colares, brincos, braceletes, tudo, veste-me a
minha nudez, só, os meus adereços são os bicos dos peitos, a cova do umbigo, os
pêlos do púbis, as unhas polidas, estou nua e Abel sopra em meu ouvido que nenhum
manto haverá tão esplêndido, deito a cabeça, rindo, sobre meus próprios pulsos, alegre
de exibir minha nudez, ele beija-me ombros e sovacos, roça o rosto em meu ventre,
sinto a aspereza do queixo escanhoado.
Que o meu corpo se entregue com toda a sua carga de animal. Durante
séculos, trazem os navegantes, da Melanésiá, aves empalhadas, de espantosa beleza,
mas sem pés. Chamam-nas aves-do-paraíso e não é difícil acreditar tenham escapado
do Éden no instante em que o portão se abre para a expulsão dos pecadores.
Parecem vir do mundo privilegiado em que de prata — e não fulvo — é o pêlo
dos leões, em que os peixes voam quanto querem e onde a Lua, todas as noites, surge
acompanhada por um deslumbrante cortejo de pavões que se casalam em vôo. Em
vôo, afirmam os navegadores, cruzam-se e incubam os ovos as aves empalhadas que
trazem da Oceania. Na realidade, os selvagens que as vendem cortam-lhes os pés. Que
eu não arranque os pés a esta hora de cambiante e lúcida plumagem: nela mergulhar
com toda a minha carga de animal. Os melanésios, recusando admitir aquele pássaro
como um ser terreno, aviltado pelas exalações do mesmo barro sujo em que vivem
com os seus obscuros sonhos irrealizáveis e onde quase tudo apodrece, decepam-lhe
os pés. Com o estratagema, as aves mortas são reenviadas às alturas, onde, mutiladas,
permanecem, graças à cúmplice imaginação dos homens. Que eu não arranque os pés
a esta hora.
Rolamos no tapete, batemos com os flancos na mesa do centro, tombam a
mesa e o bule de prata não polido, mais uma vez desço a mão pelo ventre de Abel,
sopeso em minha palma o obelisco, o marco, o centro do seu corpo — encosto-o no
meu rosto, roço-o com os cabelos soltos, beijo-o de leve e ouço-o: mariposas voam
dentro dele, muitas, zumbem as asas inúmeras, tentam sair, cabeceiam nas paredes,
tontas. Desde quando, com sua energia e suas mariposas, dirige-se para mim?
Orgulho-me vendo-o erguido, rijo, em toda a sua altura, de que em mim acenda a sua
flama, de que nasça em mim seu engrandecimento. No meu corpo, nas promessas do
corpo.
A testa ainda no chão, começo a balbuciar. Meu pai e minha mãe acreditam
que eu esteja possessa do demônio. Falo aos solavancos, sem pensar, sem nexo,
minhas palavras são pus, minha boca um abscesso aberto, falo sem parar, às vezes
murmurando, aos brados em seguida, e assim como antes muitas palavras se formu-
lam em mim sem que as pronuncie, falo agora de coisas que estão fora do meu
entendimento. Leio um dia em Virgílio que as nações submetidas a Roma, os dias de
triunfo, jogos públicos, ovações, sacrifícios, coros de matronas, naus de guerra,
deuses monstruosos e todas as batalhas, postas por ordem, aparecem no escudo
fabricado para o filho de Vénus. Este, quando cinge a obra de Vulcano, ignora cingir
os eventos e figuras de que participa a sua estirpe. As palavras que lanço em meu
discurso sem fim e incontrolável também representam a minha própria vida, embora
ao proferi-las tudo eu ignore sobre isto; e ainda maior que a do Troiano é a minha
ignorância, pois, ao contrário das batalhas cinzeladas em seu temível apresto de
guerra, postas por ordem, os personagens e eventos a que devo ligar-me vêm
fragmentados nas palavras, frases e nomes que enuncio, nomes, frases e palavras dos
quais muitos voltam, são repetidos, pela manhã, à noite, nesses dias e noites em que
falo e falo sem parar, quantos, quantas?, muitos, talvez três, talvez cinco, difícil saber,
dias e noites em que quase não durmo e, mesmo enquanto durmo, ainda falo.
Visitantes contristados olham-me de longe, nem sequer atrevendo-se a passar a porta
do meu quarto, eu como pouco e mal, engolindo palavras, bebo apenas para refrescar
a garganta dolorida, a voz extingue-se, exausta eu fecho os olhos e mesmo assim
meus lábios secos continuam a mover-se, eu continuo a falar, dentro de mim, dos
passeios com Inácio Gabriel, anunciador, antecipador deste homem a quem me
entrego e amo, da adolescência vivida e revivida, dos nomes de pessoas que pesam
em meu destino, dos enganos, da bala disparada e cravada no meu peito, da minha
morte e, reiteradamente, do iólipo, o qual ninguém conhece e o qual descrevo com
minúcias, sem nada entender e sem saber (saber como?) que um dia o encontro. A ele,
um iólipo. Iólipo?

T 6

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

O leve e ritmado som dos sapatos de Cecília, com saltos de latão, percute no
piso do alpendre. Passos rápidos, de quem necessita andar muito e vive com uma certa
urgência. O homem, no outro lado da rua, baixa o braço e some com os meninos.
Desce a mão de Hermelinda, firme, sobre as cordas do instrumento. O gato, na porta,
pousa a pata no chão, os pássaros soltam o canto. Hermelinda vara o círculo de leões
que ameaça Cecília e beija-a no rosto. Também o canto dos pássaros soa, nítido,
metálico. Cecília, com um sorriso, faz os leões subirem nos telhados balançando a
cauda. O que conversam, Hermenilda e Cecília, não escuto. A língua de Cecília: leão
lascivo. Hermenilda faz um gesto em minha direção e indica-a: "Chama-se Cecília.
Trabalha no Hospital Pedro II. Serviço Social". Ela inclina a cabeça, fita-me um
instante e desvia o olhar. Volta a fitar-me rápida (abelhas solitárias, esses olhos,
riscando as superfícies). "Abel é homem das letras e dos livros. Filósofo. Conhece o
outro lado da Terra." Zumbem leões negros e velozes nos olhos de Cecília. Cecília
senta-se no banco de vinhático ao lado de Hermenilda e cruza as pernas delgadas.
Visível a ossatura dos joelhos. O silêncio de Cecília é atravessado por leões.
Assim, frente a frente, com a nossa ajuda malsã, eis Cecília e Abel. A eles
cabe apertar o laço por nós urdido. Quiséramos estender entre ambos uma distância
qualquer — para que não se ligassem. Quiséramos? Desejo vão. Lançado está o grão e
com ele alguns eventos sobre os quais nenhum domínio havemos. Abel considera os
galernos de Cecília e seus contrários. Vê a discórdia entre a branda curva dos ombros
e a falta de curvas nos quadris; entre os seios grados (de bicos tensos) e o peito do pé
com seus tendões, um pouco largo à altura dos dedos; espanta-o que venha de Cecília
o eco de inúmeros ramos delicados, secos, cautamente pisados e que ao mesmo tempo
algum sinal no seu rosto sugira determinação; e, mais ainda, que essa figura alada e
plena de graças seja sustentada por um impalpável arcabouço de virilidade. Decerto,
isto é ainda o início. Sem que nenhum dos dois saiba, ou escute, duas bocas, mágicas,
falam entre si. Logo ele a verá de um modo novo, vária e múltipla, habitada na carne
por visões ou corpos — e sob reverberações, como aclarada pelo Sol rebatido em mil
facas oscilantes. Procurar na vida o rumo é igual a buscar, num palheiro, a agulha que
pode ter caído em outra parte.
Retiro da gaveta, na pensão, as páginas escritas da história que venho
elaborando. (A gaveta exala um odor inexplicável e nunca dissipado de pólvora.)
Começam a definir-se, no papel, os perfis das quatro irmãs, todas setuagenárias e cada
uma ansiando por sobreviver às outras. Para quê? Não sabem. Vivem na mesma casa
— isto me permite acentuar o ódio com que se espreitam entre si. Mas o cenário onde
se movem — o chalé de Olinda, reproduzido com a possível exatidão — continua a
desgostar- me. Tento, em vão, evocar o labirinto de quartos e alcovas, com roupa
pendurada atrás das portas, às vezes cheirando a virilhas. Pinto de azul o forro de ma-
deira, aqueço no fogão de pedra as panelas desmedidas e ladrilho o piso com
mosaicos. Introduzo o mobiliário desigual, que aumenta junto com a minha família e
se deteriora usado pelas velhas. (Tudo, às vezes, no mundo, cheira a verrugas, a
cascas de ferida e a unhas secas.) Deixo de mencionar os instrumentos de música
negligenciados nas gavetas, o piano East Coker, os jarros pomposos, o enorme
espelho entre arandelas na sala de visitas e o retrato oval de casamento. Mantenho,
com alguma ênfase, a estampa alemã do tempo de Holderlin, representando três
jovens fiandeiras. Faço ainda entrar o sol pelas bandeiras de vidro — colorido no
chalé real e branco no fictício.
Represento, afinal, com mão grosseira, o seu interior, onde as cortinas de
renda com cenas de caçadas ondulam ao vento terral. Mais inábil a extensa descrição
do exterior. O teto de duas águas, inclinado sobre as paredes laterais, o beiral
sombreando os oitões e a fachada, os lambrequins de um azul-desbotado,
acompanhando a linha dos beirais e alçando-se em frontão com um mastro torneado
no vértice mais alto, a flor geométrica, posta à maneira de tímpano no meio do
frontão, cercada por um círculo e tendo ao centro uma esfera azul de vidro, as
molduras brancas das janelas, o alpendre à esquerda também com lambrequins, cada
pormenor (e, mais do que todos, a pintura nas paredes, em ocre, anil e branco,
imitando cubos transparentes, disto resultando uma inútil aparência de relevo) exige-
me centenas de palavras e acaba sempre numa construção desmesurada, sem peso,
cujos telhados flutuam como asas.
À beira da cisterna, de joelhos no cimento limoso, tento ver meu rosto dentro
da água. A água, que parece dura, petrificada pela ausência de peixes e de vozes,
olha-me baça — o olho de um morto. Reflete apenas linhas imprecisas, a
interrogadora mancha da cabeça contra o céu nublado. Cuspo na minha cara, no vago
reflexo da minha cara e levanto-me. A água da cisterna e o fartum de percevejos. Na
praia dos Milagres, perto, as ondas abandonam — fortes, mesmo na vazante —
construções de que só o traçado ainda sobra. A ferrugem e o ar marinho corroem o
teto de zinco. Faço o trajeto em aclive entre a cisterna e a casa, sem pressa, alvejando
com pedras apanhadas no chão os troncos das mangueiras, todas pegando uns tons de
árvores bravas. Salta acaso entre essas árvores, quando entediado ou supérfluo, o gato
com cabeça de macaco noturno?
Paro a certa distância do chalé, no qual durante anos ecoam as vozes da
família e de onde agora não vem som algum. Jogo pedras nas colunas do alpendre e
no terraço. Minha mãe aparece, gorda, sustentando um ferro de engomar. Repuxa a
boca miúda, de lábios estreitos, no seu gesto costumeiro:
— Sim, senhor! Trinta e dois anos e ainda jogando pedra nas coisas. Agora é assim
que se anuncia a chegada? Entra, homem. Vem almoçar? Não apareceu no outro
sábado.
Beijo-a no ombro esquerdo, onde tem a cicatriz. Borrifa água de arroz nos
lenços que passa a ferro: "Dos luxos do Tesoureiro, sobra isto. Lenços engomados".
"Ele não é mais Tesoureiro." "Pensa que se conforma? Fala dia e noite na readmissão.
Tinha de acabar nisso. Como era Tesoureiro na porcaria de um banco, acreditava ser
Tesoureiro do mundo. E você, meu filho? Na outra semana, estive pensando: cinco
anos que assumiu o seu emprego. O tempo voa." "É verdade." O gato com cabeça de
macaco e que ela traz no corpo desde o nascimento salta para a tábua de engomar.
Contempla-me, daí. com seus olhos súplices e afetuosos: duas contas roxas.

A 3

ROOS E AS CIDADES

Perlongo o boulevard Raspail e continuo andando, a esmo, só sabendo onde


estou ao 1er as placas — boulevard Saint-Jacques, place d'Italie, quai d'Austerlitz.
Passa pouco das três, mas o céu encoberto faz parecer mais tarde, o vento fere-me os
olhos e nem sequer a visão do Sena sob as pontes me acalma. Volto, exausto e sem
objetivo, um vácuo no estômago. Quando introduzo a chave na ranhura, o telefone
começa a tilintar e silencia antes que eu possa atender. Ligo para o quarto de Roos:
não respondem. Havendo deixado, num envelope com seu nome, dois olhos de vidro
comprados não me lembro se em Antuérpia ou Gand, querendo significar que nada
me interessa ver na sua ausência, desço para examinar se foram retirados: continuam
no grande quadro de madeira entre o primeiro andar e o térreo. Torno a subir, desfaço
a mala, ordeno as coisas no quarto, alteradas com os oito dias de viagem e conto até
as moedas que me restam. Quantas semanas posso ainda ficar e quantas cidades verei?
Examino o calendário: 10 de maio. Dez? Que houve nesta data? Não consigo lembrar-
me. Folheio distraído alguns livros, encontro um texto de Palladio a respeito de
Chambord. No centro do castelo, afirma o arquiteto, há uma escadaria em quatro
lances, com quatro entradas, servindo quatro dependências, com as rampas subindo
umas sobre as outras, sem nunca se encontrarem. Todos os dados estão corretos, sim,
menos o número de lances. Palladio, um espírito exato e objetivo, aumenta para
quatro, transformando-as numa invenção mais complexa, as escadas duplas de
Chambord! Marco a passagem no livro e me lembro: no dia em que completa
dezenove anos, a 10 de maio de 1954, meu irmão Augusto ganha o mundo e nunca
mais dá notícias. Seria esporeado por uma agitação parecida com a minha? Por que
nunca me falou? Seremos todos nós, filhos da Gorda, propensos às buscas, aos erros,
aos desastres? Saio outra vez, tomo a direção da rua Guynemer, faço uma visita aos
Weigel.
O chefe da família está de cama há quase sete anos. Suponho-o de baixa
estatura, embora sempre o veja deitado. Como não ouve bem, exige que me sente
junto ao leito. Chama-me, ninguém sabe por quê, talvez por causa da barba cor de
ferrugem, Liév Niko-láievitch Míchkin, fitando-me com seus olhos ligeiramente
estrábicos. Quando está melhor, como neste fim de tarde, seu assunto são os grandes
prosadores russos. Então emociona-se e passa as mãos na calva, com insistência.
Imita, segundo creio, o linguajar dos heróis dostoievskianos: "Como está o senhor?
Hein? Sente-se bem? Parece que está pálido. Acha que cheguei ao fim? Tome alguma
bebida. Faz bem com este frio. (Apesar da calefaçào, sempre acha que faz frio. Talvez
se imagine em São Petersburgo.) Vejo-me hoje com uma disposição espantosa. Não,
nada do que eu disse é verdade. Tudo passa e logo serei julgado pelos meus crimes. O
senhor, Liév Nikoláievitch Míchkin, não sabe que coisa é a velhice. Procuremos
entender-nos. Que significa tudo isto?".
A mulher vem sentar-se ao nosso lado: esquálida, com os joelhos afastados e
os pés sob a cadeira, cruzados. As mãos repousando no vazio entre os joelhos, inclina
a cabeça um pouco para trás e, ao passo que observa o marido, critica-o, quase sem
descerrar os lábios, para que ele não se aperceba das censuras: "Que insensato, meu
Deus! Quando melhora, em vez de descansar, fica dizendo tolices. Cala a boca, pobre
louco". E dirigindo-se a mim: "Não sei como o senhor suporta tudo isto".
Há sempre um bandolim na sala, ocupando uma poltrona. Fino instrumento,
faz-me evocar o que pertence à minha irmã Leonor (por que não o levou para o
convento?) e que se desfaz em algum armário do chalé, com a viola de Mauro e a
flauta de Eurílio, varado de balas num bordel do Recife. O instrumento de mme.
Weigel também já não serve para nada: ela tocava-o quando jovem e o meu interesse
vem dessa circunstância. Mantenho-o, às vezes, no colo — este mudo sobrevivente de
mais alegres dias —, como se amparasse coisas baldas e mortas, enquanto converso
com as duas filhas do casal.
Julie tem vinte e um anos. Frágil e sossegada, fala devagar, anda devagar e
raciocina devagar, embora com precisão. Seu rosto miúdo, redondo, adquire uma
pureza extrema quando, partindo os lisos cabelos ao meio e penteando-os sobre as
orelhas, prende-os na nuca. Admiro suas mãos, delicadas e leves, não obstante as
unhas curtas e sempre um pouco escurecidas pela fuligem que faz parte de Paris.
Ganha algum dinheiro desenhando e costurando roupas de bonecas. Só um
temperamento como o seu poderia fazer, com tanta minúcia e perfeição, vestidos que
na maior parte das vezes não chegam a ter um palmo.
Suzanne, quatro ou cinco anos mais jovem, parece haver acumulado a energia
e a impaciência que moderadamente encontramos em Julie. Suas feições, não tão
puras quanto as da irmã, atraem-me pela vivacidade e por qualquer coisa de franco e
generoso que leio nos seus olhos, um pouco afastados entre si. Sua voz é grave e,
quando fala ou ri, estende um pouco para a frente o lábio superior. Esse hábito e o seu
penteado preferido (abre os cabelos na nuca, atando-os em duas vassourinhas
castanhas à altura das orelhas) dão-lhe um ar tão infantil que chega a ser comovente.
Pensa-se que está destinada à desilusão e ao esmagamento.
Sentadas juntas, no antigo sofá recoberto de damasco cor de musgo, fruem
agora um momento de sossego neste segundo andar há sete anos habitado pela doença
do velho. Suzanne põe o livro de lado. Julie suspende a costura. Falam-me em voz
baixa, como se o pai, apesar de meio surdo, pudesse ouvi-las da cama. Por que estou
tão pálido? Doente? Gratas pelo cartão que mandei de Bruxelas. E a viagem? Por que
nunca mais as visitei?
Escurece. Suzanne acende a luz do abajur, num alto pé de latão. Julie levanta-
se, serve-me um conhaque. Sol no canavial. Liév Nikoláievitch Míchkin, você é um
inútil. O mundo explode. Pássaros vermelhos nas janelas, sobre o abajur, sobre as
mãos de Suzanne e os ombros de Julie. Sâo Petersburgo. Por que custo tanto a
amadurecer? Deve-se amadurecer? Gaivotas fuliginosas. Pobre insensato! Cidades
vindo à deriva, num mar fosforescente ou pelos ares. Que procura você?
Desperto. Apagado o abajur, a casa em silêncio. Levanto-me sem fazer rumor
e vou embora. Ao passar ante o quadro da correspondência, observo que o envelope
destinado a Roos foi retirado.
Mas acaso se esquiva? Não a vejo. Faço devagar as refeições e me demoro
após a sobremesa. O resto do tempo, nesse fim de semana, fico no quarto. Por que não
me chama? Escuto apodrecerem as laranjas e as maçãs, fugirem os pregos lentamente
das tábuas, distenderem-se as molas do colchão, enrugar-se o lençol, estalar o
assoalho, crescer-me a barba, as unhas e os cabelos, o óleo escorrer nas dobradiças da
porta, o canivete perdendo o fio, meu sangue circulando e o ar mudando de posição
no quarto. Ouço tudo, menos o telefone. Um pássaro escuro, de bico recurvo, entra
várias vezes no quarto, pousa na mesa e fita-me, olhos de rapinante, as asas meio
abertas. Desaparece em seguida.

R 12

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Menos anuviados e mais próximos, cessada a chuva, os dois pesqueiros,


barcos. Flutuam algumas gaivotas no ar cinzento: precipitam-se, flechas exatas, contra
os peixes ligeiros e outra vez alçam vôo. Sobre o lance que liga o cais à terra, vêm em
nossa direção o pescador enluvado e a companheira do ciclista. As pequenas cabeças
com movimentos de pássaros, certa lassidão no andar e um jeito de levar a mão
esquerda à cintura. Semelhanças. Ouço a voz da moça, como se estivesse a dois
passos de nós, dizendo à velha: "Quando ele for embora, pode ficar com os peixes.
São seus". Voz afável e sem calor, com algo de mecânico. A velha, sentada, move a
cabeça e ergue a mão. Novamente a vara do ciclista encurvada e a ostensiva alegria do
seu grito. As rabanadas no ar.
O equilíbrio de forças sobre a plataforma não chega a ser desfeito — apenas a
simetria é alterada — com a ausência da moça e do pescador da esquerda. O ciclista,
sem a companheira e ainda de costas para o mar, supre a exigência de peso — ou de
presença — que flutua à sua espalda, audível, entre o guarda-chuva e a pedra.
Por que entendo que esta unidade melodiosa ante nós organizada terminou ou
declina para o fim? Talvez não me engane e a dissolução que julgo próxima haja
realmente começado no contemplador: em mim e não no que ocorre sobre o cais.
Também pode suceder que uma proporção exista, necessária, entre o sistema — o
ritmo — articulado no espaço e a sua ressonância. Pergunto, entretanto, como ante um
desperdício e certo da negativa: "Isto é tudo?".
Colina a impedir que se amplie um caudal exuberante, a saliência arredondada
do tênar, na palma larga de ʘ, parece reprimir o traçado violento onde o seu destino
pode estar escrito. (Em que ponto das linhas enlaçadas, fundas como cicatrizes,
inscrevem-se meu nome e este dia?) Repercutem, nos seus gestos, também modulados
e vivazes, a harmonia e o ardor das mãos.
As gaivotas, imóveis, menos brancas, quase transparentes contra o céu cor de
pó. Diluem-se no ar? Hirtas. Integram-se na súbita e rápida cisão que interrompe o
fluxo das coisas: um hiato onde cessa, cúmplice, mesmo o rumor das águas. Todas as
figuras no cais petrificadas, a mulher de blusa rubra, o guarda-chuva rasgado, o
plástico amarelo, fósseis numa lâmina. Na substância dessa pausa, na fixidez e no
perfeito silêncio, um som nasce: um zumbido e com ele o fluxo retorna, outros sons e
o movimento, ressoam as ondas plácidas, grita o pescador afortunado e — novamente
ágeis — as gaivotas descem sobre os peixes, ávidas. O zumbido, mesclado com o
bater de cascos de cavalo e o som de um guizo (eu cerro os punhos), define-se: motor
de automóvel. Vem com ele, invisível, das ruas desertas de Ubatuba, conduzindo
outros passageiros — ou talvez os mesmos —, o espectro de alguma carruagem?
Anacrônico e irreal, surge, acesos um tanto ostensivamente os grandes faróis
niquelados, um Packard dos primeiros anos 30, verde. A capota escura, os raios
trançados das rodas e a lona branca dos pneus de emergência, entre o estribo e os
pára-lamas negros, molhados da chuva, brilham como novos. Vejo, quando faz a
curva à nossa frente, o esbelto corcel de metal sobre o capo, lançado — um salto —
na direção do mar. Abrem-se as portas, desce um casal (permanecem acesos os faróis)
e três meninas de casaco cinza voam em direção ao cais. Há, nas crianças, qualquer
coisa de sôfrego, implacável e urgente. Rápidas, vão de um lado para outro, caladas.
Executam um desígnio? A maior, de súbito, como se ouvisse uma ordem, aproxima-se
do ciclista; as outras, imitando-a, plantam-se junto a ele e ficam imóveis. As três com
seus casacos cinza, à luz cambiante e trespassada de surdas reverberações. Aves
predadoras à espreita: uma voracidade muda, imóvel e pronta a manifestar-se.
Escrutam ou integram-se, submissas, na rara conjunção rítmica que — emissárias do
acaso ou do destino, ou, talvez, de uma terceira entidade dissimulada sob esse duplo
rosto — vieram conduzir do abstrato para o vivo (transposição anunciada no tenso
eixo estendido entre a mulher de vermelho e o pescador venturoso) e simultaneamente
perturbar, corromper, romper?
A criança mais alta, lenta, inicia, vinda quem sabe de onde, como um
cerimonial, os poucos atos precisos que pouco expressariam em circunstâncias
diversas e aqui esplendem com intensidade, iluminando as nossas vidas e o nosso
encontro no mundo: curvando-se, abre o cesto onde jazem os peixes. A pescadora
retira da água, pela vigésima vez, o anzol sem isca e sem peixe. Agudos grasnidos
cortantes pontuam o confuso diálogo entre as meninas (ou pássaros?) e o homem:
fulge várias vezes, argêntea, a palavra peixe. A mais nova, solerte, introduz a mão no
cesto e devolve ao mar um dos peixes. Brilham nas seis mãos infantis, como facas, os
corpos laminados dos peixes. Vêm os quatro (as vozes das crianças, agudas e tensas)
em direção à velha, obstinada e muda — um peixe. Desconjunta-se o vívido equilíbrio
de forças e todo o peso do quadro incide agora sobre uma asa do cais, a direita; mas é
em torno da pescadora, do lado oposto e mais perto de nós, que o evento aqui
articulado segundo as leis da narrativa e com precisão de todo improvável (uma vida
inteira pode decorrer sem este encontro prodigioso e legível de alguns fragmentos à
deriva na explosão do mundo, tão raro — sabemos, com nostalgia e júbilo — que
ninguém o conhece duas vezes, por mais que viva) vai culminar, simulando coerência
e mesmo certo caráter augurai: não há quem leia nas vísceras das aves e dos peixes?
As meninas e o homem estão junto à pescadora, mas ʘ e eu sabemos, tão certo como
se aguarda, num verso ainda inconcluso, o advento — inevitável — da tônica final,
que as meninas de cinzento não surgem em vão; invasoras egressas de outro mundo,
precipitam-se de longe (das nuvens?) para arrebatar esses peixes. O casal do Packard
(os faróis ainda acesos e mais luminosos na tarde que escurece rápida) aborda o
pescador e pede os peixes. As meninas saltam para o carro, que oscila sobre as molas:
no interior, sombrio, cintilam os peixes. Vai-se, com vara e cesto leve, o ciclista, O
pescador com plástico amarelo dirige-se para o centro do cais, irresoluto. Fecha o
guarda-chuva o de calção azul e tudo se decompõe. Volto a ouvir, quando o carro se
afasta, metal de campainha e de ferraduras em lajedos, sons do veículo invisível antes
unido ao Packard como um sortilégio e que contrário rumo em se dirige agora.
A 14

ROOS E AS CIDADES

Ao romper da segunda-feira, cai uma chuva pesada. Passo, estendido na cama,


o intervalo entre o café da manhã e o almoço, examinando impressos de turismo.
Perto do meio-dia, um clarão mais intenso que os outros rasga o céu e eu acho natural
que um tilintar agudo seja audível no cerne do trovão, duas vezes se alce em meio ao
atroar prolongado e tão intenso que as portas do guarda-roupa se abrem. Só ao
terceiro toque distingo o telefone. Levanto-me devagar e atendo: Roos me comunica
haver chegado.
— Ontem? À noite? Não encontrou então os olhos num envelope?
Que olhos? Que envelope? Afirma ignorar de que se trata.
— Pensei que houvesse voltado há três dias. De onde está falando? Da
companhia?
Sim. Muitas coisas atrasadas. Vai almoçar com o chefe, perto do escritório.
— Quando a verei, Roos?
Um silêncio. A chuva e a ventania. Ruídos de máquina de escrever, de explosões
abafadas e de passos solertes antecedem a sua voz:
— É possível que vá jantar aí. Mas não me comprometo. De qualquer modo,
não sei dizer a que horas chegarei.
Vem pelo boulevard Raspail, sob a chuva fina, à luz do entardecer ainda
prematuro, com papéis e pastas sob o braço, envolvidos num plástico. Capa cinzenta,
chapéu do mesmo tom, luvas castanhas e botinhas brancas, a meia altura das pernas.
Precedem-na estandartes dourados, em mastros invisíveis, altos, com desenhos
escarlates de sóis, de grifos, à direita e à esquerda de seus ombros, destacando-se
contra o céu pesado, os tetos úmidos e o negror das paredes. Olha-me com alegre
naturalidade, um pouco à distância, parecendo insinuar que não responde pelo nosso
encontro em Amsterdam ou como quem diz lavar as mãos ante os erros de algum
parente remoto. Tem de concluir o relatório, trocar de roupa, descansar um pouco, às
oito horas podemos encontrar-nos. Gotas de chuva cintilam no seu rosto.
Tomamos o metrô e ela segura a minha mão, porém de modo fugaz (cerca-a
um som apagado de fanfarras), enquanto subimos no elevador da Cité. Ao sairmos, já
os outros passageiros romperam esse contato e é por cima do seu ombro que eu vejo,
contra o céu estrelado, a torre em flecha da Sainte-Chapelle. Dezenas de pessoas
seguem-nos, rápidas, entre as barracas dos vendedores de flores, haverá um concerto
em Notre-Dame. A noite, depois das chuvas, lembra-me ladrilhos polidos e frascos
transparentes.
— Estou alegre em vê-la de volta.
Quai de Corse, um cheiro ácido e importuno de urina. Quai aux Fleurs, carros
estacionados, as torres das construções no outro lado do Sena. Aproximamo-nos da
catedral, de tal modo iluminada que parece leve, a ponto de alçar-se do solo e flutuar.
Gotas esparsas de chuva caem em torno de nós.
Sentamo-nos, frente a frente, sob o toldo verde do café. Todas as luzes estão
acesas na praça. Passam veículos quase sem cessar e nem sempre consigo ouvir a voz
de Roos, que orienta a conversa num sentido ao mesmo tempo neutro e pessoal.
Muitas aves no Brasil? Se li, de Goethe, o Werther. Que acho da cena final entre o
herói e sua bem-amada. O que busco no mundo. Muros de pedra no seu rosto,
irreconhecíveis, banhados de sol; ventos nos plátanos; duas hienas sentadas no meio
de uma ponte, as cabeças entre os pilares de ferro, olhando o rio. Aperto suas mãos.
Deslizam entre as minhas, que espalmo, tensas, sobre o tampo vermelho da mesa. A
estátua de Carlos Magno, sob as luzes fortes da praça, parece revestida numa
armadura de aço e claridade.
— Você conhece Lausanne?
— Não, Roos. Por quê?
— Por nada.
Cessa um instante o desfile ruidoso dos veículos, flui de Notre-Dame a
abertura de não sei que marcha triunfal, os calos dos construtores dos órgãos deslizam
pelos tubos. Reconheço a mulher diante de mim? Assim haveria de ser o reencontro
com o meu irmão Augusto. Hoje, após três anos de ausência, três, ele considera por
certo os dezenove de nossa convivência como se evocasse o sabor de um fruto cujo
nome não pode recordar.
Oh, essas ruas tortuosas, essas paredes de edifícios sagrados ou profanos, esses
canais, esses muros, toda essa arquitetura vária, inclusa no corpo de Roos — e
tão afortunadamente que não me surpreendo ao ver, no rosto puro e
simétrico, luzes vindas de dentro, sim, do sumo da sua carne (não do mundo exterior)
e que nascem, por exemplo, dos reflexos do Sol nas águas de Veneza! As cem vozes
do coro descem das ogivas sobre a rue du Cloître Notre-Dame, trituradas pelo barulho
dos veículos. Parecem, mesmo assim, envolver numa pátina de sonho as cadeiras
amarelas do café, suas lâmpadas cónicas, as luzes da praça, Carlos Magno entre as
árvores com a armadura úmida e do outro lado do rio o perfil dos velhos edifícios.
Mais uma vez tento falar de Chambord e também do engano de Palladio, assim como
das relações que vejo entre isso tudo e os minerais de que me fala em Amsterdam.
Pode-se flagrar, eis o que busco dizer, no espato-de-islândia, um fenômeno ao mesmo
tempo real e ilusório: a imagem se abre, duplica-se, é uma e duas. Mas há também, na
Terra, seres vivos que unem ou multiplicam. Às vezes, o que é mais admirável, não
um único ser, mas dois ou três, ou mais, que um acaso reúne e que transformam em
quatro as escadas duplas construídas entre quatro vestíbulos de castelo, num dos vales
do mundo.
Quero perguntar se não acha fantástico saber que há mentes com esse poder
seletor, multiplicador, unificador e também conservador. Ela tenta ajudar-me,
paciente, a transpor o pensamento, confundo-me entretanto e só consigo dizer — mas
sem conexão com o resto — que vagam, no universo, fenômenos tão fugidios e
silenciosos que não podem ser classificados e nem mesmo notados.
— O mundo, Roos, está cheio de reflexos e de concentrações.
— À primeira vista, você parece calmo. Mas é inquieto e inquietante.
O sino bate duas pancadas e mais uma, agudas. Nove e meia? Dez e meia? Há
quanto tempo estou aqui, ante Anneliese Roos? Seus olhos resvalam por mim e de
repente me fitam, rápidos:
— Vou a Lausanne quinta-feira. Visitar uma pessoa da família. Sigo de trem, à tarde.
Por que não vai comigo?
Suas mãos nas minhas, repousadas, frescas no dorso, cálidas nas palmas, com
cidades inúmeras aparecendo, e répteis, insetos, aves, peixes e quadrúpedes povoando
as casas, os rios e os passeios.
— Que posso esperar?
— Na verdade, nada. Logo estaremos tão longe um do outro
As cidades: dez, vinte, relâmpagos silentes, umas com as salas
acesas e outras com os vidros reverberando ao sol. Seus traçados se cruzam, labirintos
presos em outros labirintos. Um rumor confuso se levanta, não sei onde, o rumor que
vem de um grande forno aceso quando a tampa se abre. Funde-se com as vozes do
coro e com a orquestra, mais uma vez vencendo a trepidação sempre menos intensa
dos veículos. Conheço o que agora cantam: o salmo "In convertendo dominus", de
Campra. Colhe-se realmente entre canções quando em pranto jogamos as sementes?
Notre-Dame, um navio ressoante entre os ruídos brutos da noite.

T 7

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

A área útil do primeiro andar, na sucursal do banco, é menor que a da planta


baixa: a parte central do pavimento abre-se num retângulo cujos vértices assentam
sobre colunas de mármore; uma balaustrada cerca essa abertura. Minha carteira, no
andar superior, toca o retângulo, do lado oposto à entrada principal. Por entre as
aberturas dos balaústres caiados de branco, vejo uma parte da rua, a imponente porta
de aço forjado, o movimento do público e a aglomeração junto aos guichês. Aparece,
com a bandeja, Cara de Calo, o andrajoso e impassível servidor de café, no seu andar
de reumático. Menino? Ancião? Afirma ter dado a volta nos espelhos, nos reflexos e
nas repetições, reintegrando-se, velho, no mesmo corpo e na mesma idade do instante
em que parte: "Sou a Coisa Única". O som doméstico das xícaras vai atravessando os
gritos dos caixas e da clientela, o tilintar dos telefones, o bater das máquinas, os
apelos das campainhas, os disparos dos carimbos.
Desço os degraus — de mármore e gastos. Cara de Calo enche a minha xícara.
A cabeça volumosa e os olhos miúdos, de macaco. Convido-o: "Deixa essa bandeja
aí. Vamos pegar pombos lá em cima". Ele resiste, tentado e receoso: "Tenho que lavar
a louça. Se estivesse hoje no Ascendente. Mas fora da casa e no Descendente? Posso
ser despedido. Não. Hoje, não. Ordem do meu Legislador". Súbito, parece-me ver,
perto do balcão, Cecília, há onze dias presente — uma surdez, uma dormência — em
mim. Aproximo-me. Nenhum dos rostos aí agrupados lembra o seu.
Visita-me o Tesoureiro, na pensão. Cedo-lhe a única cadeira do meu quarto e
sento-me na cama. Difícil reconhecer neste homem sob a lâmpada, grande e
amedrontado, sempre tossindo, a mesma figura ríspida, de voz autoritária e gestos
largos, que decide tirar a minha mãe da zona com os três meninos sem pai — eu entre
eles, casa-se com ela e registra-os como seus, nunca admitindo diferença entre os
adotados e os do próprio sangue, engendrados sem pausa naquele ventre que até o
vento e as sombras engravidam. Mostra-me recortes, extraídos do Diário Oficial e
relativos à complicada pendência em que anda envolvido. Cai em contradições e os
seus argumentos não convencem. Interrompe as justificativas para dizer que o
anteparo de papel na lâmpada está cheirando a queimado: pode causar um incêndio e
já bastam os incêndios provocados nos canaviais. Amanhã, sábado, irei a Olinda?
Censura-me por não fechar a porta do meu quarto a chave. Com a desordem em que
anda o Estado, baderneiros disfarçados de cassacos depredando usinas e invadindo
cidades de foice na mão! Os ladrões não dormem, Abel, todo cuidado é pouco. Que
será do país se João Goulart fizer o plebiscito e restaurar como quer o
presidencialismo? Vendo os livros na estante e o manuscrito espalhado na mesa,
adverte-me. É prudente ocultar, dos chefes, meu interesse por atividades que colidam
com a vida bancária. Silenciando, volta a olhar os recortes. Sobem, do térreo, as vozes
de outros hóspedes, jogando baralho. Ele adormece na cadeira, o queixo sobre o peito.
O corte largo da boca e a mandíbula quadrada, que acentuam nos bons tempos a
energia da cara, agravam sua aparência de velho.
Vai devagar o ônibus, por causa do temporal. Através do vidro, úmido e
embaçado, mal distingo as casas e as árvores. À minha esquerda, na outra fila de
poltronas, com um impermeável, um guarda-chuva vermelho do qual escorre água e
um livro salpicado de chuva, viaja Cecília. O livro tem na capa a cara de um negro,
severa e pétrea, iluminada do alto com luz verde e o autor é Antônio Callado. A luz da
tarde, diluída nas nuvens, na chuva, refletida nas poças e nos niquelados do ônibus,
torna mais tênue a meus olhos a pele de Cecília. Seu perfil, que os reflexos fazem
sempre mutável, projeta-se contra o vidro da janela e brilha como antiga medalha na
penumbra. Cecília. Além, na rua — telhados e portões, outros ônibus, luzes, muros,
vultos humanos —, tudo flui, impreciso, partes desconexas de um mundo efêmero e
recordado, sobre o qual reinasse, alheia à passagem do tempo, sua figura sutil e
temperada por uma espécie de audácia. À altura do Palácio Arcebispal, levanta-se,
olha-me à sua maneira intensa e rápida, pede parada, o ônibus detém-se, abre-se a
porta. Quando, sustendo o varão de metal, vai descer, volta-se outra vez para mim,
agora parecendo haver-me reconhecido. Simultaneamente, como se um líquido
espesso me cobrisse os olhos ou ainda como se inadvertido eu forçasse um
estrabismo, vejo duas Cecílias e uma sobressai da outra, ligeiramente. Cecília fixada
por uma objetiva trêmula. Aqui, porém, toda comparação é incorreta: as outras
pessoas e o interior do ônibus continuam nítidos; e os dois rostos de Cecília, idênticos,
não olham exatamente na mesma direção. O ônibus parte. Distingo, através do vidro,
seu vulto junto às grades do Museu do Estado, esbelto e novamente uno, sob o
guarda-chuva de cor viva. Desço na parada seguinte e venho à sua procura. Não a
encontro.
Tarde de domingo em casa de Hermenilda e Hermelinda, ambas de vestido
branco. Na rede do alpendre, repasso o álbum de fotografias e ouço distraído as
histórias que me contam. O próprio fato de permanecerem entre as páginas do álbum
os rostos, os vestidos, os gestos de princípios do século, agora que os modelos já estão
velhos ou mortos e quando, de qualquer modo, nada mais existe, se existiu, daquelas
horas cuja substância o universo da câmara escura pretende assimilar, acentua as
fronteiras — nem sempre compreensíveis, nem sempre perceptíveis — entre esses
dois espaços: um, ilimitado, contínuo, fugaz; outro, restrito, imutável. A circunstância
de que não conheço nenhuma das figuras constantes do álbum (que nexo liga a Cecília
estes modelos?) isola ainda mais, os retratos, de injunções alheias à sua realidade
específica. Uma galeria autônoma de figuras de quem a substância não está no
sangue, nos gestos, nas palmeiras, nas pedras, nos olhares, em nenhum dos impróprios
truques com que aspiravam a viver no papel — e sim na luz, na sombra, no claro-
escuro. Cantam os pássaros, sem continuidade. Cecília não aparece e nenhum de nós
pronuncia o seu nome. Impossível dizer de onde me vem esta certeza de que todos a
esperamos.
Andamos entre a rua Direita e a rua das Calçadas, de madrugada, eu e Cara de
Calo, atirando pedras nos cães. "Agosto começou, Cara de Calo. Mês de cachorro
doido!" Tentamos matar a pontapés as ratazanas que correm de um buraco a outro,
assustadas, junto ao meio-fio. Uma mulher meio bêbada, vinda dos lados da praça do
Mercado, decide acompanhar-nos, vaiando quando falhamos em nossas tentativas de
caçar as ratazanas. Alguém abre a janela num primeiro andar e joga-nos garrafas
vazias. Eu e a mulher corremos, ela escorrega e cai, ferindo-se nas pedras. Ajudo-a a
levantar-se. Saímos abraçados, ela chorando alto, eu consolando-a. Cara de Calo
acompanha-nos, distanciado, as pernas trôpegas. Aproxima-se correndo: "Vou
embora". A luz do poste incidindo sobre os cabelos grisalhos. A mulher: "Quem é
esse?". Explico: "É um velho. É um menino. A Coisa Única".
O sono, de repente, vence-me. Laça os tornozelos e torna as pálpebras
espessas. Os pensamentos rolam devagar. Subimos tropeçando os degraus escuros de
um sobrado. Sobre a cama larga, um abajur grande e verde, de papel crepom. Vou
sentar-me numa cadeira de vime. Estou curvado, as mãos nos braços da cadeira,
quando tudo escurece. Sinto uma dor na perna, o ombro dormente e ouço dentro do
quarto um barulho de ferragens rolando sobre lajedos. Existem a dor, a dormência, os
lajedos, os ferros? Nas trevas, continua aceso o abajur de papel. Sua luz, porém, nada
ilumina.
O 15
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Muitos dias no leito, entre dormindo e desperta, em silêncio. Sem ânimo


sequer de abrir os olhos, porém com um novo e passageiro sentido à espreita em
algum ponto do meu ser (ou este sentido é o meu ser total que se aguçou?), percebo os
lentos e solenes movimentos do mundo, a montagem da máquina. Outro nome poderia
ter este imenso aparato que aos poucos se organiza no espaço? Continuo atenta aos
ruídos habituais do apartamento, aos que vêm de outros pontos do edifício e aos que
vêm da rua. Mas os passos sutis de minha mãe, o arranhar das portas gradeadas e não
lubrificadas dos elevadores, as misturadoras de concreto e as serras mecânicas do
prédio em construção, buzinas de automóveis, pregões, um amolador de tesouras,
parecem-me disfarces, uma cortina de pequenos acontecimentos ilusórios, para
ocultar o evento verdadeiro, o que me diz respeito e se relaciona com o meu destino
— a formação da máquina. As grandes peças vão surgindo (quem sabe de onde vêm?)
e ajustam-se, organizam-se, chapas oxidadas de um navio com a quilha voltada para
mim. Toda a máquina se arma em função do ponto em que estou. Semelha um navio?
Talvez evoque, de maneira ainda mais aproximada, uma esquadra numerosa, não
ancorada no mar e sim no ar, dispostas as naves em formação cónica e de tal modo
que eu seja o vértice do cone. O avançar do tempo é marcado pelas límpidas pancadas
que se irradiam do Mosteiro de São Bento. Noite e dia, numa elaboração que parece
interminável, forma-se a gigantesca máquina ou esquadra, forma-se, acrescenta-se e
suas juntas rangem se o vento se levanta. Parece estar concluída, aprestada para a sua
missão, que desconheço qual seja. Quando menos espero, uma unidade ou outra se
desloca, as partes das quais se separam vão preenchendo o claro, enquanto as
unidades deslocadas reaparecem além ou voltam à sua origem ignota.
São três ou quatro horas da manhã quando afinal se completa. Não se ouvem
rumores no edifício ou na cidade. Apenas, com intervalos mais ou menos longos, o
ranger de um bonde sobre os trilhos, talvez rodando vazio. Mesmo as mulheres que
lavam pela madrugada o piso encardido dos cafés situados entre a praça da Sé e o pré-
dio dos Correios decerto já seguiram para as suas casas no subúrbio. Os onze
elevadores do prédio estão parados: dois no térreo, um no oitavo andar, outro no
décimo sétimo, ainda outro no último e os demais quem sabe onde. Alguns devem
estar desarranjados, sempre há alguns precisando de consertos. O relógio de São
Bento bate meia hora, três pancadas desiguais, que se repetem. Meia hora de que
hora? Eu espero. Deitada de costas, estendo os braços ao longo do corpo, os dedos
crispados no lençol, as pernas alongadas, unidas — e espero. A máquina, etérea mas
real, seu arcabouço intangível invadido em parte pela estrutura concreta do Martinelli,
a máquina, varada por morcegos e tão alta que as últimas peças engolfam-se nas
nuvens negras, nas nuvens dessa noite sem estrelas, a máquina se move e pousa
delicadamente em mim. Gira e zumbe, assemelha-se a um pião em movimento, gira,
giro vagaroso, zumbe e quase inaudível é o rumor que produz. Não tenho dificuldades
em compreender que a sua lenta formação é puramente simbólica, que nada a
impediria de formar-se mais rapidamente e que mesmo o fenômeno da formação da
máquina seria dispensável, uma vez que, na verdade, sua existência é anterior à
consciência que eu tenho de sua presença e de sua própria fabricação. A máquina,
suavemente, gira sobre mim, a ponteira pousada no meu ventre. Seu giro capta os
fastos do mundo, a ressonância dos fastos do mundo, mói em suas rodas as coisas e os
eventos, verte-os em mim. Nas trevas, no silêncio, sem ninguém que me ajude a
suportar esse momento em que, sob o vértice da máquina, suporto o seu peso, não,
bem entendido, um peso físico, mas um peso que nasce da sua grandeza e da sua
austeridade, processa-se em mim uma mudança de estágio, uma sagração.
Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou o ser
para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga
conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista.
Alguns retardatários — vindos de onde? — detêm-se, conversando em voz
alta, à altura da praça Antônio Prado, um toca clarinete, executa uma valsa, a
execução tem qualquer coisa de um arrastado monólogo de bêbado. Ainda ouço,
longe, o clarinete, quando surge um vozerio, gritos confusos, inumeráveis,
extraviados em alguma distante transversal. Quem clama a esta hora da noite? São
vozes de crianças, um bando de crianças sublevadas cruza a cidade, despertando-a.
Penso juntar-me a elas, protestar contra meus pais, contra este mundo de corredores
mal iluminados e pórticos de mármore. Mas a ponteira da máquina, esta máquina
semelhante a uma esquadra completa, de luzes apagadas, suspensa no ar e
manobrando lenta, em círculo, na mesma direção, crava-me no ponto em que estou.
As bocas infantis não se aproximam nem se distanciam. Vêm mesclar-se à celeuma
das crianças algumas vozes de homem. Distingo, claramente e de súbito, palavras
soltas, tão próximas como se fossem ditas no meu quarto. Então, percebo-me
inundada, povoada de vozes, vozes no meu sangue, nas costelas, nos maxilares, nos
cabelos, nos olhos, nas unhas, muitas vozes. Gritos e palavras nadando ou revoando
em mim, eu invadida por uma multidão de vozes, eu desfeita em vozes. Como se eu
fosse uma escultura de areia fina e cada grão uma voz, uma palavra e suas danações.
Adverte a música de Orff, pela voz dos anciãos, que nada perdura
indefinidamente. Como se importasse o tempo nesta hora. Os hipopótamos da
eternidade bafejam-me com seu hálito ardente. Onde os meus seios? Onde o meu
colo? Braço. Dorso? Torso... Estas palavras — e outras escorregam, começam a
descolar-se das partes do meu corpo por elas nomeadas. Já não penso no meu braço
como sendo braço, mas como pés ou boca; a boca chama-se umbigo ou calcanhar; o
sexo chama-se olhos, depois peito, depois ombro. Entre a minha mente e o meu corpo
desmembrado flutua um pequeno léxico arbitrário. Surpreende-me que essas
designações não tenham perdido por completo as ligações com as partes do corpo a
que por norma estão associadas: que a palavra boca, significando "braço",
surpreenda-me, guardando um halo do que ordinariamente exprime, de modo que não
sei, ao pensar no braço como boca, que câmbios houve ao certo, que transmigrações,
se foi tão só o nome boca que se deslocou para o meu braço com o seu feixe de
sugestões (vozes, paladar, gengivas), ou se realmente a boca, a boca, não apenas seu
nome, violou todas as limitações e instalou-se, ávida, falante, no espaço ocupado por
meus braços. Se eu não abraço com a minha boca, ou então com os meus pés, o tronco
de Abel.
Ó, meu amor (ouvir-me-á, se, por exemplo, são as minhas têmporas que
falam?), morde-me os dentes, as unhas, as pupilas, morde-me o ombro, as coxas,
prende em cada lugar seu nome verdadeiro. Os nomes, porém, continuam a deslocar-
se. Suas mãos deslizam nos meus cílios, nas asas do meu ânus, no cotovelo, na coluna
espinal? Percorre sua boca, beijando-me, o jarrete, o céu da boca, o queixo, os bicos
dos joelhos, os tornozelos, as plantas dos quadris? Sopram sobre nós os hipopótamos.
Ritmicamente, Abel suga-me as pontas da cintura, suas mãos afagam-me a cintura, ele
suga-me as falanges, suga-me os punhos, sua respiração me queima, eu cerro os
flancos, eu abro as sobrancelhas, penetra-me a nuca sua língua macia, eu dou um grito
surdo, um grito: "Vem". Tudo escurece.
Meus pais discutem. As ofensas que proferem são cada vez mais duras. Ele
leva a corneta à boca e arranca do esôfago, com esforço, expressões ultrajantes. Sem
altear a voz, sem demudar o rosto, sem empalidecer, ela devolve os agravos
recebidos, enquanto tenta abotoar um vestido negro, que se adapta mal ao seu corpo.
As costuras estalam. Odor de cânfora, mesclado ao perfume em que ela parece
despender metade do dinheiro obtido na confecção dos chapéus. Quando olha para o
homem é como se não o visse, ou como se o visse a uma grande distância, um olhar
frio e aniquilador. Veste-me também de negro e penteia meus cabelos, sem inter-
romper a sua insultuosa salmodia.

O 16
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

O casaco marrom, de pele, guardado numa caixa cilíndrica e protegido com


inúmeras folhas de papel de seda, cheira mais a cânfora que o vestido negro. Seus
pêlos lembram os de um velho cão empoeirado. Ela o põe sobre os ombros e assenta à
cabeça um chapéu novo, também negro e com véu. Pende da parede o espelho,
parecendo uma moldura a mais, vazia, entre os retratos de empresários, prima-donas,
músicos; não é grande e tem uma ligeira inclinação, de modo que um adulto, para
examinar-se da cabeça aos pés, tem de avançar e recuar diante dele. Meu pai está no
banheiro, ouço-o puxar a descarga. A mulher, indo e vindo, observa o chapéu, a
pintura e o casaco ruço. Acho-a semelhante ao edifício, com as paredes riscadas de
lápis, os elevadores enguiçados e os cheiros vagando como animais doentes pelos
corredores. Estou junto ao piano, orgulhosa do meu vestido negro e de estar penteada.
Ela se volta e ordena-me: "Venha". Meu pai entra no quarto, ainda abotoando as
calças, leva a corneta à boca e dá uma gargalhada. Um giro da mulher, tão rápido que
a aba do casaco bate no meu rosto:
— Não torne a fazer isso.
Parece haver saltado de dentro de si mesma. Ele recua ante o gesto agressivo e
inesperado, hesita um segundo e assesta a corneta de chifre sobre nós:
— Por que não faço?
— Quando você estiver dormindo, corto-lhe a outra orelha. Só.
Maior o contraste entre a pele rosada e o torpe artefato de borracha. O homem
deixa cair a corneta sobre o peito. Ela, ríspida, me toma pela mão, bate a porta e leva-
me à igreja. Ela me conduz por cálculo, ela me expõe, como um pedinte expõe os
olhos vazados. Com o fito de comover. Este é o seu plano. Mas os planos continuam
além das previsões, seguem além das previsões, de toda previsão e mordem a cauda.
Quando ela me impede, no apartamento, de cair para que eu não morra, eu tombo no
poço do elevador quebrado, e nasço; quando, deixando as chaves nas portas, invoca
armadilhas para que eu me arrebente de uma vez por todas, capto essa intenção e
mato-a em mim, mato em mim pai e mãe, esses dois emissários; agora, quando
pretende me alçar ao nível do qual foi privada pelo casamento, encarnando assim
palavras minhas ou simplesmente emitidas por mim (e que não evocam, antes
antecipam, se é que antecipam, os seus passos calculados), começa a lançar-me em
direção ao iólipo e à bala calibre 38 que alojo no meu peito. Esse momento, portanto,
é grave, muito mais grave do que pode supor: parte do meu salto neste mundo dele irá
pender, dele irá pender, como um relógio de algibeira, preso à corrente, pende de um
prego enfiado na parede.
A igreja está cheia e isto embaraça o plano. Contudo, só a porta lateral direita,
que talvez não chegue a um metro de largura, está aberta; mantém-se fechada a porta
central, para que o vento não apague as centenas de velas dispostas lado a lado sobre
longas mesas inclinadas. Por que não ficar junto à estreita porta lateral ou nos degraus
da escada que lhe dá acesso? Será vista por todos que entrem ou saiam. Minha mãe,
mal terminada a missa, esgueira-se e mantém-se nesse ponto, à espera. Quer que o
encontro desejado pareça casual. Mas, se a igreja só dispõe de uma saída, são
inúmeras as de que dispõe o instante. Assim, eu escapo e volto à igreja. Não para ver
os anjos com trombetas sobre o altar-mor, as quatro igrejas pintadas nas paredes do
átrio ou os redondos vitrais de cor sombria, postos no alto, no lugar das lucarnas,
pouco abaixo do teto com pinturas e realçados pela luz exterior. Atraem-me, antes, o
fogo e os bichos que existem lá dentro. O fogo das velas, do azeite, do incenso. A
pomba que esvoaça de um vitral para outro, a tainha nova que se move e nada na pia
batismal, o carneiro que bale entre as pernas das pessoas, o touro que não sei onde
muge e que espero descobrir, a águia cuja cabeça impiedosa se ergueu no púlpito um
instante, dardejando-me com seu rude olho onde brilha o reflexo dos fogos, o leão
invisível que está deitado por baixo de algum banco e do qual eu sinto o cheiro forte,
um cheiro semelhante ao que há no Martinelli. Minha intenção é ver os fogos de
perto, e procurar esses entes, e mais a criança ornada com asas, de rosto senil, postada
junto às velas. Mas esqueço tudo: uma mulher está diante de mim. Vejo-a durante a
missa, chorando em silêncio, é uma mulher de idade, mas tem as pernas ainda bem
torneadas. As pernas da minha mãe. Está de luto, junto a um homem de luto, mais
velho do que ela. O homem fixa o padre, limitando-se a passar a grandes intervalos
um lenço na cabeça. Cabelos brancos, raros. Sua mão é forte e inspira confiança. A
mulher firma-se num pé, no outro, deixa o missal no banco e volta a apanhá-lo, assoa-
se, abre e fecha a bolsa. Não encontra a posição adequada para o véu: puxa-o para a
frente e logo deixa-o cair sobre o pescoço, descobrindo-se. Vejo-a de costas. Agora,
tenho-a à minha frente, vejo-a de frente e esqueço a pomba, o mugido do touro, os
fogos, o cheiro do leão: flutua, no seu olho esquerdo, um diminuto escorpião dourado.
Sigo-a fascinada. Minha mãe, buscando-me, entra na igreja e nós nos
encontramos, encontramo-nos os quatro, eu, ela, a mulher com o pequeno lacrau no
olho e o homem de cabelos brancos, encontramo-nos todos junto às centenas de velas.
Começando a chorar, mas sem convicção, minha mãe adianta-se para a mulher, que
tem um movimento discreto de recuo e olha-a. De cima a baixo, com seus olhos
injetados. O olhar se desvia um nada nesse rápido baixar e erguer de pálpebras, o
olhar me abrange. Abraçadas, minha mãe com energia, ela de um modo frio e
complacente. Minha mãe abraça o velho. Ele retribui com indulgência e dirige-lhe a
palavra, sim, fala com ela, olha-a no rosto, somente no rosto e não há nenhum
dissimulado exame nesse olhar onde leio resignação, franqueza e um pouco de
estultícia, um pouco. Volta-se para mim e estende-me a mão. Beijo-a? É um jogo de
dados, par ou ímpar?, tudo depende das alternativas e contudo a definição está predita,
eu prevejo, eu descrevo a opção e suas conseqüências durante as horas em que falo e
falo sem parar. As previsões? Ou não há previsões? Quem sabe coexistem, as
previsões, com os fatos revelados, refletindo-os, sim, refletindo-os através de
condutos que são misteriosos para nós? As previsões, narrativas contempladas ao
espelho, narrativas ao contrário, contadas no futuro. Pode ser que tudo exista
simultaneamente e que tenhamos do tempo não uma idéia correta ou verdadeira, e sim
uma que preserve a nossa integridade. Temos de crer que somos um ponto, não um
traço reto ou sinuoso; aprendemos as coisas, não a soma de seus deslocamentos. Seja
como for, o que eu digo entre dentes, nos exaustivos dias em que narro,
aparentemente por antecipação, e de modo por vezes incompreensível, a minha
própria história, não é que mordo a mão estendida para mim, a mão desse
desconhecido, e sim que a beijo. A mão, à luz das inúmeras velas, parece transpa-
rente. Posso mordê-la? Mordendo-a, será outro o meu destino? Inclino o rosto. Beijo-
a. Em outro ponto, em outro tempo, eu estou narrando este meu gesto. Em outro
ponto, em outro tempo.
Junto ao velho casal há quatro ou cinco jovens, igualmente de luto. Minha
mãe, segurando-me sempre pela mão, esgueira-se entre eles e o casal, esgueira-se e
recebe condolências. Parece alegre. Logo restam apenas o casal e os jovens, todos
com aspecto indeciso. Um pouco à margem, eu e ela. Também os jovens se despedem
do casal e afastam-se. Nenhum se volta para minha mãe, todos afetam não vê-la. Um
carro se aproxima. A mulher, agora sem chorar, toca de leve no casaco que lembra um
cão empoeirado e que minha mãe conserva sobre os ombros; lança novamente em
direção a mim aquele olhar quase imperceptível e nem por isto menos analítico; entra
com esforço no automóvel. Também o homem se volta para minha mãe e vai falar-
lhe; de dentro do automóvel, a voz autoritária da esposa intima-o a apressar-se.
Levanto minha mão, sorrio e despeço-me dele com um aceno. O automóvel parte.
O sol apareceu. Minha mãe despe o casaco; assusta-me a frieza que acabam de
assumir seus olhos, pouco antes compungidos, súplices e amáveis. É a primeira vez
que a vejo à luz crua do dia e o que mais me surpreende é a pele do seu rosto: alva,
transparente e como friável, dando a impressão de desfazer-se. Não me parece
impossível que, para empoar-se, tenha apenas de passar no rosto uma esponja ou uma
lixa, empoando-se com a própria pele esfarelada. Sua pele então desfeita em pó sob o
atrito da esponja, da lixa.
É a primeira vez também que ela me vê ao sol e por isto talvez me observe com
desgosto e cólera tão fundos, a expressão com que se olha para uma ferramenta com
que tentamos, em vão, afrouxar um parafuso, arrancar um prego ou arrombar uma
porta. Mas o parafuso, sem que ela saiba, já está solto, o prego arrancado, a porta
arrombada.

T 8

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Minha irmã Lucíola, com seu perfil e seus olhos de cigana, a Mauro, nosso
irmão:
— Por que não trouxe a esposa? Podia ajudar a lavar os pratos. Cesarino
mostra os dentes podres e ergue o rosto ceroso, com olheiras roxas, que tornam ainda
mais neutro o seu olhar de cadáver:
— Damião, estou admirado. Que vai dizer seu patrão, o dono do táxi? Você,
um empregado tão zeloso, parar o serviço mais de duas horas, para jantar com a mãe
que nem é sua?
Minha mãe repreende Cesarino. O gato, no seu peito, volta para ele a cabeça
de macaco. Os olhos claros de Dagoberto, olhos de homem destinado a morrer
tuberculoso (contemplarão, com espanto, a carência de sentido das nossas vidas?),
também se dirigem a Cesarino:
— Deolinda Ferro-Velho se queixou de você. Deu-lhe dinheiro para comprar
uma passagem na rodoviária e você nunca mais apareceu. Isso é papel?
— Aquilo é uma vaca — responde Cesarino.
Mauro, que deixou passar a observação maldosa de Lucíola, fala-lhe:
— Não me conformo com uma coisa. É seu primeiro marido, o falso
fabricante de moedas falsas, fugir com aquela dona, deixar a roupa na beira do rio, pra
fingir que morreu afogado, e depois baixar numa sessão espírita.
Lucíola, os olhos baixos, finge não ouvir e ignora as risadas. E a que menos se
distancia, hoje, dentre as caras agrupadas em torno desta mesa e sobre as quais os
anos trabalham duplamente, com duplo poder de erosão, do seu próprio modelo na
fase do esplendor e da ausência de preocupações. Mesmo o rosto de Isabel, mesmo o
seu, curvado sobre o piano e meio oculto entre os cabelos louros, sugerindo, aos treze
anos, inteligência e mistério, reflete agora a seu modo o espesso e obtuso rosto do
marido, vinte e um anos mais velho do que ela, aposentado, contrabandista amador,
ex-foguista de navio mercante e que se serve empurrando com os dedos a comida para
o garfo.
Aqui estamos, obedecendo a um hábito persistente e inútil, para festejar o
aniversário da- nossa mãe. Em que evoca este jantar ainda cheio de risos mas
impregnado de melancolia, as ruidosas comemorações anteriores a 1950? Brilham
todas as luzes do chalé e o Tesoureiro preside a mesa. Tosse, porém, vez por outra e
fala sempre que pode no seu novo emprego: fazer cobranças para uma empresa de
reputação mais duvidosa que a dele.
— Quero ver o que vão dizer os meus inimigos, quando souberem que estou
trabalhando com dinheiro e que os patrões têm toda a confiança em mim. Uma
confiança cega. Cobro mais de cinqüenta prestações por dia. Honestidade vale uma
fortuna, principalmente hoje que o governo vive estimulando o roubo.
Minha mãe, à sua direita, procura desviar o assunto, fala da mone de Marilyn Monroe:
— Que deu naquela dona? Uma mulher que tinha tudo.
— Era uma vaca — atira Cesarino. — Uma vaca igual às outras. O Tesoureiro
tosse e reforça o que dizia, alheio:
— Confiam em mim como num filho.
Qual dos filhos confia nele? Sequer o vêem e de todos, carnais ou não, só eu
— apesar de tudo — ouço o que diz. Os restantes — Mauro, Cesarino, Lucíola,
Damião, Dagoberto e Isabel com o marido — apenas erguem as cabeças para servir-se
de omelete ou cerveja e trocar palavras pouco amigas.
— Querem passar o molho? (É o marido de Isabel, juntando, com o polegar, o
arroz no garfo, ávido.)
As travessas não sustém, como no período da Tesouraria, cabritos e leitões ao
forno, brilhantes de unto e fartamente guarnecidos; nem grandes lagostas rubras,
nadando em molho de coco; nem postas de cavala a escabeche; nem dourados com
recheios preciosos. Faltam os vinhos finos; os queijos-do-reino, redondos, vermelhos
e tão odorosos; o licor de pitanga, fabricado pelas monjas de Santa Dorotéia; as cinco
ou seis espécies de doce. A louça inglesa não é uniforme e a toalha branca de
damasco começa a encardir.
Cesarino, que bebe sem parar, pergunta a Damião qual o seu próximo grande
papel no teatro, se entregar uma carta ou trazer um copo d'água.
— É melhor trazer um copo d'água para uma condessa no palco do que fazer
mandados para aquelas catraias da rua do Apolo, como você.
Cesarino defende-se, impudente:
— São minhas amigas.
Mortos Eurílio e Estêvão; Leonor num convento da Bahia, após três noivados
desfeitos; Cenira num subúrbio do Rio de Janeiro, casada antes dos dezoito anos com
um dentista sem clientes, comendo o pão amassado pelo diabo (seu violino descola-
se, sem cordas, numa das muitas gavetas do chalé); Augusto no oco do mundo há oito
anos, sem dar notícias e sem que se saiba ao menos se ainda vive; Janira foragida da
polícia, em algum cabaré de quinta classe, depois de fazer o que fez. Mudos, com o
violino de Cenira, o bandolim de Leonor, o clarinete de Damião, a viola de Mauro, a
flauta de Eurílio, o piano East Coker. No alpendre ou nas outras dependências, hoje
iluminadas, nem sombra dos amigos — tantos — do Tesoureiro; dos rapazes e moças,
companheiros, nossos, que invadiam a casa nesses dias, nenhum. Nós, mais ninguém,
participando desta aparência de festa e exibindo uma alegria que é apenas a versão
maligna da outra.
Mauro volta para mim os óculos grossos e quase negros:
— E o nosso letrado? Sempre inédito, mon amour? Não foi mais à Europa, ver
as francesas?
O seu riso espasmódico e mordente secciona as palavras. Cesarino
acompanha-o nas perguntas, mostrando os incisivos estragados:
— Por que não escreve uma novela para o rádio sobre a sua esposa. Abel?
Ouvi dizer que dá dinheiro.
A flauta de Eurílio faz-se ouvir, da cova ou do puteiro onde morre varado de
balas.
— Ainda ontem, o chefe falou comigo. Disse que nunca teve um cobrador
igual.
Vinda quem sabe donde, cai na mesa a voz nasal de nosso irmão Augusto, há
oito anos sumido: "Vocês me dão notícia de Janira?". Leonor, do claustro, ereta numa
cadeira de espaldar alto: "Um mês depois de casada, ganhou a zona, Augusto. Deus a
proteja. Matar os próprios filhos! Dois!". A voz de Janira, branda e monótona, de
virtuosa moça de família: "Morreram antes que tivessem um nome. Isso é morrer?
Afinal, eram meus. Se pudesse, matava pai e mãe. Não pedi para nascer".
— Sua mulher já sabe ler? (Isabel a Mauro.) Corre que você fez cartas
anônimas a você mesmo, dizendo que ela lhe punha chifres. Para ter um pretexto de
largá-la.
Mauro ri, assentindo. Ecoam risadas na mesa.
— Basta dizer que eles nem contam o dinheiro, quando eu entrego a cobrança.
Mandam um menino conferir.
— Quanto está ganhando? — indaga o marido de Lucíola. Minha mãe
pergunta se ele ainda está aposentado.
— Claro.
— Pensei que tinha arranjado um emprego de fiscal.
Com sua voz de tenor, um dom desperdiçado, canta Dagoberto: "Noite alta,
céu risonho./ Aqui tudo é quase um sonho...". Esses irmãos. Também os outros, os
que andam pelo mundo ou morrem desastradamente, a irmã que pare os filhos e
enterra-os no quintal, são meus irmãos apenas de sangue? Não nos liga, em nossos
desacertos, um projeto comum? Marca-os, talvez, o mesmo impulso obscuro que me
move. Com outras formas, porém. Outros nomes. "Só tu dormes: não escutas/ o teu
cantor..."
— Vou na cozinha comer a sobremesa — avisa Damião. — Preciso trabalhar.
Afinal, meu patrão confia em mim. Devo retribuir.
— A que horas você lambe os ovos dele?
— Na mesma hora, Cesarino, que você lambe o rabo daquelas marafonas.
— Feliz de você, quando casar, se sua mulher tiver um rabo limpo como
aqueles.
O animal, no ombro de mamãe, espreguiça-se com o dorso de gato e salta para
a mesa, a cauda erguida. Ela censura-nos:
— Bons irmãos são vocês. Não vejo nenhum lembrar-se dos que estão mortos
ou ausentes.
— Que se danem. Isabel:
— Por quê, Damião?
— Porque sim, que se danem.
— É uma firma que ainda vai crescer muito.

A 15

ROOS E AS CIDADES

Da cabine telefônica, observo as pessoas sentadas nos cafés ou paradas diante


das barracas — de castanhas, de sanduíches, de jornais, de tiro ao alvo — que
atravancam as calçadas, do boulevard Saint-Michel. Casais de jovens riem ante as
vitrinas ou seguem abraçados sob as árvores. Tese de Kruschev aprovada na URSS.
René Coty no Vaticano. Navios britânicos cruzam Suez. Guy-Mollet e a Argélia,
Eisenhower, Oriente Médio. Que me importa tudo isto? Nada falta para a viagem à
Suíça com Anneliese Roos e se lhe telefono é para desviar a minha impaciência. Mas
reconheço a custo a voz que me responde e as primeiras frases parecem contorcidas,
quebradas, emitidas pelo avesso, tão inesperado o que me diz. Desligo, ligo outra vez
e agora as palavras são nítidas, denteadas, cortam-me, preferia que eu não fosse, sim,
problemas pessoais, poderia eu desistir?, sim, isto, explicará depois, depois, quando
voltar, não a julgue mal, com precipitação, ou com rancor.
Saio da cabina, lanço-me pela suja escada do metrô, ponho-me a vagar de uma
estação para outra, sem objetivo, olhando as abóbadas ladrilhadas, os anúncios, os
empregados dos subterrâneos, os vagabundos nos bancos de espera, os mendigos
postados nos longos corredores das estações de correspondência. Ventos súbitos
batem-me na cara, oleosos. Vindos de onde? Desço afinal em Notre-Dame des
Champs, apanho minha bagagem, toco para a gare de Lyon. Roos, no imenso saguão,
avança lentamente rumo às plataformas. Devo abordá-la? A série de pinturas sobre os
guichês para venda de passagens, quase todas alusivas a cidades do Sul: Nímes,
Montpellier, Toulon, Monte Carlo, Nice, Menton. Então? O tempo da pergunta é o
tempo de perdê-la entre as centenas de desconhecidos. Tendo, desta vez, adquirido
bilhete de primeira classe, acomodo-me num carro de segunda e fico observando o
cais, de pé no corredor, até que as portas se fecham e além das janelas tudo começa a
passar.
Vejo desfilarem os minutos como se o tempo fosse uma paisagem, esses
campos cultivados que ficam para trás, com girassóis, papoulas, gavelas de feno. Que
viagem é esta? Para onde vou ao certo e com que fim? Os segundos moem-me, rolam
em mim como pedras, pois cada momento abriga a possibilidade de que Roos venha e
fale-me. As escadas em hélice. Roos com a mão estendida em direção ao pássaro.
Bato palmas para que ele voe, para que eu não me, enrede na armadilha. Armadilha?
Agora é o inverso que me veda ir vê-la, procurá-la. Receio ir ter às suas mãos e assim
a perder.
A paisagem esmaece: acendem-se as luzes no carro. (Os trens, quando saem
do Recife, atravessam os alagados negros. Homens e mulheres, a lama podre à altura
dos joelhos, caçam caranguejos e mariscos.) Sei, soube sempre que Roos não me é
ofertada nem se oferta — e também me propus chegar a ela, romper as guardas,
eliminar as distâncias. Vejo-me porém diante de mim mesmo, pusilânime, hesitante,
receando quebrar os copos, os espelhos, as vidraças, as pontas do lápis. (Os mangues
são cobertos de mocambos e meninos de barriga lustrosa dão adeus. A lama cheira a
carniça e está sempre cheia de urubus.) Quanto resta ainda da viagem? Um terço, um
quarto? Assim aguardamos, na juventude, durante anos, algum evento que não
sabemos bem qual seja, que pode vir de um encontro, de uma carta, que não vem
nunca e cuja impossibilidade só reconhecemos quando descobrimos haver fugido a
época adequada à sua vinda, que agora tememos, pois seria desesperante vir depois do
tempo, vir quando não mais pode regozijar-nos.
Abro, de vagão em vagão, a porta das cabinas. Anneliese Roos está de pé no
corredor, talvez para que eu mais facilmente a encontre, as mãos erguidas e apoiadas
no vidro, olhando vagamente para fora, para os escuros campos de cultivo, agora
invisíveis. Ponho as minhas mãos sobre as suas; o fato de não se mover diz-me que
estava à espera, sim, esperava. Desde quando e quantas vezes terá aberto a porta,
vindo para o corredor?
— Você prometeu não procurar-me.
Sua voz mistura-se com o rumor dos êmbolos e das rodas nos trilhos, parece
deslizar sobre esses soas duros, deslizar como um óleo, amaciando-os.
— Não pude mais, Roos.
Nossos rostos estão próximos e eu vejo no vidro, espectrais, meu reflexo e o
seu, unidos nas mãos.
— Você prometeu. Não devia ter-me procurado.
— Que aconteceu? Por que eu não devia vir?
Suas mãos deslizam sobre o vidro, ela se volta e me fixa. Cidades
crepusculares, desconhecidas e, como sempre, desertas. De uma esquina a outra, no
entanto, de um prédio a outro, das lucar-nas para o solo, dos porões para o teto, como
se em toda parte houvesse fios esticados, uma tensão ressoa. Um som, um zumbido.
— Tenho problemas.
— Que tipo de problemas? Fale!
— Prefiro não falar. Além do mais, odeio perguntas.
Haverá realmente dito a segunda frase? Quem sabe se a ouço antes do tempo
justo, escandidas por uma mulher que não conheço ainda e me ignora? É possível,
igualmente, que as destilara eu próprio em minhas sombras, para impedir-me de
insistir junto a Roos e conservar íntegro o enigma, rico em suas virtualidades como
não importa que revelação. De qualquer modo, o silêncio obstinado de Roos,
detestável que seja, por certo atende ao que sou. Tenho o direito de indagar (no átrio
de Santo Eustáquio, em Bruxelas, observando aos últimos clarões da tarde a nave do
templo, a qual, em vez de prosseguir na linha da visão, inflete para o lado esquerdo ao
aproximar-se do altar-mor, quase ocultando-o, fruo até o embotamento o íntimo
desequilíbrio provocado por essa anomalia arquitetônica) se a esquivança de Roos não
será um cálculo, uma resposta precisa a disposições do meu temperamento, se ela não
a usa como um véu transparente.
— Ficaria tão grata, se não insistisse. (Prende-me de leve o braço.) Não
desembarque em Lausanne.
Consigo fazê-la entender que, pelas reproduções, ela parece o modelo de uma
Maáonna col Bambino, de Giovanni Bellini, existente em Milão e relacionada, dizem,
com o Retábulo de Pesaro? Penso, Roos, se Bellini recebeu, como uma espécie de
antecipação, a graça de vê-la. Compreende que há anos desejo examinar, na
Biblioteca Brera, os mapas da Geografia oferecida por Lorenzo de Medici à esposa?
Que atendo ao que me pede e continuo viagem se prometer passar comigo um dia em
Milão?
Minha voz cada vez mais seca e áspera, areia grossa misturan-do-se ao rumor
do trem.
— Por que não segue comigo? Por que não manda as cautelas para o diabo?
Roos, eu contava com essas cinco horas de viagem para... Não foi possível e eu...
tenho um minuto ou dois para dizer o que só aos poucos... Não vejo apenas o seu
corpo, não no sentido comum, quero chegar a você, amo-a, Roos, não, não sei se é
isto. Roos! Roos!
Suavemente, fecha-me a boca com as mãos:
— Pensa que não vejo? Que não sei? Mas tudo isso é inútil e sem futuro. E
mesmo sem presente. É o meu marido que está em Lausanne.
— Sanatório?
O sol pisano sobre os mármores dos monumentos e as velhas fachadas ocres
ou rubras margeando o Arno. No centro do batistério, o eco dos meus gritos, três,
quatro, ressoando como um sino de bronze. Sua voz lenta, a palavra difícil, a tenra
garganta atravessada de agulhas.
—- Sim. Há oito meses.
— Têm filhos?
Uma cidade em círculo (Nordlingen?), outra retangular (Aigues-Mortes),
outras sem plano, todas sob a neblina e a noite. Vento.
— Eu sigo viagem, Roos.
— E onde poderia encontrá-lo, se... por acaso... eu for a Milão?
— Quantos dias vai ficar em Lausanne?
— Dois. Volto depois de amanhã, ao anoitecer.
— Estarei na estação. Esperarei todos os trens que chegarem da Suíça.

A 16

ROOS E AS CIDADES

Compramos nossos bilhetes (eu para Verona, ela de volta a Paris) e ficamos
um momento no alto da imensa escadaria, absortos, olhando o ir-e-vir das pessoas nos
degraus. Ruídos de locomotivas, distantes sons de sereia na piazza Duca d'Aosta,
gritos agudos de aves nos portões, no restaurante, nas passagens subterrâneas, no
guiché de informações, nos lavatórios, nas cabines telefônicas. De procelárias?
Restam-nos apenas vinte e dois minutos, o ar está frio e nós cansados, refugiamo-nos
no salão de espera. Nossa excursão dominical nos lagos: vento gelado, chuva e águas
agitadas. Atravessamos sem palavras os salões do Palácio Borromeu, sapatos mo-
lhados, sob uma temperatura pouco diferente da que faz lá fora. Quadros ordinários
(mas os grão-senhores do Renascimento prestigiavam os inovadores do seu tempo,
não imitadores como estes) e ausência de livros, que não merecem a honra dos
arreios, orgulhosamente exibidos (quando a Biblioteca Ambrosiana, em atividade há
três séculos e meio, é fundada justamente por um Borromeu). O guia informa que a
família só habita o palácio dois meses por ano. Roos, ante a janela, olha os gramados
e as flores sob a chuva. Corre-me as veias, lento, um tropel de caititus: batem as
mandíbulas. Fecho os olhos e escuto-os desfilar. Vão-se. Da varanda envidraçada que
circula o edifício ocre e branco do hotel, formando uma espécie de jardim de inverno
(Regina Palace, Orchestra, Spiaggia privata, Equitazione, Sci nautico), observo um
veleiro em luta contra os ventos que descem das montanhas, encrespam o lago
Maggiore. "Vi estes lagos, ontem, na Geografia de Lorenzo de Medici. Foi aí que me
ocorreu, caso você viesse, trazê-la aqui. Não estava chovendo. Não chove, nas
Geografias." Seu rosto, contra a vidraça e a paisagem, lívido do trajeto entre o castelo
e o barco, e da travessia sobre aquelas ondas inquietas, vai retomando a cor habitual,
absorve a claridade incerta deste meio-dia: "Também tenho visto alguns mapas
antigos. São tão estranhos. Dão a impressão desses desenhos da fauna asiática ou
africana, feitos por europeus que não haviam saído da Europa e imaginavam um
elefante de acordo com os animais que conhecemos: cães, cavalos, melros". Falta um
vidro nos altos do salão de espera e alguns homens, com roupas pouco espessas,
deixam-se ficar nos bancos ao pé das paredes, decerto para fugirem ao mau tempo.
Roos consulta o relógio. "Digo, em geral, que sei bem o que faço. Mas a verdade é
outra. Sei que amanhã devo estar em Paris. Sei por que vim a Milão? Por que estou
aqui? Não. Também não sei por que vou embora quando podia ficar. Nada me
impede." Vagas abatem-se contra os vidros da lancha. As franjas espumantes
rebentam nos portais e molham os passageiros. Soltam-se as amarras, fecha-se a
porta, vai a lancha conosco para isola Bella. Três australianas, sua governanta, seis
japoneses, oito ou nove matronas do Alabama, todas de chapéus floridos, um casal de
alemães em viagem de núpcias e três religiosas de não sei que convento em
Campobasso. Silva o vento, as ondas se sucedem, salta a embarcação, range o
madeirame. Uma das freiras, ainda muito jovem, tosse sem parar. Não estaremos em
nosso próprio velório? Trinta cadáveres vogando sob a chuva, entre destroços. A
cerração, balsas de salvamento, refletores, sereias, Roos fragmentando-se, um
cosmos, cidades vazias de seres humanos, vindas de inúmeros pontos da Terra e
precipitando-se no lago, como os porcos possessos de Gerasa, porém em silêncio e
não sem grandiosidade. Falham ás manobras para atracar. A embarcação vibra de proa
a popa, cheia de asas e de nadadeiras tortas e o casco de madeira bate no molhe,
seguidamente, com um ruído cavo.
Movimentos cautelosos e enérgicos ligam-na ao cais; as ondas continuam a lavar as
janelas. Sob a chuva e o vento, agora mais intensos, vencemos a distância entre o
ancoradouro e o Palácio Borromeu, rentes às paredes das pequenas casas de comércio.
O vento gélido fere-nos os olhos. Picos nevados, de nítido desenho, à luz sem
esplendor da tarde; casas de campo aglomeradas no sopé verdejante das elevações
mais próximas, algumas subindo pelas encostas. Roos mantém a taça à altura do colo.
Ouço claramente, enquanto falo, o bater do sangue no seu pulso! "Desenhar o elefante
com base no que se sabe dos melros... Mas talvez alguém que só conhecesse o
elefante através dessas estampas, encontrando um elefante verdadeiro, o identificasse.
Daí voltamos à cartografia. Com aqueles mapas imperfeitos, os navegantes chegavam
sempre aonde desejavam. E quando se perdiam, sabiam que estavam perdidos. Isto dá
o que pensar. Na verdade, um mapa, para ser exato, deveria ter as dimensões do país
representado e então já não serviria para nada." As plantas colocadas no salão de chá,
pouco a pouco, voltam-se na direção de Roos, como se ela fosse, no recinto, uma
janela aberta. Ouve-se a voz frágil da religiosa: "Io non vorrei morire senza aver visto
ti Varese". "Percebeu o que ela disse, Roos? Que não queria morrer..." "Sim." A vista
panorâmica do lago: verde, cinza, azul e violeta, com seus barquinhos que parecem
besouros arranhando as margens. Esta visão perante, a jovem freira fechará os olhos.
Ainda hoje, talvez; ou amanhã. Vê-se a morte no seu rosto. Mas o lago Varese, para
ela, nunca, não foi sonhado e anônimo. Situava-o nos mapas. Escrevo no guardanapo,
sobre o oval com uma coroa onde se lê HOTEL REGINA OLGA — CERNOBBIO — COMO:
Je vous aime. Roos volta o rosto para fora, esquiva. Barcos de cores diversas presos à
margem do lago, as proas um pouco empinadas, alguns protegidos com encerados.
"Há inúmeras maneiras de amar e eu jamais conseguiria dar-lhe uma idéia do modo
como a amo, um amor mesclado com o inalcançável e a geometria. (Move-se na
minha boca o instrumento estranho?! Sim, léxico e sintaxe, dóceis, obedecem-me e
tornam-se, associados, um mapa menos rasurado e mais preciso.) No entanto, Roos,
quando eu escrevo que a amo, exprimo a substância e a natureza do que você deflagra
em mim. Não se parece com os mapas? O que eu digo é algo incompleto e falho. Mas
você chega ao porto. Com estas palavras, orienta-se e chega à compreensão do que eu
quero dizer." "Pode-se mentir." "Neste caso, trata-se de um mapa enganoso. O mapa
de um continente irreal, não um mapa imperfeito." As flores e as folhagens incli-
naram-se mais em direção ao seu rosto de uma simetria rara. "Pouco depois que você
seguir de volta a Paris, sai meu trem para Verona. Não há melhor cidade no mundo
para que eu lhe diga com a carne o que disse com palavras. Tem alguns minutos para
decidir. Por que não vai comigo? Talvez, lá, você saiba por que foi." Veio a Milão e
está a meu lado, o calor da sua coxa direita atravessa as lãs e me aquece docemente o
flanco. Nem assim estamos próximos. Sem essa chuva constante, sim, quem sabe,
sem esse vento veloz e incansável! O silêncio retorna e eu fixo, vago, a moldura sem
o vidro nos altos da parede. Outro barco, maior, aporta a isola Bella. Através da
chuva, vamos distinguindo os ocupantes vestidos a rigor e as mesas postas, com
flores. Protegemo-nos sob um toldo agitado pelo vento. No barco, irrompe uma
música festiva — xilofone, flautas doces, uma corneta, pandeiro, bandolins. Decerto
um epitalâmio. Mulheres com chapéus e pelicas desembarcam, os garçons, enluvados,
protegem-nas com guarda-chuvas de gomos brancos e verdes, os cavalheiros, aos
saltos, correm com as mãos sobre a testa, um cão põe-se a latir. Tábuas são jogadas no
caminho, e mesmo assim molham-se as meias das mulheres, os sapatos revestidos de
cetim. Surge a noiva. Há um grito isolado, sem resposta:" Viva la sposataf". Ressoam
palmas úmidas. Com a mão esquerda, estreita o buquê de camélias sobre o peito: com
a outra, sustém a grinalda; o véu de gaze, pregueado e amplo, esvoaça. À sua
aparição, o vento se levanta, sopra mais rápido, quebra as varetas do guarda-chuva
azul com que tentam protegê-la, o véu, a ponto de rasgar-se, ondula, afia, estala à
direita e à esquerda dos seus ombros, entra pela boca, emaranha-se nos restos do
guarda-chuva, o casal de crianças ataviadas de veludo vermelho que sustenta a longa
cauda do vestido esforça-se para mantê-la presa, mas tanto cabeceia o vento nessa
vela de rendas enfunada que a moça vacila, a ponto de voar. Da capela para onde se
dirige o cortejo vem um som de órgão. Volto-me, Roos está a dois passos de mim, o
rosto salpicado da chuva, e nosso olhar se cruza com uma força estranha, tenho a
impressão de que me vê pela primeira vez, sem espanto, sem paixão, apenas surpresa.
Somos quase os únicos ainda sob o toldo, até as freiras se foram, ela sorri, um sorriso
desolado, volta a olhar para as águas inquietas: "Quando eu casei, também estava
chovendo". Que posso fazer, eu, contra essa recordação? Aperto-a contra mim.
Abalam-na, secos, dois ou três soluços, como se alguém a houvesse esmurrado nas
espáduas. O vento e as ondas rosnadoras do lago misturam o hino sacro com a música
profana executada no barco.

T 9

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Foram-se Damião e Cesarino, um depois do outro. Restam os demais, ainda


em torno da mesa. No alpendre, lúcido, respiro fundo o ar praiano. Sou, dos convivas,
o único, talvez, que não sai da mesa um pouco embriagado nesta noite. O que me
comprime o estômago, dando-me ânsias de pôr fora o jantar, não é pois a bebida e não
tem nome. As luzes do farol passam nos ares. Oscilam dentro da noite as igrejas de
Olinda, o seminário, os conventos, o Mosteiro de São Bento, oscilam sobre o chão.
Lua cheia. A maré já deve estar subindo e pela madrugada a ressaca violenta de
agosto vai derrubar outras casas. Por isso está inquieto, em minha mãe, o gato
simiesco: ouço o vaivém da cadeira e as risadas. Aflige-a, creio, o silêncio em que
agora vive a casa, quebrado por um ou outro jantar como o de hoje, pela tosse do
antigo Tesoureiro e pelas notas soltas, arrancadas de algum instrumento mal
encordoado. Dá-me, por vezes, o seu riso, a impressão de esconder a insensatez e a
obstinação em não ver o lado feroz da vida. Contudo, negarei que a amo? Ocorre-me
imaginar os indivíduos feridos de desejo e solidão que por volta de 1929 passam a
Gorda, então na flor da idade, falsários, proxenetas, marinheiros bêbados, ladrões,
malandros, gigolôs, contrabandistas, profissionais de falsos testemunhos, assassinos,
olheiros da polícia. Interrogo estas sombras impossíveis, criadas no meu silêncio, bus-
cando em vão antecedentes precisos. Nada vejo nas sombras e ninguém me responde
senão ela a Gorda. Ela é o meu passado. Mais é preciso para que eu a ame? Ainda:
talvez seu riso não disfarce exatamente a loucura e a sua decisão de ignorar o que a
destrói. Pode ser uma expressão de cólera e de medo ante a essência ininteligível do
mundo; e de alegria ante as suas aparências. Pode ser. Então, assemelha-se nisto ao
meu silêncio.
Uma mulher (vista à distância, com os seus cabelos soltos, a Lua oculta nas
nuvens, parece jovem) aproxima-se do portão. As ancas, não muito pesadas, flutuam
sob o vestido. Creio que busca, indecisa, um objeto na bolsa, uma chave talvez, um
endereço. Sendo a rua mal iluminada, não posso distinguir seus movimentos. Desço
os degraus, vou saber o que deseja. Conduzem-me, além disto, projetos vagos:
aquelas ancas provocam-me. Dois passos nos separam e nem então ela me olha.
Onde está o Tesoureiro?
A pergunta parece dirigida a alguém que viesse andando na calçada.
Está em casa. Algum problema de aborto?
Há no seu aspecto um certo ar de amante ludibriada, em busca de reparação ou
ajuda. Isto, porém, não justifica minha pergunta estúpida.
Se o assunto fosse tão simples, eu não viria pessoalmente.
Ergue-se, no chalé, um riso coletivo, descuidoso. Soam algumas notas do
piano. Tudo semelhante aos sons de outros tempos. Algo parece faltar, entretanto, nos
sons, no rosto da desconhecida, na voz magoada e vagamente perversa. Dou um passo
à direita, rápido. Ela é mais velha do que supunha e o lado esquerdo do rosto não
existe. Orelha, ossos, olho, supercílio: um buraco, um vão. Relação de espécie alguma
entre as doenças humanas e a destruição desses tecidos. O que consome o rosto à
minha frente é algo mais sutil e decerto mais voraz, o que o destrói feito uma chaga
incurável é o nada.
Cecília, ante a Matriz de Santo Antônio, a mão direita estendida (encontro
casual e rápido), despede-se de mim. Céu cambiante, entre azul-pálido e roxo-
desmaiado. Restos da claridade diurna envolvem numa luz dourada a igreja, os
edifícios profanos, seus vidros, o asfalto da praça, os letreiros, as calçadas, a indistinta
multidão e os nossos vultos. No esmalte dos veículos refletem-se as lâmpadas, acesas
prematuramente. Cerca-nos o tumulto urbano desta hora. Rolam as portas de ferro nas
lojas, fecham-se com lentidão os cofres-fortes, os escritórios vão silenciando. Os
elevadores chegam lotados aos andares térreos. Acelera-se a marcha das pessoas na
rua e os veículos arrastam-se. Rodeiam-nos, tensos, milhares de corpos, cada um no
seu rumo. Todos, para todos, fechados em sua incógnita. Impossível conhecê-los.
Impossível, ante realidade tão mutável, diversa e vasta, todo relacionamento, salvo
reduzindo-a a uma noção abstrata. Portanto: deformadora e unificadora. Conhecer
cada um que avança a nosso lado? Sentir cada um? Amar cada um? Retenho, entre as
minhas, a mão de Cecília. Quanto tempo? Três segundos, cinco, o tempo de
entrevermos o dourado dos entalhes na capela-mor do templo, de descermos um
degrau, pouco tempo. Seus dedos estremecem e eu vejo-a, vejo-a duplicada. Vemos
assim a própria imagem em certos espelhos ordinários: dois rostos superpostos, porém
com um desvio mínimo entre esses reflexos idênticos. No vão exíguo do desvio,
surpreendo (um clarão) a natureza recôndita de Cecília, sua identidade verdadeira.
Um clarão. Deslumbrado e ao mesmo tempo com o dom irrestrito de ver, como
alguém que sob um raio, em plena treva, desvendasse os mil rostos de uma multidão e
também a sua história, vejo a espessura da carne de Cecília, povoada de seres tão reais
quanto nós. Na substância da sua carne mortal, conduz Cecília o íntegro e absoluto ser
de cada figura que atravessa a praça, e não só dos homens e mulheres que agora
povoam a praça e os arredores, mas também dos que ontem a povoaram, dos que em
maio ou junho a povoaram, dos que no ano findo a povoaram, dos que hão de a
povoar ainda amanhã, destes e dos que em outras partes existem ou existiram, sim,
nenhum está ausente em definitivo do corpo de Cecília. Cecília, deste modo, é ela e
outros. Amando-a, o meu amor abrange numa espécie de múltipla e concreta
individualidade o que em princípio é inapreensíveí e abstrato. Sua mão leve desliza
entre as minhas. Frágil no corpo e no nome, Cecília dá-me as costas e deixa-me só.
Assim, pois. Tom e som. Eu e eu e eu, Hermenilda e Herme-linda, eis-nos,
ajudantes da fábula que começa a tomar corpo e na qual dois amantes, por via e modo
nosso aproximados, começam a enredar-se, cheios de alegria, de paixão e ainda mais
de espanto. Temperar o bandolim. Rasga o retrato na ribalta, Roderico rude. Sol no
cão, ar na mão. Não é? Enorme. As coisas que conquanto em volta os brados tantos.
Ah, ondas do tempo e armadilhas rastejantes! Que faz a costureira com o que resta do
fio? Cose, calada, a boca do cadáver. Aquém do além. Zás. Esta cantiga é descosida.
Une-a um fio: a agulha. Rude Roderico, ris do redingote da rã? Alcatruz.
O Tesoureiro procura-me no banco. Põe no balcão a pasta, debruça-se e tenta
conversar sobre o tempo. Úmido o paletó à altura das axilas. Ouviu dizer que o
panorama vale a pena ser observado lá de cima do prédio numa tarde assim. Subo
com ele para a coberta. Céu sem nuvem, branco e os edifícios ardendo sob o Sol. Os
pombos ciscam e esvoaçam. Ele fala sem parar. Oito anos, hoje, do suicídio de
Vargas. Será que a gente encontra, morto, os nossos ancestrais? Não os parentes, mas
os que povoaram a terra onde se nasce. Gostaria de encontrar o velho povo de Olinda.
Os pioneiros que saíram de lá e povoaram toda a planície costeira por aí. Arquitetos.
Religiosos. Guerreiros. Mas, não. Não vai encontrá-los. Alto, o prédio, para uma
construção de dois andares.
— Será mortal, Abel, atirar-se daqui? Melhor você descer. Ainda é novo no emprego.
Precisa impor-se.
—Não tem importância. Além disso, quero pedir ao senhor para falar com. a velha.
Ando pensando em ir embora.
— Para onde?
— Não sei. Não sei ainda.
A sentença de que, insciente, sou o portador e em certo sentido o executante,
tende a ser conjurada. Com o meu projeto de deixar o Recife, Cecília condenada
desde a noite em que me esquivo à morte na cisterna, talvez receba o indulto. Torna o
Tesoureiro, cego a essa espécie de ilações:
— Sua mãe não vai gostar. Mas é isso mesmo. Quanto a mim, veja bem, não
vou interferir nos planos que tiver.
— Isso, ninguém pode afirmar.
— Não, não. Estou certo do que disse. Já desempenhei a minha parte, Agora, saio da
cena.
Arrepende-se do que pretende acrescentar? Dá alguns passos e fixa a linha
distante das águas:
— Como é grande o mundo! E isto pouco representa. Quero dizer: perante a vida
eterna. Não é, Abel? Mas hoje só se pensa em greve. Greve e roubo. Tudo tão
inseguro!
Estivadores, brilhando de suor, transportam grandes sacos na cabeça, os
guindastes trabalham. Passa o trem do cais, devagar. Seu apito, nasal e poderoso, o
mugir de um grande boi de ferro.
— Bonito, isto aqui. Bem... Vou para casa. Não agora. Quando terminar a cobrança.
Adianto-me e olho-o de frente. Tresanda a comida velha. O colarinho puído.
Tomo-o pelo braço. Seu hálito lembra o odor úmido e triste de um buraco na terra.
— Tenha cuidado. Uma mulher perguntou pelo senhor.
— Quando?
— Na semana passada, depois do jantar de aniversário. Tinha uma banda do rosto
vazada.
Ele baixa a cabeça e desconversa, pensativo:
— Abel, faz quarenta e três anos que encontrei o meu bisavô e nem assim esqueci. Ele
morre com os dois braços e me aparece com um, tempos e tempos depois. Trazia
aquele chapéu que nunca possuiu, todo coberto de penas amarelas. Minha avó
garantia: "Nunca". Como entender isto? Hein? Olhou a minha avó, assombrado, quan-
do passou no quintal. Não o conheci em vida. Era moço agora e ela uma velha. Onde
foi mutilado e onde, já morto, arranjou o chapéu? Quem pode lá saber onde essa
mulher que você viu deixou um lado da cara! Por aí. Mortos ou vivos, vamos
perdendo ou adquirindo coisas pelo mundo. Não é mesmo?

O 17

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Das minhas duas idades, eu o contemplo — com os quatro olhos abertos. Os


cabelos castanhos, lisos, caem sobre a testa. Quando criança: menos escuros e
enrolados em cachos. Fios prateados entre eles, principalmente nas têmporas,
ampliam a fronte. Estranho, não é grande a cabeça, não maior que a de qualquer outro
homem. Donde esta impressão de volume, peso e obstinação? Orelhas delicadas,
quase transparentes, pequenas folhas castanhas e vermelhas insinuando-se entre as
suas volutas. A sobrancelha grossa, negra, toma mais irônico e profundo o azul
estriado de ouro dos seus olhos. Quando sorri, cerra as pálpebras e o azul se esconde
mais ainda, intenso, duas chispas. Vaga-lumes. As fêmeas não têm asas, as fêmeas
dos vaga-lumes, os machos sobrevoam-nas, brilham, elas ficam ao nível do solo, de
dorso, esperam dois segundos e um décimo e só então respondem à luz do macho.
Uma fração a mais e não serão entendidas; uma fração a menos e não serão
entendidas. Dois segundos e um décimo. Meu duplo amor e meu desejo em dobro
impedem-me de ver a sua boca. As linhas da boca, como se não existissem, desfazem-
se a meus olhos, desfazem-se como se fossem apenas desenhadas, não posso ver seus
lábios e tudo que sei, tudo, é que: cálidos, úmidos, e que decerto ouvem a minha pele,
pois me pressionam levemente, ou com força, segundo os tortuosos caprichos do meu
corpo. São grandes os dentes, um pouco espaçados e não muito alvos, são grandes
mas escondem-se entre as lábios. De um certo modo solerte. A ironia diluída em cada
ponto do rosto alcança inclusive o queixo largo, cortado por uma fenda. A fragilidade
do tronco e o tom da voz absolvem essa ironia. O tronco frágil, com as folhagens e os
bichos efêmeros que em nós se movimentam, induz-me a protegê-lo, a protegê-lo, e a
voz rouca, velada, agitada por súbitos assomos de ebriez, é a de alguém que jamais
terá o orgulho ou a ambição de ingressar no mundo dos dominadores, a voz de um
homem que conhece, tendo-os acolhido e com eles convivendo, o medo, o infortúnio,
a solidão, a piedade, o ardor e as interrogações. Inácio Gabriel é seu esboço, seu
antecipador, Inácio Gabriel o anuncia.
Três vezes minha avó me leva para a sua casa; três vezes volto sozinha ao
Martinelli, a pé. Todas as vezes o mesmo ritual. Um jogo, uma repetição. Aparece de
chapéu, pintada em excesso para a sua idade, longo colar de pérolas sobre o vestido
negro; nas mãos, sempre desassossegadas, a bolsa e um pequeno chicote de cabo
prateado, como se fosse passear a cavalo. Há em seu todo uma vaga evocação
eqüestre. O modo de ocupar a poltrona, ereta, o peito alto ornado com o colar de
pérolas, as pernas unidas e voltadas para a sua direita, de modo a ficarem de perfil, o
que salienta a linha e o brilho ainda juvenis dos tornozelos, tão idênticos aos de minha
mãe, tudo faz lembrar uma pessoa que cavalga à amazona. Abomino, desde a primeira
visita, suas mãos inquietas e enluvadas de cinza, prendendo o inútil rebenque; e o seu
vezo de falar voltando a face esquerda para mim, mesmo quando estou acima do nível
do seu rosto, lançando-me um olhar dominador e rápido e examinador que parece
sempre vir do alto de uma sela. Busco inutilmente em seus olhos o miúdo escorpião.
Ela censura com acrimônia o prédio, queixa-se dos ascensoristas e lamenta a solidão
em que vive, agora que sua única filha apodrece sob a terra. Minha mãe aceita a con-
dição de morta, sabe estar morta para os pais desde o casamento. Faz, da tumba, dois
ou três comentários suaves e malévolos sobre a irmã morta, assumindo um ar de
extrema compaixão e a espaços lança um riso, um grasnido nervoso, com o qual pensa
dar idéia de uma pessoa que, desventurada, procura aparentar euforia. Minha avó
corta o diálogo falso, cheio de intenções e de velhas cóleras in-disfarçáveis: "Não
quero que uma inocente expie as faltas alheias". Indica-me com o pequeno chicote:
"Vista-a. Levo-a comigo".
O trajeto para a minha nova residência, uma esquina da Marquês de Itu
próxima à Santa Casa, é lento e cheio de curvas. Minha avó fala e agita-se. Um pouco
ridícula no seu porte ereto e oscilando no assento do automóvel, pois não concebe
apoiar-se no encosto, acha sempre que o chofer vai rápido demais; causa-lhe prazer
reencontrar as placas nas esquinas com nomes de parentes seus, sendo também por
isto que ordena desvios no trajeto. Não admite que eu leve nenhum dos meus
pertences, considera-os inúteis e substituíveis, ignora que lentamente roda sobre a
minha antiga cama o grande maquinismo invisível, o maquinismo, o que se assemelha
a uma esquadra suspensa, o que capta os eventos e que mantenho em segredo. Na
primeira noite, deitada, fecho os olhos, todo o meu corpo em silêncio — e aguardo-o.
Virão os imensos navios girando em minha direção, em direção a esta casa,
vagarosamente, através da noite e da cidade? A sensação de ausência e de abandono
não seria maior se possuísse um cão e dele me houvessem apartado. Aguardo,
aguardo a máquina, vejo as placas brancas e azuis nas esquinas das ruas, os
cavalheiros no álbum de fotografias sobre a mesinha forrada de damasco carmesim,
mãos nos bolsos, posando em extensões nevadas com árvores sem folhas (e também
há grupos sorridentes de mortos, numa praia, em longos trajes de banho), vejo à mesa
da sala de jantar uma fruteira branca com os figos que comi, meu avô num salão em
penumbra, junto ao pesado rádio Telefunken, o olho mágico brilha verdemente na
obscuridade da peça (são notícias da guerra na Europa), vejo as altas estantes e os
livros com títulos dourados nas lombadas, vejo o piano Erard, coberto por uma ampla
toalha de brocado, o piano junto ao qual minha mãe empena o seu destino, vejo a
lamparina acesa no meu quarto, dentro de um copo vermelho, não há apenas o
silêncio no mundo, o silêncio está em mim, no meu corpo vazio, é aterrador, eu me
levanto, visto-me, salto a grade do jardim e fujo.
As duas outras vezes fujo durante o dia. Doem-me os lençóis macios da
Marquês de Itu? Não, aquecem-me. Doem-me o banho morno e a água de violetas?
Não, tormam-me leve. Nada me magoa nesta casa ampla, nem as grandes janelas por
onde entra o sol de março, nem as cortinas franjadas, nem os móveis severos, muitos
recobertos com toalhinhas de croché, nem os lustres que lançam, quando acesos,
sombras rendadas no teto e nas paredes com lambris de cedro, nem o piso recoberto
com tiras de madeira bem polida, nem mesmo a sala onde fica o rádio de olho verde,
ventilada apenas por olhos-de-boi e com falsas janelas pintadas na parede,
ilusoriamente abertas sobre paisagens hibernais. No andar superior, a pintura das
paredes tende a descascar, alguns quartos são polidos e arrumados, enquanto outros
parecem envelhecer, cheios de móveis desencontrados, montes de revistas
estrangeiras de 1912 e recipientes de perfumes tão antigos que só cheiram a passado.
Não me aflige também esta presença de ruína e de detritos em uma casa onde até as
escarradeiras de louça têm algo de faustoso. Por outro lado, o Martinelli fere-me. Com
o seu bolor, seus elevadores quebrados e suas janelas fuliginosas, abertas com a
função de iluminarem as escadas e que parecem dar para buracos em um mundo onde
nunca amanhece. Mas há um parentesco, eu sei, entre mim e as suas paredes
encardidas, entre mim e o velho ascensorista com um gancho na ponta de um pau para
abrir a porta gradeada do elevador, e as janelas escuras que dão para o escuro e
principalmente entre mim e a doida multidão que transita ou vive nos seus muitos
andares, calada, maldizendo, roubando ou sendo roubada — e que, sem o saber, afia
as minhas garras. Por isto, volto e logo que volto os corredores tomam a ouvir meus
passos. Num dos andares, agora, toda uma ala é vedada por uma grade de ferro
pintada de alcatrão, um portão, com cadeado e corrente. Eu fico no portão, gritando
para dentro, para a ala deserta e isolada, ninguém atende e contudo meus gritos não
me parecem perdidos, não me parecem sem resposta os gritos sem resposta, no
Martinelli nada me parece inútil, cada grito que eu lanço, cada passo que eu dou nos
degraus corroídos das escadas, conduz-me, é o que eu acho, a uma culminação. Na
casa da Marquês de Itu, ante os álbuns de fotografias e os consolos com tampo de
mármore, o mundo se reduz e murcha para mim. Nesta casa, com ciprestes ladeando o
portão e salas numerosas, algum esporão está sendo amaciado em mim (no
calcanhar?, na língua?), em algum ponto do corpo, está sendo polido, sou podada na
violência que em mim se ramifica.
Na quarta vez, espera-me ao portão, com vestes alvas de pajem, figura leve e
adejante, alguém cujo emprego é seduzir-me. Chama-se Inês e não precisa esforçar-se
para executar sua incumbência. A sedução escorre de cada gesto seu, de cada frase,
Inês ama o ar e a terra, ama os leões soltos, os cães sarnentos, o gume das navalhas, os
algozes, teria uma palavra e um olhar afáveis para o carrasco e o machado se
condenada à morte. Olha-me dentro dos olhos, afetuosamente, dando-me sempre
nomes novos, Amália, Creusa, Sofia, Cristina, Maria Alice, a cada novo nome eu
sinto-me atingida, cada novo nome parece mais profundo, uma incursão no cerne do
meu ser. Inês vai inventando outros nomes, como se tivesse a esperança de vir a
descobrir o meu nome real, não o de registro ou de batismo — meras aparências —,
mas o meu, o verdadeiro, o que eu própria ignoro e que lhe consinta realmente
penetrar em mim, abra-me, um nome que seja como o segredo de um cofre.

P 1

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

Os relógios, escreve J. H., têm estreita relação com o mundo e o que


representam ultrapassa largamente a sua utilidade. Desde a origem, opõem ao eterno
o transitório e tentam ser espelho das estrelas. Mais ainda: exprimem em números
simples — tão simples que, ingenuamente, julgamos compreendê-los— o ritmo
impresso desde a origem à marcha solene e delicada dos astros. Vede os relógios de
Sol. Pode-se, após alguma reflexão, continuar a crer que Anaximandro de Mileto,
quando fabrica quadrantes, quer apenas facilitar a divisão do dia em horas? O que
ele pretende é converter a luz solar, seu giro harmonioso, numa flor geométrica que
feneça ao anoitecer.
O 18
HISTÓRIA DE ʘ , NASCIDA E NASCIDA

Três dias vacilo entre ficar e fugir. No terceiro, estou junto ao piano, sempre
coberto com a sua toalha de brocado, estou de pé ao lado do piano, no exato ponto em
que meu pai, crédulo, enleia sua aluna, sem o saber, num destino adverso. O relógio
de mesa, ladeado por dois viçosos tinhorões em cachepôs de louça, marca onze horas
e dez. Estão abertas todas as janelas, as cortinas franjadas recolhidas e o sol cai sobre
o tapete, onde uma jovem de vestido leve diverte-se, entre árvores, num balouço de
cordas floreadas. Inês, toda de branco, sentada numa cadeira baixa e não menos feliz
que a moça do tapete, faz um trabalho de tricô. Lendo agitadamente um jornal, minha
avó, ereta e um pouco voltada para a sua direita, ocupa o sofá — de palhinha, com
medalhões no espaldar. Seus óculos de aros dourados cintilam. Do centro do sofá e
sentada à amazona, sempre com o aspecto de quem se planta no alto, na sela, reina
sobre os consolos e dunquerques com pastores de faiança tocando instrumentos
campestres ou falando ao ouvido de pastoras, sobre as bandejas de prata, os jarros
coloridos de porcelana e, principalmente, sobre as doze cadeiras — umas de braço,
outras simples —, todas vazias e voltadas para ela. Vejo-a refletida em um dos
grandes espelhos com moldura dourada que pendem da parede. A repetição do seu
vulto torna-a ainda mais dominadora.
Apraz-me, nessas idades, ouvir a minha voz. É ainda uma voz de criança de
dois anos, rouca, nasal e estridente, mas eu atiro-a às paredes, sem muitas vezes ouvir
o que digo, atenta apenas ao seu volume e inflexões. Do mesmo modo que, durante o
meu longo período de mudez, crio palavras não pronunciadas e chego a pensamentos
que não me atrevo a externar, lança a minha boca, nesta fase segunda, idéias,
narrativas e nomes que ninguém conhece, que nem eu conheço, que não conheço
melhor ouvindo-os de minha própria boca e que decerto assustam ainda mais os que
me escutam por serem proferidos numa voz insegura de criança, traduzindo uma
experiência que sobrepassa a deles e não é justificada pela minha idade ou aparência.
O relógio de mesa marca onze horas e catorze minutos. As agulhas de Inês
enlaçam os fios de lã. Minha avó, duplicada no espelho, lê as notícias de falecimentos.
O céu toma-se escuro e ameaçador. Duas andorinhas atravessam juntas o espaço, da
direita para a esquerda; em sentido oposto, bate asas um pombo solitário. Ressoa um
trovão, surdo e prolongado. Vem-me, de súbito, o impulso de falar.
Então, falo. Inês, interrompendo o tricô, olha-me com espanto. Minha avó, a
palidez realçada pela pintura supérflua, levanta-se e o jornal cai da sua mão; sem tirar
os óculos, faz-me, com voz incerta, uma pergunta que não compreendo. Continuo a
falar, exultante com o som da minha voz, novo trovão repercute, ela repete a pergunta
três ou quatro vezes e por fim traduz: "Onde aprendeu a falar alemão?". Mais: "Que
monstro é esse de que fala e que está na minha frente? Aqui não há ninguém".
Ressoa ainda na sala a última sílaba das suas palavras, quando a chuva tomba:
ouço a campainha e o portão se abre. Através das janelas, vejo correrem no jardim,
curvados, uma mulher baixa, espessa, com cerca de cinqüenta anos e um cadete ainda
adolescente que deve ser seu filho. Sempre com os olhos fixos nos meus, minha avó
dirige-se a Inês: "Veja quem vem". Inês, pressurosa, apanha o jornal a seus pés e corre
para abrir a porta. A mulher e o filho, com respingos de chuva na roupa e nos cabelos,
entram. Ele descobre a cabeça, Inês fecha as janelas. Minha avó, com um gesto,
convida a visitante a sentar-se a seu lado, no sofá. O rapaz, após um instante de
hesitação, atravessa a sala, afasta ligeiramente uma cadeira e senta-se de frente para
elas. Vejo-o de costas, o dorso é um tanto pesado para a sua idade. Por cima do ombro
dele, minha avó lança-me um olhar inquieto, não, um olhar aterrado e talvez
inquiridor. Saio de junto do piano e me sento no tapete, aos pés do jovem: "Como é o
seu nome?". Indago como se procurasse alguém cujos traços correspondessem aos
seus ou como se apenas precisasse dissipar as últimas dúvidas de uma evidência
qualquer. Ele assusta-se com a minha voz acidulada e recua um pouco na cadeira,
antes de responder: "Olavo". "De quê?" "Olavo Hayano."
Duas imagens planas, unidas no estereoscópio, adquirem relevo. Vejo Olavo
Hayano, com o meu duplo olhar, como ninguém o vê, vejo-o em relevo, o quepe
sobre os joelhos, figura num estereoscópio. Abranjo-o na sua forma carnal e no
consternador vazio que se esconde na carne perecível. Olavo Hayano? Não, este não é
o seu nome. Assim o chamam, assim ele assina, mas o nome cai de sua boca tal um
manto que ilusoriamente revestisse um corpo, um manto erguido entre o observador e
o homem nu, com um muro de vidro entre o manto e o homem, sendo portanto
vedado ao homem chegar a vesti-lo e bastando ao observador sair do seu lugar — um
pouco à direita, um pouco à esquerda — para constatar que o homem está despido,
que o manto não o veste e nem o pode vestir. "Não é." "Não é o quê?" "Não é Olavo
Hayano." A chuva cai em cordas, ruidosa e pesada. Inês está a meu lado, a mão
erguida e indicando o jovem, decerto exaltando-o. Eu me levanto, lenta, levanto-me e
recuo um passo. Olho-o do meu centro, do fundo de mim mesma, com impaciência e
raiva, sentindo que esta raiva, esta impaciência, batem nos seus olhos e voltam
redobradas, olho-o como se entre nós houvesse um rio caudaloso, um fosso — e nos
fosse necessário muito caminhar, dar muitas voltas, antes de verdadeiramente
defrontar-nos. Mas ele ainda pergunta, mãos crispadas no quepe: "E você? Quem é?
Como se chama?". Sua algidez envolve-me, penetra-me. Deixo-o e respondo da porta,
sem voltar-me: "Não sei".
À noite, fico mais uma vez à espera da máquina, que gira para ninguém sobre
o meu leito vazio, em outro ponto da cidade, no Martinelli. Olavo Hayano, postado
em minha mente, tem o ar de um intruso sobrenatural, reunindo em si os sentidos de
isca e de advertência. Por trás dele se esconde o meu destino, do mesmo modo que ele
próprio se oculta sob a opacidade do seu nome. Há um sim e um não, uma opção
entranhada no ar que o envolve.
Quando desperto, estão separadas e deitadas no leito, lado a lado, as duas que
sou. Vejo-me, sempre, no espelho. Vejo-me agora fora de mim e os rostos que
contemplo me surpreendem. Um deles é ainda um rosto de criança, mas o outro
começa a entrar na sombra da adolescência. Olho-me duplamente, a noção que eu
tenho da minha individualidade é una, sinto-me uma, mas ao mesmo tempo eu me
sinto uma em cada uma que sou e nas duas simultaneamente. De modo que em
nenhuma hipótese poderia dizer: "Ela me olha". Ou: "Respondo-lhe". É como se eu
estivesse no espelho, mas sem saber em qual dos lados está o meu reflexo. Com as
agravantes de que estes reflexos não são idênticos; nem agem como reflexos; e
nenhuma lâmina os separa. A lamparina está acesa no seu copo vermelho e não há
relógio no meu quarto. Nem sempre, daqui, ouço o relógio da sala, entre os cachepôs
com tinhorões. Não sei que horas são. Digo: "Vou embora. Preciso da máquina".
Estou sentada na cama, vestida numa camisa de lã e de pé ao lado da cama, nua. Estou
abrigada e tenho frio. "Isto mesmo. Devo ir. Mas talvez seja tarde demais." "Que se
danem as horas. Vou de qualquer modo." As vozes são diferentes, as duas abafadas,
quase um sopro. "É perigoso andar tarde da noite nas ruas." Ergue-se em mim grande
desprezo por mim. A resposta já não é proferida no mesmo tom de voz, e sim mais
alto, e como que eriçada, sim, há na voz qualquer coisa de um javardo no ataque: "E
isto aqui é seguro? Que quer dizer seguro?". Há um ruído, ou uma série de breves
ruídos secos, trinta bastões de giz partindo-se dentro de mim ao mesmo tempo.
Levanto a mão, afasto-a o mais que posso para trás: a bofetada me flagela à uma o
rosto e o punho. Ainda falo?, respondo?, insulto?, eu?, eu? O combate é longo e
violento. Um duelo de morte. Quero ir-me, outra vez ir-me, tantas quantas forem
necessárias, quero ficar pelo menos por uns dias, as vontades se opõem e a luta nada
tem de infantil. Abrem-se dois olhos vulneráveis? Neles procuro enfiar as pontas dos
meus dedos. Está próxima a parede? Golpeio-a com a cabeça que tenho entre as mãos.
Se alcanço o travesseiro, utilizo-o para sufocar. Se posso, mordo. Se posso,
estrangulo, dou com os cotovelos, bato com os joelhos nos queixos, nas costelas, no
fígado — e exauro-me a cada golpe dado ou recebido. Em meio à luta, várias vezes
trespassa-me um problema: destruindo a oponente, subsistirei? Vencê-la não será meu
fim? A pergunta não modera a ferocidade do duelo. Passam na rua soldados a cavalo,
as ferraduras batendo forte nas pedras — e eu em luta. A lamparina crepita, a chama
intensifica-se, apaga-se, o quarto fica às escuras: eu em luta. Cães latem e silenciam,
passa uma ambulância, há explosões longínquas. Eu luto. Pássaros começam a trilhar
sobre o telhado, eu luto, a débil claridade da manhã penetra pouco a pouco no quarto,
delineando os móveis e as paredes, delineando a inimiga — e eu luto, luto ainda.
Afinal, rolo no assoalho, fico de costas, deitada, braços abertos, respirando rápido.
Digo: "Eu gosto de Inês". Com outra boca: "Odeio Inês". Há uma pausa e eu
proponho: "Quem quiser, fica; quem quiser, vai". Minha voz, em resposta, após breve
silêncio: "Nada de separação. Para o que der e vier, seja uma vida só". "E o Iólipo?
Ele vem. Ele já veio." "Que venha. Veremos quem vence." Levanto-me, sento-me na
cama, estou deitada no chão, nua. Com dificuldade, ponho-me de pé e ando: de costas
para mim. O cantar dos pássaros é mais alegre e de alguma parte, longe, vem um
rumor de garrafas. Alguém põe-se a gritar na Santa Casa. No meu coração,
discordante a princípio e logo em uníssono bate o coração mais novo. Doze anos, seis
meses e dois dias vivo nessa casa.

T 10

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Encerrado o expediente, vão-se os funcionários. Não chegaram ainda os


encarregados da limpeza, com seus baldes, vassouras, escovões e vozes. Tiro da
máquina o papel onde procuro ordenar idéias vagas sobre o caos, jogo-o à cesta, abro
distraído um jornal. Notícias alarmantes sobre as Ligas Camponesas e nas quais a voz
do Tesoureiro parece ecoar, assustada e vingativa. Devo talvez invejar suas opiniões
aladas, eu que insisto no hábito ou na deformação de pesar, sempre, todos os lados das
questões, achando que só assim posso chegar a uma conclusão não muito distorcida.
As condições de vida dos cassacos nos canaviais são desumanas? Logo me vem que
os senhores de terra do Nordeste nunca poderiam pensar e atuar de maneira diferente.
Começo a duvidar, porém, que estes meus cuidados tenham alguma coisa a ver com
eqüidade ou que tal gênero de eqüidade, hoje, seja o mais leal e o mais útil à justiça.
Soa o telefone, na mesa do chefe. O som da campainha, estridente, agita os
dois andares em silêncio: foge pelas janelas altas, reforçadas por grades cobertas de
fuligem. Abandono o jornal, levanto-me, debruço-me no balaústre e fico olhando os
montes de papéis inúteis jogados junto às cestas, embaixo, sob os globos acesos para
nada. Hesitante e as idéias desfiadas. Será mesmo este mundo um tapete inteiriço?
Cruza o salão Cara de Calo, gesticulando, entre as carteiras vazias, colocadas sem o
menor sentido de ordem e protegidas por grandes folhas verdes de mata-borrão. Pode
ser, o mundo, um tapete despedaçado e também um tapete que nunca realmente foi
tecido: só na idéia o seu desenho seria coerente e completo. Sim, pode ser. O caos é
insalubre e mesmo repugnante. Não?
Volta a chamar o telefone. Atendo e vários maxilares invisíveis, em redor de
mim, começam a triturar, lentos, vidro ou areia grossa. "Sei que é você, Abel. Precisa
voltar. O passado... Tenha compaixão de mim... Os laços entre nós... Não pode
arruinar a minha vjda... Não suporto mais. Vai arrepender-se, juro! Hoje, lembra-se?,
seriam quatro anos. Abel!" Olho o número 6 no calendário e desfaço a liga-1 ção sem
dizer sim ou não.
Outra vez na balaustrada. Por uma espécie de instinto, ela conhece todos os
meus pontos vulneráveis e são muitos. Quando se atira no corredor, de joelhos,
barrando-me a passagem e rogando que eu não a abandone, sabe o que visa. Sabe que
o seu gesto, para alguns indivíduos, não tem qualquer importância, podendo até
comover. No meu caso, está certa de que não vai alterar ou sequer adiar a decisão
tomada. Sobre isto não tenho a menor dúvida (sei quanto ela me conhece) e ainda
assim cedo à trapaça. Qual a espécie de vespas que aferroam os grilos exatamente nos
três centros motores — centros, decerto, afastados entre si — e os imobilizam?
Alimentam as suas larvas com grilos imóveis e vivos. Cedo à trapaça e dou o lance
que no fundo ela provoca, deseja, aguarda: esmurro-a na cara, eu a quem repugnam
gestos dessa espécie e nunca, antes ou depois, bato em alguém.
Mais uma vez retine o telefone. As noções de simetria, de equilíbrio, de nexo,
tudo isto favorece-nos. Resta saber, resta saber se, ao olharmos de perto as
manifestações, artificiais ou não, onde prevaleçam os ameaçadores contrários
daquelas mesmas noções, não estamos devassando a real natureza do universo,
expressa justamente no desordenado, no ilegível. Cerro os ouvidos ao telefone que
insiste e oponho ao nome que me vem à boca c de Cecília. Várias vezes pronuncio-o,
de bruços no parapeito, voltado para baixo, como se jogasse pequenas pedras
brilhantes num poço, até que o telefone emudece. Percebo, deste modo, com o peso de
uma solenidade jubilosa, que Cecília e eu, não sei em que noite obscura — ou claro
dia —, não sei, viaje ou não, já estamos face a face. Cara de Calo reaparece. Olha para
cima, sorrindo, enrugado o rosto de menino e dois dentes de menos nas gengivas
senis. Foge aos saltos entre os móveis.
Minha mãe, sentada na cadeira de balanço, come um cacho de jambos e vai
pondo os restos num prato sobre a mesa, rindo. Por vezes, ri em sonhos: não dorme no
seu corpo o gato com cabeça de macaco. Ri dos filhos que se vão ou dão com os
burros n'água, da incapacidade que na maioria revelamos para qualquer esforço per-
manente ou obrigação continuada, de Eurílio baleado e morto aos dezenove anos num
bordel ("Agora, sim, estou realizada: pari um mártir da libertinagem!"), de Estêvão,
mais jovem que Eurílio, rendendo a alma antes do tempo depois de horas e horas
dançando sem parar, desesperado, na academia da praça Maciel Pinheiro, por causa
do noivado desfeito (a noiva, sem bens, viúva e mãe de três filhos, tem mais de duas
vezes a idade dele), de Dagoberto desperdiçando a voz no bar Gambrinus ou nos
puteiros da Marquês de Olinda. "Tenho de rir. Semear tanta semente e não apanhar
nada? Quis dormir ao luar e me deitei nas urtigas!" Através da porta que se abre para
o alpendre e para a tarde clara, algum verde das árvores repercute nos seus olhos:
parecem cheios de espanto sob os traços alteados das sobrancelhas. Os de Cecília
(quando a reverei?), vivazes e mordentes, dançam sobre as coisas.
— Pensando bem, meus irmãos talvez não sejam mais desnorteados do que todos
esses que andam por aí como se tivessem as chaves do mundo. Mas ninguém que eu
conheça tem a chave de nada, ninguém, ou sabe para onde vai: que rumo tomar e o
que fazer de si. Um sistema de vida desgastado e que não serve mais? Talvez. Eu,
pelo menos, olho em redor e não descubro uma corrente forte, viva, onde me atirar
com alma e tudo, de uma vez e sem hesitação. Na zona canavieira há qualquer coisa
de novo e que de certo modo me interessa: essas ocupações de terra e até esses
incêndios. O objetivo é abalar e, quem sabe, eliminar de uma vez certos esquemas que
já duraram muito. Mas será isto uma corrente ou um açude arrombado?
Ouve-me atenta, agora, comendo os seus jambos. Não alcança, decerto, o que
exponho — e concede outro sentido a esta espécie de monólogo que a nada conduz.
Capta o meu pensamento? Não, bem sei. Apreende, em compensação, a perplexidade
e a passiva insubmissão que a ele me levam. Isto já é tanto! E Cecília? Acha um
senüdo no que faz? As pernas delgadas são ágeis e vê-se claramente, sob a pele, os
ossos dos joelhos. Sua presença semeia leões.
— Uma maneira doméstica de ver as coisas pode supor que um homem está seguro de
si porque assina o ponto no emprego e até porque faz greve quando todos fazem. Não
está.
O gato com cabeça de macaco, sentado no chão, olha amorosamente para os
jambos. Salta para os joelhos da Gorda, daí para a mesa e toca de leve no prato, com
as patas dianteiras, como se
tocasse em brasas.
— A ausência de sentido que marca de um extremo a outro o Brasil pode ser
observada nas iniciativas do governo. Quando menos se espera, o homem que por
obra do acaso está na Presidência da República tira um programa da cartola: marcha
para o Oeste, acabar com as formigas, extrair petróleo, construir Brasília. Essas
coisas, claro, têm a sua importância, não sou eu que vou negar. Mas não constituem,
como posso dizer?, um fim significativo. Sobretudo, não se coordenam com nada.
Não são conseqüência de nada e não conduzem a nada. O país, de norte a sul, vive à
deriva. Nesse quadro, como poderiam os indivíduos ser diferentes do que são? Aqui
ninguém sabe de que lado o sol nasce. Algumas pessoas (eu não quero dizer todas as
pessoas, pois a grande maioria não chega nem a isso) inventam um projeto qualquer
de emergência: Vou ser governador Vou ser chefe de seção. Ideais desconexos e
artificiais.
Calo-me e atento para o silêncio do chalé, cheio, em outros tempos, de moças
e rapazes, vozes, canções e risos ressoando ate na Sexta-Feira Santa. Fogos de
artifício, música, bailes improvisados, o alpendre enfeitado com bandeiras e lanternas
japonesas — um disfarce, uma prorrogação. A Gorda nessa cadeira, o gato-macaco no
corpo.
— Não sou uma exceção e tenho o meu projeto falso: vou escrevendo. Não
estou, e acho que nunca estarei, satisfeito com isto ou seguro da opção. Uma opção
nada tranqüila ou alegre, é bom lembrar. Apesar de tudo, não tenciono assinar
nenhum tratado de paz com o mundo em que vivo. Os meus irmãos não sabem, ou
não querem, inventar um simulacro aceitável. Esta a diferença. Entre o desastre
declarado e a aparência de finalidade, preferem mesmo o desastre.
O animal, afastando-se do prato, recua e fita-me, movendo a cauda, as orelhas
em pé.
— A revolta nos engenhos talvez seja hoje, no Brasil, o único movimento que não
constitui diversão e improvisação. Mas, por certas razões íntimas de que, para ser
franco, desconfio, nem sequer em espírito eu participo dessa luta. Além disto, não sou
homem de agir, no sentido comum da palavra.
— Era só o que faltava, Abel, você metido a incendiar plantações de cana.
As sobrancelhas em arco, finas e altas, dão-lhe um ar de susto e ela se balança
na cadeira. Os cabelos pretos, meio descorados na raiz, refletem os vidros coloridos
das janelas. No meu conto, esses vidros são brancos. As quatro velhas espreitam-se
com ódio. Cada uma, sempre, conta sua história às outras velhas e todas as histórias se
parecem. Equilibra-se o gato ou macaco noturno, desconfiado, no espaldar oscilante:
num pulo silencioso, regressa ao corpo de mamãe. Move-se com agilidade e
violência, como numa jaula.
— Sua mulher me fez uma visita. Pede que você considere a possibilidade de voltar.
Você sabe que eu nunca fui com ela. Mas podem recomeçar a vida aqui, se quiserem.
Não faltam quartos
Sim, não faltam: quase todos vazios. Mauro, Leonor e eu, filhos quem sabe de
que pais, tropeçamos nos irmãos mais novos — Dagoberto, Janira, Lucíola. Move-se
ainda Isabel no ventre fértil da Gorda, quando o Tesoureiro emprenha uma enfermeira
e desta aventura nasce Damião. "Pois traga o diabo desse inocente, que eu crio. Mas
agora, bode velho, vai ver quem é que tira as suas forças. Prepare-se!" Os leitos
multiplicam-se.
— Isto é um assunto encerrado. Além do mais... de certo modo... existe alguém.
— Quem? Casada? Solteira? Livre?
— Que interessa? (Haverá o Tesoureiro falado da viagem?) Existe. Solteira, acho eu.
— Que desgraça! Um sujeito que nada tem a oferecer, comprometer uma moça de
família. Que pode sair disto?
— Sair, como? Talvez dê em nada e pode ser que eu... Nós nos vimos duas ou três
vezes. Só.
Levanto-me e estalo os dedos para o gataco. Ele dá-me as costas e arranha o
sovaco da minha mãe, sonso.
A 17

ROOS E AS CIDADES

"Quase na hora do seu trem, Roos." Seguimos lado a lado, as valises na mão,
rumo às plataformas de embarque, nomes sonoros precedem-nos, os nomes da nossa
viagem, desolam-me a altura do teto, das escadas, as dimensões da estação, seus
espaços inóspitos, essa aridez, passamos ante a banca de revistas, ofereço-lhe algumas
(Burda, Stern), cruzamos a borboleta, ouço apitos de trem e gritos de pavões, a
paisagem alpestre e as luxuosas vivendas desfilam sob a chuva.
— Grata pelos lagos.
— Se puder, mande-me um cartão para Ravena. Estarei lá numa
semana.
— Mandarei.
— Nunca agradecerei bastante a você por ter vindo a Milão. Sobe no trem, acomoda a
valise, olha-me através da vidraça.
Falta um minuto, ainda pode descer. Varese, Como, Intra, Baveno, Stsesa,
Chiasso, Verbania... Acode-me a esperança de que estes nomes lacustres e o domingo
chuvoso voltem em alguma tarde hibernal a essa mulher que se vai, enredados no sol
de outros momentos. Baixa a janela de vidro, estende-me a mão, Ciao, o trem se
move e seu gesto é o mesmo com que busca, o mesmo, em Amboise, fascinar o
pássaro que espanto com um bater de palmas.
Novos dias de caça. Os últimos? O complexo ferroviário, quilômetros de
trilhos, de dormentes, postes inúmeros, cabos elétricos, locomotivas, pessoal da
estrada e de escritório, regulamentos (VIETO), horários (PARTENZA), estações
(SOTTOPASSAGIO), controles eletrônicos, rádios, ligações telefônicas, uma roleta
imensa e bem lubrificada onde migro durante treze dias, sempre com insucesso, em
rápidos, expressos, noturnos e composições de bitola reduzida que seguem devagar e
se detêm em muitas estações, entredormido sobre a trepidação das rodas, ou
procurando um modo de obter, com perguntas de través, indicações sobre o que
procuro. Vou e vou, de Milão a Verona (cento e sessenta quilômetros), quarenta entre
Verona e Pádua, entre Pádua e Veneza o duplo disto, duzentos de Veneza a Ravena (a
cidade está em festa, fechado o correio, não sei se me espera alguma carta de Roos),
setenta ou oitenta separando Ravena de Ferrara, mais cento e vinte Ferrara de
Florença, oitenta no trajeto Florença a Pisa, de Pisa a Roma: trezentos e tantos, de
Roma a Nápoles: duzentos e trinta?, não muito menos de quatrocentos — ou talvez
até mais — de Nápoles a Assis e daí a Arezzo, e quatrocentos no lance Arezzo—
Milão, sem falar nos oitocentos e vinte e dois que me separam de Roos, para quem, de
todos os lugares, envio cartões nos quais desenho o mapa de austrálias possíveis,
faunas de sonho e um golfo onde escrevo Je vous aime.
Os dois mil quilômetros desse itinerário têm alguma coisa de demência.
Caberia sensatez? A própria aceitação da busca já contraria normas ordinárias de
conduta; e, por vezes, a decisão de ir a certa cidade surge improvisa. Só em Nápoles
— e não em Florença — me ocorre, já desesperado, como se jogasse, em números nos
quais não confio, os últimos centavos, fazer a tentativa de descer em Assis e Arezzo.
Por outro lado, estou convicto, como aquele tão versado em buscas e viagens, de que
para certos empreendimentos "uma desordem bem meditada constitui o verdadeiro
método". A meditação, é certo, faz-se neste caso com o auxílio de mapas; e minhas
conjeturas, quando muito, apóiam-se nos dados, sempre tão sumários, dos impressos
turísticos. Em última análise, nesta migração, entrego-me um pouco cegamente à sorte
— já que me transformo, nisto, em jogador — e, para fazê-lo, bloqueio as íntimas
vozes que me advertem sobre a discordância entre as proporções da busca e as minhas
posses, que só me permitem, neste jogo em que o capital é também constituído pelo
tempo da minha existência e que em mais de um sentido pode arruinar-me, arriscar
em um número muito reduzido de possíveis. Não importa, jogarei o que puder. É o
mínimo que devo fazer e este mínimo é também o único
acesso lógico ao sorteio.
Persuado-me de que a Cidade, por pouco que se identifique — e não foi seu
aparecimento que impôs esta convicção, desenvolvida com o raciocínio, mas a
evocação de alguns antecedentes e o exame de símiles —, emite uma luz prestigiosa.
Ahab, para citar apenas um exemplo, assumiria o encargo que o destrói, aceitaria a
exigência de sua longa caçada, não fosse Moby Dick um ser desmesurado e no qual se
encarna "tudo o que remove o sotavento das coisas"? Este princípio, até certo ponto
incontestável, vale-me. Desfaz a tentação de descer em todas as cidades onde passo,
limitando-me às que por motivos precisos — história, obras de arte, mortos —
elevem-se por sobre o geral. O meu olhar torna-se mais analítico, agudo e cauteloso.
Farejo, cão, nas cidades percorridas, uma presa intangível, uma caça que vi, eu, cão,
por um espelho, mas da qual não cheguei a distinguir o cheiro.
Não poderia afirmar, fraudado em minhas buscas, desperdiçados estes dias.
Silencio sobre códices e incunábulos vistos; e quanto a estas realizações artísticas que
— contempladas, por vezes, naqueles lugares onde foram concebidas — me
transmitem instruções sobre o livro que em segredo aspiro escrever e cujo tema
central seria o modo como as coisas, havendo transposto um limiar, ascendem,
mediante novas relações, ao nível da ficção. Não me responde Pádua? Nápoles não
me responde? Nelas me desmembro, em exercícios vários. Olhos nos bairros da
periferia, o nariz nas feiras, solta no ar a pele, os pés extraviados, a boca nos cafés,
nos bordéis, exangue, o sexo, as orelhas nos mercados e em ônibus que ignoro aonde
vão, a população dos subúrbios, suas casas, peixes, legumes, frutas, calamares, as
temperaturas e as consistencias das coisas, ruas desconhecidas, seguem-me putas
fatigadas e pederastas tímidos, vinhos e perguntas, o sexo exangue, manipulado por
mulheres que não penetrará, pois assim decidi, para que riam do seu possuidor,
julguem-no impotente, alguém mais lastimável do que elas, as vozes, os gritos, os
latidos, os dobres.
Errôneo, ainda, dizer que a Cidade não encontrada continua desconhecida e
oculta quanto antes; que não tenha sofrido, a sua identidade, um processo qualquer,
inacabado, de desvendamento. Revela Amsterdam a existência, em suas ruas, de
claridade ou de algo de que a claridade seja o sumo? Em Pisa, leio a declaração de
que uma incerteza, um talvez, uma dubiedade nela estarão presentes (nela, a Cidade),
sem o quê, minha procura não encontraria recompensa.
Quem me esclarece por quê? Em todas as praças de qualquer cidade, surge um
cordeiro branco, manso, com um guizo e uma fita rubra no pescoço. Pressiona-me
docemente a coxa com a cabeça tenra e segue-me calado. Ante a grande torre
cilíndrica, desequilibrada pelo male oscuro, infiltrações e erosões subterrâneas, mais
dois cordeiros, igualmente com guizos e fitas no pescoço, vêm juntar-se ao que
sempre nas praças me aparece. Dóceis, seguem-me. O sol deste final de maio, como
uma poção alquímica, penetra os mármores, óleo ígneo que acendesse o interior das
pedras, todas as pedras florindo, em chamas, no âmago, de modo que a claridade
parece ao mesmo tempo vir de fora e ser emitida pela torre, o batistério, os outros
monumentos. Um prenúncio? Contemplo estas construções mais ou menos inclinadas.
Sei que os sedimentos marinhos, no subsolo minado pela torrente do Arno,
desequilibram a cidade, fazendo vacilarem os fios de prumo, lei dos edifícios, que
quase todas as velhas construções cedem ou inclinam-se (Pisa, cidade birrefringente,
construída no zircão ou no espato-de-isiân-dia), mas nem assim perco a noção de
verticalidade. Contíguas a essas obras, outras delineiam-se, do mesmo modo
esplendentes, com os mármores brilhando contra as nuvens, porém na vertical, e esta
torre, esta catedral, são ilusórias, pois os edifícios reais inclinaram-se com o tempo,
mas é nestes, nos inclinados, que perpassa o vulto do irreal, exatamente porque neles
se instalou o fio tênue entre o que persiste e o que passa. ~
Como em Amsterdam, Roos, ser — além de ofuscante — dúbio e fugidio,
desequilibrado em sua absoluta simetria, não está alheia a essa experiência. Do
mesmo modo que, em outras circunstâncias, ela presente (carne limitada e espaços
construídos), sou precipitado nas suas cidades, descubro-me, ante a dubiedade e a luz
pisanas, não ante Roos, mas introduzido no universo da sua presença — certeza não
perturbada pela mínima sombra de dúvida. Reconheceria um arqueólogo, com a
mesma segurança, uma epígrafe ou um friso de civilizações com as quais houvesse
convivido, acaso os descobrisse, a centenas de metros de profundidade, ainda que des-
figurados.
Assim, dos grandes espaços, um gato cósmico estende-me a garra. Mas
cuidado! Não supor que por causa desse gesto me pertencerá. Logo recolherá a garra e
ele mesmo, em seguida, se recolherá a outro gato, de que — quem sabe — é a unha.
Avançar na rede dos enigmas pode levar-nos a enigmas maiores. Afinal, constato, de
volta a Paris, não ter-se alterado a natureza ou o ritmo da extensa frase que, sabendo
ou não, Roos, foz do ir e do vir, me escreve: uma correspondência de três ou quatro
dias, inclusive carta de Lausanne e a mensagem que, tudo fazendo para assediá-la,
mando de Verona — uma folha das vinhas que precedem a cripta com o presumível
túmulo da jovem Capuleto e o verso "It is my lady; o, it is my lové" —, aguarda uma
vez mais a sua volta.

R 13
ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

O céu de Rio Grande, nesta manhã, radiosa manhã, embebido de uma luz que
diria retorcida, como se a Lua agisse de algum modo sobre os raios do Sol que o
eclipse reduz, adquire um tom e peso vesperal.
— A viagem e o rio. Trata de quê, Abel?
— Do tempo mítico e das suas relações com a narrativa. Percebe-se, mesmo a olho
nu, que a luminosidade do Sol
Amortece, mareada pela conjunção celeste. ʘ, evitando agora a proteção das
zonas sombreadas, afasta-se das árvores e vai por onde está ensolarado, compensando
a queda da temperatura. Os urubus planam mais baixo e as aves miúdas ampliam os
intervalos entre um vôo e outro, pulsam mais tempo nos ramos ou nos fios elétricos.
Lançam pequenos gritos inquietos e parecem ao mesmo tempo desejosas de fugir e
entorpecidas, como sob os olhos de serpentes. ʘ é a primeira a ver, na amplidão de
um azul cada vez mais profundo, o rastro branco e ascendente do segundo foguete,
um Nike-Javelin, apontando-o com a mão esquerda adornada de anéis, enquanto o
grito da multidão aglomerada na praia do Cassino aclama o vôo e ecoa — um urro —
sobre os telhados. Leões? Pergunto se me engano ou se algumas estrelas — embora
sem firmeza, como se viessem à tona e pouco depois afundassem — começam a
perfurar a luz meridiana. Ocupamo-nos, rindo, em descobrir novos lumes fugitivos, ao
sul, a nordeste, a sudoeste, de repente eu ouço a queda, em que águas?, de uma rede
de pescar, sopra no meu rosto um vento úmido e noturno, e eu olho para ʘ, imóvel:
ela finge apanhar grandes feixes de chamas, como se o asfalto fosse um campo de
fogo que fulgisse sem nos envolver, finge apanhar esses feixes e jogá-los para o alto,
onde se fixam. Que me diz, à medida que o espaço celeste parece absorver as
fogueiras imaginárias? Fala e eu não traduzo as palavras proferidas: atento para a voz
e a voz não é a mesma, não é a mesma, outra garganta ressurge na sua e a voz rouca,
uma voz conhecida e pontuada de tons viris, não é a mesma, não lhe pertence. Tomo-a
pelos pulsos e escruto-a, não apenas com os olhos, com o meu ser total escruto-a,
como se fosse — ela ou seu rosto — um vaso de recordações ou um texto enigmático
e a partir de então indispensável.
— Que está vendo? (Sim, esta é a sua voz, instrumento restrito e usado com
sabedoria.)
— Nada. Nada, ainda.
A luz do Sol vara as copas das árvores e as réstias estampadas no chão
repetem o que, através de um vidro esfumaçado, observamos: a esfera de fogo sobre a
qual a Lua avança, morta e negra. As réstias sob as árvores, moedas corroídas.
— Sabe, ʘ? Abro os olhos no âmago da noite, como se a noite fosse o mundo. Abro
as mãos ante os olhos e não vejo as mãos. Nem assim me satisfaço: o quarto não
parece escuro como deveria. Pressiono as pálpebras, assim, os dedos sobre a testa.
Abertos. Crio um casulo de trevas e no centro da escuridão faço a pergunta.
— A pergunta?
O carro negro, com o ataúde de Natividade, pára no cruzamento, perdido entre
automóveis, ônibus e misturadoras de concreto. O barracão para a guarda de materiais
— deve ser feito com tábuas ordinárias já usadas e tijolos assentados somplesmentes
com barro. Finda a construção, tijolos e madeira, intactos, podem ser ultilizados de
novo em outra obra. O sol desta manhã de fevereiro cresta as corroas de rosas e as
cinerárias jogadas sobre a ataúde. Dois únicos veículos acompanham o carro fúnebre:
uma viatura do exército e um Chrysler negro, com algum uso, lataria e vidros
espelhados. O motorista, mãos firmes no volante, iguinora o tumulto, estilo de ação
que repudia e considera ameaçador (não vá proliferar, na desordem, algum princípio
insólito). No seu rosto espesso e impassível, na rigidez da postura, pressente-se uma
espécie de susto resguardado por poderes. Como trouxesse nenhuma segurança e ele
sempre esperasse, sem jamis dignar-se a olhar para traz, uma bala no cachaço. O calor
acelera o fácil apodrecimento de Natividade, no caixão de pinho, sob as flores da
vida.
—Exasperante, Abel, a presença do corpo estranho na carne. É como se
doesse o coração e você, para livrar-se da dor, se dispudesse a arrancá-lo. O corpo
estranho nos envenena e envenena o ar. Amar ou ser amado, coisa de valor discutível.
Não acha? As fontes do amor, as direções do amor, sim, importam.
O trem reduz a marcha e as paredes e objetos que passam na manhã ainda
enevoada, fuligionosos, lúgubrs, com uma espécie de indefinível dureza, como se os
contagiasse a vizinhança dos trilhos e das locomotivas, dão-me a impressão de coisas
naufragadas ou explodidas, sem uma ordem que de algum modo as torne coerentes:
não leio o que vejo. Pilhas de madeira jogadas à margem da estrada, guarita de ferro,
montes de areia, sucatas, nas quais se enredam negras plantas selvagens, ônibus lá em
baixo, telhados de duas águas e mesmo os números e letras dos vagões, tudo, visto do
leito, através do vidro baço, parece-me isolado para sempre o seu próprio horror, furos
mal obstruídos no mundo, como os pedaços de lona e papelão, irregulares, que
disfarçam as vidraças arrombadas daquela velha fábrica e depósito. Sopra um vento
úmido na plataforma, com certeza não falta nas manhãs de São Paulo, mesmo fora do
inverno, esta cruviana que me fura o suéter e o terno de brim. Gemini XII bate recorde
no espaço e encerra com êxito sua missão. Conforta-me, apesar do frio e da sufocação
que me provocam as grandes estações ferroviárias, evocar, enquanto sigo entre os
outros passageiros, a existência, nesta cidade estranha, de uma ilha familiar: em
segredo, alguém espera por mim.
— Mesmo que fosse possível, à mãe de um Iólipo, conceber ainda, não é de esperar
que se arriscasse: a placenta do Iólipo assemelha-se a um ouriço. Seus espinhos, claro,
não magoam a gestante durante a gravidez. Mais ou menos assentados, só começam
realmente a crescer e endurecer, pode-se dizer que por malícia, nas duas ou três
últimas semanas que antecedem o parto. São implantados, sobre a placenta, em várias
direções. Imagina-se a dilaceração que provocam. É como se a mulher parisse garfos
ou cacos de garrafas. Nunca, por mais que viva, volta a curar-se inteiramente das
feridas e sofre até a morte de hemorragias temporárias. Mesmo as que, por acaso,
submetem-se à cesariana, padecem com os espinhos. Não é preciso acrescentar que
pai e mãe nunca ficam solidários ante essa experiência.
Abre, sentada na cama, o quimono com crisântemos azuis e as luzes do
parque, móveis, refletidas nas paredes brancas, revelam em parte o ventre e os peitos
volumosos com as rosetas vibrantes, passeamos de mãos dadas ante as barracas de
prendas e nos dirigimos para o carrossel, range o carrossel em torno do eixo ao morno
vento noturno de novembro, negras aves noturnas rangem as asas (articuladas com
dobradiças velhas?), ameaçam entrar pela janela aberta e cruzam os agitados reflexos
que animam os cabelos desprendidos de ʘ.

A 18

ROOS E AS CIDADES

Decorre uma semana, sete dias se vão, uma semana se escoa. Tempo incerto,
com rápidas pancadas d'água, trovões surdos, a chuva fustiga a vidraça do meu quarto
de fundo em Montparnasse e logo as nuvens se vão, brilha efêmero o céu deste fim de
primavera e ventos leves tocam as flores nos outros soturnos peitoris. Vago nos
museus (Guimet, Instrumental, Armeniano), ouço rádio (ONU, Leo Ferré, Sierra
Maestra, Suez, Charles Trenet) enquanto escrevo cartas que nem sempre envio ou
sento-me nos parques, ocioso. Faz uma semana que voltei? Quantos dias nesta espera?
Sete? Seis? Restam poucos visitantes nos bancos ou cadeiras portáteis do
Luxemburgo. Adolescentes jogam tênis e no céu quase noturno perpassam relâm-
pagos. Um dos jogadores, inexperto, atira a bola em minha direção. Curvo-me para
apanhá-la e fico imóvel: creio ver Roos num banco, as róseas pernas cruzadas,
pensativa. Está de volta e não telefonou?
Faz espaço no banco, sem demonstrar surpresa e eu me sento. Lívida, sombras
de cansaço nos olhos, o costume de lã cinza um tanto frouxo nas ancas. Regressou
pela manhã. Esteve em Eltville, a chamado do pai. "Minha mãe não tem passado
bem." "E seu marido?" Exime-se de responder. Nós: as duas margens do rio? As duas
faces de uma faca? Evasiva. Impressão de estar amedrontada ou à espera de alguém.
Fala pouco, levando em conta o tempo decorri-do desde o nosso domingo de chuvas e
ventos na Itália. Escassas perguntas. Gostei de Veneza? Recebi em Arezzo o seu
cartão? Quanto aos que enviei, estão na sua bolsa. Pode acompanhar, por eles, o meu
itinerário.
Apitos prolongados e exclamações dos guardas atravessam as árvores. Vão
cerrar-se os portões. Levantamo-nos. Os pés de Roos no saibro, o compassado ritmo
do seu andar: o ritmo com que segue, no meio-dia da Loire, os versos de Anacreonte.
Ao longe,
bate um portão.
— Bom o seu hotel na rue d'Odessa?
— Classe C. Resta-me pouco dinheiro.
Da única janela, conto muitas outras, cinzentas, todas nos fundos de outros
edifícios. Poucas as estrelas visíveis quando me debruço. Constrange-me a idéia de
que Roos consinta em ver-me, talvez em desnudar-se, num lugar tão aquém da sua
claridade e magnificência.
— No hotel, ao menos, você pode visitar-me, Roos... Cada vez mais eu a amo. É
como um seixo no estômago. Como pedaços de vidro nos olhos.
Finge não ouvir e indaga sobre meus amigos da rua Guynemer.
— Fui lá, esta semana, duas ou três vezes. Agora, há um pouco de paz na
família. O velho tem passado melhor.
Entramos num bistrô junto ao Teatro de França. Os cálices de Porto entre nós,
suas mãos junto às minhas, nossos joelhos tocándose de leve. Frente a frente. O nome
em néon do bistrô, Le Petit Suisse, reflete-se nos espelhos, rubro. Carnal e luminosa,
esplende, inflamada pela luz do letreiro, a pele de Anneiiese Roos. Esta é a mulher a
quem amo. A noite se aproxima e um resto de luz, coando-se nas leves cortinas
brancas, enreda-se nas coisas como teias. Mal vejo as pessoas que nos cercam.
Deslumbrado, só atento para o rosto de Roos, onde cidades desconhecidas agora se
revelam e novamente se ocultam, na pele, silentes.
— Sinto-me bem, na casa dos Weigel.
Omito, por quê?, haver observado que o entusiasmo do chefe de família ao
falar dos próprios pecados e do romance russo diminui; que seu rosto adquire certa
rigidez e a cor da pele altera-se; que começou a morrer e só eu vejo; e que, contra a
vontade, desata-se em mim o impulso de proteger as irmãs, resguardá-las do mundo e
do golpe que ante as minhas vistas se arma, esquecendo-me de que nem sequer tenho
defesa contra a violência, as recusas, os flagelos que me estão reservados. Mesmo
agora, a noção de que um golpe qualquer está a ponto de ferir-me é tão nítida que olho
receoso por cima do meu ombro. Atrás de nós há apenas um espelho na parede e
alguns casacos leves. Contudo, entre frases neutras da conversa difícil, como o perfil
da morte saltando dentre as cartas de um baralho, desliza a frase que há muito receio
escutar, sabendo que um dia ela seria emitida:
— Esta é a última vez que nos falamos.
Meu olhar é como um molde da cidade que em Roos, silenciosamente,
lampeja e sorve-me. Onivejo as ruas e o interior das edificações, os tonéis de bebida
nas adegas sob a rua, ante canais, as pontes e os objetos empoeirados nos sótãos, a
topografia (identifico-a) de Utrecht, a luz de uma tarde de outono, os interiores civis e
oficiais, tudo e o que está dentro de tudo, armários e arcas, e o que jaz nas gavetas dos
móveis, e nesses ais ressoa a minha voz, com uma inflexão de condenado:
— Você acaba de dizer essas palavras, mas tenho a impressão de que estavam
fechadas nas sua garganta, como num vaso, e que eu as ouço, abafadas, há tempos,
dentro do vaso.
— Eu... não o amo.
Suas mãos espalmadas sobre o tampo da mesa. Com as extremidades dos
dedos toca a pele fluida à altura dos pulsos, em direção às falanges (sobre a vitrine
dos cigarros, acendem o abajur enfeitado com rótulos de White Label), toco a pele
fluida, de leve, docemente, o gesto de quem tentasse afagar, sem enrugá-la, a
superfície da água num recipiente, mas a água revolve-se, a carne revolve-se,
sucedem-se fontes — secas, limosas —, ruas esburacadas, pontes com parapeitos
quebrados, casas desoladas margeando um lance de estrada de ferro, postes
emaranhados de fios negros, fachadas de fábricas em ruínas, cheias de vidros poentos
e partidos, lixo amontoado em terrenos baldios, canais infectos, jardins abandonados.
Esquiva as mãos, devagar, de sob meus dedos. O gesto de tirar o lenço da bolsa e
discretamente passá-lo sobre os olhos baixados. Através de que meandros, de que
jogos de espelhos colocados no tempo a viu Bellini?
— Desejaria saber por que a amo de um modo tão cortante.
— Se não continuar a falar, tudo será mais fácil. (A voz demu-dada, tensa, veia cheia
de sal, a ponto de romper-se.) Peço que não procure ver-me. Também peço que não
me acompanhe. Preciso ficar só.
Não percebo se acrescenta uma despedida ou se a palavra adeus é o gesto de
erguer-se e ir embora. Ondulam, à sua passagem, as leves cortinas brancas do bar.
Sigo-a, rua de Vaugirard, ao longo do Luxemburgo já fechado. À distância, junto às
grades negras e aguçadas, Roos parece menor. Quatro coroinhas, com batinas escar-
lates e sobrepelizes, sustendo um pálio negro com varas e ornatos dourados me
ultrapassam, alcançam-na. Ela vai sob o pálio na estreita rua sem árvores e talvez
devido à noite seu costume também parece haver escurecido. Continuam os
relâmpagos, mais freqüentes e breves, acendendo as pontas amarelas das grades que
limitam o Luxemburgo. Ouço um atroar compassado e longínquo de canhões.
Sofreando o desejo de lambê-la como fazem as cadelas e as gatas com as suas
crias, estaco ante a loja de objetos da década de 20, olho um instante as bonecas, as
embalagens ingênuas, os cartazes (Rom Ste. Croix, Koniak i. Mate 0 AIOY), depois
viro à esquerda e subo à casa dos Weigel. Recostado em travesseiros, o enfermo tenta
respirar pela boca. Molhado de suor. Apesar de tudo, diz, sente frio. Suzanne abana-o
com uma ventarola. Sinto, misturados, o cheiro de suor ardido e de sândalo. Julie,
com uma toalha poída, procura enxugá-lo.
— Liév Nikoláievitch Míchkin... (Fala entrecortado. Sua voz apagada lembra-me uma
corrente cheia de ferrugem, fazendo-se em pedaços sob a terra.) Definitivamente, a
vida é um fardo grande demais para os homens. ViVer, Nikoláievitch Míchkin, não
será um crime? Nada é mais impotente e estático, sim, estático, que o nosso amor.
Nosso amor não salva os outros. Antes... antes... pode condená-los.
— Está vendo as coisas sombrias. Amanhã...
— Não, não. Desde ontem, sinto-me clarividente, Liév Nikoláievitch. Veja essas
duas.
Suzanne aconselha-o: "Não fale. Fica pior quando se exalta". Pergunto:
— Onde está sua mãe? ^
— Foi deitar-se um pouco. Está exausta.
— Veja essas duas. Que pode o meu amor fazer por elas? O amor não tem
instrumentos. Tem os instrumentos do prazer. Nada mais. É um evento em si mesmo.
Às vezes pode-se fazer correrem, para os seres a quem se ama, os rios da alegria e da
fartura. Mas é por acaso. Seu amor, no fundo, não é responsável por isso.
Deixo escapar, sem olhar para as irmãs, mas dirigindo-me a elas, e com
dificuldade, como se também me faltasse o ar a mim:
—Amo. E estou desesperado. Essa mulher, eu me precipito em direção a ela.
Compreendem? Sou lançado, caio no emaranhado de coisas que a formam.
Esbarramos em tantas sombras! Vocês duas, também, eu gostaria de desviar para
vocês os rios. Mas quem pode fazer isto? Quem pode?
O agonizante tem os olhos fechados. Ponho a mão no seu ombro. Sem erguer
as pálpebras, prende-a um instante com força. A palma gélida, suada. Solta-a. Vou
para a sala e tombo no sofá, junto ao abajur. Meus olhos ardem. No braço do móvel,
um pedaço de seda ali deixado por Julie, cheio de exercícios de pontos: ponto de luva,
pesponto, sobrecostura, costura dupla, ponto de bainha.
Suzanne vem e senta-se a meu lado. "Acha que meu pai está morrendo?" "Não
sei, talvez." "Não se preocupe. Você é mais desamparado do que nós." Olho seus
cabelos, presos, como sempre, à altura das orelhas: "Acredito. Mas você não pode
saber disso". "Posso. Eu sei."
Confuso, passo a mão nos seus cabelos, num gesto protetor, um gesto arcaico.
A trepidação distante da cidade parece fazer parte dos móveis, do solo, das paredes. O
velho bandolim jaz de borco sobre uma poltrona.

T 11

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

A caminho da delegacia fiscal, atravesso a avenida Rio Branco e vejo uma


aglomeração perto da ponte Buarque de Macedo. Automóveis e ônibus arrastam-se,
ouço comentários sobre o homem atingido por um caminhão: continua estendido
sobre o calçamento, no cais do Apolo. Sigo a rua da Guia, em direção à praça do
Arsenal da Marinha. Entro, porém, à esquerda, saio no cais e me aproximo do
ajuntamento. Coberto de jornais, ao sol das duas horas, o morto, com a paciência dos
mortos, aguarda que a polícia também chegue. Quando morreu? Entre onze e meio-
dia. Por que continua aí? Faltam viaturas na polícia. Sabe-se quem é? Afasto-me e
dirijo-me à delegacia. Hermelinda e Hermenilda já sabem do acidente. Às quatro
horas, de volta, refaço meu caminho pelo cais do Apolo. O infeliz continua na rua,
cão sob o sol agora menos ardente, ainda à espera de que venha, para removê-lo, um
carro da polícia. Os veículos transitam mais depressa e poucos passageiros notam a
aglomeração, que diminuiu. Gastos nas solas os sapatos da vítima. Rostos aparecem
nas janelas mais altas do edifício fronteiro, mãos displicentes apontam para baixo.
Desaparecem. Começou a ventar e os jornais que cobrem a cara do desconhecido
adejam sob pedaços de tijolos. O Tesoureiro tem calças iguais a estas rasgadas na
queda. O Sol reflete-se nas águas oleosas do Capibaribe e ilumina, longe, do outro
lado da ponte, as árvores da praça da República, as estátuas perfiladas sobre o fórum,
os jardins do Palácio do Governo, por trás da Casa da Guarda. No banco, chamo a
polícia. Nenhum dos servidores que atende aos meus telefonemas se ocupa de
cadáveres jogados na rua: todos mandam ligar para outro número. Damião aparece,
desorientado, à entrada da sucursal, interpela um empregado e toma a direção do
elevador. Antes de falar com ele, já sei quem é o acidentado na rua. Pergunto-lhe,
enquanto descemos, como pode ser possível que o Tesoureiro fique jogado na via
pública, sem que a firma onde ele trabalha saiba do caso e tome providências. Damião
responde-me lacônico: "Ele foi demitido. Faz três dias". Cecília, por enquanto, nada
sabe.
Vamos pela rua do Pombal, às duas da manhã, Dagoberto e eu, no táxi de
Damião, seguindo a ambulância com o corpo mutilado do homem que assume ser pai
e protetor de quem só possuía mãe e nenhuma proteção. Dagoberto, no banco traseiro
do táxi, canta em voz baixa e Damião range os dentes. A ambulância, com a sirene
ligada, entra na avenida Norte. Doem-me os pés e a cabeça roda. O estômago vazio,
animal oco e machucado. Impossível comer, depois de não sei quantos cafés com
gosto de formol, açucarados, frios, engolidos no Instituto de Medicina Legal. Febre?
Agora, a rameira de 1930 está viúva e só. Que farão, ela e o gato híbrido, quando
chegar o corpo? Tem dezenove anos e quase cinco de zona, com um ombro cortado de
navalha, jóias de plaque, três vestidos, um grande jarro amarelo, dois cancros
venéreos, um par de sapatos prateados e uma granada escondida sob a cama, com
espoleta, quando o futuro Tesoureiro a conhece, tira-a da zona e casa-se com ela. Que
o atrai? O insensato riso com que enfrenta as coisas. Corte de navalha, doenças do
mundo, paixões dos homens, vestido de noiva, tudo ela cauteriza, queima na
zombaria:
Imaginem se uma roupa branca ou um papel carimbado vão fazer com que eu
deixe de ser puta. Vamos falar a verdade: eu era puta geral e agora sou sua. Você abre
a carteira e eu as pernas. O jogo é o mesmo de antes, só que mais descansado. Para
que enfeitar o maracá? Pensa que agora vou bancar a senhora dona e arrotar
uritanismo? Dar conselhos às moças? Ah! Tire o cavalo da chuva. Nada mais enjoado
do que uma cadela das ruas feito eu querer bancar o cachorro de são Roque.
Raul Nogueira de Albuquerque é Castro, o Tesoureiro, ao tempo dos fogos de
artifício e de alpendre enfeitado com lanternas, compraz-se em repetir, entre um
pigarro e outro, ciando palmadas nas coxas, essas palavras da Gorda. Agora, serrado o
fémur, segue dentro da noite pela avenida Norte. Meus olhos pesam e todos vamos em
silêncio. Em que desconhecido incrustarão o osso que cedemos? Obseda o Tesoureiro
o aparecimento do seu bisavô, sepultado íntegro e voltando mutilado, com um chapéu
de origem ignorada. O braço do bisavô e o seu fémur vagam pelo mundo. Rodamos
na extensa reta da Cruz Cabugá, traçada sobre man-guezais, entre aterros negros, mais
negros sob o céu encoberto. Palha no estômago, a língua espessa e salgada, seca, uma
palmilha velha. Damião rompe o silêncio: "Que aporrinhação. Ainda estávamos lá,
não fosse a história do osso". Ninguém responde. Abro o vidro do carro; o vento
grosso sopra-me na cara. Desligaram a sirene da ambulância. Janelas acesas, poucas,
no Hospital de Santo Amaro. Rasa e infestada de mocambos a bacia do rio Beberibe.
Da lama, com os seus jardins de mangues, de mariscos, de caranguejos, vem um
cheiro de carniça. Como seria triste, Raul Nogueira de Albuquerque e Castro, se você
— que acende, nos anos de fartura, todas as luzes do chalé, enquanto o violino de
Cenira, a viola de Mauro, a flauta de Eurílio e as vozes de todos desafiam o pétreo
som da ressaca na praia dos Milagres — visse nesta madrugada o trajeto do seu corpo,
esta viagem no silêncio e na escuridão! Mal se distinguem, na sombra nevoenta, os
raros edifícios, a Escola de Aprendizes Marinheiros, a Fábrica Tacaruna. Damião
ultrapassa a ambulância para indicar o caminho. Ânsias de vômito: engulo em seco.
Entramos na cidade adormecida. O chalé, como nas grandes noites, está com as
lâmpadas acesas e as janelas abertas. Minha mãe vem ao nosso encontro, calma, um
xale negro atirado sobre os ombros, seguida por Lucíola, Isabel e alguns estranhos.
Apenas recomenda:
— Tenham cuidado com ele. Já machucou-se demais.
Corro para o banheiro. Livrar-me do bicho oco (não: bebedor de lama,
comedor de palha) que me ocupa o estômago. Um sabor de fel enche-me a boca, sinto
o amargor na garganta e jogo com violência para o buraco do vaso sanitário todas as
pragas que sei. Jogo-as contra o Tesoureiro, ignorando que as pragas são menos
contra ele que contra a sua morte," isca desviando-me para a condenação e o fim
prematuro de Cecília. Não poder, eu, vomitar-me, com toda minha lama e a lama da
Terra!
Gente no alpendre e até sob as mangueiras, à sombra. Isabel aproxima-se da
Gorda. Apesar do vozerio surdo e ondulante (cortado, a espaços, por soluços ou um
riso sufocado), ouço-a dizer: "Chegaram". Do corpo de mamãe salta o animal, lesto,
esgueira-se por baixo do ataúde e corre para as árvores, a cauda longa dobrada sobre o
dorso. "As duas?" "Mãe e filha." "Então, vou para dentro. Talvez elas não queiram
ver-me." Volto-me: "Fique". Há um movimento das pessoas, um revoar de vozes logo
extinto, um arrastar de cadeiras e de sapatos no soalho. A mãe do Tesoureiro,
conduzida por Dulce, surge e detém-se na soleira, não de um modo claro ou
conclusivo, sua vacilação é necessária e em certo sentido calculada, pausa idêntica à
pausa com que separamos, na leitura, certas palavras entre as quais não há pontuação,
acentuando, com este breve e sutil retardamento, a importância da expressão adiada.
A velha, com o treino de viver, tem a noção exata da solenidade que marca este
momento. Sua hesitação não me ilude: é uma ênfase e ela cumpre-a com exatidão.
Adianta-se e contempla o Tesoureiro. Aqui, porém, de nada lhe servem o
treino e os anos: este, diante de si, é o seu filho. Entregue à improvisação do
sofrimento, áspero, indiscutível e urgente (eis o morto e sua indiferença), toma-o pela
lapela do casaco e o atrai a si. Não, tenta fazê-lo. Como quem fosse dizer, com
veemência: "Ânimo, homem!", enquanto o rosto, falto de esperança, indaga: "Será
verdade?". O gesto perde-se, recusado pela rigidez do cadáver. Ela insiste ainda. Mas
ergue as mãos e assenta-as, inúteis, à beira do caixão. As rugas, na lapela do morto,
marcam o seu impulso burlado. Dulce rodeia o caixão e crispa os dedos sobre a ampla
bolsa de camurça. Fundo e marcado o vinco da boca. Pela mágoa? Pela luz das velas?
Há quantos anos não põe esse turbante descorado (era lilás), ornado com uma falsa
ametista? Tira da bolsa um búzio e o depõe sobre o ventre do irmão. O silêncio, como
que à distância, respeitoso — crianças de mãos dadas, um círculo —, rodeia as duas
mulheres e o morto. Esta, para todos, a cena axial. Quanto nos iludem as evidências!
O morto e o silêncio na sala, a chegada e os atos de Dulce e da mãe, a concha (nela,
Dulce e o irmão talvez ouvissem, na infância, o rumor das mesmas águas, o Tempo,
com os eventos do mundo, incluindo esta hora), tudo apenas coincide — e só coincide
— com um evento maior, a ponto de cumprir-se. Um evento discreto. Ressoam passos
no alpendre, leves, aproxima-se alguém com saltos de metal e não vem só, Dulce tira
da bolsa o búzio nacarado, grande como duas mãos cruzadas, com a sua espiral mis-
teriosa — e o depõe com ternura sobre o umbigo do morto. Então, levanto os olhos. À
porta, em meio aos vultos que as velas e a luz da manhã muito clara, filtrada pelos
vidros alegres das bandeiras, banham numa espécie de irrealidade, vejo, entre os
vultos permutáveis de Hermenilda e Hermelinda (mas vejo apenas o que posso ver, a
cândida superfície do evento), Cecília a alguns passos de mim, presa, após mil voltas,
na rede cuidadosamente urdida, Cecília, com seus cabelos curtos, seus olhos
luminosos, seus quadris estreitos, suas pernas delgadas, igual a ninguém, atraída pelo
morto — esse chamariz — e lançada de uma vez por todas na área das alegrias e
males dos quais me cumpre ser o portador, o correio, o provedor, o instrumento, a
mão. Dez mil homens estão na sua carne: como no centro de um olho atônito. Dez mil
homens estão na sua carne: como numa vereda pouco transitada ao longo de dez anos.
Dez mil homens, ataviados com as suas próprias fábulas. No seu corpo, há corpos.
Cecília, corpo e — ao mesmo tempo — mundo, olha-me rí& moldura da porta, com a
alegria que nasce nos seus olhos, e em não sei que ponto do seu rosto, talvez em todas
as linhas do seu rosto, um rosto novo, surpreso, ávido e feliz, sem o mínimo traço de
maldade, sim, sem ódio, sim, tocado de audácia, de decisão, de força, um rosto de
quem não tem medo de leões. Na sua carne estável e instável, real e mágica, na sua
carne transparente e muitas vezes visível (na carne de Cecília a percepção se repete,
cresce em reflexos, respostas e explosões), na sua carne, simulacro da memória, a
presença dos seres que haverei de amar, amando-a. Hermenilda e Hermelinda baixam
a cabeça.
Tudo percebo — a encomendação do corpo, o trabalho dos coveiros, o pó nas
lápides, as lamúrias discretas das mulheres — e alheio a tudo, dentro de uma claridade
que me ilumina por dentro e assemelha-se a um globo de espelhos em pedaços, com
milhares de réstias que se cruzam, contemplo Cecília ao sol do meio-dia. Com os
olhos (neles zumbem negros e rápidos leões), parece dizer-me: "Tenho a minha vida
nas mãos, Abel. Recebe-a. Mas ouve: o amor, artefato de difícil manejo, é cheio de
botões secretos e de facas que à mínima imperícia ou distração saltam voando e
lanham a carne". Engano-me, eu, se nessa companheira reconheço a minha
substância? Ela emerge de mim e da minha vigília tão semelhante a um sono
prolongado — ela e os seus entes, uns nus, outros vestidos, uns sem armas, outros
armados. Contemplo no seu corpo, assim parece-me agora, a minha e a sua memória,
simultaneamente. As presenças humanas nessas memórias. Como se eu pudesse ver,
ouvir, tocar as visões nem sempre nítidas, mas cheias de verdade e nunca fixadas em
uma única idade de suas vidas, as visões ou espectros que habitam a memória e têm,
junto com os brinquedos outrora possuídos e os lugares onde se viveu, o duvidoso
nome de recordações. "Cecília, o equilíbrio é pouco seguro e ilusório, bem sei,
quando o homem nele está incluído. Mesmo no Éden, esse estado perdura muito
menos do que se pode esperar. Quantos passos daremos juntos?" Este minuto:
espinhal desmesurado, esférico, a arder em torno de mim, como num fogo de
diamantes.

O 19

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Doze anos, seis meses e dois dias. O tempo, a vida, os acontecimentos — salas
fenestradas. Em todas as paredes, janelas abertas, e as janelas olham para outras salas
rodeadas de janelas através das quais vêem-se as janelas de novas e estranhas salas, e
tão numerosas são as salas que cada uma é o centro das demais. Neste centro móvel,
impreciso, com idades que não são nenhuma idade definida e dois pares de olhos que
escrutam como se fossem um só par ou mesmo um olho, neste centro, sondando,
através de todas as janelas, as janelas próximas, eu, inserida num jogo de espelhos
arbitrário, e onde as interações, por incontáveis, tendem para o esférico, vejo-me, vejo
os demais e também vejo a mim mesma no ato de me ver e de ver os que me cercam.
Vejo-me, vejo os demais e os variados cenários em que nos movemos. Todos. Todos
os cenários. Todos nós. Um par de olhos vê por dentro do outro par: é como se fossem
de outra substância, são olhos mais tenros, mais inocentes que os olhos mais velhos.
Assim, este mundo de janelas abertas sobre inumeráveis segmentos do fluir das coisas
e que, por numerosas, evocam a forma esférica, duplica-se, refratado por meu duplo
olhar. Duas dilatáveis esferas de saiões rodeados de janelas, uns trespassados nos
outros, ressoantes, ressoantes dos meus passos, de vozes perdidas, ressoantes também
dos meus silêncios e não circunscritos a esses doze anos, seis meses e dois dias: toda a
minha existência aí está — e aquele centro móvel, fugidio, que transita de uma sala a
outra, como se fosse o centro de gravidade do tempo, é uma das formas — uma forma
concreta — do presente, do ina-preensível agora. Eu tentando ler meu nome no bater
de um martelo e eu diante de Inês, perplexa, ciente de que os seus modos e palavras
têm algo de novo, mas não sabendo em que consiste o novo e quais seus frutos, eu
apertando o gatilho; na boca um gosto de sangue — tarde de — o gatilho do revólver
— agosto? alameda Franca? eu? uma escolar temerosa o braço erguido sustendo.
Malmequeres desbotados em um velho pedaço: de jornal o céu da madrugada
empalidece (ouço o mar percutindo na amurada) e eu com este homem ( ) nus ( ) os
joelhos no assoalho enquanto ele pergunta: repetindo, as, palavras ouvidas de outra
boca em outra hora cingindo; com tal força meu pulso; que a mão fica dormente o que
será? de nós? e eu respondo e soluço como se na verdade fosse o pranto a única.
Resposta viável. Minha avó com sessenta e oito anos com setenta Olavo Hayano e eu
o enterro da negra com setenta e cinco o incêndio do prédio em construção frente ao
Martinelli. (Eu.) Visitando meus pais o enterro da negra através da cidade Inácio
Gabriel na praça da República um frio entardecer em fins, de junho minha avó,
setenta e nove oitenta, outras idades o sol; das onze horas eu; com Inácio nós eu & ele
olhando os gansos que deslizam no lago não apenas. Com essas várias idades.
Dirigindo-se ao marido a mão direita voltada para mim, não, contra mim, meu avô na
sua escrivaninha amontoada de autos sob a luz, do abajur, ele em seu leito de morte
numa gaveta qualquer a dentadura, um, abajur de metal a menina às suas costas/
ocupa a poltrona de couro e olha os dísticos/ dourados, dos livros, nas estantes e — no
quarto — de Inês mais alta agora que Inês na mão uma tesoura de costura segurando a
tesoura pela ponta ofereço-a a Inês num gesto instigador o rosto duro. Uma? Pedra. A
serpente mordendo-me as costelas. Nesta sala: deitada no tapete, a perna direita
flexionada e a coxa repousando sobre o flanco de Abel: em outra sala, escura, eu
ainda, um ser escuro, olhando para as salas contíguas, umas iluminadas, outras não, eu
— velha?, matura? —, pensando sombras, agindo. Meu ato: uma sombra.
Com o tremor das mãos, devo ter arranhado a outra face do disco, um choque
rítmico e desagradável fere as melodiosas vozes dos cantores. As rodas dos
automóveis, na avenida, deslizam e freiam, as rodas, rente a meus pés; o rumor da
serra numa construção, agudo, atravessa meu corpo; mal vejo minhas mãos, os olhos
turvos. Eu na sala, de pé, curvada sobre o disco em movimento. Um choque rítmico.
O rastejar no tapete e os repetidos beijos em torno dos meus pés, tiros que por pouco
errassem o alvo. Distingo, nas vozes dos cantores, as palavras aeternum, vita e
amicitiae. Abel beija-me os pés.
Meu avô recusa-se a ter rugas como magistrado; ponto de honra, para ele,
estar em dia com as leis e a jurisprudência. Ao mesmo tempo, receia que se altere a
concepção de justiça que possui quando ingressa na magistratura. Este desejo de
coerência, convertido em dogma, transforma numa selva de sofismas sua atividade na
Justiça. Exibe-me os extensos fichários, acumulados em quase três decênios de
serviços prestados. A quem? Sua voz pausada, segura, na qual é possível captar,
afiando o ouvido, um susto: "Ninguém pode surpreender-me numa incongruência.
(Sinto que a incongruência está nos seus calcanhares, dorme com ele e se imiscui nos
seus bolsos.) Desafio seja quem for a encontrar, dentre todos os meus pareceres, um
só que contradiga outro. Um só". Classifica as causas por assuntos. Organizar as suas
fichas consome ainda mais tempo que o destinado a armar os pareceres, mas o
fichário — Arca da Eqüidade e da Justiça — presta o serviço para o qual existe: meu
avô, antes de opinar, e mesmo antes de formar um juízo sobre os processos que
chegam às suas mãos, revê atento os pareceres antigos. "A habilidade consiste em
manejar a jurisprudência. Uma de suas funções é dar solidez aos nossos pressupostos.
Isto porque um magistrado não muda. Um magistrado não tem direito a ter duas
opiniões, nem que viva mil anos. Caso contrário, não merece o cargo." Inconcebível,
para ele, que o tempo ou os acontecimentos possam de algum modo alterar, aos
setenta e três anos, um juízo exarado por volta do seu quadragésimo oitavo
aniversário. Um parecer do avô, ancião exemplar, é um coágulo. Junho de 33: indig-
nado, desenvolve uma rama de argumentos e pede a pena máxima para um carpinteiro
que, ludibriado, assassina o patrão a golpes de martelo; setembro de 56: sugere igual
castigo para um crime idêntico, daí recuando para as suas razões, e das razões
chegando à indignação, por tal modo que tudo se complete e ele durma em sossego.
Um grande homem, ouço muitas vezes, na sala transformada em câmara-ardente,
enquanto transito entre varões de ar oficial e mulheres altaneiras. Um grande homem,
tal como exige um mundo também morto.
Lentamente, levanto o pé esquerdo, Abel toma-o entre as mãos e beija a
planta, beija o calcanhar e o tornozelo, trinta, quarenta vezes me beija os músculos da
perna, vai erguendo-se aos poucos, beija-me os côncavos do jarrete, eu toco
novamente o soalho com o pé que está erguido, ele beija-me o joelho, eu me volto
para ele e o seu rosto sobe entre minhas coxas muito unidas, ouço o ruído abstrato dos
seus beijos, mas ele já não beija a minha pele, beija o espaço entre as coxas, de
joelhos, enquanto com as mãos leves acompanha, por trás, o contorno das pernas, o
redondo das nádegas, modela-me os quadris, com leves mãos.
Talvez haja nascido comigo, e renascido, uma serpente — Ira. Envenena a
imagem do meu pai, da minha mãe (são realmente meus pais?, nós temos pais?),
debate-se contra as paredes forradas de papel marrom, contra as flores encardidas das
paredes entre as quais passo uma infância e inicio outra, contra, morde o mundo.
Trago esta serpente em mim, enroscada nas costelas e não me abalo a escondê-la: suas
escamas, por vezes, despontam em minhas unhas, por vezes seu corpo contrátil me
enche a boca e eu cuspo-o, enrola-se no meu pescoço e espreita serpente por cima de
meus ombros — direito ou esquerdo — os que são dóceis e tudo aceitam sem queixa.
Voa Inês sobre as coisas, voa entre mim e as coisas, e distrai este réptil, adormece-o.
Experimentando, através de nomes sempre substituídos e nunca repetidos, ingressar
no meu ser e conhecê-lo, tece-me nas coisas, no dia-a-dia da casa, na temperatura das
salas e em tudo que esta ilha amena contém e irradia. Uma encantadora de serpentes.
Ainda que, após submeter-me, este mundo farto me recuse, aprendo a vê-lo como
irrecusável. Ira, nédia, cordata, enrosca-se entre minhas vísceras. Adormece. Seu
longo sono exala um odor de jasmins. Perdem-se, à deriva, no espaço ou no tempo, as
peças da imensa máquina noturna. A primeira aceitação é todas? Aceito o quarto, a
casa, o jardim, o portão, aceito a rua, rendo-me, esqueço a máquina (testemunho,
quando vou ao Martinelli, sua lenta deterioração, semelhante a uma esquadra
suspensa que se dispersasse), volto minha espádua à parte negra e desvalida do
mundo. Cada vez minha ida à casa dos meus pais é menos espontânea e cada vez os
corredores à deriva do prédio me parecem mais longos, mais escuros.
Um favo que se rompe, um figo muito doce que se abre — e o mel escorre-me
entre as coxas. Ele beija-me os pêlos. Desperto no silêncio da noite; voz alguma, débil
que seja, escuto no meu corpo, vagando. Alguns beijos, por entre a massa espessa dos
meus pêlos, ferem-me a carne, ferem-me o sexo, abrem-se as veias, parecem muitas e
grossas para o sangue que foge. A desagregação da máquina. As palavras se
extraviam por suas aberturas e vãos. A espaços, a espaços, ainda reencontro em mim
as vozes. Os beijos ferem-me a carne, susto a respiração, prendo entre as mãos sua
cabeça e vejo que não pesa. Aeternum, vita, amicitiae.
Meu pai numa poltrona, as pernas sobre almofadas, ainda não refeito das
incrustações: placas de metal nas tíbias. A corneta de chifre pende do pescoço, ele
evita responder às perguntas que lhe faço. Ambas as orelhas de borracha — o giro das
espadas. No sofá, minha mãe e um casal de crianças. Ela faz-me perguntas invejosas;
não é para que eu seja aceita e ela mesma permaneça excluída que me leva à missa
fúnebre da irmã. As crianças cortam em pedacinhos, com tesouras, uma velha camisa
de meu pai. Parecem-se comigo e têm o olhar maligno. Com aversão, com ódio, logo
com horror, ouço-as conversarem e trocarem sorrisos cheios de malícia. A serpente
agita a língua em algum ponto secreto do meu corpo. São estes, estes, este menino e
sua irmã, são estes que me salgam os olhos e me furam com alfinetes nos dias em que
vou de um quarto a outro interrogando-me sobre o meu próprio nome e flutuando num
mundo inconsistente. São estes? Então cabe-me a vez de torturá-los.

P 2

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

Não obstante a modernidade das linhas e o que aproveita da técnica moderna,


o relógio de J. H., tão distanciado dos que instigam a curiosidade de Platão ou dos que
assinalam no Egito a marcha vencedora dos persas, situa-se no centro de uma teia de
relações mais complexa e ambígua que a existente em torno de um relógio de Sol ou
da que justifica os relógios astronômicos. À primeira vista, nada, nessa máquina,
desperta atenção; a não ser, talvez, certa majestade que emana do seu porte, o
movimento compassado do pêndulo — um segundo para ir, um para voltar — e a
limpidez com que estão desenhados, em algarismos romanos, os números do
quadrante. No mais, é um relógio como os outros e só um pouco mais alto, em seu
gênero, que a média. Entretanto, soam as horas (um número incôngruo de notas) e
então passamos a vê-lo com olhos novos: os sons, diversos dos que ouvimos em geral,
surpreendem-nos. Cresce nossa estranheza ao percebermos que não se repetem, antes
variam nas horas seguintes, sem que possamos alcançar a lei — pois há de haver uma
— que rege tais mudanças. Conhecidos os princípios que orientam o fabrico do
relógio, serão também explicadas essa lei e uma parcela de suas implicações.
Acrescentará nosso interesse por um engenho assim raro, a narrativa de certas
vicissitudes humanas com ele relacionadas.

O 20

HISTORIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Que me atormentam? são estas crianças? as duas? Se: devo perguntar à minha
mãe. Descerei os tisnados degraus do Martinelli, cada vez mais gastos, descerei com
vagar esses degraus e no meio da escada voltarei. Para fazer-lhe a pergunta. Ficarei
ante a porta, hesitante, ficarei ante a porta, sem ousar premir a campainha, ouvirei
risos na sala e — de súbito — a voz, a voz de um deles, uma voz infantil e depravada
como a de alguém no último grau da vileza: "Aquela é o Hernidom?". Aviltante e
ofensivo perceber, na voz, semelhanças com a minha. Dou meia-volta, afasto-me,
desisto de chegar a um esclarecimento. Dias e dias, intrigada, repetindo esta frase
inexplicável: "Aquela é o Hernidom?". Indagando sobre quem ou o que será o
Hernidom. Hernidom, afinal, será o mesmo que Ira?
Ele beija meu sexo e sustenta-me os peitos, o crocodilo passeia junto ao bule
de prata tombado no tapete, ramos de ñores nascidos do tapete quase ocultam as
paredes e enredam-se nos lustres, se enredam, pendem para fora através da janela, as
leoas passam pelos nossos corpos, as leoas, o coelho, cabras de pêlo branco e cadelas
de cabeça humana passam pelos nossos corpos, andam na sala, sobem nas poltronas.
Ele roça com os dedos as pontas dos meus peitos, sua postura é a de um homem a
quem apontam uma arma, os braços para o alto, nos meus peitos florescem
margaridas brilhantes, rebentam violetas dentro do meu ventre e o crocodilo — roxo,
vermelho e verde —, o crocodilo desliza junto ao bule de prata
Inácio Gabriel, tens quantos anos, Inácio? Para dezesseis, sério demais; muito
franzino para vinte. Um adolescente de ossatura frágil, um efêmero anunciador, eis
tudo. Praça Antônio Prado, frio entardecer em fins de maio. Cinzento o céu, úmidas as
ruas e as calçadas. Ressoam no silêncio meus passos infantis, eu seguindo pela mão
do meu pai, sobre essas mesmas pedras, em desoladas tardes de domingo. Não chove
mais e os altos de alguns edifícios fulgem ensolarados contra o céu de chumbo, sem
que se veja, do chão, de onde vem o sol. Assusta, nos olhos de Inácio, a ausência de
ambição e de brilho. Nele, tudo faz lembrar uma aquarela pálida, uma paisagem
entrevista sob a névoa: as sobrancelhas leves, o sorriso discreto, a voz velada e
mesmo o jeito de andar: os passos inaudíveis, cautos. Veio há menos de um ano do
Recife e o terno bem passado, mas de qualidade inferior, abriga-o mal contra o frio.
Se, ao menos, pusesse um suéter! O grosso livro negro — trabalha no 11a Ofício de
Notas — parece muito pesado para os seus braços. Veículos salpicados de chuva e
pessoas apressadas passam, muitas
de olhar ansioso.
— Ainda não tinha visto em São Paulo uma tarde como esta. Tudo tão leve! Preste
atenção ao cheiro da cidade. Diferente, quando o ar está lavado.
— Como é seu nome?
— Inácio Gabriel.
Olho-o de face, no fundo dos olhos, olho-o, de face, leio em alguma parte dos
seus olhos as ameaças que o cercam e vejo-o em sua verdade, cândido, desamparado,
atento às variações dos odores, com seu andar inaudível e as mãos inquietas, vejo-o
chegando de tão longe através de muitas transversais, becos, desvios, para encontrar-
me nesta pequena praça brutal, sem silêncio e sem árvores, desnorteado no mundo,
com a morte sorrindo de maneira solerte dentro dos seus olhos, vejo-o destruído e
compreendo que este encontro casual é o prenúncio de outros, e algo nunca pressen-
tido se desata em mim e eu olho o fugitivo sol nas paredes distantes, certa de que só
nós o vemos — tomo a sua mão e decido que algo devo dar-lhe, que algo lhe darei
com urgência, pois ele decerto não está nas ruas para receber, não tem mãos de
agarrar, transita em silêncio entre clamores e gritos de ambição, é raro e será reduzido
a pó, de nada o salvarei (quem pode salvar?), mas durante alguns passos ele terá
companhia.
As duas, eu e eu, as duas, contemplando as coisas e a própria metamorfose.
Inês, conquanto feita para transitar entre as pessoas sem ser pressentida, despende o
seu fascínio. Não escolhe motivos para rir com prazer, embora com uma ponta de
melancolia (os incisivos superiores sempre aparecem entre os lábios curtos), e sua ter-
nura desmedida, expressa nos sufixos do grau diminutivo, abrange as plantas, móveis,
seres inexistentes, parte do seu corpo, seus pertences: "Onde está minha blusinha?";
"Tome um docinho"; "Guardei no meu bolsim"; "Machucou seu pezinho?"; "Estou
com os olhinhos tão cansados!"; "Que caminha quente"; "Que saudade, meu bem, do
Passarinho Voou!". Sopra-me adulações e hipocorísticos: "Luisinha, você foi feita
para sedas. Olhe os seus dedinhos como são macios. Que pele, meu Deus. Você é que
tem sorte, Vanju". Nutre a idéia, já vigorosa em mim, de que seria um desastre perder
meus privilégios, eu, com estes dedos macios, com esta pele tenra, feita para os velu-
dos, os damascos. Eis-me então servil ante bedéis e mestras, eis-me conduzindo
buquês de fanados malmequeres, passados numa folha de jornal, o braço erguido, as
flores mais altas que a minha cabeça. "Prestou atenção ao seu avô? Fala a você com
um carinho! Ele trabalha com as leis. É um homem importante, Naná. Coração de
pomba." Concordo e logo me orgulho desse homem calvo, ponderado, elásticos nas
mangas da camisa, viseira na testa, redigindo com zelo pareceres que são reflexos
alterados de outros. Sentada numa poltrona de couro, olho os títulos das
encadernações nas estantes. Ouço o rascar da pena no papel. Meu avô se levanta para
interrogar os seus fichários. Inês, entreabrindo a porta, dilata os olhos, sorrindo, em
direção a ele e se retira em silêncio. Seus gestos acentuam a distinção, a minha, de
estar ali, fazendo parte da sombra que rodeia o avô e a sua escrivaninha, enquanto
grandes questões tomam a direção que ele sugere com a sua coerência.
Erguemo-nos do solo. O gamo, sentado junto ao grande relógio de caixa, cujo
pêndulo oscila devagar, nos olha. Rolamos no ar, entre as folhagens, os ramos, os
bichos, rolamos no ar, abraçados com força, pousamos no tapete. Rumor de multidão,
alguns gritos, um riso, um chamado. Serão as minhas vozes que ressoam em mim?
Plantas e animais tornam aos nossos corpos.
Minha avó e sua vida murada, uma rede de ciclos intercomunicáveis e restrita,
de modo que seus atos e palavras tendem a repetir-se com variações quase
imperceptíveis, ou imperceptíveis, acu-mulando-se — atos e palavras — uns sobre os
outros, obsessivamente. Seu rosto muda sob a pintura, a linha da coluna encurva-se
um pouco à medida que seu queixo, tentando uma compensação, alteia-se, as palavras
são ditas no ritmo de sempre, mas algumas sílabas, em número crescente, perdem-se
na língua, o rápido e perscrutador lance do olhar torna-se menos eficaz e os cabelos
mais negros, dado que carrega nas tinturas à medida que progride o encanecimento.
Quase não se altera, apesar de tudo, o repertório de censuras, ordens, refeições e
passeios, esse ritual descabido e que não converge para um fim preciso. Palavras
muitas vezes repetidas: "Como pôde você enganar-se desse modo? Um homem tão
vivido e habituado com os inimigos da sociedade! Ela é irrecuperável. Foge entre as
nossas mãos. De que lhe serviram os milhares de pareceres e a Revista dos Tribunais?
Enfim...". Não elucida uma só vez o que esconde esse advérbio solto, enigmático,
deixado em suspenso.
Movo-me, com treze anos civis, estas crianças de nove, aprendendo na escola
as mesmas coisas que elas. Não nos entendemos: sou indiferente aos seus brinquedos
e atenta a numerosas coisas que ainda não percebem. Mais alta do que todas, mais
velha (e simultaneamente mais nova), distingo-me também pela gordura e transito nos
salões e pátio de recreio com uma funda consciência de segregação. Um monstro
anacrônico. Trespassam-se em mim os meus dois nascimentos e as filhas desses
nascimentos, dois corpos num, só um deles visível; o outro, espreitador, apenas se
revela pela voz que se alterna com a do corpo visível, ou pela dentição extemporânea,
ou, ainda, por manifestações menos evidentes. Ao sabor dessas alternâncias, meus
períodos, irregulares e ás vezes lancinantes, sem que ninguém saiba, oscilam. Não é
outro o ritmo da minha aprendizagem. Passam-se meses nos quais a dupla noção que
possuo das coisas é como que regida pelo corpo mais novo e eu não consigo
progredir. Sou suspensa, sou expulsa, sucedem-se as reprovações. As flores que
ofereço são jogadas na cesta de papéis com o jornal que as envolve.
Quantas vezes nos vemos, Inácio Gabriel? Dez? Doze? Talvez menos, talvez
ainda menos. E essas poucas vezes parecem uma só vez, um só encontro realizado
com interrupções. Um encontro pressuroso, como duas pessoas na estação, entre dois
trens. Dão o sinal da partida, os condutores gritam, os retardatários vêm correndo e
jogam a bagagem no estribo. Sabemos que algo essencial não será dito, que o mais
importante, o que deve ser confessado antes de tudo só nos ocorrerá quando
houvermos partido, cada um na sua^ direção. As palavras se atropelam, os gestos se
atropelam e há silêncios, e os silêncios nos afligem, pois sabe cada um que ficarmos
frente a frente é um privilégio fugaz, mas continuamos sem falar. E de repente vemos:
estamos sós. Fizemos tudo? Dissemos tudo? Fugidias tardes de domingo, quase todas
de neblina. Ano de pouco sol, o de 1951. Vibro de alegria, pela primeira vez conheço
o gosto da alegria. Mas esta alegria gera um pássaro ainda preso e inquieto. Olho para
Inácio Gabriel na obscuridade do cinema; com a atenção fixa na tela, ele não sabe que
o observo; seu rosto plácido tem algo de um reflexo, nele se reflete um velho. De
repente me vê, vê que o observo, o velho foge e sua juventude vem à tona. Galerias do
Municipal, intervalo de um concerto; volto do toalete e vejo-o à distância, a mão no
queixo; nada tem do adolescente que pouco antes joga aviões na platéia e nomeia
sorrindo as mulheres esvoaçantes do forro, até a sua cor é diferente; aproximo-me e o
rosto que se ergue para mim é o que eu amo. Nós na Confeitaria Vienense, com-
prando doces que comemos na praça da República, olhando os patos no pequeno lago.
"O que será de nós?" Ignoro que pela sua boca outra voz está falando e não posso
entender este som de ondas quebrando-se em rochedos, distintamente ouvido no
mesmo instante em que ele faz a pergunta. "Nós quem, Inácio?" "Nós, que de um
modo ou de outro não queremos oprimir os demais." Tomo sua mão: está trêmula,
ardente, ele tem febre e deve estar com frio. Leva-me ao ponto do bonde, espera que
eu suba e acena para mim. Alegremente, apesar da febre. Desço e volto, para observá-
lo sem que ele me veja. Vai pela calçada, entre os passantes, devagar, a mão esquerda
no bolso, olhando as árvores. Visível o desenho das omoplatas sob o paletó claro. Tão
frágil és, Gabriel, e quão pouco o meu amor te guarda! A Morte, pronta a lançar sobre
ti a sua rede, segue-te sutil.

T 12
CECÍLIA ENTRE OS LEÕES
Ó agir humano, ó sucessão das coisas, detende-vos se podeis. Tempo,
contraria teu curso, viola teu ritmo, interrompe teu sereno fluxo impassível ou desaba,
sem leito e sem comporta, sobre mim. Cecília está comigo. Seu rosto, visto contra as
pedras da praia e o mar—o mar vermelho e verde nesta hora da tarde —, parece
simultaneamente eterno e fluido, fugindo à minha posse e mesmo à contemplação.
Um rosto flutuante entre contrários. Jazem suas mãos sobre a toalha branca, junto aos
copos de vinho, um pouco inquietas. Homens e mulheres deslizam do seu corpo,
andam entre as cadeiras e as mesas rústicas deste restaurante assentado entre
coqueiros (alguns troncos varam o teto de palha e quando o vento sopra com mais
força ouço o roçar das palmas sobre a coberta), saem, sentam-se nas pedras,
estranhos, suas pegadas cruzam-se na areia. Um deles toca-me o pulso, de leve. Um
homem pálido, a fronte fugidia, o nariz aquilino, o queixo delicado. Brilham os dois
olhos, mas um não vê, o direito: o outro me contempla, afetuoso. Meu pai. Não o pai
carnal e nem sequer um pai imaginário. Um pai de outro gênero. Reconheço-o e sinto
o cheiro do seu corpo. Um cheiro de trabalho constante, mas não árduo. Cecília,
devagar, fala do que faz no emprego. Move-se, desde as primeiras horas da manhã,
entre o Hospital Pedro n e instituições de previdência — dispensários, sindicatos,
centros sociais —, às voltas com funcionários omissos e médicos quase sempre
impassíveis, buscando solucionar problemas enredados. Ordenado exíguo e às vezes
pago com atraso. As coisas de que fala, inserindo-a na vulgaridade da vida e reve-
lando o seu modo de viver, ativo e generoso, impedem — prendo as suas mãos
inquietas —, desde este primeiro encontro prolongado, que eu a veja de um modo
purgador, sem pó nos tornozelos. Intangível? "Nada esperam. O mais difícil de tudo é
evitar que desistam." Cecília, portadora de corpos, romã de populações, não é — ao
contrário de mim — um ser à margem. Suas horas de trabalho, e mesmo, não raro, as
horas da tarde, estão ligadas às atribulações dos que povoam os mangues e os bairros
afastados — Água Fria, Chacon, Vasco da Gama.
A sombra do restaurante avança para o mar e a dourada luminosidade do céu
adere às nuvens raras. Cecília passa a mão entre os cabelos curtos. Rugem leões
verdes nas ondas que golpeiam as pedras.
Seguimos ao longo da praia, entre o fim do dia e o vir da noite, entre a terra
firme e as águas, entre. O mar parece coberto' de moedas de cobre meio oxidadas,
vermelhas e verdes. Cecília descalça os sapatos. Está sem meias e seus pés um pouco
largos nas plantas, habituados a andar, pousam com ritmo na areia úmida. Meu pai e
suas réguas. Com giz de alfaiate, risca um corte de brim. As ondas, sucessivas,
formam-se e desfazem-se, ruidosas: e manchas de óleo, e detritos de cocos e pedaços
de alcatrão despejados por algum navio ao largo. O céu uma cúpula de ouro, com
efígies de cágados. Cecília: figura-delgada, ossos de pássaro, a magia da carne
tornando ainda mais sutis os seus ossos. Plumagem. Nela, não vejo asas. Tão leves,
porém, são na areia clara as marcas dos seus pés e tal encanto existe nos seus ossos,
que me pergunto: "Flutua?".
Seguimos ao longo da praia, sem destino. Em grandes haustos, respiramos
setembro. Os instantes são dias. Cresce, neste passeio em que tardes e noites se
concentram, meu amor por Cecília, a precisão de incorporá-la à minha vida (ou de
incorporar, à sua vida, a minha), crescem a nossa intimidade e o mútuo conhecimento.
Her-menilda ou Hermelinda não mente quando diz que sou homem das letras e dos
livros. Planejo escrever. Para quê? A certa altura do seu governo, tão prolongado,
Vargas preocupa-se com as saúvas. Podia ter inventado, como programa, multiplicar
os pássaros e os tamanduás. Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um
sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir,
de não ir levando ao azar a minha vida. Uma decisão artificial, Cecília. Honesta,
contudo. Invento, ao mesmo tempo que as formigas, pássaros imaginários e
tamanduás com língua de fogo. Jogar umas palavras contra outras, exercer sobre elas
uma espécie de atrito, fustigando-as, até que elas desprendam chispas: até que saltem,
dentre as palavras, demônios inesperados. Numa sociedade como a nossa, da qual,
mais ou menos como os seus clientes do Hospital Pedro n, desconfio e que não me
atrai, é, com atritar as consciências — até que estas, igualmente, façam-se em chamas
e incendeiem o arcabouço velho —, o que resta fazer. Ambas, vê-se bem, atividades
mais ou menos gratuitas, e, em certo sentido, fora da lei. Estou longe de ter as virtudes
exigidas para incendiar as consciências, como faz, na zona canavieira, Francisco
Julião. Falta-me a energia cega dos reformadores; e com a minha tendência, talvez
arcaica, para raciocinar com todos os dados dos problemas, custaria muito a decidir-
me sobre os valores que devem ser incinerados ou substituídos. Nem, ao menos, sei
dizer com segurança se a profissão que você exerce, fraterna e retificadora, é mesmo
adequada à realidade que vivemos. Ela pode dar um sentido à sua vida. Mas, ver-
dadeiramente, tem sentido hoje? Não sou capaz de responder, Cecília. Resta-me,
então, por este modo recusando todas as estúpidas formas oficiais de viver, isto que
suponho ficar em minha alçada — intentar maquinações com as palavras. Projeto
desesperado e enleante.
Um carneiro nascido das areias e das espumas das ondas acompanha-nos,
dócil. De dentro de Cecília, meu pai, entoando uma cantiga dos seus tempos de moço,
olha para mim e põe a mão no meu ombro. Chapéu de feltro, a barba negra raspada,
cicatriz no pescoço, as mangas da camisa arregaçadas. Também dócil, segue devagar
ao lado do carneiro. Seu relógio barato, de pulso, marca mais ou menos cinco horas.
Adolescentes furam as ondas traiçoeiras da vazante. Por vezes, rabeia um
peixe na onda levantada. Meu pai, apreensivo, olha para trás e afasta-me, num gesto
protetor. Nesse momento, ouço o rumor dos guizos. Uma grande roda cor de prata,
alta como um sobrado, vem girando na praia. Uma roda de metal, com oito raios, um
pouco vacilante, avançando sozinha, devagar. Abrimos alas. Vem a roda, exalando
calor, aproxima-se, cheia de guizos e ornada com fitas coloridas. Os raios e o aro,
polidos, refletem o céu de ouro, o sol poente, a superfície acobreada do mar. Avulta,
passa entre nós, a roda, lenta, o doce rumor dos guizos tornando a tarde mais leve,
afasta-se, deixa na areia o sulco da passagem, inflete em direção aos adolescentes que
se banham, o rumo é corrigido, uma roda solene, nova, brilhante, seguindo ao longo
da praia, sem que ninguém dê atenção à sua passagem majestosa e insólita. Desvia-se
para a esquerda, abre sem ser abalada uma onda que se quebra, avança lentamente
mar adentro, lentamente, desaparece ao longe. Grandes aves rápidas e claras surgem
nesse ponto do mar, voam ameaçadoras, cinco ou seis, alteiam-se e em seguida
mergulham, céleres, com as asas fechadas, como se atacassem famintas um cardume.
Antes que mergulhem os pássaros, novo rumor se inicia, este em Cecília:
soalhas de pandeiros. Respondem logo ao rumor, à direita, com um pouco mais de
intensidade, outros tantos pandeiros, tangidos por meninas entre dez e treze anos. Eis-
nos escoltados pelos dois cordões do pastoril, sete figuras de um lado, com longas
saias vermelhas; sete de outro, com longas saias azuis, algumas desbotadas. Entre os
dois cordões e de tal modo que pane do seu corpo trespassa o de Cecília, vai a Diana,
vestida de azul e vermelho, sinal de que pertence às duas alas. No pandeiro redondo,
maior que os das pastoras e que ela faz soar com os braços levantados, também
esvoaçam fitas vermelhas e azuis. Das mesmas cores é o grande laço que prende os
seus cabelos crespos. As pernas da Diana e as de Cecília, dançando as da primeira,
andando as da segunda, trançam-se. Nem todas as meninas trazem pandeiros. Duas
conduzem uma cesta com jambos, laranjas e mangas-rosas; duas sobraçam dálias,
lírios e açucenast A Diana, cessando de tocar, ergue ainda mais os braços, faz-se
silêncio e todos nós paramos. Rugem leões verdes, nas ondas, entre os peixes. As
pastoras, de repente, iniciam uma loa, marcando o compasso da música com os pés e
os pandeiros, estes enfeitados de fitas como a grande roda desaparecida:
Vinde, vinde, moços e velhos,
vinde todos apreciar,
como isto é bom, como isto é belo,
como isto é bom e bani demais.
A noite vem chegando. Entre os dois cordões, um homem já idoso, de barba e
cartola, metido num fraque sovado, grita agitando as mãos: "Sou Modesto Francisco
das Chagas Canabarro. Sou conhecido nestas paragens. Sou Modesto Francisco das
Chagas Canabarro!". Berra o carneiro, Cecília sorri, meu pai nos segue calado.
Digo a Cecília (em redor de nós as vozes infantis, o bater de pés na areia, o
ruído festivo dos pandeiros, o quebrar das ondas, o cheiro da salsugem e do suor de
Modesto Canabarro) que desejaria estar inaugurando o mundo na sua companhia e em
paz com todos os bichos. Cecília, de cabeça baixa, lembra que não mais existe e não
será reencontrada a harmonia do tempo em que a onça lambe as unhas do homem.
Aperta a minha mão e com a outra protege a saia batida pelo vento. Seu corpo
continua povoando a praia. Com as pastorinhas, segue-nos, acompanhando a loa, uma
pequena orquestra: clarinete, pistão, bombardino, bombo e um trombone rouco. No
bombo está escrito DEIXA FALAR, seu portador, desdentado, ri com alegria, dançando
ao compasso da jornada. Os músicos, de cor escura e vestidos pobremente, não têm
sapatos. Tilinta o chocalho do carneiro e o velho barbudo continua: "Sou Modesto
Francisco das Chagas Canabarro!".
A areia, que range sob os meus pés e sempre teve o nome de areia, não é a
mesma. Os nomes e as coisas (a palavra tarde e a tarde, amar e a palavra amar), as
coisas e seus nomes transformaram-se. O mundo, agora que seguimos pela praia,
vivos, reais, de mãos dadas, difere do mundo que precede este encontro. Uma moeda
suja, enterrada há muito tempo e sua nitidez depois de limpa. Vê-se o perfil do rei
(que não se via), vê-se a data da cunhagem, vê-se a divisa, o valor (que não se via) e
vê-se o brilho do metal. A presença de Cecília revela o mundo oculto. Fosse tudo
realmente novo, pacífico — onças lambendo minhas unhas — e nomeado pela
primeira vez!
À noite, a casa de Hermenilda e Hermelinda, sem a cantoria que a luz diurna
aciona nas gargantas dos pássaros, dá a impressão de ser menor. Algum (há pesadelos
de pássaros?) solta um pio aflito e ouve-se por vezes uma surda agitação de asas ou de
rostros. Como se o conjunto de pássaros formasse um corpo — um corpo que nos
contivesse a todos — e o corpo tremesse ou mudasse um pouco de lugar. Hermenilda
transitou para Hermenilda e foi ocupa-da pela irmã. Pode suceder, admito, que apenas
hajam deslizado, de uma para outra, os respectivos nomes. Houve, em todo caso, uma
troca radical: não são as mesmas. Será por isto que ouvem com tanta indiferença, um
pouco sombrias, olhando vagamente para os lados, minha atropelada confissão a
respeito de Cecília?
A vibração do encontro persiste em mim e eu recuso-me a dormir. Quantos
lugares percorro nesta noite? Vou de um ponto a outro do Recife e encaro as pessoas.
Evocam, essas presenças alheias, as suas próprias matrizes, existentes no corpo
encantado de Cecília? Serão, ao contrário, matrizes dos entes concretos que transitam
nesse corpo e o formam? Como saber? Sei apenas que os viajantes frente aos guichês
ignóbeis da estação rodoviária e o velho esquálido que vigia a inútil borboleta
enferrujada; os vendedores de peixe na praça do Mercado; as prostitutas nas sacadas
da rua Bom Jesus mostrando a língua ao ritmo das músicas que as vitrolas tocam alto
nas salas; a população dos mocambos sob a negra ferragem deteriorada na ponte
Velha e o cego no cais de Santa Rita, agitando alguns níqueis, tristemente, numa bacia
de queijo, sem ninguém por perto, o tilintar das moedas tornando o cais mais
desértico, todos podem existir na carne de Cecília — e o meu amor, abrangendo-os,
liga-os a mim com laços cuja natureza me escapa. O Recife (muros cor de chumbo da
Casa de Detenção, São Pedro dos Clérigos com sua esbelta fachada e as pedras do
calçamento cheirando a frutas podres, barcaças de pequena cabotagem, seus mastros
oscilando no cais da Alfândega), a Lua refletindo-se no rio, o Recife, fração do
mundo muitos dos seus habitantes não mais distanciados, não mais estranhos,
integrados no meu ser através deste amor e de Cecília,
sua substância e sua arca.
Escritórios e lojas ainda fechados. O vento matinal agitando nas calçadas
silentes algumas folhas caídas pela madrugada. O dia uma planura clara e virgem à
espera dos homens. Cecília telefona-me. Suas palavras, vindas através do Recife meio
adormecido, parecem-me inaugurar a manhã: pegadas na areia de uma praia sobre a
qual transita, solitária, a primeira banhista.

A 19

ROOS E AS CIDADES
Abro a janela: o luar clareia uma das paredes e todas as luzes estão apagadas.
As persianas abertas, volto a deitar-me. Cães eriçados se mexem sob a cama ou dentro
das gavetas: ouço-os e sinto o cheiro de rabugem- Posso assumir o emprego no Recife
até 15 de julho; mas será difícil, com o dinheiro que me resta, protelar até então o
regresso, mesmo em hotéis como este e comendo mal. Os meus dias aqui, portanto,
terminam breve. Sabe Roos que regressarei, que estou de passagem e não lhe
ocorreria abandonar o homem que morre em Lausanne; cruzar o oceano; confiar a
vida a mim, filho pouco hábil de uma região a seus olhos safara e inculta, embora
fascinante: o fascínio de um animal subterrâneo. Ambígua, é exposta, não obstante o
caráter enigmático do seu corpo, a desva-limentos e receios. Envolver-se com alguém
em trânsito e curtir as conseqüências? Fecha a compreensão ao caráter sempre
efêmero das fruições e encontros humanos. Afasta-se, portanto, como em definitivo,
antes que a série iniciada se ordene e conclua-se, não importa se para desespero ou
júbilo nosso. Entretanto, sua aversão ou não por mim, sua cegueira ou lucidez, tudo se
submete às leis que comandam as nossas relações: este ir e voltar, este diagrama si-
nuoso. Deitado, a janela aberta ante a noite amena de junho enquanto a réstia do luar
se move na parede do pátio, lamento a cena da tarde e a franqueza de Roos, cônscio
de que isto não é ainda o fim (se bem o fim, inexorável, já se delineie) e de que nem
mesmo o lamento é aqui arbitrário ou fortuito. Também Roos sabe, de um modo
qualquer, que o adeus do anoitecer nos conduz a nova seqüência da série. Estes cães
sob a cama e nas gavetas, invisíveis à luz da madrugada que começa a entrar pela
janela, fazem parte da seqüência.
A mudança de quarto — sei — não impede que me sigam os cães. Mudo-me,
porém, para o Hotel Ste. Marie, com janela para a rua Montparnasse. Volto pela
madrugada, depois de bater bulevares e pontes que aos poucos tornam-se desertos, os
pés insensíveis, um vazio no estômago, os músculos da espádua entorpecidos. Os cães
se foram.
Vou à agência postal Rue de Rennes retirar uma carta registrada e reencontro
Roos. Expressões de cortesia, banais e vagas, enquanto soam carimbos e tilintam
moedas. Mostro o cheque, vindo com a carta da Gorda. ("A pessoa que sabemos
apareceu de novo aqui, dando a entender que você meteu-lhe o ferro. Será verdade,
Abel?") Roos prolonga a conversa trivial e dá sinais — discretos, embora — de que
rever-me não a aflige. Aceita um licor? Olha o relógio: uma e pouco. Tomaria um
café.
Eu e ela, sentados nas cadeiras de espaldar como que rendado, protegidas por
um toldo laranja. Ante nós, entre árvores, a estátua de Balzac, sob o céu azul. O
diálogo prossegue com hiatos e, sem que nada importante tenha sido dito ou sugerido,
ela se distancia no seu andar vagaroso, tão pouco parisiense, o andar de uma provin-
ciana habituada a horas que se desdobram lentas, marcadas pelo sino de um velho
campanário, anos e anos, sobre os tetos tranqüilos. Eltville. Por que não combinar um
encontro no qual lhe entregaria o fular que trouxe de Veneza? Saio no rastro de Roos,
rápido. Não a alcanço.
Desconto o cheque, volto para o quarto e me curvo sobre os impressos de
viagem. Estudo a tal ponto o mapa de Londres, que já não vejo apenas seu traçado e
nomes — Kingsway, Oxford St., Green Park, river Thames —, irias a própria cidade,
real e imaginária, construída no quarto, ao longo da tarde, com pedras, fotografias,
gravuras antigas, páginas de romances, clichês, telegramas de jornais. A vã caçada na
Itália e coisas subseqüentes fazem-me crer que não mais existe no mundo, com as
suas três muralhas, incólume, a Cidade vista um dia (perto de mim e como situada à
distancia, pois não é muito maior que um vestido, e, tal um vestido bordado a ouro e
pedras, mergulha na água calma e some) e que portanto acabaram as minhas buscas.
A Cidade que surge instigando-me a encontrá-la e que tenho gravada no espírito, deve
estar inserida, incrustada em ruas novas e novos quarteirões, emaranhada em outra.
Posso cruzá-la e não a reconhecer. Lembro-me também de que muitas obras de arte
existem, desmembradas, como o políptico de Masaccio realizado em Pisa, onde só
chego a figura de são Paulo, a única que resta na cidade, indo encontrar o Calvário —
isolado do conjunto — em Nápoles: santos e fragmentos do friso inferior acham-se
em Berlim; em Londres, a Virgem e o Filho, com anjos músicos em torno. A ansiada
Cidade pode Ser, como este, um políptico disperso e se for eu nunca a encontrarei.
Pelo menos, não a encontrarei de todo.
Assim, se decido fazer um rápida viagem a Londres, não é que espere ver no
Tâmisa o rio da Cidade. Por um lado, desejaria reverenciar nas salas do Museu
Britânico a coleção que ilustra e documenta o evoluir da escrita; por outro, impelem-
me as leis pendulares, fundadas numa espécie de distorção de linhas e que regem
minha aventura sem brilho coin Anneliese Roos, sendo Londres e suas preciosidades
gráficas em pedra, em argila, em metal, uma razão e um pretexto. O verdadeiro
motivo da viagem encontra a sua justificação num inflexível jogo oe alternâncias.
O sol da manhã, refletindo-se nos vidros fronteiros, entra pela janela do
quarto, filtrado na cortina de renda. Vou à estação do Norte e compro, via Calais, um
bilhete para Londres. Por que no noturno de domingo? Não sei. Sábado à tarde, o
telefone chama e suponho então ter a resposta. Roos me pergunta se não quero,
domingo, ir com ela a Vincennes, aproveitar o bom tempo. Podemos antes almoçar na
Aliança. Estarei de acordo? "Por que não ir a Chartres, Roos? Gostaria de rever os
vitrais e examinar o relógio ao lado da Catedral. Almoçamos lá, voltamos ao
entardecer. Chegarei a tempo de pegar o trem." "Que trem?" "O noturno para
Londres." Breve silêncio. "Ainda não conheço Chartres. Quando você regressar,
podemos ir." "E hoje, Roos?" Novo silêncio e a resposta. Ficará no seu quarto, tem
cartas a escrever. Amanhã, às doze, encontramo-nos no hall do restaurante?'
Blusa negra de seda e saia musgo, de linho. Mangas compridas, presas com
abotoaduras verdes, imitando trevos, idênticas aos brincos. Claros os calçados e a
bolsa de alça longa. Um pulôver cinza à mão. Os cabelos sedosos, a pele repousada,
as unhas polidas. Leve pintura, leve odor de loção: fragrância de violetas. "Então vai
mesmo a Londres?" "Sim, hoje à noite. Via Calais." Ao sairmos para o sol põe o
chapéu de palha, um chapéu de abas flexíveis ornado com uma fita da mesma cor da
saia. Para que o pulôver, quando faz calor e o ar está azul? Tomamos o metrô em
Saint-Placide, rumo à estação do nosso destino, com seu nome augurai: Porte Dorée.
Calados, vamos pelo parque. O rosto pontilhado de sol, ela sorri por nada, sob
o chapéu. Porta Dourada. Nós, dois animais terrestres, macho e fêmea, lado a lado
entre árvores e aves, sob o céu que pende como um grande seio, um seio azul e
branco, onde bebemos nossa ração de júbilo. Nós, nesta tarde de domingo, pausa ou
arrefecimento das cobiças e atribulações, libertos de tudo que nos sobrecarrega o
peito, flutuando sobre a relva como se nos dias precedentes, não nos seis, mas nos
cinqüenta e seis, houvéssemos gerado, em canseiras e ânsias, o instante que vivemos.
O sol faz-se lâminas entre as folhas. Re — nos milhões de folhas — flete-se.
A luz, sobre o lago e as margens, espraia-se ondulante e não quero saber onde ficam
seus limites. Peixes, vamos bebendo-a com a boca e os olhos, com as narinas e a pele,
talvez com os sexos. Homens e mulheres, deitados na grama ao sol ou sob as árvores,
remando ou deixando-se levar pelos barcos, andando ou parados nos caminhos, nos
fazem companhia. Embala-os as mesmas certezas que a mim? Nós perto do lago;
reclinados. O som de uma pequena orquestra encrespa a superfície da água. Homens
nus da cintura para cima, alguns com chapéus ou com tatuagens, meio deitados, de
frente para o lago. As águas crepitam, com um rumor de folhas secas pisadas ou
revolvidas sem cessar pela brisa. Dou a Roos o fular trazido de Veneza: um grifo
cercado de borboletas e feito de seres estranhos. Cada uma das patas é um leque de
pássaros; as unhas, seus bicos. Os pássaros das patas dianteiras saem do ânus de um
símio; e os das patas traseiras das bocas de animais sem corpo. Lobos, cavalos, leoas,
aves, pequenos monstros e a cara de um velho semelhante a Esopo, entrelaçados,
muitos com a cabeça dentro da boca de outro. A cauda de um lobo é também a do
grifo. No extremo da cauda, incrustados num penacho, dois personagens idênticos,
mulher e homem. Conversam? Toda essa zoologia como que não cabe no corpo da
besta fabulosa e assim é que se vêem no ar as patas traseiras de mais dois animais, as
cabeças plantadas como flechas a meia altura da sua espinha: o provido de cauda
(entre cão e gazela) cobre o outro (cão com cabeça de iguana). A cauda da gazela-cão
(ou cão-gazela-flecha?), felpuda, termina em cabeça, com língua de víbora. O grifo
tem chifres à feição de asas ou de barbatanas. Seu bico e olhos são aquilinos, bico e
olhos agudos. O original, armênio, remonta ao ciclo das Grandes Descobertas e talvez
lhes seja anterior. Roos, sorrindo, agradece e põe com gestos lentos o lenço no
pescoço. Entre a pele e a blusa negra, movem-se as cores da besta e das borboletas.
Irá a Veneza, um dia. Lá, é tão belo como no cinema? Ruas de água, avenidas
aquáticas, todas ladeadas de palácios... Respondo que a Biblioteca Marciana também
é fascinante. Sai-se da praça cheia de pombos e entra-se nas salas povoadas de
incunábulos e códices.
Alguns desses livros são misteriosos. Não escolhi ao acaso o seu fular. O
desenho central lembra um poema. Um poema bem estranho. Requisitei uma Odisséia
aldina e um manuscrito egípcio, em grego. Não sei grego. Queria vê-lo, apenas. Veio
o livro de Aldo Manucci. No lugar do outro, por engano, trouxeram-me a versão
grega de um poema místico. A apresentação em italiano dá as características do texto.
Seu fundo é a espiral. Um dos temas, a busca do Nome. O autor consagra a obra ao
Unicórnio.
Roos retira o fular do pescoço, olha-o com expressão indecifrável e depois
estende-o sobre os ombros. Descalça as meias de náilon, ergue a saia, expõe as coxas
ao sol. Vejo o azul brando das veias — rios — sob a pele. Ponho-me a cantar,
extasiado, em face das cidades fluviais, dispersas nos seus pés, joelhos, coxas, engas-
tadas na carne, feitas carne, como que irradiadas, de dentro, dos ossos, por prismas
entrecruzados.

R 14

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Os olhos crepitantes de ʘ e o couro tauxiado das arcas estremecem com o


vôo rumoroso dos pássaros noturnos, de mãos dadas corremos, sem peso e lentos, no
mar, rangem as tábuas de carvalho sob meus joelhos, inclino-me e abraço-a, suas
mãos nos meus cabelos, estalam caibros e telhas, penetra-me, lancinante e mesclado a
odores marítimos, o seu perfume, alterna-se a música do parque, fragmentada e móvel
como as luzes, com o surdo rumor do mar nas pedras, descanso o rosto nos seus peitos
e não sei se os aqueço, se são eles que me queimam, não sei — ela começa a falar-me.
Fala-me? Isto é falar? Ouço claramente cada sílaba e quase poderia indicar, sem erro,
os intervalos entre uma palavra e outra, mesmo sendo língua nova, sem curso e
arbitrária. Vai no quarto rangendo esse discurso fechado em si mesmo, lançado
entretanto com violência e verdade, esfera impenetrável que contemplo, turbado e a
um passo de saber. Saber? O quê?
— A opressão, se instaurada como norma e ainda mais quando se manifesta
com instrumentos precisos, quase sempre revestidos de uma aura sacral, apossa-se de
um modo absoluto do mundo morai: uma réplica da gravidade no mundo físico.
Infiltra-se nos ossos e invade tudo. Infecciona o mundo. Infecciona o mundo, eu
disse? Sim, isto. Uma doença.
Encho a boca com o bico do seu peito e sugo-o, sendo como se bebesse a vida
de ʘ, suas paixões e acidentes. Surgem, intercaladas no seu discurso, palavras que
conheço e apraz-me supor que pertencem à mesma frase, desarticulada, enlaçada com
outras, numerosas: um corpo desmembrado. Pouco a pouco, o idioma em que me fala
e com o qual, talvez, caçando o não-caçável, amplie e encante o mundo, retorna ao
limbo onde é fabricado. Inversamente, as palavras de uso claro vão ocupando o
campo do discurso, desfaz-se a possessão ou demônio verbal e ʘ revela-me, não com
mi-núcias e clareza, mas de um modo críptico e simbólico, como se lesse, ubíqua, nas
mãos que visse entre as suas, o próprio destino, revela-me o que da sua vida acredita
saber e o que sabe.
Ama-se o que em quem se ama? O que, em quem amamos, faz com que o amor se
manifeste? O ser (visível) ou sua história, que ouvimos? ʘ e eu ante o eclipse: leio
no mundo e sou instruído, sem palavras, sobre os olhos que me espreitam de dentro
dos seus olhos.
— O pior de tudo, Abel, é quando a gente aceita a carcaça podre e decide
viver com ela na carne.
Ante o cais, em Ubatuba: eu e ela em silêncio. Aqui, apagada a lâmpada do quarto e
às vezes — eu, ela — fixando o piso ou as paredes apenas visíveis, no curso desta
noite irreal e que a curta noite diurna do eclipse prefigura, calam-se ou tornam-se
ininteligíveis as vozes dos eventos e das coisas — e sua língua move-se convulsa
entre os dentes. "Traí e ofendi." Pretende o quê, falando-me? Presidente da República
baixa mais dezenove decretos-leis.
Embora a formação do Iólipo seja pouco explicada, os pais sempre acham que
o responsável é o outro, ainda que jamais externem esta convicção. Os olhares afáveis
trocados entre marido e mulher fazem supor que cada um procura consolar o outro do
infortúnio. Mas o que existe mesmo no fundo desse olhar é ódio, um ódio não
expresso e que assume aspectos inocentes: decifrar palavras cruzadas, negligenciar a
própria higiene ou mesmo vencer a todo custo na vida.

Empenho-me na conquista de uma afinação poética e legível entre a


expressão e faces do real que permanecem como que selvagens, abrigadas, pela sua
índole secreta, da linguagem e assim do conhecimento. Existem, mas veladas, à
espera da nomeação, este segundo nascimento, revelador e definitivo. Consigo, por
vezes, rápidas passagens, alcançar o cerne do sensível. O combate quase corporal que
sustento com a palavra liga-se a essas perfurações. Um esforço no qual venho
amestrando aptidões mais ou menos embotadas; e para o qual, inclusive, convergem
as pausas de sombra, os intervalos em que, sem realmente ver e sim apenas revendo,
caço o oculto. O claro e evidente deixa-me frio.
O parque em silêncio, sobe e declina o crescente, altera-se à força das ondas e
o vento muda de rumo. As gargantas dos galos. O que em ʘ me exalta é o que vejo?
Isto e o que pressinto, sem nome. Seu longo e atribulado discurso multiplica-a e
povoa, com múltiplas imagens suas, espaços antes desérticos. "Nunca falei assim,
quero que saiba. A ninguém." Conheceis uma mulher e ela vos favorece com breves
excursões litorâneas. Estende-vos, quando menos esperáveis, um álbum de
fotografias. Ei-la, então, em várias idades, debruçada em janelas desaparecidas,
sentada em cadeiras hoje atiradas em sótãos, vestindo rendas comidas pelas traças,
sob árvores eternas e que continuam a dar os mesmos frutos, eis a galeria de parentes
e suas máscaras de mortos se morreram, a Noiva e o Noivo, pessoas, lugares, objetos
dispersos e vozes borradas. Essa existência, antes imediata e plana, projeta-se agora
sobre um mundo em relevo, que a amplia. No espaço da noite, não sei se rápida ou
extensa a noite, surgem e sucedem-se, entre a cômoda, as arcas e as paredes escuras,
pela voz de ʘ, imagens suas ou das quais é o centro.
Seletivos e lisonjeiros, conquanto nostálgicos, os velhos álbuns familiares. ʘ,
o quimono entreaberto e as largas mangas ondulando com os movimentos vivazes dos
seus braços, os crisântemos vagas flores pardacentas, cintilações veladas das pupilas e
das gemas nos anéis, a respiração de fogo, sem ritmo e cheirando a noz-moscada, a
resina, a pinho seco, quantos passos e abraços exaltados?, o ranger das tábuas e da
cama, o tênue e efêmero lampejo dos cabelos na obscuridade, uma força intensa e
como que tangível, ímã, fluindo dos seus corpos, a voz melodiosa e convulsa (na sua
boca: seixos), recusa a polidez dos álbuns e não sabe o que seja nostalgia, mesmo
quando perpassa, evocado, o jovem morto a quem ama.
— A raça dos iólipos, além de.pouco difundida, é estéril. Significam, com
isso, uma espécie de ponto terminal da raça ou um anúncio do fim? Quem sabe? A
esterilidade, claro, só irá revelar-se no Iólipo adulto. Além da placenta espinhosa,
quase nenhum sinal exterior o distingue dos outros meninos. Passada a lembrança do
parto, os pais acabam afeiçoando-se a ele e não temem pela sua sorte. Por que iriam
temer?
A verdade tem sempre um fundo falso onde se esconde uma palavra ou evento
essencial. Aí reside a nossa integridade, o nó dos laços, o encontro das forças, o
centro do secreto, o verdadeiro Nome nosso. Aí não chegarei e nem ela admite.
Repete-se e povoa-se, abre, até onde pode e suporta, o seu arcano, leva-me, vai, intro-
duz-me, sem ostentação e sem pudor, num mundo jubiloso, con-vulsionado,
fragmentário, duro, sujeito à decifração e não esconde os seus lixos. Por que o faz?
Ama com tanto fervor a verdade? Recusa-se a ceder-me um corpo sem história — o
que seria ceder um objeto sem ilações e neutro? Crê nos exorcismos a ponto de supor
que os incidentes lastimáveis nos quais se lança por decisão e cálculo deixam de
existir à medida que os esconde? Os fios, enlaçando-se, formam a renda.
Emaranhados, nada expressam e tendem a partir-se.
Falando, ʘ admite-me à sua intimidade, antecipando a entrega na carne e que,
ampliada por esta admissão de agora, não rogada, não prevista e decerto mais difícil,
assume um peso de confirmação,
— A gestação do Iólipo é exatamente igual à das outras crianças. Os mesmos sinais e
o mesmo tempo. Os pais aguardam-no sem susto. Inocente e sorrateiro, o monstro.

A 20

ROOS E AS CIDADES

Minha cabeça nos rios azuis de Roos. Sorvo a tepidez das suas coxas, vejo o
sol no alto e o seu belo rosto entre ramagens, fito-a, sinto-a, ouço-a, e com fruir estes
favores me movo desdobrado em rios numerosos — quais?, o Reno?, o Ródano?, o
Arno?, o Meno?, o Elba?, o Ebro?, o Tejo, o Tigre?, o Guadalquivir? Pousam junto a
nós e esvoaçam, aos pares, pássaros cujo nome, estrangeiro, me escapa. Roos olha-os
de relance: a impenetrável e tensa expressão surpreendida em Amboise. Aparenta-se
aos seres do ar? Afaga-me a testa. Percebo em sua mão um frêmito de asas e o pulsar,
o pulsar, de um coração de pássaro.
Comerciários, estudantes, pajens, tomam refrigerantes nas pequenas mesas de
metal ou dançam. Balões de ar presos por um fio nos cabelos e na alça dos vestidos de
várias dançarinas. Suspensas por esses globos de cor, as leves sombras adejam,
alongadas, no solo e entre as sombras das árvores — e eu, a meu lado um cordeiro
parido pelo vento, vejo-me em Roos, habito sua carne intemporal. Nos arredores desta
nova cidade que descubro, uma das tantas encontráveis em Roos e, como as demais,
deserta, ressoam as músicas que ela e eu dançamos abraçados. Abrasados, diria? Sur-
gem, ao sol, quarteirões de aspecto neutro, salpicados de pavilhões de caça. Tendo o
alvo cordeiro no meu rastro, cruzo um fosso inundável, mas inundado tão-só de
margaridas, e, em seguida, as muralhas, com torreões e ameias sem qualquer
ocupante, dispostos de maneira regular. (O grifo e as flores do fular em torno do
pescoço de Roos rugem e giram.) O caminho, largo, de pedras ovais, leva diretamente
à Porta, em cedro e ferro; nas duas faces, baixos-relevos de bronze, representando
cenas de batalha. É a entrada cerimonial da cidade, que agora descortino. Domina-a,
de um lado, o Palácio, onde a relativa nudez das partes baixas contrasta as enfestas
eriçadas de lucarnas, mirantes, agulhas, colunelas, chaminés e domos; de outro, a
igreja, coberta por hemisférios nitentes, pousados sobre colunas de pórfiro e
serpentina verde. Em torno da igreja, edifícios luxuosos, com o batistério, onde
brilham mosaicos de inspiração bizantina. Não é a imponência das construções o que
mais deslumbra na cidade — ao contrário de outras, não me diz seu nome — e sim a
harmonia. O desenho do hipódromo, as cumeeiras visíveis no horizonte, as casas que
subindo os cômoros chegam até as muralhas, bem como os pomares e espaços verdes
entre os edifícios, tudo parece obedecer a um espírito clarividente e capaz de varia-
ções felizes. (Saímos do baile. A música, a dança, o calor, a luz da tarde, a presença
ingênua e despreocupada do povo entre as árvores e à beira do lago. Acompanha-nos
o anho.) Em muitas casas há um pátio com fonte e diversas abrigam terraços floridos.
Esculturas de heróis dão um ar solene às praças.
Recobrem as paredes da igreja, na parte inferior, placas de mármore de várias
cores; sobre elas, mosaicos em azul e cinza. (Não temos copo e bebemos nosso vinho
na garrafa. "Conhece Dafnis e Cloé?" O cordeiro deitou-se a nosso lado, tilintam seus
guizos.) Outras grandes figuras do mosaico, representando golfinhos, tritões, pavões e
pombos brilham na abside e no forro. Dois tronos, um marchetado de ametistas, outro
de topázios, ladeiam o altar, esculpido em madeira e recoberto de ouro.
Não longe daí, a caminho do Palácio, o edifício do Senado, baixo e de aspecto
digno, tendo à frente duas colunas salomônicas, rematadas por uma estátua eqüestre.
No vestíbulo, um touro de pedra em luta com sete leopardos de pedra. Mobiliário
severo mas delicadamente lavrado, quase sempre com incrustações de nácar. (Canta
uma cigarra? Imagino-a? Se canta, por que não voa, como no romance grego, dos
ramos onde uma ave pode descobri-la e vem esconder-se entre os seios de Roos? Por
que não se põe a cantar nesses verões? Eu a apanharia sob a blusa negra.) No solo,
mármores dispostos em desenhos geométricos e alfombras tecidas com capricho. As
janelas, sem vidros, protegem-nas cortinas de brocado ou delgadas placas de
alabastro.
Forte muralha rodeia o Palácio, o Recinto do Rei, uma cidade dentro da
cidade, com pavilhões e salas, vivendas, banhos, biblioteca e igreja, quartel e oficinas,
um cárcere, uma tecelagem, entre hortas, jardins, pequenos lagos e terraços dispostos
com ciência: neles se pode receber o sol e contemplar o exterior. Além disto, largas
arcadas permitem-me continuar protegido do sol ao passar de uma sala para outra. No
silêncio, as delicadas unhasdo cordeiro soam como pisadas de potro.( Entramos num
parque de diversões.Roos, despenteada, as fontes porejadas de suor, as mangas da
blusa dobradas à altura dos cotolvelos, leves manchas rosadas no rosto e até os
braços.) Na sala central do Palácio vejo o trono, vazio, rodeado de leões dourados e
árvores de prata, com pássaros de pedras preciosas cantando eternamente nos seus
ramos. O cordeiro estremece e afasta-se balindo: numa dessas árvores, há uma
serpente verdadeira.
Seguimos de maõs dadas, Roos cantando em voz baixa e uma romança
do Reno, a fita e as abas do chapéu aflando, as passadas largas. Normalmente, seu
andar é outro, comedido. Giramos na montanha-russa, e , tal um dia, em Chambord,
em meio ao ruído de inúmeros motores de dois tempos, brado o seu nome, brado o seu
nome em círculo e o som das vogais ondula com a ondulação das cadeiras sobre os
trilhos. Subimos na roda-gigante, vemos os telhados, os horizontes, o mundo, com
ambas as mãos ela ergue o fluar, o grifo fantástico e as flores voam sobre nossas
cabeças, encho os pulmões de ar pronuncio Roos, lentamente Roos, o nome forma
agora um círculo na vertical, a roda se engalana com as flâmulas, os nastros e as
guirlandas do R, do O, do S e de súbito, no alto, o chapéu de Roos desprende-se,
regira entre os raios da roda gigante, é ergida pelo vento e levado para longe com
alonga fita verde.
Agora estamos numa brasserie silenciosa, entre o quae aux Fleurs e a rue du
Cloître Notre-( somos, nesta hora,os únicos clientes e o graçom usa sapatos com sola
de borracha). O piso, revestido de pastilhas claras, cheira a cera do assoalho fresca. A
mão esquerda de Roos repousou sobre a toalha vermelha. Tomo-a entre as minhas.
Esvaiu-se o odor de violetas — e a outra Roos, a de vincennes, parece haver fugido,
perdida em quem sabe que invisível naufrágio, com os rumores, e luz, e a ebriez da
tarde, também findos. Como trazê-la de volta?
— Roos... Nunca vimos o quarto nem o país do outro. Conhecemo-nos como
soltos no mundo. Não sei que perfume têm seus vestidos no armário: de que nos
arruma geus esmaltes, suas loções, seus cremes, que cor tem seu roupão de banho e
em que posição ficam as sandálias, quando as descalça na hora de dormir. Muito
menos sei como é o seu pai e em que trabalha. Se o sol, em Eltville, entra na janela do
seu quarto pela manhã ou à tarde; se há, na vizinhança, algum pássaro ou cão que
você ouça; se detesta o cão, se ama o pássaro.
O garçom se aproxima, silente, com a travessa de almôndegas e vinho. Ela
descreve, no seu francês literário, o quarto que ocupa na Aliança, enumera seus discos
e seus livros, fala da paisagem renana e das roupas que usava aos quinze anos.
Através da porta envidraçada, vejo de relance a cúpula'do Panthéon, sob a luz vio-
lácea do entardecer, o jardim atrás de Notre-Dame e uma grande árvore do outro lado
da rua, junto ao Sena. Vasilhas de cobre polido, nas paredes, refletem esse clarão e os
mesmos reflexos arroxeados parecem estriar a voz de Roos:
— Você dizia nada saber do meu quarto. Também não sabe que homem e meu marido
e de que se ocupava. É uma espécie de arqueólogo. Seu campo de ação, os naufrágios
antigos. Quando adoeceu, estava justamente explorando um navio afundado nas
costas da Sicília. Sabe há quantos anos? Mil e trezentos. É incrível o que se pode
estudar em um barco sepultado há mil, há dois mil anos. A arte da construção naval,
as rotas marítimas, o tipo de comércio existente entre um país e outro. Aquele navio
transportava uma carga de capitéis e frisos em mármore do Proconeso. Ia a caminho
de alguma cidade em construção, possivelmente no Norte da África. Vinha de
Constantinopla. O cofre do capitão estava intacto. Nada saberíamos dele e do seu
navio se não fosse aquela tempestade. Era um sírio e tinha duas filhas.
Vai-se a nossa tarde venturosa. Qual a sua duração real? A nau sob o mar, nas
costas da Sicília. As jovens filhas do capitão sírio.
— Roos, estas últimas horas!... Acha que podemos ser felizes ante coisas cujo fim
sabemos próximo?
Seu rosto pensativo, voltado para fora, para o céu que escurece. As cidades nela
transubstanciadas vão e vêm como ondas, todas parecendo noturnas e outonais.
— Sim, talvez. Quem sabe?...
Eu e ela abraçados, pelo quai aux Fleurs. Vamos depressa e isto reacende a sua
exaltação. "Tinha esquecido a viagem. Que pena você ir! Quantos minutos faltam
para o trem?" Barcos já iluminados perlongam o Sena, com excursionistas. Alguns
respondem aos nossos acenos. Grito do cais, junto a não sei que ponte, para o barco
que passa e para a estátua eqüestre, do outro lado do rio, frente ao Hôtel de Ville:
"J'aime cette femme, it is my love, her name is Rose, Rosei'. Faço com os braços
desabrochar uma rosa, grande como a noite que nasce. Toma-me pela mão e incita-
me, rindo, a andar mais depressa. Meio extraviados entre as barracas de flores, não
descobrimos logo as luzes amarelas do metropolitano.
Deixo-a na frente do Dupontparnasse à espera de um táxi, corro para o hotel,
subo de três em três degraus a escada, desço aos saltos, bêbado de vinho e de alegria.
Espera-me no carro. Sem fôlego, sento-me a seu lado, mando tocar para a estação do
Norte. Não retira as mãos das minhas: pressiona-as. Jatos de luz, vindos das vitrinas,
das lâmpadas da rua e de outros automóveis projetam-se pelas janelas do táxi,
cruzam-se sobre o seu rosto, sobre as cem cidades do seu rosto. E se o trem houver
partido? Voltaremos, ela subirá comigo, verá meu quarto do Hotel Ste. Marie, ajudará
a repor nos seus lugares roupa e objetos, animará a cortina, as poltronas, as paredes, o
piso e o teto com a sua presença, e quem sabe o que acontecerá? Não devo ir. Este é o
dia, o momento que tanto ambiciono.
Corremos através dos passageiros, o grifo do fular comendo as flores: ruge, ladra,
brame e canta feito pássaro. Os avisos que antecedem a partida já ecoam por entre
esses ruídos.
— Adeus. Mande um cartão-postal.
— Roos... Fui feliz esta tarde! Sinto-me como se estivesse den-tro de um tambor. Um
tambor ressoante. Como se me cercasse um ritmo. Um rufar. O tambor.
Segura-me os dois braços e, pela primeira vez, pela primeira vez, beija-me no
rosto. Oferece o rosto para que eu retribua. Beijo-a na boca. Parte o trem. Corro. Parte
o trem. Ela acena com o bicho cercado de borboletas.

T 13

CECILIA ENTRE OS LEÕES

Praça do Entroncamento: bancos de pedra sob as mangueiras e através da


folhagem o luar no rosto de Cecília. Tudo altera esse rosto, sensível como água
dormente e onde a cada instante descubro aspectos novos. Engano-me se creio que
todas as coisas móveis e imóveis nele se refletem, transtornadas?
Narro o incidente da véspera, de que ela participa sem saber. Atravesso a
ponte da Boa Vista. À minha frente, entre os passantes, segue uma mulher. Tem o seu
mesmo porte, a mesma altura, cabelos curtos como os seus e o mesmo andar de
lavandeira. Logo, um indício qualquer que não chego a definir — os pés talvez
pousem no chão com um pouco mais de peso — me convence do contrário. Isto não
impede que a sua imagem envolva o corpo da desconhecida visto apenas de costas e
dele tome posse, substituindo-o.
— Sei que não é você. Esta certeza serve-me entretanto para conjurar apenas
uma parte da visão imposta aos meus sentidos: a outra, a anterior (a face e o peito que
não vejo), continua a existir como se pertencesse a você.
Enquanto a mulher não se volta para o rio, quebrando o rosto presente em meu
espírito com a realidade e a violência do seu próprio rosto, sigo à distância um ser
híbrido:
— Metade você e metade uma estranha.O duplo e ainda não decifrado ser de Cecília
estremece em meus braços como se percutido nas profundezas da sua substância. A
impressão é tão nítida que eu a estreito com mais força, buscando evitar que se
desgarre de si mesma.
— Seria isto, Cecília, o que me faltava? Um amor amplo como o que eu tenho por
você e que em tudo imprime a sua marca?
Seus olhos ficam um pouco mais oblíquos, mais baços — como se não me
vissem — e ao mesmo tempo cintilam com maior intensidade. Creio ver, dentro dos
olhos de fêmea, outros dois olhos. Viris? O que eu procuro não é ela e nela não está.
(A voz rouca e o travo de melancolia.) Ela, Cecília, pode quando muito ser uma parte
do percurso que me conduzirá ao termo da procura. Do mesmo modo que, tendo-se
vinte anos, precisa-se viver ainda alguns para chegar afinal aos vinte e cinco. Também
pode ser que o termo da minha busca seja tão-só o início de uma busca mais precisa e
ampla. Um véu brilhante, de trevas, perpassa novamente nos seus olhos. Há, neles,
qualquer coisa, sim. Não de viril, talvez. Ela me fixa como o domador o cerne dos
leões, antes de abrir a porta de grades.
A Gorda e eu, ante a mesa cheia dos papéis deixados pelo morto. Apólices,
anotações sobre a sua existência de empregado, registros históricos, recibos, certidões
de nascimento, bilhetes de loteria, exemplares de papel-moeda fora de circulação,
pedaços de jornal com notícias da Segunda Guerra Mundial, recortes do Diário
Oficial. Separo e classifico esses resíduos. Ela põe a meu lado uma
gaveta:
— Vá jogando aí o que não serve.
Fica bem nesse vestido negro, de cetim. O gataco, sentado sobre a mesa,
observa impassível a seleção dos papéis.
— Eu me desfaço do chalé, Abel? Gosto dele. Mas para que ficar, sozinha,
neste casarão? Tantos quartos!
— O Tesoureiro deixou um seguro razoável. Com isto e a pensão, a senhora
não vai passar necessidades. Enfim, pode aposentar-se.
— Respeite sua mãe. (Passa a mão, roliça, nos cabelos tingidos
e frisados.) Que homem, agora, havia de me dar bola? Sou jornal de
ontem. Um traste.
Parado, o vento. Desabotoo o colarinho e abro mais o laço da
gravata.
—Acho que vou tomar um banho de mar.
—Sair da missa de sétimo dia para divertir-se na praia! (O gataco lambe a
mão. Alternadamente, olha para mim e para a Gorda.) Não vai pôr luto, Abel? Uma
gravata preta, ao menos. Um fumo.
—Ando muito alegre para ostentações fúnebres.
—Eu sei? eu sei. Você não tem conserto. Foi visto de mãos
dadas com uma dona, esperando o ônibus. Não quer saber quem me contou? Sua
mulher. Ela estava na missa.
—Deu-me os pêsames. Eu pensava que eram pelo Tesoureiro.
—Abel Abel! (Salta o gataco para o seu regaço e ela começa a
rir). Quem é a vítima? A que veio com as velhas, aposto o rabo.
— Por que a senhora disse vítima?
— Pôs as cartas na mesa? Seu casamento e tudo?
— Ela sabe. Diz que isso conta, mas nao muito. Primeiro, claro, sugeriu que
fôssemos amigos. Respondi que amor espiritual é depravação. Não é mesmo?
— Trabalho de sapa, hein? Ora, veja. Quero ver é você entoar essa cantiga
para a família dela. Já souberam?
— Um dos irmãos já me telefonou.
— Irmãos? Não tem pais?
— Não. Mora com uns parentes, na Rosa e Silva. Um dos irmãos trabalha na
polícia e o outro é escrevente num cartório. Se quer saber: não são ricos. Por que a
senhora usou o termo vítima?
Uma semana e ainda parece haver na casa um cheiro enjoativo de flores
murchas e de velas acesas.
— Quando eia entrou, só via mesmo você. Comia sua cara com os olhos. Nem
parecia haver na sala um morto e outras pessoas. Olhos de fêmea e bonitos. Depois
notou que eu era sua mãe e cravou a vista em mim por dentro das pestanas. Tenho
experiência de umas tantas coisas. Sendo você, não me enredava muito com essa
criatura. Senti na carne, quando ela se voltou para mim: o olhar soava grosso, com
energia. Feito uma voz. Olhar de macho, Abel.
O gato, cauda levantada, o dorso arrepiado e em arco, espreita-me, as íris
roxas em brasa. Um animal com medo.
— A senhora viu claro.- tem bom olho. Mas podia ver tudo? Eu vejo mais. Em
Cecília, conciliam-se contrários. Solidão e multidão. Delicadeza e força. Doar e
receber. Direito e avesso. Enfim: íntegra. Considero-me, ante ela, um ser desfalcado.
(O gato, menos tenso, continua a observar-me, vagamente ofuscado, com os seus
olhos de macaco noturno). Não acha os híbridos atraentes?
Examino, no ônibus, a reprodução de um baixo-relevo existente no Museu do
Louvre, representando o homem como um frágil barco que voga sobre o mar do
mundo. O esqueleto alado, na popa, simboliza a matéria; o velho no centro, o espírito
imortal; a mulher à proa, sustendo nos braços erguidos uma vela enfunada, é a força
vital: guardiã das paixões cegas e dos impulsos irrefletidos, faz avançar o barco e os
demais ocupantes. Presentes, em mim, a imagem e o encanto de Cecília. Assim: texto
que se sabe de cor, que se é capaz de abranger com a mente — um todo — e de
repetir, palavra por palavra. Enquanto, porém, 0 iho as figuras (a janela do ônibus
aberta e o vento seco do meio-dia batendo no meu rosto), Cecília, texto familiar, é
uma aquisição adormecida — presente e discreta, calada. O ônibus, na avenida Norte,
ganha velocidade. Alterado o acordo existente entre toam e tudo que forma este
momento (o ritmo da viagem, a constância do vento e da rotação do motor), levanto a
cabeça. O vento, com força crescente, sopra sobre mim vindo dos manguezais e, infla-
me, eu cresço. Não só o vento: sou invadido pelo vento pela rapidez. Infla-se o meu
peito contra o vento como a vela do relevo, enfuna-o a rapidez — e de repente,
colhida no ar, na velocidade, ocupa-o sem nele caber, feita de vento e de aceleração, a
imagem de Cecília, Esta presença e o nome, o seu, que se forma na garanta, um laço,
coincidem. Não o pronuncio e o laço me sufoca. Súbito, desata-se, desata-se o nome,
um corte na garganta, o nome se pronuncia, banha-me o peito, rubro, um leque.
Brilhante e rubro. Uma pulsação — e apaga-se, o leque. O ônibus retorna à marcha
anterior. A presença de Cecília, egressa do fundo onde as coisas dormem, não é mais
um texto sabido e não lembrado: acompanha-me, nítida.
Derby-Tacaruna, o canal, lentamente escavado, restitui uma pane do Recife à
situação de ilha. línguas de terra aos lados do canal, baldias, onde não transitam
veículos e que se alargam por dezenas de metros, dá-se a arbitrária designação de
Avenida. Mas as residências acaso levantadas nas proximidades recusam esta pre-
sença incômoda e as janelas das fachadas evitam-me. Entre as casas e os muros do
canal, baixos e largos, que as pessoas cruzam (mas quase sempre em grupos, receosas
desse ermo pouco iluminado), cresce uma vegetação sem brilho, de pouca altura e
áspera. Algumas árvores bravas. As águas do canal variam apenas de volume, à mercê
das marés, altas ou não, são sempre lodosas, escuras, tresandam a ossadas podres e
dormem sobre uma camada de lama que a vazante revela. Nessas horas, o odor de
podridão recresce; tocado pelo vento, alcança as moradias, longe.
Aguardo a vinda de Cecília. Os irmãos ameaçam agredir-me e ela sugere
encontrá-la neste lugar deserto. As águas cheiram mal? São, mesmo assim, outras
águas. Refletindo a Lua, embaçam-na — e da Lua, nelas refletida, recebem um sinete.
A vegetação, sob o luar, agride menos. As vozes dos batráquios e dos tantos insetos,
invisíveis, tecem na sombra, entecem, fios de voz enlaçam fios de voz. Um cavalo
ruço, sem arreios, as clinas caídas e puxando uma corda, procura descobrir o que
comer entre os arbustos de folha acre. Sopra a intervalos entre os beiços. As batidas
dos cascos no chão mole soam como breves fórmulas enigmáticas trocadas entre a
terra quieta e o seu sentimento de estar vivo, ele, um animal de carga, velho e de
juntas emperradas, agora em repouso, vasculhando ocultos verdes. Deslizam para
longe as cobras, escondem-se, enrolam-se nas plantas mais distantes, cúmplices.
Cecília, eu e Cecília, sentados no chão, não longe do cavalo, entre os arbustos
retorcidos e de caule espinhento, a cabeça de um recostada no joelho soerguido do
outro. Vemos, mas elas não nos vêem, as pessoas que perlongam o canal utilizando a
muralha de cimento. Ela contesta a razão de ser de expressões minhas e faz-me ver
quanta coragem há em atingir-se certa espécie de resignação. Devo aceitar o meu
estado de banido do Éden. Não inauguramos, eu e ela, um mundo. Mundo algum.
Nenhum. Não estamos separados ou isentos do mal. O mal, quinhão e herança, faz
parte de nós. Ao contrário, porém, dos afortunados solitários do Éden, estamos longe
de ser protagonistas de alguma fábula de queda e expulsão: nascemos expulsos e
caídos. Temos, com isto, a alternativa de aceitar a condição de degradados e realizar,
em ações densas de generosidade e de cólera, a nostalgia do Jardim. Por outro lado, as
onças hoje só lambem a própria pele. Mas o turbulento globo que habitamos é
povoado de homens.
Deitados sobre as folhas, lado a lado, somos conduzidos através das estrelas
pela Terra. Estamos de mãos dadas, em silêncio e a presença de Cecília amplia-se,
levanta-se, vem sobre mim, uma vaga, envolvendo-me, vaga vagarosa, como se
contemplada de uma elevação. O cavalo, mais perto, agita a cauda e as clinas
desbotadas. Seus cascos entre as plantas, cautos. Cecília volta-se e descansa a cabeça
no meu ombro. O hálito aquecendo a minha pele, diz que me ama, dez, doze vezes,
em voz baixa, como se as pessoas ao longe pudessem ouvi-la ou como se as palavras
que repete, enunciadas com força, perdessem o seu caráter íntimo e secreto. Habi-
tantes de Cecília, liberados, passam à distância ou atravessam-me. Um, dentre eles,
vem e vem, desquieto, em alpercatas, a aba do panamá caída sobre a testa,
escondendo o fulgor ardente e vítreo dos olhos. Sua passagem é igual a um vento
forte: todos se curvam um pouco e inclinam a cabeça. As cobras se aproximam. O
cavalo parece feito de luar.
Quente e abafado o ar, apesar do aguaceiro repentino. Abro uma das janelas.
As águas já devem estar levando mocambos, nos alagados de Campo Grande, no
aterro de lixo do Coque. Despeito quando a chuva recrudesce — e então rompem os
limites do sono, flutuando no quarto, números flâmulas mesas cadeiras pranchas, tudo
carrega-do de um sentido arbitrário. Exprimem prioridade e envolvem-me, a mim, um
nadador meio acordado. Virá essa idéia de prioridade da presença de Cecília? Ela
embebe tudo, mesmo a destruição?
Vibra o claustro de Santo Antônio sob as explosões vindas de fora, da rua do
Imperador. Manhã de Todos os Santos. Estou no centro do pátio, sobre as lajes roídas
pelas alpercatas dos franciscanos e os sapatos dos visitantes. Observo, pela décima
vez, os azulejos da Holanda que revestem, ao ar livre, o guarda-corpo da galeria alta
do claustro. Mil? A cinta, caprichosamente estendida acima das arcadas e colunas,
forra os espelhos dos quatro parapeitos que demarcam o pátio. Homens trabalhando,
azuis, crianças entretidas nos seus jogos, nadam monstros marinhos, navios, o galope
azul dos cavaleiros e em vasos azuis descerram-se flores de anil. Um pássaro, dando a
impressão de extraviado, pousa junto a mim. Terá fugido da Arca do Dilúvio,
representada no painel de azulejos portugueses que ornamenta a parede do térreo, à
direita da entrada? Desorientado, manchas de ferrugem e duas listas brancas nas
coberteiras das asas, anelante. Que pássaro é? Quando me surge íntegra a imagem de
Cecília, coisa rara, permaneço imóvel, mesmo sabendo ser impossível reter, sem que
logo se deforme, tal visão. Ajo assim ante este pássaro não familiar. Que a visita seja
longa! Sem me mover. Mas o pássaro, como um cão que mostra a caça, o pássaro,
fugitivo da Arca e do Dilúvio, parecendo voltar à parede de onde vem, desvia-se, voa
em direção aos painéis que mostram a Criação do Mundo e a Morte de Adão, gira
ante eles, atravessa em diagonal o pátio ensolarado e roça, na parede oposta, os
azulejos da torre de Babel. Sua vinda e vôos dão-me a impressão de uma frase escrita
que eu — contemporâneo da Torre e da Confusão das Línguas — sou incapaz de
entender. Ele parte, veloz, para a grande manhã cheia de explosões. Onde terei visto
um pássaro igual?

O 21

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Em frente ao Cine Metro, à tarde, último domingo de agosto, eu esperando em


vão Inácio Gabriel. Respostas evasivas no cartório aos meus telefonemas. Inácio
Gabriel sobre o lençol (o desespero de saber que ele agoniza e morre a poucos passos
de mim, na Santa Casa), Inácio, as mãos cruzadas sobre o peito franzino, vestido
como se fosse ter comigo, porém com os pés descalços. Há uma vela acesa à
cabeceira da cama e um homem chora em silêncio, de costas para mim. Pela janela
aberta vejo algumas árvores, altos edifícios, uma construção em andamento, o céu
deste começo de setembro. Voa um pardal. Fizemos tudo, Inácio, tudo que podíamos?
Dissemos tudo?
Livros ilustrados existentes na biblioteca do avô, entre coleções encadernadas
de jurisprudência e leis: Costumes dos insetos, The sea around us, Lavie des
araignées. Inês, quando lhe falo dos costumes e variedades dos escaravelhos: nada
devo temer, meu quarto é protegido contra insetos. Responder-lhe? Volto em silêncio
aos livros ilustrados.
Diga-me, Inácio, por que assumem sempre a forma de retân-gulo as passagens
através das quais exercitamos nossas investigações do mundo? Retangular o formato
das janelas, das portas, dos quadros, e até no rolo de papiro já a escrita se organiza em
página: em retângulo.
Ele, do seu retângulo escuro:
— Em muitos quadros (expressões, com o seu formato retangular, de
tentativas de acesso ao mundo) desenha-se outra janela, outro retângulo.
Eu, dentre os vivos:
— Neles, o contemplador vê duas vezes, ou melhor, vê três vezes: o que está
no retângulo do quadro, o que se descortina além da janela aí representada e ainda,
através de tudo isto, a infinitude das coisas.
Inácio Gabriel sorri e abre uma janela que não há.
Fizemos tudo, Inácio? Dissemos tudo? Não. Mas o pássaro, este, o inquieto
pássaro que em mim fazes surgir e cujo nome, sei, é Avalovara, não emudece, nem
parte, nem morre com a tua morte. Mesmo quando desabafo com Inês, mesmo quando
faço e ela me diz que não se morre, que não se morre, fica-se encantado, mesmo aí,
quando grito, cuspo na cara de Inês que a morte é a morte, que tu estás morto e que
nenhum encantamento poderá fazer com que nos encontremos outra vez em qualquer
outra tarde de domingo, mesmo quando grito estas palavras — não estas, outras,
semelhantes a estas, talvez mais brutais, decerto mais comovidas —, com tanta
violência que a minha avó acorre e pergunta o que há e ordena-me silêncio, mesmo
nesse instante sei que o Avalovara me guarda e transmite, um pouco da tua condição:
das suas plumas vistosas, do seu canto secreto.
A música de Orff, cortada pelo rumor dos nossos beijos, dos meus suspiros fundos.
Carta de Catulo à puta Ipsitila: Permanece em casa, Ipsitila, sem falar, espera-me, usa
tuas artes e atavios, para que nove vezes o sacrifício amoroso seja por nós
consumado! O comprimento da sala tem talvez o duplo da largura; das duas janelas
laterais, só uma está aberta: desse lado fica a mesa; onde estamos, estendidos sobre o
tapete, próximos à outra janela, ninguém pode ver-nos. Com a mão esquerda Abel
compraz-se em sondar a resistência do meu peito direito e do peito mais novo que
cresce dentro do outro. Tenho a perna direita flexionada, a coxa repousando no seu
flanco. Com isto, o pênis, que pressiono com a mão direita lançada para trás, sobre as
minhas próprias nádegas, adere à minha vulva. Não recebemos a luz diretamente. Há,
em toda a peça, uma claridade umbrosa e azulada. No ponto em que nos buscamos,
essa claridade, embebida nos reflexos dos móveis, dos vidros, das paredes, unta as
nossas peles numa espécie de verniz intangível e vagamente dourado.partir. Estou
sem garras, corroído pela sedução de Inês o esporão que trago na cabeça ou em outro
ponto do corpo. Debato-me ainda, mas me debato em vão com o receio —eis a
verdade— de que as portas se abram (para onde,afinal?), debato-me para ainda mais
convercer-me de que sair é impossível. A avó sabe disto; e manda Inês embora.
— Que eu fiz?
— Não preciso mais dos seus sreviços.
— Posso ficar mais uns dias? Enquanto procuro outro emprego.
— Não. Vá arrumar suas coisas. Você certamente tem economias. Pode ficar
em pensão.
À porta do seu quarto, no térreo, aos fundos, vejo-a fazer a mala. Apetrechos
de costura, perfumes baratos, sua fotografia ao lado dos patrões e da criança que
pondo na valise. Tem-se a impressão de que a fazenda é feita de teias de aranhas.
Discretamente, guarda um vidro escuro, envolvido em folhas de plástico cujo rótulo
percebo: Inês começa a disfaçar em segredo os primeiros fios brancos. O quarto tem
um odor peculiar, misto de inseticida e pó-de-arroz. Durante quantos dias
permanecerá no ar essa mescla discordante? (A ala envridaçada do primeiro andar. As
duas cadeiras de vime e os dois viveiros de pássaros, sempre bem limpos— sem
pássaros. Inês dirigindo-se com voz de falsete aos pássaros que não existem, dando-
lhes água e alpise. Como se tudo isto não bastasse, vez por outra faz morrer um dos
pássaros, e enterra-o no jardim com uma colher de pedreiro, e passa o dia triste.) Põe
de lado os vestidos brancos de trabalho, um deles está sujo.
— Não sei se devia lavá-lo antes de ir embora.
Olho-a com firmeza, pedra, olho-a, instrumento gasto ou que começa a torna-
se obseleto, Inês, essa almolita, sempre vertendo óleo sobre as juntas das coisas, olho-
a — uma empregada sendo despedida, arrumando seus troços. Aponho a tesoura na
mesa-de-cabeceira, apanho-a pela ponta e ofereço-a a Inês. Não digo mil nem til. O
gesto. O silêncio. Olha-me assustada e leva a mão à boca;
os incisivos aparecem entre os seus lábios curtos. Um riso sufocado e a hesitação: '
— Não... Que é que ela vai dizer de mim?
Mas também estende a mão e recebe a tesoura. Corta em dois o vestido que
tenciona lavar. Corta-o em dois, em quatro, em oito, vinte pedaços, pica-o, os
fragmentos caem no chão de cerâmica vermelha, na sua mala, na cama patente, na
mesa-de-cabeceira, na cadeira de vime, ela executa com método a operação,
mostrando a espaços os incisivos (mas agora têm algo das presas de um cão que
ameaça morder), não há mais o que cortar, ela fecha a mão sobre a tesoura, senta-se
na cama, hesita, levanta o braço — são quatro horas da tarde e faz calor —, golpeia o
colchão, três, quatro vezes.
Deixa a tesoura enfiada no lugar ocupado, durante anos, pelo centro do seu
corpo ósseo e solitário. Penteia os cabelos, outra vez com gestos leves, como se
fossem cabelos de boneca ou estivessem mal pregados no casco. Prende-os em
tranças. Não, em trancinhas. Sorrindo, ainda assustada, apanha a mala e sai. Se
quisesse, não teria de quem despedisse: meu avô está no tribunal, minha avó está no
quarto.
Sai pelo jardim, abre o portão, fecha-o, olha hesitante para os lados, toma uma
direção qualquer, a esmo, um pouco curvada ao peso da mala.
Sobre meu braço esquerdo, sua cabeça (leve, não obstante a impressão de peso
e de volume); seu braço direito sob minha axila. A persistente e hábil pressão, em
minha língua, de seus dentes grandes e espaçados. A planta do meu pé esquerdo
brandamente pousada sobre o dorso do seu pé direito. Ingratidão é o prêmio do
mundo — dizem em alguma parte os cantores. Mas eu sou grata, eu sou grata, não na
boca, e sim em toda a minha carne, a tudo que purgo para chegar a este minuto, à
intensidade com que responde meu corpo à aproximação do corpo deste homem, à
força com que meus quadris o arrastam para mim, ao modo como nos povoam o
bosque e a fauna ligeira do tapete, à cega ânsia com que nos abraçamos, à temperatura
desta hora, que me permite ostentar minha nudez e embeber-me na sua como se os
meus olhos fossem bocas e eu morresse de sede, e vê-lo desnudo me dessedentasse e
intensificasse a minha sede. Também sou grata ao surdo e polido fulgor de nossos
corpos. Ele me olha em silêncio, olha-me de perto (o azul estriado de ouro dos seus
olhos) e sua mão esquerda, descendo pelo ventre, toca-me a parte interna das coxas.
Eu abro as narinas, eu abro os olhos, eu abro a boca, eu abro os braços, eu abro as
mãos, eu abro os poros, eu abro a garganta, eu abro as artérias, eu abro um espaço, eu
abro passagem, eu abro as alas, eu abro as asas, eu abro uma fruta, eu abro uma
lucarna, eu abro as janelas, eu abro um portão, eu abro uma rua, eu abro uma clareira,
eu abro uma vereda, eu abro uma estrada, eu abro uma fenda, uma vala, um sulco,
uma cova, um rego, uma frincha, uma brecha, as pernas, abro as pernas, as coxas, os
pés, os joelhos, abro o sexo e ele invade a minha carne. Lanço um grito de júbilo.
Meu avô na grande cama de casal, inerte, as pernas estendidas. À direita, junto
à cabeceira, o abajur aceso, com um pano de croché lançado sobre a cúpula para
atenuar ainda mais o clarão ocre da lâmpada, esbate a sua figura. As pessoas em
torno, inclusive o desconhecido cujas unhas caprinas aparecem mal disfarçadas sob as
calças e que acompanha a ânsia do velho em seu leito mortuário como se lesse o nome
e a data inscritos no túmulo de algum parente distante, todos estão meio dissolvidos
nessa luz. Também os móveis — a estante envidraçada, cheia de livros não lidos, o
guarda-roupa com uma das portas meio aberta, a cômoda com engastes de bronze
cinzelado. A face do avô é o centro irresistível desta cena. Cobre-o o lençol dos pés à
altura do esterno e não se sabe a que insensato hábito atendem os seus chinelos, sobre
o pequeno tapete cinza à esquerda do leito: todos os seus passos na vida estão
saldados — e ele, mais do que nós, sabe disto. As mãos no peito, o corpo alongado e
já parcialmente em pó (devoram-no os vermes da agonia), a postura dócil, afim à que
se impõe aos defuntos, pois também nisto nos regem as repetições, representam um
dos modos possíveis de grafar a palavra capitulação. Ele toma a forma cerimonial dos
mortos, a postura exigida para os mortos. Assim está Inácio Gabriel quando o vejo
sem vida. O combate é longo, desigual e nem sequer pode-se dizer à adversária:
"Rendo-me". Ela tem a sua hora, as suas sutilezas. Um rimai. Deus nos cria, Inácio?
Se nos cria, larga-nos, esquece-nos depois, decrepitude e morte são problemas nossos.
Eu os criei; agora, danem-se. Eis, disto, a prova e o testemunho, este animal
consumido. E só, entregue a si mesmo, não obstante os que o cercam e olham com
impaciência ajustar as suas contas sem viso de esperança, opor seu curto fôlego aos
leões da morte. Quarenta ou mais arquejos por minuto. O peixe emerge das
profundezas, salta sobre a linha do mar e volta às águas. Meu avô abre os olhos, mas
não volta a cabeça: olha em frente, olha a parede, tudo o que vê ainda do vasto e
variado mundo é este pedaço de parede, olha este pedaço de parede e está sério como
se lesse os autos da sua própria existência.

P 3

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

O relógio de que nos ocupamos e do qual não existe, que se saiba, réplica no
mundo, é de fabricação alemã. Seu criador, Julius Heckethorn, matemático, cravista e
grande conhecedor de Mozart, descende em linha indireta, segundo informações
acreditadas, daquele Charles William Heckethorn que publica em Londres, ao expirar
o século xrx, um volume in-octavo altamente especializado: The printers of Basle in
the XV and XVI the centuries, their biogra-phies, printed books and devises.
O pai de Julius conhece a jovem Erika, filha mais nova dos Haebler, de
Lübeck, em uma viagem de negócios. Casa-se com ela e se transfere para a
Alemanha, onde abre uma oficina para a confecção de jóias. Supõe-se haver desistido
da cidadania inglesa; de qualquer modo, tudo faz crer que jamais voltasse a atravessar
a Mancha. Julius, nascido em 1908, filho prematuro e único da sua união com Erika
Haebler, é ainda uma criança quando ele realiza o desígnio secreto da sua vida:
adquirir, na Floresta Negra, região conhecida desde o século XVI pela sua evidência
como centro relojoeiro e que o industrial A. Junghans revoluciona após a guerra de
1870 com a instalação de sua fábrica onde a contribuição artesanal é reduzida
praticamente a zero, uma oficina especializada em mecanismos de som para relógios
de qualquer espécie. Assim, os primeiros anos de Julius Heckethorn passam-se entre
carrilhões que soam dia e noite.
Pode-se imaginar que os seus sonhos sejam atravessados por um contínuo
bater de horas.
Com a guerra de 14, dois imprevistos abatem esta criança frágil e propensa à
quietude: uma viagem para a Inglaterra e o silêncio dos dias. Adoece, mas não devido
à ausência dos pais: anseia pela presença dos carrilhões. O avô, buscando compensar
esse desejo, contrata um professor de música. Ignora-se quem sugeriu o cravo,
instrumento no qual Julius, sem chegar a ser um mestre, vem a tornar-se bem mais
que um simples amador.
O 22

HISTÓRIA DE ʘ , NASCIDA E NASCIDA

Sem a dentadura, jogada em alguma gaveta da cômoda, em meio a bulas não


lidas, receitas, conta-gotas e frascos de remédio, impossível reconhecer, no meu avô,
dignitário da Justiça. Antes, é a senectude, assoladora, rápida — como um mecanismo
que se desregula e passa a trabalhar acelerado. Dia por dia acompanho a sua queda.
Queda? Uma demolição. Todas as noites, senta-se à escrivaninha e fala com a voz da
Sabedoria um velho muito mais velho que o da véspera. Até restar, de tudo, isto: o
sangue (pouco, o de um pássaro) quase imóvel nas veias, as mãos transparentes, os
olhos que não mais refletem claridade e imagens, um rosto murcho — neutro — e
esses beiços afundando pela boca. Um dos jovens que à saída da igreja ignoram
minha mãe — agora já homem-feito e sem luto — põe uma vela acesa nos dedos do
ancião. Todos se curvam um pouco mais sobre a cama. O fim do ciclo, do trânsito
cumprido na cegueira. Mais feliz, nessa instância, o meu avô, que tantos outros a
quem julga na vida: seu julgamento, se há, independe de mãos tão coerentes e cautas
quanto as suas. Nenhum fichário. Já é alguma vantagem. Sufoca-me um perfume
intenso e cáustico. Minha mãe, varando as barreiras do banimento que lhe é imposto,
pisa novamente, sob a proteção da morte, os ladrilhos familiares. Ouço,
simultaneamente, o estertor final do agonizante e a voz impassível da minha avó:
"Mesmo hoje, você é pouco desejada aqui. Pode retirar-se". O perfume se esvai.
Setenta passos entre o leito mortuário e o escritório do avô. As luzes apagadas
e os vagos reflexos nos vidros das estantes. Sento-me na cadeira sem dono, acendo o
abajur de metal. Quase nada vejo além das minhas mãos e dos poucos objetos que
restam sobre a mesa: pastas, pesos de vidro, estampilhas, a viseira inútil. Alguma
coisa agora está completa. Não testemunho a agonia de Inácio Gabriel. Vejo-o no
hospital, já morto, trajando a mesma roupa de tecido leve que veste em nosso último
encontro, os pés descalços, um traço de aflição nas pálpebras; as horas que precedem
a sua morte, porém, não vejo. Vejo a agonia do avô e com isso o vazio é preenchido.
Sim, bem sei, não são idênticas as duas mortes. Tem importância isto? Inácio poupa-
me, não me faz saber que está morrendo, porém eu saldo o tributo que me cabe. Em
sua intenção vejo um homem morrer.
Fico à espreita: há uma presença estranha, arfando (mas "em silêncio) no
escritório. Um ritmo. Não, não uma presença: um oco, um orifício por onde o mundo
se esvazia. A ausência do avô? Erguem-se, em algum ponto da casa, vozes abafadas.
Arrastar de móveis, passos velozes na escada, tomba uma cadeira. Um ritmo. Com
dedos inseguros, ponho a viseira na testa. Amplia-se, com isto, meu campo de visão,
vejo os dísticos dourados das lombadas luzindo nas estantes e Olavo Hayano na
poltrona de couro, braços cruzados, os cotovelos nos joelhos grossos, os pés firmes no
chão. Olha-me, fixo, com o seu olhar remoto e inquietante. Eu devo perguntar, em
tom de suspeita e com uma sombra de cólera, o que faz no escritório. Não falo.
Hayano, contudo, como se a pergunta fosse proferida (e assim toda a cena flui
segundo está escrito que se cumpre) esclarece:
— Estou aqui por causa do silêncio. Há um rumor que me aflige noite e dia.
Tento identificá-lo. Um zumbido constante, não exatamente igual ao canto das
cigarras, nem ao trilar dos grilos, nem ainda ao ruído de uma serra. Uma fusão de
todos esses sons e de outros é o que ouço a toda e qualquer hora. Quando desperto,
ouço-o. Penetrante, contínuo. Ouço-o até que adormeço e pelo sono adentro. Talvez
por isso haja tantos mortos nos meus sonhos. Mortos coléricos.
Mortos coléricos?... Repete a maioria das frases, construindo-as de maneira
diferente; quase não move, enquanto fala, braços nem cabeça, a corpulência talvez
retarde ou trave os seus gestos. Levanta-se. A voz sem modulações, ligeiramente
nasal e um pouco estúpida, exalta-se. Está perto da mesa, a claridade evidencia a cor
terrosa do seu rosto. Mortos coléricos?
— Apesar do zumbido, posso distinguir muito bem os outros sons, os
verdadeiros sons e apreciá-los. Por exemplo: gosto muito de ouvir a sua voz.
O olhar é fixo e desconfiado. Todos os seus traços — e não apenas o terno, um
pouco usado, um pouco justo — parecem tomados de empréstimo.
— Na verdade, há ainda em sua voz alguma dissonância. Um tilintar infantil.
Isto, sua voz talvez tenha alguma coisa de infantil. Ao mesmo tempo, é uma voz de
mulher, com um timbre próprio. Nenhuma aspereza. Através do zumbido, posso
muito bem perceber isto.
Ligar-me a Olavo Hayano é como atravessar um passo, com lodo até a boca,
para chegar — talvez — ao outro lado. Diz a minha história: serei encaminhada de
modo a encontrá-lo. A função dele é cercar-me, romper-me, demolir em mim o que
está construído, tentar impor-me o seu mundo, o seu modo. Um combate prolongado.
Ao mesmo tempo, não está previsto que alguém, seja quem for, obrigue-me ou induza
à travessia. Tenho de ir por mim, por mim, com o ar de quem não saiba que a
catástrofe é certa e como se movessem-me esperanças. Eu, um cofre ataviado1 e a
certeza no fundo — uma ampola de veneno. Eu, amada e amante, aos olhos dos
demais e aos meus próprios olhos: um cofre esmaltado com motivos florais, radioso.
Mas eu, sendo o cofre, sei, sei sem clareza, sim, sem clareza, mas sei, o que trago sob
as chaves — a ampola, o veneno. Vai, cega, atavia-te e entra nesse jogo não muito
diverso do que destrói tua mãe. Ama este homem e seu vácuo, solda teus pés e mãos
nos dele. Depois, seja a luta para te arrancares a esse jugo, só através disso podes
chegar a ser. Pois se não há saída para a fazedora de chapéus, há para ti. Mais: toda
saída válida, em teu labirinto, há de passar por este crivo. Olavo Hayano é algo a
cumprir. Um rito. Então, sem olhos, começo a liberar em mim o amor ou seus sinais
por um homem a quem não amo. Tiro a pala da testa, jogo-a outra vez sobre a mesa.
Perder tempo é inútil. Digo, adiantando-me a Hayano e apertando o ritmo da cena:
— Sou muito jovem ainda. Estou estudando.
—Já sabe mais do que a maioria. Basta olhar para você. Depois, não é preciso
vir a saber mais do que sabe. A sabedoria é dolorosa. E então?
O vazio, o vazio. Um sorvo. Apago a luz do abajur e no mesmo instante, com
uma rapidez que contradiz todos os seus gestos, ele acende-o. Vejo que está pálido,
verdáceo. O vazio. Quando ele entra com a mãe e senta-se na sala, eu criança, nessa
manhã de chuva, o vazio que o cerca me repele, afasta-me. Quando me confessa o
início de surdez, o zumbido, é o contrário: atrai-me, e eu vou indo. Ele ajuda-me com
a sua voz impessoal:
— Queria fazê-la feliz.
O riso vem-me à boca, um vômito. Eu engulo-o. O diálogo toma a aparência
livre e ao mesmo tempo mecânica, fatal, de uma partida de clamas. A repetição de
outras partidas velhas e nem por isto menos decisiva:
— Nada tenho, você sabe. Meus pais...
— Não me interessam. Só você me interessa. — Curva-se sobre a mesa, fita-
me de perto e, por um instante, seu olhar sonda os meus, vacilando. Baixo os olhos.
— Quero que seja minha mulher.
Eu, sempre de pálpebras descidas, fico em silêncio. Não respondo. Não devo
responder. Minha mão esquerda repousa sob a lâmpada, solta, para que Olavo Hayano
se encoraje a tocá-la. Ele toma-a entre as suas, beija-a. Minha expressão é a de quem
se compromete a refletir sobre o que houve e também a de quem pesa, perplexo, as
próprias incertezas.
Meu corpete, negro, junto do bule de prata, absorvendo um pouco do seu
brilho fosco, a prata absorvendo seu negror. A meia de seda, quase invisível, sobre
meus sapatos. Abel sobre mim. Dentro de mim os claros e os escuros da sala, Abel em
mim, dentro de mim seu cabeço, seu punho, seu braço, dentro de mim as gargantas
dos cantores, suas vozes longínquas, eis aiona!, Abel em mim, dentro de mim,
alavanca e corda, partindo-me e atando-me. Afasto ainda mais as pernas; -movimento
a bacia (vem, vinde aos porões fechados) e sinto-o, firme e severo, sinto-o até onde o
posso sentir. As mariposas batem nas dilatadas paredes do seu báculo. São vermelhas,
são verdes. Minhas vulvas lambem as suas uvas.
Extensas e fúteis horas do velório. Nas ruas, na cidade, talvez a noite seja um
ser vivo, móvel e crescente, gerando outras noites. Aqui ela se decompõe.
Envelhecem os pastores de faiança, seus instrumentos de música apodrecem. Respiro
um ar morto, pesado de fumo. Olho o velho. A testa porejada de suor, a dentadura mal
posta, os maxilares amarrados com um lenço. Desfaço o nó do lenço, observo a boca
descerrar-se. Alguém abre as cortinas franjadas da sala, abre uma janela e exclama:
"Linda noite". A espaços, na Santa Casa, alça-se o lamento de um doente. Vozes à
minha espádua: "Grande homem". Cerro os punhos. Morto, servirá à Justiça menos ou
mais do que vivo? Passos à minha esquerda, leve rumor de patas sobre o tapete onde a
jovem se diverte no balanço de cordas floreadas: o estranho, sem que lhe dêem
atenção, transita entre nós, com o aspecto soturno de um cão velho.
Vestida, sem tirar os calçados, apago a luz do quarto e jogo-me na cama. Já
viste a morte, Inês? Em que parte do mundo, hoje, derramas sobre as coisas o teu
verbo indulgente? Contemplo a morte de cara e esta prova me alegra. Não me
proteges. Estás ausente quando a velhice destrói o meu avô no seu compasso célere.
Sem tua proteção, assola-me a visão da morte, a morte expõe-se, clara, ante meus
olhos, o avô está morto, morto e bem morto, o queixo abrindo-se e a dentadura
atravessada entre as gengivas secas. Não estás presente para estender um véu entre
mim e a destruição da carne aqui tão claramente demonstrada. Adeus, Inês. Passos no
quarto, passos de caprino, o estranho. O Hernidom? Olhamo-nos, ele de pé, eu deitada
— e seu olhar nada significa. Por que está aqui? Serei, como ele, um ser abissal?
Ambos em silêncio. Nosso olhar: dois buracos, um em frente ao outro. Um espelho na
frente de outro espelho. Deixo-o, ando outra vez pela casa. Os cachepôs vazios
ladeando o relógio. Minha avó encerrada no seu quarto. Várias janelas abertas e as
pessoas imóveis, sem falar, os rostos cada vez mais lívidos e escaveirados. Meus
passos ressoam, ressoam. O piano com a sua toalha de brocado. A tenderna, os
primeiros barulhos de mais esse dia, alguns homens dormindo nas cadeiras. As salas
lembram os vagões de um trem noturno. Volto para o meu quarto. Não mais vejo o
estranho.
Emudeceram os cantores. Vai e vem o pêndulo, o vagaroso pêndulo.
Repousamos. Minha perna esquerda, estendida, entre os joelhos de Abel; flexionada a
outra. Adiar ao máximo o final, mantê-lo próximo, não deixar que nos tome —
enquanto for possível. Ele acaricia-me a coxa soerguida; com os punhos fechados,
bato lentamente no seu dorso. Ecoam, no silêncio, nossos suspiros, meus gemidos e as
surdas palavras que ele me sopra. Mais escura a sala e agora um clarão trêmulo.
Longa e decrescente sucessão de trovões, nascida sobre nós, entre nuvens que não
vejo, desce em direção a todos os pontos do horizonte. Uma cúpula. Bichos cruzam-se
em nós, inquietos, gamos com leões, ovelhas com cães. Afastando-se um pouco, Abel
desliza uma palma entre meu ventre e o dele, afaga-me o púbis. Puxo-o para mim,
com força, em torno do seu eixo cerro meus anéis, duplamente — ele é dois em mim.
Sua língua penetra-me o ouvido esquerdo, parece derramar-se nos meus corpos, sinto
o bojo dos meus corpos agitado por línguas cálidas e ásperas, pelo sopro ardente de
setenta bocas. Não sei o que fazer com as minhas próprias bocas e ponho-me a gritar.
Línguas para fora, lambo o ar. Ignoro se os meus gemidos marcam o ritmo com que
ele bate na entrada do meu útero ou se ele faz dos meus gritos o seu ritmo. São quatro
horas e cinqüenta e três minutos.

T 14

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Um velho, sem camisa, exposto à chuva morna de novembro, pesca de tarrafa,


aproveitando a elevação das águas no canal. O guarda-chuva aberto de Cecília é o
mesmo com que desce do ônibus no dia em que vislumbro, surpreso, a povoada
espessura do seu corpo, frente ao Museu do Estado. Vermelho, o tecido parece azul
ou cinza, nesta hora da noite e longe das lâmpadas. Grãos de chuva batem na fazenda
tensa. Brilham os seus olhos na sombra e me aquece, íntimo, o calor da sua carne,
através das roupas que vestimos — um hálito, opondo-se à úmida exalação quê
transborda do canal. Memória sem lembranças, agora, o rosto de Cecília. Ocultas,
silentes, as criaturas que nele se recordam ou imaginam-se. Cada vez mais raras, com
a chuva, as pessoas que transitam nos baldios. O pescador, de pé sobre o muro, atira a
rede nas águas. Busca peixes mortos?
Pergunta-me Cecília se é mesmo acidental o fim do Tesoureiro. Narro a
conversa nos altos do banco e avanço a idéia de que há suicídios arbitrários. Outros,
enquanto isto, não passam de um reforço: o morto colabora com a morte. Entende-se
com ela ou participa, em certa medida, do seu próprio fim. No caso do Tesoureiro, se
a vida é mesmo um fio, quase nada resta quando o corta. Vê-se isto: o fio desfazendo-
se. Tão claro!
Alguém, manejando uma lanterna elétrica, traça um caminho sinuoso nas
trevas, do outro lado do canal. Cecília, os olhos fixos nessa direção e parecendo crer
que o portador da lanterna traz consigo outro objeto, sem nome, a ela destinado, um
objeto terrível, sentença lavrada ou arma, põe-se a falar.
Talvez, diz-me, eu seja propenso a ver no mundo um cenário onde os destinos
— individuais ou coletivos — fluem. Engana-se? Ocorre-me, às vezes, que o mundo
não seja um elemento inerte? Que seja uma pressão, Abel, talvez um personagem?
Admite: talvez fosse possível entrever a vida do Tesoureiro no fim. Pode-se
marcar no relógio o momento em que um galo de briga, batendo-se com outro,
começa a entregar-se. Isso tem uma causa: os esporões, o bico e a fúria do adversário.
O Tesoureiro é massacrado e até a inclinação dele pelas festas decerto vem do mundo.
Já era ou podia ser — ou não? — a desfiguração de uma força. Quando você vê ou diz
ver, como no caso dele — e em outros —, a capitulação como um Simples ato
auxiliar, presta serviço a quem? Deixa ao abrigo de acusação a parte cruel do mundo.
Essa parte, Cecília não consegue nomeá-la e tem dificuldade em identificá-la com
clareza. Podemos, contudo, negar que existe? Não é ela que conduz Marilyn Monroe
ao suicídio?
Continua falando. Vai emprestar-me alguns estudos que leu sobre a realidade
nordestina. As frases enovelam-se, partem-se e de súbito, obedecendo a um nexo
sinuoso, afirma: "Com o trabalho que eu tenho, vendo de perto tanto sofrimento, dói
nos dentes dizer: Sou feliz. Mas é o que eu sou". Acrescenta não se poder, além de
certa medida, ter e ao mesmo tempo saber: tenho e quanto. Não se sabe. Inviável. (O
portador da lanterna sobre a ponte, indeciso a uns cem passos de nós e do silencioso
pescador.) Soubéssemos? Estourávamos. Pode, entretanto, por um indício, pode medir
ou avaliar quanto a acrescentam estes encontros. Morre-se por tantas razões! Tenho
medo da morte, Abel. Tanto! Não quero morrer. Não queria. Agora, a morte não
significa mais nada para ela: e este é o indício, a medida da alegria. Leu nos jornais a
notícia de um duplo suicídio. Um casal, estudantes, cada um na sua casa. Nada
impedia que se unissem e ninguém sabe a razão do suicídio. Ela, porém, sabe. Sabe e
também eu não ignoro por que eles morreram. Foi uma rendição? Não. Os dois
morreram porque anebatados a um grau de alegria que incinera as vilezas, as
fragilidades, medos como o da morte — e respondem a seu modo às instigações dessa
experiência, matam-se, a arder de júbilo, no núcleo raramente alcançado do fervor. Do
fogo. Um amor exaltante como o nosso instiga-os a morrer. Morre-se esmagado e
morre-se exaltado.
O homem da lanterna, agora acompanhado, havendo atravessado a ponte,
explora o lado do canal onde nos encontramos. Ambos de guarda-chuva, saltando
cautelosos sobre as poças. O pescador volta a jogar a tarrafa. Colhe-a. Se a morte, no
fundo, segurasse a rede, cairia na cilada esse velho paciente, mergulhando e
enredando-se nos fios? Cecília, crispada, cinge-me e inclina um pouco o guarda-
chuva, numa tentativa de ocultar-nos. Perto, os dois homens. Não falam. A lanterna,
como por acaso, oscila e abrange-nos. Um segundo. Eles distanciam-se.
— Onde nos encontramos amanhã, Abel?
— Onde quiser.
— Não aqui.
— Onde, então?
Sua respiração me queima o rosto. Ela joga a cabeça para trás, morde-me a
boca. A impulsividade do seu gesto.
Estou de pé e junto a mim há alguém deitado numa cama. A casa onde
existimos — eu e o vulto anônimo do sonho — não nos separa do mundo exterior.
Assim, vejo inúmeras fogueiras sobre os campos banhados de luar. Um clarão cegante
ilumina de súbito a noite e as paredes da casa. A pessoa no leito desconhece a
natureza dos relâmpagos: quando soa o trovão; surdo e abafado, curva-se e procura
sob a cama a origem do ruído. O trovão, supõe, está no vaso noturno. Mas relâmpago
e trovão apenas anunciam o vendaval. Para os répteis, o vento é fenômeno rasteiro;
agita o pó, move as árvores, revolve o lixo, não voa muito mais alto que os gafanhotos
e os morcegos. No meu sonho, o vento que o relâmpago e o trovão anunciam começa
onde em geral acabam as nuvens e não sopra no sentido horizontal, alça-se na vertical
rumo a algum ponto ainda mais longínquo que as grandes altitudes nasce. Todo o ar
da Terra já se move na sua direção, insetos e pássaros, atraído pela voragem e talvez
sigam-no as águas. Será por isto que o mar brame tão forte? São os peixes que
clamam amendrontados. Os fogos, nos campos, tornam-se mais vivos. Sugadas pelo
vento, as chamas alongam-se, levitam, voam em direção esse ímã invisível. O céu
povoa-se de lumes ascendentes e esplende com a chuva de fogo às avessas. As
labaredas, atingindo certa velocidade e altura, de vermelhas passam a brancas,
ofuscam e voam mais rápidas, sempre mais rápidas. A ação do vento, prolongada,
acentua-se e pesa sobre mim. Não há mais vulto deitado nem leito, nem paredes.
Tudo, raízes e alicerces, vai ser arrancado. chão como as fogueiras. Ouço então o meu
nome, pronunciada com voz cantante e levemente rouca. Volto-me: Cecília está de pé,
nua, sob os fogos, com seus cabelos curtos e seu corpo efebo guarnecido de seios,
seguida por uma coorte de leões cujos pêlos fulvos refletem ao mesmo tempo a lua e
as chamas volantes. Sinto que o ar—e a vida com ele — é sugado de dentro do meu
tronco.Descerro os dentes, sai o ar da boca, um vômito, vomito o ar que prendo na
boca e onde leio, como traços de sangue, a palavra fogo e o nome de Cecília. Campo e
céu apagam-se — eo vento esmaece. Cecília continua de pé à minha frente, o peso do
corpo repousando sobre a perna esquerda, dominando os leões, sob o luar. Vagueia
entre os potentes e temíveis animais um rumor semelhante ao da ressaca na praia dos
Milagres.
Sobre o mar quieto, perpassa uma estrela cadente. Nenhum vulto humano em
toda a extensão da praia. Cecília deitada, o flanco ligeiramente torcido ria minha
direção e a bolsa a servir de travesseiro. Seus olhos, iluminados pelos astros distantes
(um cavaleiro, a passo, transita no seu corpo, assoviando) e pelas luzes acesas dos
navios, fundeados ao largo, fitam-me. O farol percute a noite. O carneiro, deitado,
rumina a paz. Cecília estende as duas mãos e atrai minha cabeça, comprime-a sobre os
peitos. Crianças fogem e escondem-se, à aproximação do cavaleiro. Abro a boca,
aspirando o vento calmo e a voz de Cecília. As pálpebras, cerro-as. Suas palavras, em
torno: fala de lutas, mas não sei o que diz. Ouço-a como se lê, perturbando o texto e
acrescendo certo mistério à leitura, o trecho impresso fora de lugar. Tocam-me essas
palavras não compreendidas. Minha mão avança entre ás suas coxas e ela prende-a
com um movimento rápido. Seu coração bate forte sob a pressão do meu rosto; os pés
estão cruzados; as pernas estendidas; todo o corpo tenso. Começo a beijá-la. No peito,
nos ombros, nas mãos. Aos poucos, a rigidez se desfaz. Seus calcanhares, erráticos,
riscam a areia.
O carneiro, num salto, levanta-se e dá alguns passos, movendo a cabeça.
Apuro o ouvido. Um assobio fino e significativo, vindo não sei de onde, atravessa-
nos. As ondas quebram, bastante longe de nós. Outro silvo, este mais agudo, responde
ao primeiro. Do lado oposto? Sim. Dois novos assobios indicam haver movimentos na
sombra, próximos de nós — ou demarcam o cerco. O cerco. Ponho-me de joelhos,
olhando para os lados. Ela se ergue. Sua cabeça contra o halo — distante, pacífico —
das luzes de Olinda. Talvez ainda possamos escapar. Cecília, recusando a sugestão,
segura meu braço, faz com que me volte e beija-me. Vejo um vulto de homem por
cima do seu ombro, um vulto impreciso. Aproxima-se aos poucos, com solércia e
cautela.
— Vamos, Cecília.
— Não.
— Seus irmãos?
— Pode ser. Não vão fazer-nos mal.
— Não estão aqui para outra coisa.
Ergue mais ainda o busto e a cabeça. Lanço um rápido olhar à sua figura
delicada, incapaz de amedrontar um pássaro, compondo uma atitude de afronta — e
percebo com clareza o nosso desamparo. Faltam-me instrumentos precisos de defesa
— nem músculos nem armas (músculos rápidos, rijos). Idéia de nudez e dependência.
O meu amor, apenas, não constitui proteção. Cecília, desguarnecida, enrijece o corpo
e não parece medir a diferença de forças, agora inconteste: quatro vultos nos
espreitam, o espessor da ameaça enegrecendo-os. Volteia o busto, calada, cisca a areia
com os dedos. Acha o que procura? Uma pedra? A mão fechada. Três dos estranhos
mantêm-se um pouco afastados, todos de cabeça descoberta; o outro, de capacete,
segura um bastão. Polícia? Este se dirige para o lugar onde estamos. Pode fazê-lo sem
pressa: seus três comparsas barram nossa fuga eventual. O de capacete: "Que estão
fazendo aí?". Um dos três solta uma risada fina e sôfrega. Sem dar resposta, levanto-
me; ajudo Cecília a levantar-se. O carneiro desapareceu. "São surdos? São surdos?"
Cecília pôs a bolsa a tiracolo e tem nas mãos os sapatos. Os três paisanos fecham mais
o quadrado, enquanto o outro nos ordena mostrar os documentos. Documentos?
Intimação expressa numa língua morta ou ainda larvar. A presença dos intrusos, esta
me parece clara. Assume um drástico sentido de expulsão, nada casual. Seguro a mão
de Cecília e tomo a decisão de afastar-me como se os quatro indivíduos não
existissem. Mas o de capacete atravessa a ponta da botina entre os tornozelos e
empurra-me. Caio com a boca na areia e antes que inicie um gesto fazem-me rolar
com pontapés à altura dos rins. Passa entre as estrelas, curva, a cauda do farol. Meu
espancador, capacete na mão, atinge-me com os pés a cada tentativa de erguer-me e
Cecília defende-se dos outros. Espanta-me a rapidez com que esquiva os golpes dos
agressores e a obstinação com que se conserva em silêncio, não emitindo um só grito
de socorro. Consigo, no chão, agarrar a perna do soldado e fazê-lo cair. Precipito-me,
de braços abertos, entre os que maltratam Cecília. Um deles segura-me e prende-me o
fôlego. Mão dura, larga. Mordo-a, ouço um urro abafado. Curto golpe à altura da nuca
me derruba. Tento levantar-me. Tudo que consigo é rolar sobre um ombro e entrever
o corpo de Cecília, perdido o equilíbrio, ceder com lentidão e baquear, lento, mais
uma vez estapeado. Ouço um lamento, um grito, um chamado, lançado cada um por
uma voz diferente — e as estrelas ampliam-se, lagos ofuscantes. Os passos dos
ofensores afastam-se depressa. O tropel. A praia estremecendo sob a carga desses
passos na areia, como se percorrida por um bando de rinocerontes. Cerro as mãos,
tentando manter-me, por este meio, na superfície da minha consciência. Houvesse, em
minhas palmas, um fio, uma corda capaz de arrebatar-me a esta cova profunda sobre a
qual flutuo! Os lagos das estrelas crescem e diminuem. Sobrevém um esmorecimento,
uma paz dissimulada, a doçura de morrer ou de cortar as ligações. Um mel. Um nada.
Abel! Meu nome bate à porta das trevas (quantas vezes?) e impede que me renda. Aos
poucos, movo-me. Cecília está sentada, com as mãos sobre o sexo e as pernas
estendidas, unidas, na exata posição em que as mendigas, sem força para andar,
pedem esmolas nas calçadas. As feridas sangram e ela treme. De dor? Seus dentes
batem sobre o meu nome. Talvez de frio, o corpo desabrigado, exposto à brisa
praiana. Não consigo despir minha camisa em pedaços. Molho a anágua rota de
Cecília, tento lavar seu corpo, os cortes, procurando fazer leves as mãos embotadas.
Lastimo-a e, ao mesmo tempo, vejo como são redondos e firmes os seus peitos, que
brando é o seu ventre dolorido e quanto, à luz das estrelas, delicada a linha da
espádua, ligeiramente alçada na curva doce dos ombros. Faço-a levantar-se. Por que
não entra no mar? Só um instante. Deve fazer-lhe bem. Ela procura ficar de costas
para mim e acaba de despir-se. Seu corpo esbelto, suas costas tênues, suas nádegas
miúdas, quase como as de um menino. Dirige-se hesitante para o mar. Chamo-a.
Deteve-se. O farol, o firmamento, o vento, as vagas. Cecília guardando-se de ser vista
de frente.
— Volte-se para mim. Não a tocarei, se você não quiser.
Ela obedece. Vejo-a, então, como a vejo em sonho, mas sem leões rodeando-a
e sem fogos. Aproxima-se, devagar e resoluta na sua lentidão. A linha clara dos seus
dentes e os olhos (quase posso ouvir, neles, o zumbir da febre) cravados em mim.
Com a mão esquerda, sopeso a forma do peito, acompanho a cintura em direção ao
flanco, sinto na palma a lã, o púbis, anelado. Entre os pêlos: seu pênis vibrante. Retiro
a mão, rápido, a mão picada pela débil víbora invisível. Cecília toma-a e encosta a
cabeça no meu ombro. Conduzido por seus dedos (estremecem, incertos), tateio as
doces paredes úmidas, dentre as quais emerge — vivo — o pênis. Real e insólito.
Simultaneamente, nossos joelhos esmorecem. Tombamos abraçados, unidas as
frontes. Advindas do corpo de Cecília, quinze ou vinte crianças nos rodeiam,
andrajosas, sujas, os pés descalços. Com os olhos encovados, contemplam-nos. Um
círculo imóvel.
Nós, num táxi de molas ruidosas e já áspero o couro das poltronas, dando
voltas indecisas entre as ruas do Progresso, da Soledade, das Ninfas, Conde da Boa
Vista e Padre Inglês. O motorista, apreensivo, olha-nos pelo retrovisor. Indaga, afinal,
se não queremos que nos leve à polícia. Cecília, abraçada a mim, estremece: move a
cabeça apoiada no meu ombro, negando. Baixo o vidro. "Não, nada de polícia." O
suave vento noturno, cheio das vozes que pervagam nas ruas, atenua a dor das feridas.
— Acho melhor levá-la em casa, Cecília.
Com as pontas dos dedos (tão frios!), Cecília afaga meu rosto e pede que
retarde ainda um pouco a volta. O motorista, talvez impaciente e assustado, sugere
deixar-nos frente ao pronto-socorro. Agradeço e ordeno: Casa Forte, estrada das
Ubaias.

R 15

ʘ E ABEL ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Fechada a janela e acesa sobre a cômoda uma vela, evolui o relato de ʘ, mutilado e
nem sempre compreensível, dentro da madrugada, misturado com o som das ondas, o
cantar esparso dos galos, o vôo interminável dos pássaros noturnos e o cheiro dos len-
çóis, que recendem a folhas de canela. Move-se a chama aos movimentos mais vivos
de ʘ e a sombra do seu corpo, agitada, faz rangerem as tábuas. As flores do quimono
sempre aberto recuperam o viço e entre a pele de ʘ e o espaço que a envolve é como
se houvesse um leve pêlo intocável e transparente, matéria sem nome, luz e carne,
uma gradação misteriosa.
Alguém, tudo podendo e não podendo descrever-se, assume um disfarce, o de
emissário de si próprio, visitando-nos e habitando entre nós. Um modo imperfeito e
difícil como todos, de falar; discurso no qual se explica. O emissário, constituído da
mesma substância de quem o molda e manda, é como se unisse, na sua natureza
híbrida, a Lâmpada, a Superfície Polida e o Reflexo. (Como se chamam este
emissário visível e este mandante oculto?
ʘ sentada na cama e eu meio estendido, apoiado sobre os travesseiros: o seu
perfil recortado contra a chama, os lábios meio abertos e silentes. A cor e o brilho
vívido do castiçal, atenuados, ressoam nos cabelos desfeitos. A princípio, suponho
que a lividez do rosto anuncia alguma confissão mais aviltante. Mas o que se esbate
nesse perfil meio inclinado é a opacidade (contra a luz, não poderia ver se
empalidece), perpassa na sua carne e ossos, fugitiva, uma transparência idêntica à das
uvas claras, no âmago das quais entrevemos a sombra das sementes, outro rosto,
gêmeo, olha-me através das suas têmporas e não me fala, todos estamos em silêncio,
mas do silêncio em que está encerrado é como se dissesse: ouve-me. Apaga-se a visão
no instante preciso em que também o rosto não oculto se volta para mim e ágeis sinais
— claros sinais e sombrios sinais — surgem à altura do colo, sinuosos e velozes,
somem na fronte ou entre os seios, enxame exasperado de insetos, negros e brancos,
miúdos. Prende-me o pulso (a temperatura dos anéis) e com a mão direita afaga-me o
rosto. Curva-se, pousa a testa sobre a minha e um peito, insinuando-se entre as flores
do quimono, esmaga-se, peso tépido e fragrante, contra a minha pele, tornada sensível
como se eu fosse de línguas.
— Abro as mãos ante os olhos no âmago da noite e não as vejo. Crio um
casulo de trevas. Questiono o meu ofício de escrever em face da opressão. Fico
ouvindo a resposta que se forma no ponto mais protegido e inviolado do meu corpo. A
máquina da opressão alcança-me através das paredes e da carne. Todos os seus
guardas e artífices dormem, todos, rodeados de arames, casamatas e armas, e ela, a
máquina, opera. Máquina ou cão? Não há modo algum de escapar ao seu hálito.
— Poucos tratados médicos ocupam-se do Iólipo. Isto, creio, favorece a
inconsciência dos pais. Quase sempre, só se apercebem de que trouxeram ao mundo
uma singularidade quando a criança chega aos doze ou treze anos. Pormenor
absolutamente inexplicável: não há iólipos do sexo feminino. Todos são machos.
Sua testa sobre a minha, ela no centro do quarto e a sombra na parede, a boca
entreaberta sobre a minha boca, o seu perfil contra a chama e os olhos secretos
fitando-me da têmpora. Eclipse, transparência, trevas. Aos poucos, eis que ressurgem
da ausência, uma e outra, ambas tensas de drásticos contrastes nem sempre discerní-
veis, ambas dúplices, e, mais do que dúplices, acima de medidas e limites, ressurgem
as duas mulheres a quem amo em pontos afastados dos anos e do mundo, que me
atravessam, às quais me confio, que em dado momento concentram e assumem
minhas obsessões, trituro entre os molares os seus nomes e os dois nomes como que
se fundem, o primeiro nome: claridade constante, maré resplendente, Roos, cardume
de fogos, o segundo: Cecília, guarnecida de virilidade, essas a quem amo e ante as
quais, humilde e assombrado, subvejo a face — cheia de vozes e signos — do mundo,
eis que ressurgem. Introduzo as primeiras alusões, difíceis e abafadas, entre as pausas
de ʘ, e a língua se contorce quando falo. Ouve-me? As luzes apagadas no carrossel
imóvel e nas barracas, as ondas se desfazem e as nossas vozes confundem-se, solenes
e inflamadas, boca contra boca, a verdade rangendo em nossos dentes, sem artifícios e
também sem capciosa ênfase.
— Dos doze para os treze anos, o rosto do Iólipo começa a ser visível no
escuro. Qualquer um pode vê-lo nessas condições. Até ele.
— A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos.
Capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as
carcaças podres.
— Nem todos enxergam o Iólipo na escuridão com a mesma nitidez. Alguns
percebem apenas um halo muito leve; outros o distinguem com um relevo de
xilogravura.

Convivemos todos os dias com as narrativas escritas e isto esconde o seu


mistério. Uma viagem está no texto, íntegra: partida, percurso e chegada. Nele, há o
ire o estar, isto é, coincidem o fluxo e a permanência.

— O rosto que se pode ver na escuridão, completamente diverso do que se vê


na claridade, é o rosto verdadeiro do Iólipo.
— Sei bem: há, tem havido outros males na Terra, sempre e inúmeros. A
opressão, fenômeno tendente a legitimar muitos outros males e em geral os mais
prósperos, reduz a palavra a uma presa de guerra, parte do território invadido. Lida o
escritor, na opressão, com um bem confiscado.
Surge no teto uma grande mariposa de asas negras, outras duas na porta. A
vela se extingue. Não me movo e continuo despido, embora esfriasse com a
madrugada e rápidos golpes de vento façam gemer a aldrava da janela. Falarei em
vão? Ambas, Roos e Cecília, não me ouvem em ʘ, foz e confluência?
A estrangeira, oscilante entre as fronteiras do ir e do vir, surpreendente nas
edificações de seus espaços tangíveis e fantásticos, cheios de torres, de pássaros, de
peixes, de animais rasteiros e bandeiras hasteadas, a estrangeira, esquiva e luminosa
(voltam-se as plantas na direção do seu rosto), a frágil e povoada andrógina a quem
amo, que se desnuda, múltipla, ante a janela aberta para as vertiginosas tardes
nordestinas de estio, pesadas de perfumes, de azul e do zumbir das moscas, essas
mulheres tão fundamente amadas que se incorporam para sempre ao mundo, são no
mundo uma poeira e um som, eis que as vejo sob uma perspectiva inesperada e que
nem assim me espanta. Serias, Roos, em tua flutuação entre o ir e o vir, uma versão
mais sutil e antecipadora das oposições de Cecília? Não conesponde à claridade que é
um dos teus dons — como a noite conesponde ao dia e a morte ao nascimento —
certa constante de negror, associada, desde o eclipse, à presença de ʘ? Além do mais,
ignoro como, e até que ponto, repercutes, recôndita, não sei até que ponto, nas
simetrias, nos ritmos. Tendo a crer, Cecília, que a duplicidade do teu ser coberto de
cifras ressurge em ʘ, neste caso um ser tríplice, dual e uno, e também pergunto agora
se não ouço, por vezes, tua voz na sua boca. Jamais diria, entretanto, serdes
fragmentos ou simples tentativas inconclusas desta que, ainda não sei como, vos
revive. Sendo, cada urna, absoluta e por assim dizer ilimitada, nenhuma é tudo.
íntegras, não constituem, apesar disto, realidades solitárias: na sua integridade, unem-
se em um todo — soma e súmula de totalidades — não superior ou mais perfeito do
que as unidades abrangidas.
— O verdadeiro rosto do Iólipo não é necessariamente horrível. Alguns, na
escuridão, apresentam um rosto de linhas mais puras que o de carne, o diurno, o que
todos conhecem. O que apavora não é o aspecto monstruoso do rosto; e sim o fato de
que se trata de um rosto diferente, oculto a nossos olhos quando iluminado e que se
revela justamente quando não existe nenhuma claridade que não seja a dele.

T 15

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

No sossego da noite, aparecem-nos os dois. Eles. Cecília e Abel, cobertos de


arranhões, pouco menos do que nus, vestidos só com os braços, com as mãos e com
os panos rasgados. Trilam os pássaros, espantados com as vozes estranhas que
invadem o silêncio onde moramos. Indagam: "Visitas? Visitas? Tiu? Pio". Edemas na
cara e manchas secas de sangue no que lhes sobra das vestes. Parecem envenenar-se,
os dois (dois?), sorvendo o ar corrompido pelo seu próprio amor fugaz e predador.
Despeçam-se: salvem-se. Quebrados e moídos. Esplendem, mesmo assim, dentro dos
corpos. Não. Outro corpo, um corpo de desejo, arde intacto dentro do corpo de carne e
cheio de vergões. Abel me olha, olha-me através do corpo de Cecília, olha-me com
triunfo (ele, o batido) e nós o vemos atirando-se com asas no centro inviolado de
Cecília. Cecília me olha, de face. Seu olhar uma chapa — negra, larga e brilhante,
folha de pedra, impessoal e densa. Rompe-me os barbantes da alma com esse olhar.
Como quem diz: "Danem-se. Ajudem-me e danem-se. Estas feridas são a véspera de
Abel". Visível, tangível, o sinal de fogo que os envolve e cerca-os. Cerca-os? Não é
um arco. Quase. Arco rompido: as pontas quase invisíveis não se encontram e podem
continuar. Continuam? Cecília, Abel, Cecília, nele inclusos e presos — o laço.
Armadilha. A agulha, imantada, não aponta para qualquer lugar. Abel recusa a ajuda
que lhe ofereço ("Cuidem de Cecília!") e senta-se no banco, o álbum sobre os joelhos.
Apagada a lâmpada do alpendre. Para que, então, o álbum?
Levamos, Hermenilda e Hermelinda, Cecília para o nosso quarto. Na pele,
onde tocamos, ela estremece. Tão flagelada a sua pobre carne? De agressão ou de
desejo? Trespassamo-nos solícitas. Suspicaz, Cecília nos espreita, as mãos cerradas.
Vendo as duas velas acesas em frente ao oratório, pede à minha irmã: "Apague a
lâmpada". Obedeço. Procuro no guarda-roupa um vestido nosso, antigo, leve e limpo,
que lhe sirva. Ouço o grito. Um soluço? Soluço ou grito: vejo sem querer, à luz
discreta das velas, o sexo duplo e dúbio de Cecília. Verso e reverso. Bainha e faca.
Curvo-me aos pés da cama, à cabeceira da cama — e recebo na cara, coice, o olhar da
minha irmã. Acaricio os pés feridos de Cecília, acaricio o rosto de Cecília, beijo os
seus cabelos e faço por aquecer, com o calor quase extinto do meu corpo, seus pés
alados e firmes.
Saio do quarto e Cecília me segue, mais velha em meu vestido malva, de seda,
com rosas silvestres no peito. Por trás de Cecília, da porta do quarto, vejo Abel de pé
na sala de jantar. Une-os o arco de chamas. Ele se volta para mim e para mim, o
álbum ainda na mão. Acaso nos vê? O ar com que contempla Cecília por entre as
pálpebras inchadas revela uma alegria estranha. Sua expressão é a. do homem ao
abrigo de escolhas. Ele abarca os contrários em uma das raras encarnações terrenas.
Com o seu hábito, vindo dos velhos tempos, de manter livre a entrada, deita-se
a Gorda quando bem entende e deixa a casa entregue a quem vier. "É meu filho Abel?
Estou aqui, deitada. Vem cá, homem." Orientado pela sua voz, abro a porta do quarto.
— E se não fosse eu?
— Perguntei por perguntar. Conheço as tuas passadas. Parece ainda mais
vasto, na obscuridade, o vulto negro sobre a cama de lona sem lençol. Ocupo uma
cadeira de vime, deformada, com travesseiro no encosto.
— Não aparece mais! Abandonou a velha?
Ri. A alvura dos pés, intensificada pelo vestido preto, sobressai na penumbra. Cruza-
os.
— Enfurnada aí por quê? Esse quarto doentio!
— Descansando a vista. Agora, então, que entrou dezembro! Dá 'até dor de
cabeça, essa brancura no mundo. Entre meio-dia e duas horas, já sabe: meto-me aqui.
Lucíola veio visitá-la e pedir algum dinheiro. Contou ter visto Dagoberto
caído bêbado na rua. O marido, sempre às voltas com negócios mal orientados, anda
outra vez sem meio de vida. Resultado: Lucíola está grávida, quando o mais velho dos
seis enteados já vai fazer dezesseis anos. Cesarino jura de pés juntos que o Tesoureiro
se jogou na frente daquele caminhão. Terá sido mesmo, Abel? No ângulo de parede e
à altura da cama, dois pequenos pontos fixos em mim: os olhos do gataco.
— Não sei. Talvez. Ninguém pode saber.
O rumor das vagas chega amortecido ao quarto. O mar, ao sol das duas horas,
continua moendo as paredes e pisos dos Milagres.
— E você e Cecília? Continuam?
— Continuamos.
Os encontros em lugares distantes e pouco iluminados. Estala a cama de lona
sob o peso da Gorda.
— Sua mulher esteve aqui outra vez. Anda atormentada, Abel. Tome cuidado.
O gato com cabeça de macaco esgueira-se no seu ouvido esquerdo, desliza
pela garganta, some e reaparece sob a saia, entre os joelhos. Enrosca-se junto aos pés
muito claros. Com um movimento repentino, ela afugenta-o e senta-se na cama.
— Está cheirando a remédio. Por quê? Venha aqui perto de mim. (Minha
cabeça entre as mãos, aspira forte.) De onde vem esse cheiro de farmácia?
Antes que eu responda, e com agilidade inconcebível em corpo tão pesado,
salta do leito, abre a porta do quarto e segura meu rosto, volta-o para a claridade.
"Que diabo é isso? Todo lanhado!" O gataco sobe pelas suas pernas e aninha-se,
trêmulo, no ventre. "Fui agredido." "Por quem? Por quê?" "Não sei. Eu e Cecília."
"Tire a camisa." "Não precisa." Começa a desabotoar-me. O gataco salta do seu ven-
tre e se esconde sob a cama. Estende vez por outra o pescoço curto, examina-me e
volta ao seu esconderijo. "Foram os tais irmãos?" "Sei lá!" "Como não sabe?" "Podem
ter sido enviados. Lembra-se? Um deles é escrivão da polícia." "Cachorros. E você,
por que não larga de mão essa dona? Tanta fêmea no mundo! Isso não fica assim.
Estão pensando o quê?"
Sem calçar os chinelos, dirige-se ao seu quarto, sobe numa cadeira, tira de
cima do armário uma caixa de sapatos, sopra a poeira da tampa e joga-a em minhas
mãos. "Fica com você." Na caixa há um revólver e um punhado de balas. Devolvo
tudo à Gorda, sem explicações. "Como? Vai viver apanhando? Quer morrer feito
Eurílio?" O gato vem correndo, salta para a mesa da sala de jantar e se engasta no seu
ombro. "Talvez você tenha razão. Já é demais haver posto Janira neste mundo. Matar
os próprios filhos!" Guarda o revólver na caixa e o gataco abre os braços no seu peito,
de costas para mim. "Desde quando há aqui essa arma? Eu não sabia." "Cinco ou seis
meses." "Quem trouxe? O Tesoureiro?" "Ele mesmo."
As palmeiras, além do alpendre, não se movem sob a claridade dura. Paradas
as cortinas das janelas, com os pássaros e caçadores imóveis.
— Você está lambendo cu de cão por essa criatura, não? Vai continuar
encontrando-se com ela. Então, acabou a sessão de andar sacaneando nos ermos.
Vocês vêm para o chalé. Claro, não vou ficar aqui botando olho. Eu me raspo. Fico
andando pela praia e vocês que se atem. Quero ver se esses cornos irmãos ou paus-
mandados de irmãos, vão ter peito de invadir a minha casa. (Corre entre as cadeiras da
sala o gato com cabeça de macaco, escala o piano e desliza, veloz, entre os jarros de
cor viva. Volta para a Gorda.) Que putos! Fazer isso com você. Ainda está com o
rosto meio inchado.
Encaminho-me para a cisterna. A coberta de zinco, mesmo protegida sob a
copa de três ou quatro árvores, estala ao sol violento. A água e o chão cimentado,
úmido, atenuam o calor. Neste mesmo lugar — onde a Cidade mais tarde surgiria
incitando-me à procura — várias vezes se cumpre, em mim, um rito arcaico. Raspo as
coxas (tenho doze ou treze anos?) e escondo entre elas o pênis ainda infantil.
Claramente, delineia-se o Mapa. Imagino ser, ao mesmo tempo, macho e fêmea. O
Recife, meu país, a Terra inteira, mapa deformado e arbitrário. Passo a mão esquerda,
de menino, na pele raspada e no púbis castanho; com a direita, feminina, aperto o
imaturo sexo invisível, dobrado para trás, oculto entre as coxas. Surge assim o mundo
— no mundo, eu — e com isto retorna a velha ordem imponderável que,
equivocando-me, creio aplacada: "Vai, homem, busca a Cidade". O corpo que então
me exalta e que conhece o gozo (ainda ácido) da carne é meu e não. Buscar a Cidade?
Onde e de que modo? Não terminou a caçada? Casal. Procura, Abel, a Cidade aqui
surgida e dissolvida. A umidade do solo penetra-me no corpo e a coberta de zinco
distende-se sob o calor. Cruza o silêncio um som de bandolim e de vozes juvenis.
Rumores sobem da copa o estanho da bacia sob o jato forte da torneira tilintar
de talheres água louça deposta no granito tinir da pia e as vozes. O vento agita
levemente a lâmpada. A sombra do anteparo de papel, movendo-se, desloca o nexo
entre os poucos móveis e as paredes. Abro a gaveta (seu odor de pólvora) e examino o
trabalho já extenso sobre as quatro velhas. No chalé, concisamente descrito, sondam-
se e falam sempre. Cada uma quer incutir no espírito das outras setuagenárias a
memória da sua própria vida; as demais deverão esquecer o que viveram e recordar
apenas o que ouvem. Todas, porém, ouvem três narrativas, as narrativas das irmãs.
Fossem narrativas diferentes e o caos talvez se instalasse, ao mesmo tempo, em todas.
Não é isto o que sucede. Irmãs, sempre viveram juntas e as suas lembranças
assemelham-se. Assim as narrativas, todas idênticas, fluindo, cruzadas e monótonas,
entre as quatro personagens. Uma e depois todas se apercebem disto. Ouço a história
da minha vida ou esqueci realmente tudo o que vivi e conto, julgando falar de mim, as
crônicas gêmeas das minhas irmãs? Não será mais seguro inventar uma biografia?
Antes isto que se diluírem no mútuo relato de eventos dos quais duvidam, mesmo
tendo-os vivido. Decisão geral e quase simultânea, com a qual tudo se desconjunta. A
memória assimila a invenção e cada velha, que tanto desejava impor às irmãs o relato
do que vivera, já não fala de si: conta um ser inventado. Cruzam-se pelos numerosos
quartos do chalé as quatro velhas e as suas narrativas. Quatro? Descobrem que são
cinco. Os relatos, como num vaso alquímico, podem ter criado mais um ser. Qual,
dentre as cinco velhas (e todas inventam e narram), será a clandestina? Ninguém sabe
e um ódio impaciente apossa-se de todas. Todas desejam ver mortas as outras.
Sobreviver será o atestado e a comprovação da própria identidade. Esta a razão dos
desejos maus e da espreita — e que, ao iniciar o conto, não me parecia clara. As
velhas passarão depois a confundir o número dos quartos, das portas, dos pratos.
Haverão perdido a noção das quantidades? Ignoram e continuam a não saber se serão
quatro ou cinco. O ódio e a necessidade de sobreviver às demais continua, exacerba-
do. A primeira velha morre. Morrem a segunda e a terceira. O conto encerra-se com a
imagem das duas últimas octogenárias, contem-plando-se na sala, sentadas, os velhos
punhos cerrados. Contemplam a própria imagem? Elas próprias não sabem. Não
sabem e tudo esqueceram, menos o ódio e a obstinação de perdurar.
Ando pelo chalé vazio. Atento ao desejado som dos sapatos de Cecília (cruze
o portão e venha, atravesse o alpendre, venha!), não escuto os meus passos no
mosaico. Cinco meses exatos que a conheço na casa de Hermenilda e Hermelinda.
Minha mãe, sentada em algum ponto da praia sob o guarda-sol de gomos desbotados,
o macaco vigilante no seu corpo, acompanha as manobras das jangadas. Passo ante o
espelho da sala e vejo-me. Marcas apagadas da agressão no meu rosto sem cor,
vagamente aterrado. Sento-me na cadeira de balanço. O forro azul de madeira, as
jovens fiandeiras na parede, o retrato do casal: o queixo agressivo do Tesoureiro e o
olhar mordaz — conquanto um pouco perplexo — da Gorda aos vinte anos.
Range o portão de ferro. Vejo, na minha cara, marcas da agressão, sento-me
na cadeira de balanço, as passadas leves de Cecília fazem mais leve o alpendre e a
tarde mais plácida, seu vulto surge na porta, risos seguem-na e outros vultos entram,
gente da lavoura, as mulheres com panos na cabeça, os homens com chapéus de car-
naúba, as caras ressecadas pelo sol (enrugadas ou riscadas de punhal?), mãos duras
como paus e os pés descalços uns cascos, as roupas em pedaços. Cecília, rindo, a
blusa amarela, a saia rodada, com desenhos de pássaros e flores, precipita-se em
direção a mim, com tal ímpeto que as cortinas vibram. Cheiro dos lavradores — suor
queimado e barro. As enxadas, as foices e os facões chocam-se contra as paredes.
Arde a pele de Cecília como esta hora da tarde.
A cabeça em macios travesseiros de macela, na colcha branca de rendas posta
pela Gorda — sobre a qual, de través, ela estendeu ainda uma toalha rubra, de linho,
com que me cubro em parte —, vejo Cecília despir-se. Os múltiplos odores de que o
quarto está impregnado, vindos desse vasos porejantes, cheios de refresco e água-de-
coco, das bandejas com talhadas de abacaxi, mesclados ao cheiro seco das folhas de
canela semeadas pelo chão envolvem-na: frutal e umbroso parece-me seu corpo. Os
sapatos claros, novos, jazem virados sobre a esteira que serve de tapete. Guarda-nos
um pouco de sermos vistos de fora a cortina de filé, numa só peça, com o leão
rampante mordendo a lua. Difícil, mesmo sem cortina, sermos vistos por quem passe
no oitão. O quarto, escolhido e aprestado com zelo, situa-se na ala oposta ao alpendre,
sobre a parte mais baixa do terreno. Estamos, com isto, expostos à ofuscante luz do
dia e ocultos: a altura da janela nos esconde. Escutamos as folhas de um flamboyant
arranhando as esquadrias (abram-se, em janeiro, suas flores sanguíneas), vemos o
ramo que atinge a cortina e invade o aposento, vemos o céu de índigo, imensas
nuvens brancas — e não somos vistos. Os rugidos do mar, não muito violentos,
morrem aos pés de Cecília.
Este amor, embebido da ânsia, nunca vencida, de resgatar meus atos e
escolhas infelizes, é magnificado com a circunstância de que no corpo de Cecília
(Cecília: corpo e corpos, homens e mulheres, suas fábulas) eu ame de modo uno, não
perturbado pela interferência purificadora — distanciadora, portanto, do espírito —,
seres numerosos e concretos. Fora do seu corpo, um amor como este é inviável ou
realizável apenas como operação mental. Então, será amor? Sua androginia acrescenta
ainda, às nossas relações, novos e provocadores significados. Não os vejo claramente
e devo guardar-me de decifrações, o que significaria decifrar Cecília. Contemplo-os,
atônito, como se contemplasse pela primeira vez uma figura geométrica, um signo,
ecoante de lembranças ocultas, de sugestões simbólicas e de nexos ainda não
discerníveis.
Nem tudo, aqui, é segredo ou verdade apenas intuída. Conciliam-se, bem vejo,
contrários em Cecília; e não posso isolar, na sua carne, a Mulher e o Homem. Macho
e fêmea, ela não distingue os inconciliáveis fundidos no seu corpo. Ama-me, então,
duplamente — mulher, homem — ou o macho difuso nela incrustado avalia-me com
hostilidade? Há, neste caso, um teor de repulsa na sua entrega? Pode suceder que o
macho e a fêmea cruzados em Cecília (contempla-me talvez com quatro olhos, dois de
mulher e dois de homem) amem-se de um modo absoluto, conquanto incestuoso,
amor impossível aos seres comuns. Todos os meus gestos, palavras, atos —segregado
e só que sou — seriam um simulacro desse amor, trespassado de ilações misteriosas.
Nos códices alquímicos, um hermafrodita, imagem das núpcias entre o Sol e a Lua,
morre e apodrece para renascer: dele se obtém a Pedra Branca, fermento para o
Reinício. Um símile impõe-se, por tudo isto, entre o andrógino e Jano, deus bifronte.
Encontrando-o, adquirem as minhas relações com Cecília, assim o julgo, uma
expressão insólita e mesmo assustadora. Indispensável, por enquanto, ao meu
comércio com o mundo, chegar à compreensão, ainda que imperfeita, da função do
caos e da sua natureza. Os dois rostos de Jano, gravados em tantas efígies monetárias,
representam, leio talvez em Ovídio, um vestígio do seu estado primitivo: nas trevas
onde o mundo ainda não existe, quando tudo é pesado e leve ao mesmo tempo, Jano,
deus dos limiares — e portanto das partidas e das voltas —, chama-se Caos. Liga-se,
simultaneamente, à ordenação e à desordem. Minhas indagações, neste caso, estão
escritas em Cecília?

O 23

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Ouço, ante a janela aberta, o mar nas pedras próximas? Uma criança, em
pranto, cruzou com leves sapatos o mal iluminado corredor do hotel? Respiro o ar
imóvel? Fala a alguém, em algum quarto próximo, turbada pelas ondas, uma voz de
homem? Tem resposta? Minha grinalda pende de um cabide alto. Itanhaém é o nome
da cidade e tudo surge — tudo: paredes, móveis, vestes, movimentos, sons — nas
inumeráveis palavras com que narro, horas e horas, até perder a voz e continuar a
falar dentro de mim, as minhas próprias núpcias e tantos outros eventos, sem perceber
sempre o nexo do meu discurso. De um modo convulso, aos saltos, descrevo o
progresso diário e insensato do meu amor sem amor. Meus sentimentos e atos são os
de quem ama? Contudo este amor é enganoso, um sortilégio. Descrevo-o e descrevo
os ofuscantes dias em que me faço de alheia ante o mecanismo há muito destinado a
mim, descrevo o apartamento da avenida Angélica onde vive Hayano com seus pais,
os tapetes encardidos, as poltronas de damasco alterado pelo uso, a prataria, o relógio
de Julius Heckethorn, toda uma série de elementos cênicos reveladores de vida
abundante em fase de declínio, descrevo os cerimoniosos chás, o pai de Havano, alto,
o queixo de mula, sentando-se em diagonal por causa das dores constantes na coluna e
fechando os olhos para degustar a infusão, Bilia, baixa e compacta, não é tão gorda
ainda quando a vejo atravessar sob a chuva o jardim ao lado do filho em uniforme da
Academia Militar, Bilia, cabelos aparados sobre a nuca vermelha, ingerindo sem
pausa chocolates e doces, pouco à vontade — vê-se — na poltrona (vive sempre
deitada em camas ou sofás), olha vez por outra para o filho através dos olhos
apertados, com uma expressão relutante, mas louvando-o, exaltando-o, ele há de obter
as graduações mais elevadas, todos hão de ver isto, descrevo a sua .voz, rolando na
garganta entre paredes espessas de gordura, seu riso vindo do esôfago sem que um
traço do rosto embotado pela enxúndia se altere, descrevo o ar de realização de
Hayano, a serenidade com que ouve as palavras opressas de Bilia, é evidente a
confiança dele nas promoções com tanta insistência e firmeza anunciadas, afligem-no
apenas o zumbir nos ouvidos e os sonhos de que sempre se queixa, únicos de que se
lembra, onde só os mortos aparecem, raivosos, em mil situações, isto e nada mais
torna-o apreensivo, eu descrevo os zumbidos e os mortos raivosos que se debatem
nesses pesadelos, descrevo Natividade, curtindo o resto da vida num asilo pago por
Olavo Hayano e repetindo a propósito de nada "Eu criei esse menino", descrevo a
cara negra, o olhar perdido, as mãos sem força, o riso que parece derramar-se em
contas pelo colo, descrevo nossas mecânicas visitas certas tardes de sábado ao asilo,
no Jaçanã, descrevo rapidamente as enfermeiras, as serventes, a companheira de
quarto de Natividade, mais avançada em anos que Natividade, olhos de menina,
tornozelos finos, laço na cabeça, vestido de ramagens, de ramagens azuis, sempre
cantando e dançando a tarantela (um modo de evocar alegres e distantes manhãs
napolitanas), descrevo a escultura colorida no jardim do asilo, em tamanho natural,
representando um homem de guarda-chuva aberto, sai água da ponteira e desce pelas
hastes, o guarda-chuva de zinco produz a sua própria chuva, chove sobre esse boneco
enquanto os asilados passeiam no jardim, ao sol, descrevo nossa ida ao asilo antes do
casamento, para que Natividade veja meu vestido e veja Hayano em uniforme de gala,
há um silêncio entre os velhos quando eu chego, de branco, a cauda longa, as flores, a
água cai do guarda-chuva pardo, Natividade abraça-me, sua amiga dança a tarantela,
os velhos seguem-me através do jardim, cruzamos de automóvel esse bairro
poeirento, com suas serrarias, seu tráfego pesado, seus depósitos de cal e suas casas
de paredes sujas, um menino perturba o silêncio da capela na tarde quente e opressiva,
eu descrevo a chuva repentina, ventos inconstantes agitam os dois ciprestes que
ladeiam o portão alto da Marquês de Itu, eis-me despindo o vestido de noiva e
jogando-o sobre esta poltrona em um dos quartos nos quais nunca se entra (as revistas
européias de 1912 e os frascos de perfume que só recendem a passado), descrevo a
viagem de automóvel, e o desalento e a cólera de Hayano quando constata as pre-
cárias condições do hotel em que se vê constrangido a pernoitar, ainda não existem os
alicerces do hotel quando o descrevo, mas tudo corresponde à minha descrição, o
colchão com suas molas frouxas, a lâmpada pendendo de um fio sobre a cama de
espaldar alto, o estuque áspero, as paredes róseas, o abajur de cabeceira com pequenas
flores na cúpula amarela, o toucador com três espelhos ovais, as cortinas cinza com
desenhos em laranja e negro, os descorados tapetes sobre a madeira brilhante do
assoalho, o alto cabide com a grinalda num gancho, uma criança chorando através do
corredor não muito iluminado e eu própria de pé frente à janela aberta, escutando o
mar bater nas pedras próximas e respirando este ar, este ar imóvel como pedra.
Sentada ante os espelhos, no toucador, ponho a grinalda e examino-me. Vinte
e três anos e catorze anos, eu e eu, fundidas no reflexo, serena e aterrada, penteando
os cabelos platinados e ruivos, os cabelos abundantes, soltos sob a grinalda, eu, em
rosto dos espelhos, cabelos, carne e vestes quase não cabendo nos ovais dos vidros,
meus olhos cor de folha seca e com um ar de armadilha olham com força dupla a
imagem antígua (pode-se crer que se move sob a lâmpada o modelo de um postal
anterior à Primeira Grande Guerra, com seus braços carnosos, fronte estreita e claro
rosto sombrio), meus lábios salientes seriam iguais aos de uma negra se demarcados
com menos nitidez e meus peitos bojudos sob as roupas amplas, guarnecidas de
arminho, franjas, passamanes, folhas, rubàs, rendas e laços, exalam um odor fresco de
jasmins — o odor que desprende Ira em repouso — e não sei também se de cartões-
postais roídos pelas traças.
Hayano entra no quarto, aproxima-se de mim e tira-me a grinalda. Eu o desejo,
é um desejo ácido, com gosto de vinagre, ardo de desejo e ardo de pavor: queria fugir,
mas quero ficar, fico (o pacto firmado na noite em que luto e luto no chão, luto, até
que surge a manhã, estabelece: seremos uma e uma, una, para tudo o que vier, somos
uma, sou uma), ele me inclina sobre os lençóis, o abajur ao lado da cama está aceso, a
lâmpada pendente de um fio está acesa e se reflete no espelho oval do centro, com
qualquer coisa de meticuloso nos gestos Hayano despe-me a camisa rendada, cai
sobre mim, frases ditas por um homem ecoam em algum quarto próximo, Hayano
rompe-me o hímen, os himens, o lustre sobre nós, cristais e objetos de prata oxidando-
se aos poucos na penumbra, as palavras do homem ecoam sem resposta, presa entre os
braços de Hayano eu me debato, de prazer e de horror eu me debato, ele conhece-me,
estupra-me, grito de ebriez, choro de medo. Fere-me o sexo de Hayano, duas vezes
me rasga, gélido, e então eu sinto o Avalovara, o pássaro, deixado em mim pela
passagem de Inácio, dobrar-se sobre si, transido, como se a fria glande de Hayano
fosse a vinda de um inverno rigoroso e súbito: a ave perde o bico e a voz, reduz-se a
um esqueleto, gravado em mim como na pedra o esqueleto de um fóssil — sem a voz,
sem a plumagem,
Passa um grupo de bêbados, em alguma rua próxima ao hotel. Cantam,
pastosamente, versos esparsos de carnavais antigos. Que horas serão? Três? Olavo
Hayano acende a lamparina dentro do copo vermelho. O abajur e a lâmpada no fio
continuam acesos, ele observa minha nudez. Com um punho fechado sobre os olhos,
deixo que o faça e não procuro cobrir-me. Senti prazer? Sim, mas ignoro se este é
realmente o que se deve sentir. Ele se debruça e beija-me no rosto. Abro todos os
meus olhos, flores carnívoras, fito-o, olhos abertos. Por que é gélida a extremidade do
seu sexo? Sorrateiro, estende a mão esquerda para o abajur. Com um dos seus gestos
inesperados e rápidos, faz incidir a luz sobre meu rosto. Dou um golpe na lâmpada,
voa a lâmpada e tomba no tapete, Hayano segura-me pelos cabelos e tenta ver o fundo
dos meus olhos. Lutamos sobre a cama. Para quê? Desisto de esquivar-me, de esqui-
var o rosto, os olhos, e afronto-o, as pálpebras abertas, todas, para que ele veja — e
ele vê, e grita que eu tenho quatro olhos nas órbitas, uns por dentro dos outros,
marcha o relógio de Julius Heckethorn, um trovão à direita, outro à esquerda,
explosões distantes e espaçadas, sua voz monótona revela acusação e menosprezo.
Que olhos são estes? Como nunca os viu?
Com lentidão estudada, cerro sob seus olhos as pálpebras mais novas. Quer
ver apenas o olhar que todos trazem, o olhar que o vê sem o relevo e a cor com que
ele deve ser visto? Que o veja. Fita-me ainda um instante, solta-me, apanha no chão o
abajur apagado, apaga a lâmpada do teto e pede-me perdão, deita-se. Fica no quarto
apenas a luz da lamparina.
Ele adormece, mas para mim não vem o sono. Assim é, digo a mim mesma.
Exatamente. À luz da lamparina: estuque, paredes, cortina, seu rosto, o espelho. Terão
os homens, todos, a glande fria? Ele ressona, inquieto. Faz calor.
Levanto-me e abro mais a cortina; falta-me o ar. Hayano mexe-se. Atravesso o
quarto, nua, abro o guarda-roupa, procuro uma camisa sem tantos enfeites. Dou com a
vista num coldre. Vazio? Debruço-me, sopeso-o: contém uma pistola e cheira a
cavalo. Dói-me o baixo-ventre, eu sinto-me estuprada, tiro a arma do estojo e aponto-
a para o vulto debruçado no leito. Existe uma pistola? Então nada falta — constato.
Acrescento que a hora se aproxima. Guardo a arma no coldre e a ponho no lugar, no
mesmo, de onde a retiro. Contudo, não troco de camisa: visto, com movimentos
medidos, a que tenciono substituir. Deito-me, fecho os olhos, ouço-o murmurar. É
quando sopra o vento, tão fresco o vento que eu estremeço e me cubro. Adormeço.
De súbito, abro os olhos: o vento deve ter apagado a lamparina. De costas para
o homem, nada vejo e quero — é um desejo exigente — saber que horas são. A noite
me parece longa, tenho a impressão de haver dormido dias e dias seguidos. Tento
ligar em vão a lâmpada do abajur. Falta luz no hotel? Na cidade inteira? Além do mar
e das ondas quebrando-se nas pedras, nada ouço. No quarto, há um halo remoto —
talvez a luz das estrelas — e a temperatura está mais baixa. Levanto-me para fechar a
persiana e a cortina. Neste momento, a luz de um projetor varre as paredes. Aproveito
para olhar o relógio: são quatro horas e dois minutos. Vêm as luzes de um navio
fundeado ao largo como que extraviado no tempo e é impossível imaginar por que
seus projetores falam à cidade a essa hora da noite. Cruzo os braços por causa da
frieza, volto-me para o homem adormecido. Ele ressona e eu vejo-o de face. As luzes
dos refletores acendem-se e apagam-se, rápidas. Uma mensagem? Para quem?
Mensagem ou não, esse piscar me aturde. Falta alguma coisa em tudo isto, neste
quarto em que respiro com a boca aberta, neste minuto que vivo, um elemento
discordante aqui, isto eu afianço. Digo a mim mesma, apesar de tudo: "É agora". Mas
o que é agora? Não sei.
Contudo, sei. Distingo mal, é certo, na emaranhada rede desta hora, as razões
de tudo, conquanto saiba que ela constitua um resultado, a resposta a um cálculo:
outras horas, inúmeras, encontram-se e ressoam aqui. As cerimônias, previsíveis que
são na sequência e no ritmo, simulam um domínio sobre o futuro (ou do que tem esse
nome de futuro). Meus gestos e as circunstâncias que os cercam lembram um
cerimonial. Como um autômato, volto ao guarda-roupa, abro a porta e curvo-me. Um
cão ladra e responde. As luzes do navio latejam nas paredes, mais rápidas que antes.
Tiro a pistola do coldre, volto a fechar a porta, retrocedo alguns passos, fico no centro
do quarto. Que dizem os projetores?... Entra e sai da penumbra o perfil de Olavo
Hayano. Dou volta à fechadura, cruzo a porta que abre para o corredor. Insegura,
distancio-me. Algo, na cena, reflete um determinado momento da minha vida e eu
tenho clara consciência disto. Bate uma porta, longe. Estouram as ondas contra as
pedras. Volto ao quarto e deixo a porta aberta. A outra, em outro andar, continua a
bater. Sento-me ante os espelhos ovais do toucador. O cão late ainda. Os projetores do
navio não cessam de pulsar. Meu rosto e meu vestido — o busto alto, as rendas, braço
direito, olhos, os cabelos caindo sobre os ombros — surgem e desaparecem,
triplicados. Eu abro o colo, apalpo a carne do peito e volto sobre mim o cano da
pistola. A explosão ressoa como no fundo de uma cisterna.

P 4

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN


Recebe Julius Heckethorn, junto à família paterna, uma educação afim à sua
índole e pouco clarividente em relação aos anos que, no âmago de outros, são
engendrados. Lê muito, principalmente obras vetustas e pouco conhecidas. Num dos
livros impressos pelos tipógrafos de Basiléia e recenseados por Charles W.
Heckethorn, encontra indicações, incompletas e vagas, é certo, sobre um relógio
doméstico, provido de três sistemas de som e inspirado, em parte, no relógio de
planisferio construído em 1344 por Santiago de Dondis, médico-astrônomo de Pádua:
o tríplice aparato sonoro, uno e sincrónico em sua origem, deveria seccionarse,
ficando tão exposto ao acaso que bem poderia jamais voltar a ser ouvido na íntegra.
Não consta, informa o incunábulo, que tenha ao menos sido iniciado e escasseiam
notícias sobre o projeto, aliás inviável para alguns entendidos. Julius é ainda uma
criança, mas o apaixona este sonho caprichoso e as notas tomadas na ocasião o
acompanham durante anos.
Com o armistício, emudecem os carrilhões do pai. Este, antes de perceber que
a sua falência é irremediável, descobre que a esposa, por quem deixa e esquece o país
onde nasce, mantém ligações íntimas com um agitador. Enganado pela mulher, pela
vida, pela história, pelas resoluções da juventude e pelas fantasias de que em outros
tempos se nutre, suicida-se com um tiro na cabeça. A bala e o revólver que utiliza em
seu último gesto são ingleses, numa espécie de fúnebre reconciliação com o Reino
Unido. A outrora jovem Erika Haebler desaparece na fumaça, no pó e nos detritos de
1918.
Enquanto progride em sua aprendizagem musical — revelando, com alguma
precocidade, predileção por Mozart — e acentua o gosto pelos livros pouco
divulgados, Julius abre um novo campo de interesse, a arte da relojoaria. Não lhe é
difícil entrar como aprendiz numa fábrica de Southampton, onde, graças aos seus co-
nhecimentos teóricos do ramo, logo é promovido a montador. Define-se, enquanto
isto, o desejo de voltar à Alemanha e reabilitar se possível a oficina de carrilhões, que
sobrevive em sua memória, não obstante Mozart e o cravo, como um Éden povoado
de sons e do qual se considera banido.
Aos vinte e um anos vê-se afinal em Colônia. Provê suas despesas executando
ao piano músicas da moda, à hora do chá, num hotel próximo à Catedral. A herdeira
de um abastado corretor de Münster, pálida e frágil, de passagem na cidade para
submeter-se, aliás sem esperança, a prolongados exames numa clínica (sofre de
cegueira progressiva), é atraída por esse jovem de modos refinados e que fala com
sotaque britânico a língua alemã.

O 24

HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA

Quatro e cinqüenta e seis. Sorvo a boca de Abel, falo na sua boca, dentro da
sua boca, digo que o amo, com a língua enlaçada em minha língua ele diz que me
ama, rola entre nossos dentes a palavra amor. Feita de nuvens grossas, envolve-nos,
veloz e prematura, a noite de novembro. Desdobra-se, ecoante, um trovão surdo e
móvel: circular. Cerro os olhos. Outra noite, interior e porosa, cerca-me: estou no
campo, em algum ponto da Terra, uma planície. Ouço as árvores, suspensas nas
trevas, suas grandes copas gotejantes, ouço-as como se fossem repuxos, todo meu
corpo escuta-as. Estão cheias de pomos. Há um bater de asas sobre nós e este bater de
asas cria nas trevas o espaço celeste — como um chamado no silêncio cria uma
presença. O céu sobre mim, com o peso dos seus astros. Meu corpo vê os astros. O
céu é negro, os luzeiros são negros, e as aves ligeiras, e as árvores frutíferas, e eu, e a
planície na qual estou deitada. O Avalovara renasce no betume, livre da mudez e da
imobilidade a que está condenado desde a hora em que Olavo Hayano me estupra com
sua glande fria; empluma-se o esqueleto de fóssil incrustado na minha carne (como,
na memória, um nome), desata-se, leve, com seus ossos de ar, fogo de artifício
rompendo as trevas compactas. Abro os olhos: Avalovara, o pássaro do meu con-
tentamento.
Março chuvoso e quente. Deitada no sofá, entre almofadas, ante as cortinas
abertas do apartamento, ouço os veículos que passam na Consolação e acaricio a
cicatriz. Quando não estou reclinada no sofá, ando sem ânimo entre as vistosas
poltronas e as molduras douradas das pinturas de gênero adquiridas por Olavo
Hayano, mudo de lugar os enfeites que detesto — narguilés, bichos de vidro, bonecas
japonesas — e aos quais vêm juntar-se todas as semanas outros semelhantes, deito-me
de través na cama de casal ou fico ante os espelhos, penteando os cabelos.
Experimento, com vagar, meus vestidos leves e floridos. Um dos três quartos do
apartamento é fronteiro à área cimentada sobre a qual os moradores dos andares de
cima jogam cascas de fruta, embalagens usadas, pedaços de papel e folhas de jornal.
Aí, ao cair da tarde, sopra um vento rápido, preso entre as paredes; gira uma hora,
duas, com tal velocidade que as folhas de jornal, de castigadas, fazem-se em pedaços.
Fico ante a janela envidraçada olhando as espirais de detritos e de pó grosso. Sob essa
mesma janela, quando chove, as águas pluviais gorgolejam, sorve-as não sei que
conduto dissimulado nas lajes. Esse rumor e o vento bravo do pátio são na casa as
duas coisas não compradas e impostas pelo dono, as únicas. Aposso-me de ambas e a
elas me prendo.
Pela centésima vez, Hayano rompe o silêncio e me pergunta: "Por quê?". Para
ele, tudo tem causa, por força. Pela centésima vez deixo de responder e o silêncio
instala-se novamente entre nós. Insiste, feita a pausa, sua voz neutra e um pouco
ansiosa: "Qual foi o motivo? Tenho o direito de saber". Esses dias de abril são mesmo
luminosos como os vejo? Vejo-os tão claros por causa da energia que renasce em
mim? À medida que me voltam as forças, acaricio menos a marca da bala e cresce a
insistência com que ele me interroga: "Por que atentou contra a sua vida? Com a
minha própria arma! E se houvesse morrido?". Rejeita, sem explicações, minhas
tentativas de trocar um adorno ou de dispor os móveis a meu gosto. Não consente
sequer que eu determine a respeito de vestidos: acompanha-me às lojas e escolhe-os
por mim. Cerceador, corta-me os passos. Pai e patrono. Adormecida em mim a
serpente pelo sopro de Inês, toda a minha rebeldia consiste em esconder, para que não
sejam examinados, os livros que estou lendo e em despedir as empregadas, cujos
uniformes passam de Antônias a Franciscas, a Ritas, a Edwiges. Também, ante o pátio
cimentado e sujo, fruo o que não é de Hayano. Muitas folhas de jornal, aí, rasga o
vento em agosto, mas poucos são em setembro os que caem na armadilha do pátio e
não chove nesse mês, nem chove em outubro. À noite, ausculto-me e busco os restos
do esporão. No copo vermelho, a lamparina estremece. Aspiro o vazio de Hayano
como quem aspira um odor de ossos.
Ataviado com todas as cores dos pavões, o Avalovara lembra um manuscrito
iluminado. Nele, quase é possível ler. A cauda é longa e curva, com reflexos de cobre.
As asas, seis, de um tom verde-celeste quando repousadas, ostentam na face interna,
quando abertas, círculos de muitas cores, dispostos com simetria sobre fundo
escarlate. Vejo-as adejando e nada ouço. Ele voa, o pássaro, da mesa para o chão e do
chão para cima do relógio, como se fosse oco, um pássaro de ar. Trançadas no seu
peito, faixas e fitas roxas. Da delicada cabeça, parecendo ornada com um diadema de
pequenas flores e encimada por uma espécie de língua, descem longas plumas muito
claras, semelhantes a flâmulas. Rosa-brilhante o resto do corpo. Bico rubro e curto,
olhos oblíquos. Quando esvoaça, aflante, o mover das seis asas desprende um odor de
paina e não parece que voar lhe pese: todo o seu corpo é asas. Cai a chuva, cai no alto
dos prédios, atirada com força pelo vento, cruza os andaimes, emaranha-se nas
árvores, lava as paredes voltadas para o sudoeste.
No Período Triádico, os grandes sáurios passeiam sobre o mundo como se
fossem eternos. Surgem os pequenos mamíferos, de passo leve e discretos. Os sáurios
nem os percebem. Continuam em sossego, movendo os ossos que rangem como as
madeiras de um barco, mas já estão condenados; os sutis intrusos, que não podem
enfrentá-los, furam seus ovos e sugam o conteúdo. Toda arma é boa para sobreviver
ao domínio dos mais fortes e reduzi-los a nada. Eu não caço o amor, nem o júbilo,
nem outras exaltações, nos estranhos com quem em camas estranhas me deito: caço
Olavo Hayano, atinjo-o — este é meu chumbo, minha boca de fogo — abrindo as
pernas a outros. Nem sempre esses outros são torpes nos afagos e às vezes se mostram
hábeis entre lençóis. Meu gozo, quando vem, é mudo, soturno, eu travo os dentes e
clamo: "Inferno!". Corto-me em pedaços, como Inês corta instada por mim seu uni-
forme sujo. Deixo-me ofender e assim ofendo, rasgo. Mas o esporão volta a crescer,
nas coxas, na cara, nos olhos, não sei onde — cresce. Recebo ainda, em mim, a glande
fria de Hayano e continuo estéril. Ele não faz comentários.
Trovões pesados, baixos — grandes rodas de ferro avançando em salões
assoalhados, sem portas e amplos como a Terra. O Avalovara, assustado, desce do
relógio, sobrevoa um segundo o dorso de Abel e vem pousar no tapete, Duas ou três
penas se desprendem, esvoaçam, retornam ao seu corpo. Descubro: é um ser
composto, feito de pássaros miúdos como abelhas. Pássaro e nuvem de pássaro
Hayano traz um cão para o apartamento, um pequeno cão policial, de hálito
podre e olhos perversos. Sob a pele do peito, oculta no pelame faiscante, há uma
pequena cartilagem, ponto duro, semelhante a uma cabeça de alfinete. As mãos de
Abel afagando meus cabelos, as violetas que nascem em meus cabelos. Morde me.
Morde-me os lábios e a pressão dos seus dentes faz ressoarem cincerros no meu
ventre. Hayano: "Por que o tiro?". Volto a cabeça, reticente. O cão fareja-me e segue-
me, mostrando os dentes. Afeição? Suspeita? O pássaro ergue vôo e se olha ante um
espelho. Cincerros no meu ventre. Eu, feliz? Eis-me feliz. Cresce o cão à medida que
se deita, ou se levanta, ou come, ou rosna. Há agora no seu peito, furando o couro, um
bico. Um bico adunco, como se uma ave de presa, embutida no cão, tentasse dilacerá-
lo, e sair. Nenhum dos meus gestos escapa ao seu olhar canino e como que munido de
presas amoladas. Sai do letargo a serpente, enleia-se nas minhas costelas outra vez,
estende a língua bífida. Sonda o tempo. Envolvo em carne crua as lâminas de barbear
de Hayano e jogo-as para o ar, na direção do cachorro. Ele cresce e engole-as,
sôfrego: continua a olhar-me, crescendo e observando-me. Quer mais? Jogo-lhe a últi-
ma. Ira, a serpente, move cauda e cabeça. Fulgurante explosão, decerto um raio
próximo. O pássaro, ante a janela aberta, bate os três pares de asas. Hayano afaga o
cadáver peludo. Do bico na barriga do cão escorre um fio de sangue. Ouço a pergunta
de Hayano, sua voz surda e remota: "Quem matou?". "Eu." "E o tiro no seu peito?"
Sinto, dois, o sexo de Abel em mim, duplicado, uma forquilha. Eu: duas. Dupla
penetração e alegria. Bater de portas, Hayano acende e apaga as lâmpadas,
nervosamente. Lança-me gritos e queixas. Entro no elevador, subo para o alto do
edifício. Através da neblina, um anúncio luminoso, branco e vermelho, some e
reaparece. A chuva cai mais forte e bate na janela junto à qual eu e Abel nos amamos,
densa, esgarrada pelo vento, entra pela outra janela e molha o chão. Cabras e leoas
voam em nossos corpos, olhando para trás. Do alto do edifício, vejo as luzes da noite.
As peças de tração do elevador rangem e estalam. Em algum ponto uma palavra
ressoa com insistência, um nome, alguém chamando: cessa afinal o silêncio do meu
corpo. Roçam meu peito os pêlos cor de cobre de Abel. Funde-se dentro de mim seu
ramo bipartido, fendas semelhantes às fendas das romãs, as mariposas verdes e
vermelhas escapam pelas rachaduras, adejam no meu corpo, afloram os ombros de
Abel e logo surgem, trançadas, feitas de lã e seda, nos desenhos do tapete, imóveis.
Este grande anúncio luminoso, que aparece e morre, com as suas estrelas, seu escudo,
suas letras, em que braço do tempo se extravia e cruza comigo, à deriva? Uma
explicação insinua-se de modo enigmático, neste acender, neste apagar. Peças
esparsas conjugam-se e eu julgo entrever a razão por que meto uma bala no peito em
minha noite de núpcias. Desvela-se a estrutura até aqui incompleta e inacessível à
parte mais grosseira do meu entendimento. Quatro e cinqüenta e oito? Os objetos
claros e as paredes guardam o fulgor dos relâmpagos. Volto ao apartamento — seus
bichos de vidro, seus narguilés —, apago todas as luzes. O Avalovara (as asas bem
abertas, os pequenos saltos ondulantes) move-se em torno de mim e de Abel. Hayano
agora ressona. Distingo, nitidamente, dentre os murmúrios que transbordam de sua
luta com os mortos furiosos, a interrogação de sempre: "Por quê?". A lamparina
dentro do copo vermelho. Ponho a mão sobre o copo, minha palma arde, a chama
apaga-se. Um alarido parece vir da rua, subir pelo edifício e tomar-me: vozes
instigadoras falam no meu corpo, vão e vêm. Volto-me para o leito, nada altera a
escuridão do quarto, abro quanto posso as oito pálpebras, um rosto inesperado (ou
esperado?) surge da sombra, dotado de uma luz mortiça e enevoada, um rosto
impalpável e como que plasmado em fósforo — e eu vejo a resposta exigida sem
trégua ao longo desses anos, sim, vejo como saltei em minha noite de núpcias,
enquanto giravam no quarto os refletores, por sobre um elemento insólito e perdido no
tempo, um navio (fantasma?), uma ausência-fantasma, vejo-me reatar, voltando
contra mim o cano do revólver, a seqüência descrita nos dias em que estou narrando a
minha vida, vejo o que sei e apesar de tudo preciso ver com os olhos para que seja
pleno tal conhecimento, vejo, Hayano é um iólipo. Levo a mão à cicatriz. Proliferam
as mariposas, minha voz cortada se mistura com os dois bichos que em nossos corpos
fundidos rugem, latem, bramem, balem e berram, dobro os joelhos, estendo-me no
chão, devagar, o rosto contra o chão, a ave nos rodeia, leve, gira na sala, eleva-se um
pouco, pela primeira vez eu sigo o cão de Hayano, o gavião bate as asas no seu tronco
de cão e este me conduz, língua para fora, por um subterrâneo tortuoso, a descida é
árdua, mas descemos, o pássaro de Inácio Gabriel foge pela janela, volta (passa por
vigas e tijolos), eu e o cão saímos afinal da galeria, descortino um vale de cor parda,
seres deitados povoam-no, raios rasgam a tarde escura e iluminam o pássaro, tento
ainda descer mas o último lance da descida é íngreme, desisto, brilha no ar o
Avalovara como se fosse oco e os raios fulgissem dentro dele, sento-me no alto da
falésia, descalça, os pés pendentes, oscila o pêndulo, Abel e sua aura, vindos de
tempos por ele próprio esquecidos, arribam ao centro inflamado do meu ser, sejam
atribuídas pausas longas, de ponto, a estas vírgulas, do outro lado do vale dois
desconhecidos tangem tartarugas e arrastando-se na terra imitam a sua marcha, ganha
altura o Avalovara nos ares agitados, devassa numa espiral que se amplia as estradas
dos trovões, sobre baixadas cobertas de água lamacenta, fábricas, casebres derrubados
pela chuva, crianças afogadas na enxurrada, quatro e cinqüenta e nove (Morde me!),
lagartixas e outros pequenos répteis viscosos saltam do vale e aderem às plantas dos
meus pés, vasto é o círculo traçado entre as nuvens pelo Avalovara, e nós somos o
centro do seu vôo, esfrego os pés para livrar-me dos répteis, quando uns caem outros
pulam e aderem com força à minha pele, tenho-os sempre nos pés durante o tempo em
que perdura a visão (Basia me!), alteia-se ainda o Avalovara entre relâmpagos, e de
súbito percebo que um pássaro igual — o mesmo? —,quase legível e também feito de
pássaros, voa em nossos corpos unidos, leve, entre as ramagens, as mariposas, o
crocodilo, o coelho e os animais de gargantas ruidosas. Voa em nós e canta. Estranho:
canta em duo, com voz humana e repassada de misericórdia.

T 16

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES

Nua e apenas mantendo, no braço, sua pulseira com astros de ouro e moedas,
Cecília aproxima-se da cama. Ajoelha-se, o pênis enristado pousando entre as coxas e
como que suspensos os grandes peitos redondos. À luz que atravessa, na cortina, a lua
e o leão, desvendam-se novas figuras do seu ser cambiante e povoado. Seria este a
memória — a minha e a sua, fundidas? Não. Será, quando muito, uma metáfora
imperfeita e viva da Memória.
Tivessem os habitantes deste corpo o caráter de imagens, de representações,
limitar-se-iam a repetir palavras e ações de outro tempo, submissos a uma realidade
outra, exterior a eles e já ultrapassada. A autonomia de tão surpreendentes criaturas,
ao contrário, é ampla. Assemelham-se aos entes da memória em não estarem, no
corpo de Cecília, sempre visíveis, presentes sempre, como indivíduos encerrados num
salão. Surgem, sucedem-se, apagam-se, obcecam; e o espaço que ocupam, se ocupam,
é imaterial, não um espaço físico.
Supor que Cecília, no espírito e na carne, altera-se quando outros corpos
abandonam a doce curvatura dos seus ombros, dos seus peitos ou dos seus quadris —
e que agem fora desses limites —, seria errôneo. Aos homens nascidos de mulher,
identificam-se tais corpos, opostos às abstratas personagens das recordações, em dois
pontos básicos: agem em função dos seus próprios impulsos e resoluções; ocupam,
em grau variável (entendido que a sua existência é verdadeira, e de modo algum
imaginária), um espaço físico, não imaterial. Quando, contudo, deixam ou invadem os
limites sensíveis do corpo de Cecília, não o diminuem ou acrescentam verdadeira-
mente.
Cecília, na colcha de rendas, joelhos meio afastados, mãos acima da cabeça
segurando as grades de latão, espera. O rosto pálido e tenso, pálpebras cerradas, a
respiração fora de compasso. Homens e mulheres, ociosos ou entregues a afazeres
rústicos, inclusive os lavradores que com ela irrompem no chalé (plantam e capinam
na carne de Cecília, sem que chegue a mim o rumor dessas tarefas), movem-se no seu
corpo.
São, seu corpo e esses corpos, sobre a colcha de rendas e a toalha vermelha, de
uma vez, corpos e espaço circundante, são corpos e também atmosfera — uma
atmosfera aprazível, umbrosa e repassada de odores frutáis. Beijo seus côncavos:
entre peitos, garganta, umbigo, cintura, sobraço. Com a língua (crianças brincam nas
coxas cada vez mais afastadas), sopro seu pênis ereto e nem assim viril, embebido na
feminilidade que a envolve. Chamam-me, na sua boca, duas vozes simultâneas? Duas
vozes, grave uma e outra aguda, gemem: "Vem!". Com extremo cuidado, trespasso-a,
da cabeça aos pés ela estremece, eu estremeço e por três vezes, sentindo no dorso,
insofridas, as unhas de Cecília, sou admitido ao mundo do seu corpo — onde três
vezes, com diverso grau de intensidade, eu a encontro. Que sabe, da queda, um
homem, no instante em que perde o equilíbrio e tomba? Ele sofre o acidente e a sua
experiência é um gênero vertiginoso de conhecimento. Assim minhas passagens no
cerne de Cecília. Perfuro o mundo do qual tantos viventes irrompem e que nada abre,
nada, à introdução do meu corpo. Agora, rompo-o, atravesso-o e tão limitadas estas
admissões, tão velozes em sua nitidez, que ingresso e expulsão parecem simultâneos.
Vejo-me, primeiro, durante o breve momento em que Cecília, cravando os
dentes no meu ombro, ordena rouca: "Mais!". Vejo-me à sua frente, ambos de pé e
nus. Ela, segurando uma orquídea contra o peito raso, ostenta o membro sedoso e
desejável; sinto, eu, com o peso dos seios, o peso de ser fêmea e espero que Cecília
me penetre. Meu pai, alegre, protege-nos com um pálio escarlate e traz no ombro um
garço. Vejo-o com o pálio e a ave, vejo-o através dos meus olhos e também com os
seus nos vejo. Pequenos animais, leves como palavras, voam em torno de mim e de
Cecília ou passeiam em nossos corpos: aranhos, grilas, formigos, efeméridos, vespos,
vagaluzes, cantáridos, escorpiãs, cigarras. Trilam as grilas, noturnas; as cigarras
zunem. Cecília range os dentes e atira a cabeça para trás.
Este movimento corresponde à segunda incursão na sua substância. Ela,
vestido leve e claro, corre à minha frente, feliz, a mão esquerda estendida para mim.
Acompanham-nos (e da sua presença estamos penetrados) homens e mulheres do
povo: estivadores, caixeiros, engraxates, pescadores, marafonas, lavadeiras, artistas de
circo, empregadas domésticas, costureiras, caiadores de paredes, lavadeiras, camelôs,
enfermeiras, vendedores de grampos, de pássaros, de alfinetes, mestras de primeiras
letras, pedreiros, sacristães. Planam, acima de nós, como se fossem alados, bichos do
chão e da água: rãos, lontros, peixes-vacas, emos, búzias, tartarugos, camarás, arraios,
lesmos, calangas, suçuaranos. Sob os nossos pés, fundo, o rumor de muitas vozes
raivosas ou festivas. Ouvindo-as, compreendo: os homens e mulheres que nos cruzam
estão vivos, mas mudos — e o seu clamor ou os seus risos enterrados.
Incorporam-se na minha última visão, ao mundo orgânico, arcos e colunas?
Vejo-os, realmente, enquanto uma voz de menino, às nossas costas, narra o
casamento, imperiosa? A figura do bispo, imponente, erguendo as mãos como se
fosse declarar-nos unidos (rosto de mulher) sugere um espaço solene e amplo.
Existam esses grupos de crianças entregues a seus jogos infantis e esses jarros com
flores. Os braços abertos do bispo realçam os paramentos suntuosos. Cecília e eu,
ajoelhados, somos um. Seus, no corpo que formamos, perna e braço esquerdos; meus
o braço direito, a perna direita; duas as nossas cabeças; subsiste um seio, o esquerdo,
em nosso busto. A mão direita segura a mào esquerda. Voltam-se nossas cabeças,
fronte contra fronte. Nosso corpo, favos rompidos de mel, exala o gozo carnal.
Esplendor? A pele: chama latejante. Gritamos e tombamos. Um hausto, duas
gargantas, grito uno. Ouço o barulho do mar e vejo as grades da cama, as palmas do
coqueiro, o leão rampante. Nuvens sanguíneas e longas, com reverberações de ouro,
iluminam o corpo brilhante de Cecília: braços para o alto, o pênis ainda pulsando.
Sobre a esteira, deitado, o carneiro rumina folhas de canela. Cecília volta-se e abraça-
me outra vez. Tilintam as moedas e astros no seu pulso.
Breve estação de um amor sem perguntas e indiferente a toda espécie de
projetos. Andamos pelos quartos e salas do chalé, sempre nus ou ataviados com os
velhos colares e chapéus que achamos nas gavetas. Cecília, o bandolim de Leonor no
peito, sob as réstias que atravessam as bandeiras coloridas das janelas, a cabeça e o
corpo manchados de vermelho, de azul, de verde, arranca notas soltas do instrumento.
Subsistirá ou não, dentro do mundo, o oposto do mundo? O universo: também um
andrógino? Questões logo esquecidas.
Ecoam, com seus dias cálidos e súbitos crepúsculos, os meses desse verão
inebriante, como teclas de um órgão calcadas sucessivamente e cujos sons se
fundissem. Na carne de Cecília, comparável à memória e à imaginação, espaço
franqueado ao meu testemunho apaixonado e onde se tornasse sensível a operação
daquelas faculdades gêmeas, ocorre um fenômeno novo. Surgem, na sua carne
multiplicável e da qual, na hora em que pela primeira vez nos amamos, e só então,
invado o núcleo (invasões ou admissões que duram o tempo de um disparo), surgem e
desaparecem com a mesma rapidez, em meio aos outros homens e mulheres, seres de
outra espécie, cheios de força e como iluminados de dentro. Não posso vê-los bem,
tão depressa se esbatem. Despidos, vestem-nos apenas os anéis com pedras preciosas
e os chapéus em forma de chavelhos, mas sente-se que estão armados e seu olhar tem
um peso de aço. Trazem, na testa, números negros ou brancos. Com semanas de
intervalo, desperta-me no âmago da noite o impulso de buscar. Buscar? Mas onde? O
quê? Pronuncio, como um esconjuro, o nome de Cecília e outra vez adormeço. A
graça de vê-la e o meu desejo sem fundo tudo absorvem e apagam. Zumbem as coisas
— portas, móveis, piso de mosaico, ar —, golpeadas pela sua presença. Quando, ao
fim da tarde, beija-me no alpendre e parte (e quantas vezes, ao voltar-se no portão,
corre, sobe os degraus, beija-me ainda?), rangem as paredes da casa. O vácuo e o
silêncio atingem cada osso. Acendo dois rojões, que explodem e lançam no céu quase
noturno luzes de estrôncio e magnésio. Minha mãe traduz, na praia: "Pode voltar".
Mas o que escrevo ou pronuncio, com estas explosões e riscos luminosos, lançados
tão alto, é o nome de Cecília. Deito-me na cama em desalinho, impregnada de todas
as suas presenças e das suas palavras amorosas. A Gorda: "Epa. Tomei sol e vento
que já estou ourada. Vocês se acabam. Ela é boa assim de cama, Abel? Conta pra
mim. E eu pensando que ela era meio homem!". Cada vez é mais imperioso ouvir
tombarem os vestidos de Cecília na esteira do quarto, enquanto o vento move os
ramos do flamboyant; e repetir, sob formas sempre novas, vigiados pelo leão
rampante, nosso prazer tríplice. Sugere-me uma tarde, meu rosto no seu ombro e uma
perna sobre a minha: "E se nós nos matássemos, Abel?". O rumor do mar dissipa-se
no quarto. "Seria perfeito, não acha? Ascensão e explosão. Um fim luminoso." Da
porta, observa-me, sob o chapéu descaído, com seu olhar ardente, o homem desquieto
e que inocula nos demais a sua.febre. Levanto-me e procuro o revólver em cima do
guarda-roupa. Vazia a caixa de sapatos: nem sombra da arma e das balas. No corpo de
Cecília, estendida a meu lado, um casal (não os vejo) fala descuidado a respeito da
mesa sobre a qual presumo estarem. Deitados também e de mãos enlaçadas? Hora
tórrida, de estilo. Talvez estejam nus como Cecília e eu, estão sozinhos, ele explica à
mulher o seu amor pela mesa que lhes serve de cama. Ama-a, desde a infância, por ser
assim, longa, pesada, sólida, escanteada nos ângulos e com os pés torneados. Duas
coisas, principalmente, sempre o atraíram nesse móvel: o comprimento, a solidez e a
cor. A mulher corrige-o, rindo: então eram três? Eram três, sim. A cor, mais do que
tudo. Veja, essa cor dourada, mel e vinho tinto. Um lugar fresco, mesmo em dias
como hoje. Vezes e vezes se deitou sobre ela, de borco, sentindo o frescor da madeira
e aspirando o perfume nunca extinto do verniz. Este perfume, palavra alguma pode
transmitir. Não acha? À mulher, também agrada o perfume da mesa. Tão leve! Leve e
constante, precisa o homem. Leve como o cheiro do arroz e fiel, duradouro, indife-
rente às estações e às horas do dia, um perfume que ele sabe poder reencontrar, à sua
espera, esteja onde estiver. A mulher confessa ter desprezo pelos móveis de madeira
leve. Entretanto, aprecia as portas frágeis. No verão, ao meio-dia, costumava deitar-se
em algum ponto da casa, sobre os ladrilhos tíbios. Portas, movidas pela brisa, batiam
com brandura nas ombreiras. Ninguém, na lassidão daquelas horas, tinha ânimo de
erguer-se, fechar as portas de uma vez ou as abrir. Elas batiam: escala breve e frágil
tendendo para o silêncio. Aqueles sons, como as cigarras, eram uma das vozes do
verão. O homem: "As dobradiças rangiam?". Sim, algumas, um pouco. Adverte-me a
Gorda: "Cuidado, homem. Até onde vai isso? Está durando!". Respondo não saber e,
na verdade, não querer saber. Mas ignoro ou sei? Esta cegueira que aceitamos e
intensificamos, Cecília e eu, é mesmo de quem nada sabe? De quem nada sabe é este
ardor desmesurado com que nos consagramos um ao outro, recebendo e doando todos
os bens de que dispõe nossa pródiga indigência de amantes, encerrados na luz e no
calor do fugitivo verão como em uma ilha precária que logo será coberta pelo mar?
Sobre os meus joelhos, nua, na cadeira de balanço, tendo à cabeça um grande
chapéu branco, com plumas, Cecília conta-me a fábula concebida na fome e na
loucura por uma das internadas: "Há, em algum ponto do mundo, um ovo cujas
dimensões é impossível calcular e onde Deus guarda um grão de claridade. Isto para o
caso de todos os fogos do universo vierem a apagar-se. Então, com um grito, Deus
romperá o ovo e dele sairá voando um pássaro feito de chispas, que crescerá
rapidamente, com a velocidade da luz. Mas pode suceder que o mundo recaia ainda
nas trevas. Prevendo isto, traz o pássaro um ovo, onde Deus esconde a claridade".
Tomo-a nos braços e levo-a pelas salas, afirmando que ela é esse pássaro. Esconde os
pés, com receio de bater nos móveis e portais. Cai no chão o chapéu branco e
emplumado. Vejo, então, as criaturas sem nome e de olhar insuportável, com seus
números na fronte.
Última segunda-feira de março, entardecer, nuvens sanguíneas no lado oposto
ao mar. Cecília e eu sentados sobre as pedras, na praia dos Milagres. Vazante. As
carnes da cintura pressionam o cós da saia verde e os mamilos esticam a blusa negra.
Homens do campo, espalhados nos peitos e no ventre, chapéus nas mãos, em mangas
de camisa, puxam uma carreta. No ataúde roxo vai o corpo de uma apanhadeira de
pimenta. O viúvo, desfiando um rosário vermelho, acompanha o enterro. À distância,
um cão persegue as ondas quando fogem e foge quando voltam as ondas. O mar, para
ele, um brinquedo ou um menino. Sem falar, estendo a mão; Cecília toma-a, séria.
— Minha mulher escreveu-me. Promete fazer tudo para que eu tenha o que
mereço.
— Diz o que você merece?
A reverberação do poente, roxa e rubra, incendeia as bordas de outras nuvens,
muito altas e escuras: castanhas. Nuvens de chuva? Seguem depressa, ao contrário das
nuvens do ocaso, quase imóveis. Ao longe, o perfil extenso e indeciso do Recife.
— Não, não diz.
As sandálias claras de Cecília, com leves manchas de uso nas palmilhas.
Nossos dedos se entrelaçam. O calor da sua pele e o sangue martelando o pulso fino,
fazendo vibrarem as argolinhas de prata e as pecinhas de ouro.
— Abel, eu estou grávida.
Olha-me, fixa, ligeiramente pálida, os joelhos a um tempo ossudos e
harmoniosos — e o busto voltado para mim, lançado para mim, rodeado pelo espaço
da tarde, enquanto morre o dia, os lavradores acompanham a carreta mortuária e o cão
brinca agilmente com as ondas cada vez mais afastadas.
— Tenho um filho seu em mim.
Dois estranhos, paletó no braço, vêm lentamente em nossa direção. Arrefecem
o roxo e o rubro do horizonte. Flutua sobre as águas, translúcido, o bairro do Recife.
Um cheiro ativo de óleo mescla-se ao do mar, ao seu aroma de iodo ou de castanhas
verdes, mas o perfume que domina todos os demais é o de Cecília. Colônia, sabonete
e pó, mesclados à fragrância que exalam o ventre e as coxas: de sexo banhado em
muitas águas e agitado, úmido, desperto. Impregnada, decerto, desse múltiplo odor a
saia verde. Os dois desconhecidos passam por nós, afastam-se. Inclino-me e descanso
o rosto no ventre ainda brando de Cecília. Todos os Cheiros invadem-me, intensos.
Ameaças dos irmãos. Exigem, gritando ao telefone, que eu induza ou obrigue
Cecília a arrancar fora o bastardo quanto antes "e assuma tudo". Quer dizer: pague
tudo. Desligo todas as vezes sem nada responder. Mas o sangue turva-se, cada vez
mais negro com a instilação freqüente dessas vozes. Turvação idêntica à que
sobrevem nas discussões e lutas em que me envolvo durante os meses turvos do meu
casamento.
Cecília desaparece: uma semana sem vê-la. Evita-me? Por quê? Teme ouvir de
mim o que os irmãos exigem e determinam que eu diga? Prepara decisões sem
discutir comigo? Ordeno a Cara de Calo que a encontre custe o que custar. Volta sem
dar conta do recado, com alegações confusas sobre a cintura zodiacal, o movimento
direto de Urano e a força do seu Legislador, que o opõe à função de mensageiro. As
linhas quase sempre ocupadas dificultam minhas tentativas de obter ligação, tanto
para a Rosa e Silva como para o Serviço Social. Quando consigo falar, outros
respondem. Deixo recados ou reponho o fone com uma praga surda.
Sentado ante a mesa sem verniz e cuja gaveta cheira sempre a pólvora,
examino o conto quase terminado. Dentro da madeira e das paredes crepitam asas
secas. Insetos de mica, contorcendo-se. São nove da manhã. Abre-se a porta e os dois
irmãos de Cecília invadem o quarto. O mais alto, segurando-me o braço, fala com a
boca junto à minha cara; o outro, mais afastado, aponta-me o cano escuro da
automática. Cheiram couro e alho esmagado.
— Damos vinte e quatro horas para você fazer Cecília decidir-se. (O desastre,
existente na vastidão do tempo, não é algo a suceder. Forma vazia, suga-nos. Cecília e
eu: polpa desse invólucro oco e de força irradiante). Você não vai querer que a gente
mesmo resolva essa parada com um pontapé na barriga. Vai? Damos vinte e quatro
horas.
O rosto de Cecília, embrutecido, sobrenada no deles. Deixam-me, com o seu
cheiro de alho e de curtume, ambos lançando um olhar inclemente onde creio luzir —
estarei enganado? — alguma compaixão. Meto o relógio no pulso. Ao guardar o
manuscrito ouço um ruído no ar, como se um pássaro todo feito de dentes estendesse
as asas — e lembro-me da automática voltada para mim. Quem teria furtado o
revólver do chalé? Rumor de asas no piso. Mil baratas presas sob as tábuas fazem
esforços vãos para voar e roem umas às outras.

A 21

ROOS E AS CIDADES

Carta de Roos, fiel àquele movimento pendular, tão semelhante aos dos
parceiros do trapézio, que jamais oscilam simetricamente, aguarda-me na minha volta
de Londres. Viajou para o Havre a serviço da firma e regressa ainda esta semana, no
dia 21 ou 22. Pede-me, caso eu não tenha outros compromissos, reservar a tarde do
domingo. Há pouco mais de seis anos, em abril de 1951, quando veio a Paris pela
primeira vez, sua mãe levou-a a um parque. Havia tantas flores! Jamais o esqueceu:
"Não é Buttes-Chaumont. Talvez o Pare Monceau, sim, talvez. Quer ir vê-lo
comigo?".
Ladeamos as grades altaneiras, douradas no alto e através das quais vemos os
freqüentadores, as cadeiras amarelas, pombos, os lampiões redondos sobre postes
verdes. O relógio, no elegante pavilhão à entrada, marca quatro menos cinco. O céu
dúbio, porém, pressagia chuva e o sol talvez não volte. Descrevo, sem conseguir
expressar o que pretendo, a breve cena, à altura dos Açores, no navio da Chargeurs
Réunis. Estou no tombadilho e volto o rosto: uma gaivota segue a bombordo, quase ao
alcance da mão. Move um pouco a cabeça e nem parece voar. Durante alguns
minutos, acompanha o cargueiro, à mesma velocidade, como que suspensa, Roos, no
frio ar de fevereiro — e causa-me alegria ver o seu olho direito voltado para mim,
agudo, um bico. Depois, houve um mover de asa. Ela se inclinou e desapareceu.
Roos, desolada e pouco atenta à minha narrativa lacunosa, olha as colunas de
aspecto tristonho, uns poucos cisnes negros, a pérgula com trepadeiras. "Não, não é
este o parque. Perdemos o passeio." "Podemos compensar. Hoje, já é tarde. Mas por
que não vamos esta semana a Chartres? A rigor, eu já devia estar do outro lado da
Terra. Continuo a esperar, sabe? Entre mim e você, algo ainda deve acontecer. Um
fim. Um começo." "Também gostaria de ir." "E então? Sexta-feira? Sábado?
Dormimos lá. Ainda escuro, vamos à catedral ver os vitrais surgirem com o nascer do
sol. Leve a sua máquina. Levarei um filme. Podemos almoçar no campo. À margem
do Eure. Voltaremos ao cair da noite. Uma celebração. O nosso adeus. Em Chartres...
verei seu corpo." Dá alguns passos, lenta. Os roxos, amarelos e rubros das aléias
verdes, sua memória talvez multiplicasse-os nos seis anos decorridos desde 1951.
"Nossos corpos... devem ver-se?" "Sabe que sim. Como se até então fossem cegos."
Pára e olha-me de frente, a estas minhas palavras. Cantam pássaros, discretos,
ocultos nos ramos. O vento agita de leve seus cabelos.
— Quando iremos, Roos? Sábado?
— Sim. Sábado.
As horas que se seguem: uma espera dourada. O roçar das gavetas, ao serem
abertas ou fechadas, refrata-se em perfumes de bosques; cheira a leite e a capim na
madrugada o couro dos meus velhos sapatos; desdobram-se, desprendem-se, da alvura
das folhas de papel, lençóis de linho, nuvens de estio; vejo o nosso encontro não
situado no tempo, mas num ponto aprazível e tenho a impressão de ir, através das
horas, em direção ao onde, ao rio ou à planície em que, de certo modo, Roos me
aguarda.
Na sexta-feira, chama-me ao telefone. Adquiri o filme? Leve-o. Levará a
máquina. Às cinco? Dez minutos antes (confronto meu relógio com o pequeno e
redondo relógio do Palácio, no Luxemburgo), estou à sua espera, entre as brancas
estátuas de Batilde e Matilde, rainhas de França. Ouço o repuxo no centro do jardim e
o rumor dos veículos nas ruas que o circundam. Roos, com um vestido vermelho, vem
ao meu encontro. Pesadas gotas de chuva, prateadas de sol, tombam com um leve
ruído em seu redor.
— Vim despedir-me. Parto amanhã.
Pergunto para onde? Não ouço a resposta. Que diferença faz se, como diz,
viaja para não voltar? Não poderá, sequer, adiar a viagem por dois dias. Houve
problemas, vai gerenciar a sucursal.
— Então, Roos, de repente... Tudo se acaba.
Para confortar-me, lembra mais uma vez o companheiro enfermo: ele acha que
o fim é uma noção enganosa. Não poderíamos, Roos, sair esta noite? Não. Tem de
voltar ainda ao escritório e receber uma série de instruções. Credenciais, documentos.
Viaja a que horas? Pela manhã. Pus o filme na máquina e fotografo-a em silêncio. No
fundo, os troncos das árvores, as pensativas estátuas sobre os pedestais, Berthe ou
Bertrade, santa Batilde, santa Genoveva, outras estátuas distantes, ânforas, as pessoas
no parque, pombos voando, o espaço.
— Não posso acreditar, Roos.
No Coliseu, em Roos, no meio do Coliseu, a ponto de precipitar-me, cair na
parte mais baixa da estrutura, no Coliseu, como no meio de uma ossada fantástica,
uma grande mandíbula, as arcadas simétricas e os contrafortes, muitos dos quais
derruídos, entre uma arcada e outra, e os arcos por trás das arcadas e as janelas e
portas sobre os arcos, os corredores abobadados, os incompreensíveis vãos. Haveria
comunicação entre essas passagens todas? Os fantasmas dos leões transformados em
insaciáveis roedores com jubas, urrando, em Roos, dos fossos para as partes altas e
das arquibancadas para os fossos, roendo as pedras com dentes velhos e gastos.
— Nas águas em redor de Halicarnasso existe um cemitério de navios. Abel:
pense quanto passado está ali.
O diálogo é vão e insensato, nem sei por que voltamos a falar, eu e Roos em
verdade falamos sós, ou isto não é falar, falamos para ninguém, para um morto, de
dentro de nossas mortes, pois nunca mais nos veremos e o sumo da sua presença já
não subsiste, eu sei.
— Sim, Roos, imagino. Todo um passado, à espera.
Vejo-a no visor, diminuta, invertida, difusa, com seu vestido rubro, sorrindo,
olhando-me, uma flor na mão (fui eu que trouxe a flor?), de perfil, a máquina estala
entre meus dedos, clique do obturador, passar do filme, Roos, fugidia e móvel, presa
em flagrantes imóveis, nos quais amanhã, depois, depois, tentarei recuperar — o quê?
Ressurgirá, em alguma das fotografias, tal como a vejo no jardim do castelo onde
repousam as cinzas de Da Vinci? Robs, uma visão, um impossível, a fugidia, a
próxima, a ofuscante, a clara, a quase, a que entrevejo, a que perpassa, o relâmpago, a
irisada, a apenas visitada, a intangível a vinda inconclusa, o perene ir.
Ainda com o filme no bolso, dirijo-me à casa dos Weigel em busca de refugio
e também para levar-lhes minhas despedidas. No outro dia mesmo, logo que Roos
tenha viajado, irei embora. O velho, sustentado pelas três frágeis mulheres, debate-se
no leito. Tenso e curvado, um arco. Todo ele — língua, cabeça, olhos — está voltado
para a sua direita. Da boca, pende um líquido raiado de sangue. Ajudo as mulheres na
última fase do acesso e mal sei quanto dura. Um minuto, dois. Cessado o espasmo, o
doente fecha os olhos, seu corpo amolece, ele desfaz-se, pálido, em suor. Suzanne
pergunta-me se vou embora. "Amanhã. Sinto ter vindo numa hora dessa. Quando ele
despertar, diga que Liév Nikoláievitch esteve aqui." "E... ela?" "Vai também
amanhã." Abraço-a, beijo a fronte de Julie. Aperto as mãos de mme. Weigel: outrora,
bem tratadas, tangiam o bandolim. As moças levam-me à porta. Apoiado ao frio
corrimão, desço a escada. Um soluço, pesado, rola sobre os degraus escuros. Um
seixo. A porta é fechada com violência.
Faço rapidamente as malas. Folhetos de turismo no armário, nas gavetas, em
cima da mesa. Algumas cidades vistas, outras que nunca o serão. Qual o nome da
cidade para onde ruma Roos? Não será, esta, a que eu devia encontrar? Não verei a
cidade, e Roos não reverei, nunca. Pássaros negros e cães mortos se batem sobre a
cama.
Saio para a noite, ando pela cidade e vejo-a esvaziar-se. Deitado, eu, com uma
polaca; abraço-a como se abraçasse um ser feito de arame e de cabelos de mortos.
Ejaculo meu ódio, meus testículos soluçam, choro pelo pênis, ouço-o gemer. Ainda
não me vesti e já essa mulher de quem mal vi a bolsa ou os sapatos se despede. Desce.
Fico no quarto, um quarto de paredes desnudas, sem nada que se possa roubar.
Formigas-brancas cobrem-me as mãos, o sexo e o rosto. Lavo-me na pia, elas voltam
a surgir. Lavo-me outra vez, tremendo, enxugo-me depressa, lanço-me escada abaixo.
Um mendigo segue-me calado. Vez por outra, como o domador ao URSO, dou-
lhe uma moeda. Açúcar para os pôneis amestrados. Ratos grandes como porcos
atravessam os becos e correm ao longo das pontes. Roos. R - O - O - S. Ravena,
Oviedo, Orléans, Salzburgo. Avenidas desertas, cheias de carros estacionados. As
janelas fechadas. Um deserto quase igual ao das cidades de Roos. Reno, Riga, Roma,
Rodes, Rotterdam, Ródano, Ruão, ruam e rebentem todas. Único ser humano: o que
me segue, sombra. Sagres, Salônia, Sena, Salamanca, Samotrácia, Sodoma, Saragoça,
Sèvres, Sídon e Siracusa, sumam. Um vento colérico abala esse nomes, solda-os,
desagrega-os, atira-os contra outros nomes e outros ventos. Dois gatos se cruzam,
ruidosamente, entre os lampiões amarelos da ponte Notre-Dame. O mendigo
masturba-se. Sena, Florença, Nuremberg, Berna, Murcia, Viena, Cartagena, Linz. O
céu empalidece, desapareceu meu seguidor. Salerno, Budapeste, Esparta, Gênova,
Sorrento, Reims. Desabem as paredes, arsenais inteiros voem pelos ares, incêndios se
alastrem, apodreça a água nos reservatórios, rachem-se os esgotos, voem os telhados,
vergastem o ar os cabos telefônicos. Sentado no meio-fio, do lado oposto ao prédio da
Aliança, junto ao quiosque com cartazes dos teatros e de Dubonnet, aguardo a
aparição de Roos. Entre mim e o portão de ferro, junto às árvores ainda envoltas em
bruma e que separam as mãos de direção, pequenos carros com lixo. Roos, o fular
veneziano ao colo, abre o portão. Antecedem-na casais de aves semelhantes a
flamingos, e inquietas. Nápoles Ancona Coblença Nantes Burgos. Vamos costeando o
Luxemburgo na direção da gare d'Austerlitz, atravessamos o Sena (um cão, nas
Tulherias, com dentes fosforescentes, morde a cauda negra) rumo a Saint Lazare.
Bilbao Pamplona Liverpool Lyon Dublin Antuérpia Groningen Monte Carlo brindisi
ulm lübeck. Os bares fechados — boulevard Saint Michel — os cafés fechados —
boulevard Malheserbes — Jardim das Plantas — fechadas as lojas, as agências postais
— Constança brunswick — mas a cidade desperta — pavianancymilão — move-se
aos poucos na névoa da manhã. Que aspecto terá, em hora tão matinal, o Bois de
Vincennes? Cre monacor int oali cante granadapalospor tobor deus, um trem do
metropolitano no elevado à esquerda da gare d'Austeríitz, os números amarelos e os
ponteiros vermelhos do relógio da entrada em Saint Lazare (por que tantos relógios na
estação?), carrocinhas com sacos do correio, messna bruxlas cônia oxd plym gena
ogunc ul onia omnia voem pulverizem-se.
Descemos, descemos, seguimos sob o alto teto da gare d'Austerlitz,
atravessamos, rumo aos mortificantes e estreitos cais, o largo vestíbulo de Saint
Lazare, abraço-a longamente, abraço-a, longamente, ela tenta sorrir, seus olhos estão
úmidos, seus olhos estão úmidos, mas o ar está frio, ela tenta sorrir, mas o ar está frio,
nas águas em, nas águas, redor de em redor de Halicarnasso há um, Halicarnasso,
cemitério de, um cemitério, navios, de navios, no cais ressoa o aviso de partida, no
cais, de partida, o aviso, ressoa, ajudo-a a subir, há no ar um odor de violetas, o trem
começa a afastar-se, ajudo-a a subir, odor de violetas, o trem começa a afastar-se, ela
me acena. Acena-me, dou ainda alguns passos, dou alguns passos ainda, e me vejo
sem nada, mais uma vez sem nada, sem nada, mais uma vez, e cego, e cego, ante a
minha ofuscante solidão, ante a minha ofuscante solidão.

R 16

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Silenciamos. ʘ o corpo estendido junto a mim, tem um braço por cima do


meu ombro. Ouço claramente, pronunciadas por vozes desiguais, quatro ou cinco
palavras desconexas: báculo, sacelo, prézea, fabordão. Como se alguém falasse de
dentro dos colchões ou do exterior, rente à janela. Apuro o ouvido. Aquietaram-se as
magnificentes aves negras.
A viagem fluvial decorre e, para sempre, é, na sua fixidez móvel. Deve-se
tentar e eu faço a tentativa. Há um cardume e o chão enigmático mostra a passagem
de uma rês, não sei se negra ou branca. Olho e busco expressar.
As gemas de vidro nas sandálias de ʘ adquirem um tom negro e a sua pele —
como imponderável e um tanto irreal — absorve a luz vazante. Um vento rápido cruza
as ruas sossegadas, revolve os seus cabelos, o vestido esvoaça, flores do tecido, ela ri
e dá-me o braço (este peso, esta indefinível leveza!), o rosto junto ao meu, finas rugas
tecendo-se nas pálpebras. Sombrios os armários, as gavetas, as malas, os porões, os
fundos dos tonéis, os oratórios. Silenciam as cigarras de novembro, enganadas pela
noite que se infiltra entre os ramos das árvores; mariposas começam a agitâr-se nos
seus esconderijos diurnos e aventuram-se indecisas no meio-dia turvo. Cassações e
suspensões de direitos políticos: aguarda-se nova lista ainda hoje. A faixa do eclipse
total, entretanto, fica a alguns poucos quilômetros de Rio Grande. Conduzidos por
notícias imprecisas, fazemos extensas e dispendiosas viagens para observar, na sua
plenitude, um fenômeno que se prevê incompleto na cidade. Este engano, porém, lido
de outro modo, será ainda engano?
— A extirpação, Abel, será a morte, sim, será a morte, sabemos. Arrancar o
coração e continuar vivendo? Mesmo assim, se você alcança o ponto extremo (você
precisa livrar-se do bicho morto no seu tronco), hesita? Raramente.
Águas e terras, num oval que se inclina de noroeste a sudeste, sofrem a ação
do eclipse. O ovo dessa noite rara e breve, cuja borda superior, nascendo no Pacífico,
une em um arco a Califórnia à Geórgia, corta o Atlântico e alcança, descendo, o
extremo meridional da África, abrange as Caraíbas, o México, todo o continente sul-
americano, extensa área deserta da Antártida, escurecendo à medida que se aproxima
do núcleo: uma tangente sobre o paralelo 32, à altura das pastagens quase sempre
planas da fronteira.
Os foguetes, sobre as plataformas, três das quais já vazias, perfilam-se ao
longo da praia do Cassino, potentes e precisos, apontados para os astros com seus
bicos de aves aquáticas. Cerca-os, arco agitado e compacto com quase dois
quilômetros de raio, uma multidão que aos poucos emudece, mantida à distância por
tropas bem armadas do IX Regimento de Infantaria e do III Batalhão de Guardas.
Todas as passagens estão obstruídas por soldados, de modo que os veículos —
largados nas calçadas, no mato, fora das estradas ou à margem de taludes — formam
por trás da multidão uma barreira de carrocerías, sólida e sem ordem, os vidros
refletindo um sol cortado.
— O que aterra no rosto fosforescente do Iólipo é ser quase sempre invisível.
Também o modo como se revela: na obscuridade. Ele se oculta como um duende
dentro do rosto diurno. Como um duende? Não, como um estranho. Alguns são belos,
lembram a face de um anjo, e mesmo assim amedrontam. Que sucede, então, quando,
além da sua mudez e da sua estranheza, esse rosto é disforme? Assim Olavo Hayano.
Nele, o rosto oculto, fora do meu alcance, é de monstro.
Corpos invisíveis, com pálidos vestígios de conversas, de outros sons,
metálicos ou vítreos, insinuam-se de leve pelas telhas vãs ou cruzam a porta
entreaberta do pavilhão onde jaz o grande corpo de Natividade, maior depois de
morta, duas grandes velas ladeando a cabeça e duas ladeando os pés, três das quais
apagadas para evitar desperdício, coberta com um lençol barato e os calcanhares
ultrapassando o catafalco curto, destinado a velhos, seres que diminuem, ondulam
entre as tesouras cheias de teias de aranha, deslizam sobre os dois bancos sem
encosto, agitam a única chama e a barra do lençol, esgarçada. São antigos domingos
que visitam a negra, cheirando ainda a oliva, a folhas de louro, a cebola, a queijo, a
vinho. Na sombra do jardim, avançam três vultos e uma voz impessoal de freira alude
às relações entre os velhos e a morte:
— Ficam violentos, quando sabem que um dos internados entregou a alma a
Deus. Só depois que escureceu, trouxemos o corpo para o velório.
Seu hábito branco e o rosto do homem — ele marcha recuado, de cabeça baixa
—, levemente alcançados pela claridade que marca as junturas das janelas, hoje
fechadas com precauções excessivas, flutuam entre os girassóis ocultos. Falha, por
vezes, ou tornam-se mais leves as passadas da mulher que segue junto à freira, como
se ela abrandasse o peso do corpo, atenta ao estalar de juntas, às tosses, ao arrastar de
urinóis e às frases cortadas que enchem os dormitórios. A freira adiantou-se, abre a
porta e o casal aparece à luz da vela: ele corpulento e assustado, ela com o rosto meio
oculto entre os cabelos soltos, um leve impermeável castanho sobre os ombros. A
irmã, apressadamente e olhando de viés, acende as outras velas — as quatro, agora,
demarcam um retângulo — e ajoelha-se no chão. O homem, contendo as lágrimas,
descobre o rosto da negra. A mulher, do outro lado da morta, a fronte estreita
inclinada para a frente e toda a face iluminada pelas quatro chamas, fixa o homem
através dos olhos meio fechados e de dentro desses olhos dois outros olhos o fixam,
negros, sem contemplação, abertos e negros, com estrias de ouro. Ela diz a si mesma:
"O pesar que acaso ele sofra não o resgata em nada". Abre ainda mais, como se o ar
pesasse, a boca sempre descerrada.
— Antes dos doze anos, duas coisas, apenas, distinguem o Iólipo das outras
crianças: em todos os seus sonhos, em todos, surgem imagens de mortos com acessos
de ira; e há, em torno dele ou dentro dele (impossível saber), um vazio. A substância
das coisas passa através do Iólipo e transita para o Nada. Mas nem todos percebem
esse vazio ou sucção. A princípio, o Iólipo não reconhece os personagens que surgem
nos seus sonhos: até os doze anos, normalmente, vimos poucos mortos. Passa-se
algum tempo antes que os pais identifiquem aquelas sombras furiosas que batem
portas e agri-dem-se, com gritos, chicotes e objetos perfurantes, e descubram com isto
a natureza do ser engendrado através deles.
— Sob a opressão, os atos mais simples, comprar um selo postal ou alegrar-se,
são atingidos e transformam-se em núcleos de interrogações. Toda alternativa faz-se
dilemática e nenhuma opção pode desconhecer isto. Mais: mesmo sendo a opressão
um fenômeno brutal, o peso e o significado dos atos, na sua vigência, crescem na
medida em que abrangem o domínio do espírito. Segue-se que o ato criador é
particularmente exposto a tal emergência.
Lado a lado, alongados no leito, assemelhamo-nos, sob o lençol, a esses
monumentos funerários de casais felizes ou que procuram fazer do seu próprio
matrimônio, talvez deplorável sob o baldaquim conjugal, um exemplo edificante,
modelo para os noivos e cânone para a família. As estátuas gizantes de marido e
mulher, sempre esculpidas em trajes de grande cerimônia, pálpebras cerradas e mãos
sobre o peito, estendidas lado a lado com recato, insinuam uma união perfeita e
indestrutível, mas não se tocam: são, afinal, figuras paralelas. Nós, de olhos abertos e
voltados para o forro ainda invisível, estamos nus e de mãos dadas. Temos, das
esculturas, apenas a imobilidade e a mudez. Simulando a eternidade, evitamos mover-
nos cessado o duro pranto (choramos, então, por nós e por alguns mortos) e já não
queremos falar, receosos de que novas palavras, como num texto que alcançou certo
grau de precisão, sejam supérfluas ou nocivas. Por outro lado, recusamos dormir,
suportando uma presença cáustica: a descoberta deste grave amor que em nós estende
suas folhas urticantes. A união na carne, sabemos, é agora têmpora entre nós. Nos
nossos corpos, desejados e ainda estranhos, nos quais ecoam experiências acres — a
esterilidade, a morte e outros danos —, descobrimos certo caráter sagrado e como que
nos apuramos, na abstinência, de mãos dadas, mudos e cercados de trevas, para o
mútuo e inevitável conhecimento. Canta um sabiá, à distância ou ocluso. Na fronde do
seu múltiplo corpo? No seu corpo ou no mundo, outros pássaros e galos escutam-no,
respondem.
O seu perfil nasce da sombra e o clarão do amanhecer delineia as rugas do
lençol.

T 17

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES


— Está com cara de cachorro doido. Deu-se a melodia? Emprenhou a menina?
Minha mãe fala em voz baixa e esta precaução transforma-a. Joga a bolsa na
mesa, senta-se na única cadeira, puxa o vestido sobre os joelhos. Sento-me na cama.
— Quem lhe falou dessa história?
— Quer saber mesmo? Sua mulher. Esteve no chalé agora de manhã. Cheia de
palavras doces. Eu desmenti, sabe? Mas quero que me diga se é verdade.
— Isso era motivo para se largar de Olinda e vir aqui na pensão? Qual é a
urgência?
— Há urgência, sim. (A boca ainda menor e mais arqueadas as sobrancelhas
finas.) Fique sabendo que ela não largou a bolsa um minuto. A bolsa parecia estar
pesada.
O gataco me fita com os olhos amarelos. Escorrega pelas suas pernas, senta-
se no chão e enfia as unhas no lençol, os músculos tensos.
— É verdade, Abel? Então, seja homem e resolva a parada. Vão para o chalé
de uma vez. Ando cheia de falar com as paredes.
— Depois, pode ser. Não agora. Por pouco a senhora não encontra aqui os
irmãos. Um deles está armado.
Mete a mão no decote e mostra a cicatriz no ombro:
— Está vendo, não está? Isto é lembrança do tempo dos meus estudos. Você
sabe em que escola aprendi. Conheço o mundo e os inquilinos do mundo, homem.
Dois caras desses, que só andam encangados um no outro, têm lá coragem de atirar
em ninguém? Atiram coisa nenhuma. Tenho muito mais medo da sua mulher. Quero
saber. Vão ou não vão?
Corredores noturnos do Hospital Pedro II Apoiada a um bastão, uma freira
reza em altas vozes frente às portas dos quartos. Este o lugar onde Cecília, ardorosa e
cândida, vive pane dos seus dias, açulando a virtude de exigir nos que aceitam por
norma não ter direitos no mundo. Alguém, no térreo, conserta um objeto de metal e
tudo que percebo é som, desde os sacos de farinha de trigo revestindo os biombos da
enfermaria às janelas rematadas em curva, abrindo para a manhã de abril. Cecília
entra (a voz da freira, um instante, invade a enfermaria), entra e abraça-me, calada.
Verdes leões movem-se lentos no granito polido.
— Cecília, a criança?
— Crescendo,
Uma mulher de cabelos grisalhos, deitada, observa-nos. O rosto e os cabelos
de Cecília com cinquenta anos. Amo-a? Sim. O meu amor por Cecília sobrepassa o
seu brilho carnal. Inclui, durável — e transformado —, a sua decadência, estendendo-
se a limites do tempo que ela desconhece.
— Desapareceu um revólver do chalé. Foi você?
— Estamos ligados, Abel. Para o bem ou para o mal. Eu não faria isso.
Aspiro o ar pela boca — o ar recende a leões — e olho-a de face. Riscam-me os seus
olhos de fogo.
— Cecília, eu vim buscá-la.
Estremecem as paredes do chalé com uma alegria diferente da que o
Tesoureiro, ainda confiante, anima e preside. As pastoras, vibrando os pandeirinhos
enfeitados com fitas coloridas, cantam na sala. Seus pés e o grande laço vermelho e
azul nos cabelos da Diana marcam o ritmo do canto. Modesto Canabarro, a barba
branca, ginga à frente da orquestra que vem pelo alpendre. Dirige-se a Gorda para
Cecília, beija-a no rosto, chorando de alegria, e faz questão de tomar a sua mala. O
gataco corre nos seus peitos, salta para o meu ombro, passa para os ombros de Cecília,
acompanha-nos, sobe outra vez pelas ancas da Gorda. Os pobres e encardidos homens
da orquestra DELXA FALAR, descalços, entram conosco. O cheiro de suor mescla-se ao
perfume das laranjas maduras e dos lírios. Ecoam, ensurdecedores, nas salas e quartos
da casa, os instrumentos e as catorze vozes agudas das meninas. Irrompe o carneiro
entre seus vestidos longos. O gataco precipita-se dos cabelos da Gorda e corre para
Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Eis-nos: o Velho com os joelhos dobrados,
a cauda do fraque voltada para um lado e o gataco dentro da cartola, os músicos
sustentando o trombone, o bombo, o clarinete, o pistão, o bombardino, as dançarinas
estáticas, mãos a ponto de ferir os pandeiros, a Gorda conduzindo a exígua bagagem
de Cecília, Cecília entre os músicos, de costas, porém com o rosto voltado para mim,
rindo sobre o ombro e eu meio curvado, como quem fosse prender o carneiro nos
braços.
Sou arrancado da cama, pela madrugada, com a notícia: minha mulher e o tiro
no ouvido. Morta? Sim. A luz, matinal, infiltra-se através das bandeiras; delineiam-se,
nas cortinas, caçadores e caça. Revelar e revolver, sempre, o que um homem tem de
podre: inquietante aptidão. A quem atinge, na verdade, o tiro? No fundo, Abel,
desejas que eu morra. Pois bem, assim seja. Um balaço no ouvido. Estoura a voz da
Gorda: "Matou-se porque quis". Certo. Morta, porém, consegue provocar em mim
esta alegria suja. Injeta para sempre um elemento predatório, um pus, no sangue dos
meus dias com Cecília. Cecília surge, curva-se e apoia a cabeça em meus joelhos.
Estou sentado. Onde? Os irmãos, agora, certamente acomodam-se. A voz da Gorda e
os seus passos agitados. Eu desejava essa morte. Sim, isto. Seja como for, tudo se
define. Desposarei Cecília. Mas estou ciente, enquanto assim decido, do quanto há de
precário e duvidoso nesta solução absurdamente desejada e de súbito possível.
Possível. Não é mais, porém, o que eu desejava. Assume agora a forma de um
combate, raivoso e inútil, contra um ser intangível, situado além do círculo dos vivos
e portanto imune.
Redes armadas perto da cisterna à sombra das mangueiras. Meu pai, sempre
em silêncio, permanece a nosso lado. Move-se de leve e pisa cauteloso, o olho cego.
Amarra-o a convicção de não ter direito a nada e de ser legítima a fraude de existir.
Nas copas das mangueiras, tocadas pelos ventos litorâneos, surge a folhagem nova,
cor de vinho. Leio para Cecília o conto concluído, representação talvez do mundo que
conheço e onde velhas vozes — inclusive em mim — buscam impor verdades cuja
substância esgotou-se para sempre. Minha mãe varre o chão em redor das redes.
Vozes de gansos e de galos erguem-se em outros quintais sossegados. Dormimos
ouvindo isto e o rumor do mar — forte ou distante, segundo as marés. Passeios à
noite, a lua pascal e a lua de maio brilham e morrem sobre as ruas ladeirosas de
Olinda, com rapazes e moças sentados nas calçadas, Alto da Sé, a visão do Recife
iluminado, Cecília aperta a minha mão e ri. (Sobem os leões nos telhados, movendo
as caudas.) Jarros com flores, arranjados pela Gorda, aparecem no quarto. Entes, do
corpo de Cecília, deslizam para o meu quando estamos abraçados. Pessoas a quem ela
houvesse conhecido, lembranças, das quais falasse e que assim, aos poucos, me
povoassem, sorrateiras, na escuridão.
Forma-se, com o embrião no ventre de Cecília, outro embrião de gestação
mais curta, um embrião que nos envolve, que nos faz luminosos, mais leves, ferozes,
desdenhosos, maiores e sua plenitude tem de coincidir com o minuto preciso do
desfecho. Como se chama? Aleluia? Glória? Exultaçâo? Tem nome? Ergue, dos
nossos ombros, o peso do mundo e quase não notamos quando os jornais voltam
enfim a circular, depois de três semanas de greve. Os sonos, fundos, lembram vigílias
festivas. Circula o sangue nas veias com um rumor de cascavéis. Respiramos?
Enchem-se os pulmões de madressilvas, de vidriíhos e de penas de pavão. O chão
onde pisamos nos é familiar.
Contempla, Abel, a gêmea que o amor, como a ti, favorece. Frui, enquanto
podes, seus movimentos, a curva bombeada dos ombros, sua voz, sua firme e severa
doçura. O embrião não alcançou ainda seu pleno, desenvolvimento. Existe a luz do
sol, existem as pedras, o cavalo, a carroça, existimos nós. Falta, porém, o encontro, a
junção. Tudo, nos vazios do tempo, empurrado pelas correntes do tempo, os fios que
eu poderia ter embaraçado, cortado, na noite em que estou junto à cisterna, pronto
para mergulhar e morrer, tudo se tece e encontra. O embrião sem nome alcança a
plenitude. Sem nada suspeitar, chegamos ao ápice.
A areia da praia, o mar calmo e as palmeiras imóveis refletem o céu vermelho.
Pela primeira vez no ano, Sol e Lua, ainda oculto o Sol e nova a Lua, passeiam juntos,
em seus cursos separados, sobre o campo dúplice de Gêmeos. Ninguém, até onde o
olhar alcança, senão eu, Cecília e o cordeiro. Vamos abraçados, ao longo da praia, ela
num vestido de algodão um pouco desbotado, onde restam as folhas verde-pálidas: o
uso, uma espécie de outono, cresta as flores amarelas. Já percebo, em Cecília, uma
alteração entre o ventre e os seios altos, e as marcas dos seus pés — as primeiras do
dia, com as do cordeiro e as minhas — na areia sanguínea e cheirando a sargaço vão
um pouco mais fundo. O espoucar da espuma. Um dorso de animal, extenso, também
avermelhado e espelhando a luz do amanhecer, avança lentamente, corta as águas.
Pássaros vêm de longe e pousam sobre ele. Às vagas mais fortes, eu e Cecília
corremos, rindo, fingindo recear que nos alcancem e molhem os tornozelos. Salta o
cordeiro balando e as marias-farinhas, translúcidas, fogem entre os nossos pés,
escondem-se. O rosto sorridente de Cecília, com os vergões do travesseiro e ainda
cheirando a macela-do-campo. Nada comemos; nem lavamos as bocas. Sua língua
sabe a despertar, a jejum, a pão ázimo — e o ar salgado, leve, insinua-se entre os
nossos dentes. Digo a Cecília, agora, o que ela me confia uma noite de chuva, ao lado
do canal. Morrer, neste momento, não me seria difícil e não teria importância. Cecília,
pródiga, permite-me gozar, em poucas semanas, sem medida e sem pausa, a plenitude
que o homem só recebe em parcelas e, mesmo quando pouco castigado, diluída ao
longo da existência. Dispensa-me com parcialidade os bens a seu alcance, fazendo-me
beneficiário tão-só da parte venturosa e favorável de anos (de quantos?) e põe-me a
salvo da outra, da negativa. Poupa-me os podres, os escuros, os amargos, os ásperos,
os áridos.
Sim, o embrião que a ambos nos envolve está maduro e eu sigo ao lado de
Cecília na certeza de que somos mais fortes do que tudo, protegidos — pelo amor,
pelo júbilo — contra toda espécie de engano, imprevisto, emboscada, armadilha,
queda (tão errado lemos, instruídos que somos com letras enganosas). À distância,
rede lançada na cisterna do mundo, surge, vindo ao longo da praia, um cavalo
puxando um cabriole descoberto. À minha espádua, ouço uma voz que me chama,
desconhecida. Volto-me: meu pai, pela única vez, dirige-me a palavra. Sorrio para ele,
que guarda distância, tímido. Continuo o passeio. Ouço, de permeio com o rumor das
ondas, o bater surdo e ainda distante, mas não muito, das patas do cavalo. O cavalo
aproxima-se a passo e o cocheiro parece não ter pressa. As rodas vão desenhando na
areia, lentas, dois sulcos paralelos. Habitantes de Cecília agora nos rodeiam, felizes e
um pouco assustados. Eu estranho a ausência do carneiro, o cabriole está perto,
tornam-se mais espaçados os passos do cavalo. Cecília vê primeiro: "Olhe, Abel, o
cavalo vem só, puxando o cabriole". Neste momento, a quinze ou vinte metros de nós,
o animal se detém. Quando a rede fica presa no fundo da cisterna, adivinho de quem
são as mãos que atuam sob as águas, na treva. Aqui, ao lado de Cecília, à luz do dia
que começa, inebriado, cumulado de bens, convicto da nossa imunidade e desdenhoso
da Morte,do seu raivoso poder anulador, como pressentir, neste veículo sem guia, a
presença da Mulher com um lado do rosto esvaziado? Tomo Cecília pela mão, ajudo-a
a subir e movo, eu próprio, as rédeas. O cavalo ergue a cabeça e nos conduz para o
fim.
Cecília, no seu vestido de algodão, sorri sob o chapéu de palha, os pés
manchados de areia. Vai Cecília a meu lado, e seu corpo, essa memória, vibra. O
cavalo segue, dócil, há pintas de sol no rosto de Cecília, ela segura meu braço e olha
para tudo, para o céu azul, para o mar de cobre, para os peixes que perpassam na
transparência das ondas, para as ancas do cavalo, para a sombra nossa na areia, ri e
beija-me, o rosto fulgurante e todo o corpo inundado por uma alegria que jamais
externou de um modo tão pleno e evidente. Reveste-a uma fulguração que me cega e
até as folhas do estampado, as flores amarelas, parecem recuperar a nitidez e a cor
primitivas. Cecília esplende mais que este amanhecer de maio. Vamos pela praia dos
Milagres e as rodas do cabriole encontram a cada volta pedaços de paredes meio
enterrados na areia, restos de portas ou de vigas, lajes quebradas, ferragens. As
grandes pedras amontoadas ao longo da costa para deter o martelar constante e cada
vez mais mordente das ondas vão sendo vencidas pelas águas. Mas as águas são
verdes sob a manhã e o céu azul já não entra pelas janelas dessas moradias destruídas:
inunda, com a sua luz, os cubos antes formados pelas paredes em pó. Descemos do
cabriole. Andamos sobre as pedras, dedos enlaçados, entre os restos de salas e de
quartos (onde muitos casais certamente se amaram e semelhantes àquele onde a Gorda
nos hospeda, com seus odores de frutas e um leão à janela), vagamente atingidos por
essa advertência das coisas. De súbito, a um só movimento, assaltados pela noção
exaltante da nossa existência e dos dons que trazemos, voltamo-nos um para o outro e
abraçamo-nos. O rosto de Cecília arde e também os seus olhos ligeiramente oblíquos.
Subimos novamente no cabriolé. A mão que vai tomar as rédeas do animal e fazê-lo
recuar em direção ao aclive de pedras, postas à ribamar para deter as águas, é a
mesma — pérfida e desta vez mais ativa — que segura no fundo da cisterna a rede. O
cavalo recua. Tento instigá-lo a avançar, ele recua ainda, devagar. Cecília assusta-se,
o cavalo, sempre andando para trás, empurra o carro em direção à armadilha, ao
precipício, e de súbito não pode mais com o peso. A roda esquerda perde o apoio,
arrasta-nos, suga-nos, é tudo violento, rápido e tumultuoso, grito para Cecília, meu
corpo salta e insere-se entre pedras. Ouço o rolar, sobre mim, do carro e do cavalo,
um trovão duro, frio, rodeado de dentes e de garras de aço, um ser redondo, ventoso,
feito de cem leões e tão luminoso que me acende por dentro, batendo no chão, nas
pedras molhadas, longamente, crestando-as, lanhando-me as costas, onde está
Cecília? O cavalo, preso nos varais do carro, luta para levantar-se. Cecília, imóvel,
uma das pernas presa sob o pescoço torcido do animal. As ondas alcançam-na e
também molham o cavalo. Grito, em vão, o nome de Cecília e desço as pedras.
Ninguém a quem pedir ajuda. Cecília, lívida, ferida, sangue no nariz e na boca, olhos
abertos, o vestido em pedaços. Impossível tirá-la de sob o cavalo, que continua
lutando, as veias do pescoço encordoadas. Afrouxo os arreios, ele soergue o corpo e
eu carrego Cecília, inerte, para cima, sob a luz do sol mais alto, deito-a sobre a areia.
Os olhos tão luminosos, abertos, baços, sem nada refletir. Movimento algum.
Respira? Um salto de peixe. Necessário salvá-la, salvá-la para mim e para outras
manhãs iguais a esta. Olho em redor. Ninguém, ainda. O vento tange para longe o
chapéu. Tomo entre as mãos o seu rosto, os olhos sempre abertos, indiferentes à luz.
Tu e a rede, Abel. Por que não mergulhas? Urros apagados de leões. Chamo-a ainda
uma vez, mas este chamado já é pobre de convicção, embora eu não queira, não possa
admitir que Cecília, macho-fêmea, força e compaixão, doadora e beneficiária, Cecília,
esteja morta. De súbito, atravesso um pórtico, um limite (ouço as vozes dos irmãos, os
sons dos seus instrumentos) — e aceito, fendido da cabeça ao calcanhar pela visão da
minha fraqueza absoluta, aceito a verdade, resignado, como os privados dos bens
vagos e concretos da Terra, amoldo-me à verdade e começo a viver no mundo sem
Cecília. Puta que pariu. Nada. Na cortina do quarto, o Leão morde e parte a Lua. O
cavalo, ainda atrelado, debate-se nas pedras. Mundo filho da puta. O corpo de Cecília
libera os seus entes: enfermos e famintos, gente sem vez, que a sua compaixão —
também morta — procura resgatar. Rodeia a Terra um hálito hediondo de peidos, de
cus arrombados e sujos. Estou ajoelhado ante o corpo sem vida de Cecília (adeus,
tardes felizes e filho que não tenho!) e sondo os seus arcanos, sua prodigiosa
substância. Um círculo de papas, nus, as mitras inclinadas sobre um poço, os
sedenhos voltados para o Sol, vomitam no abismo. A vida: merda e breu. A grande
roda, com seus inúmeros guizos, enferrujada e com fitas de crepe voando entre os
raios, sai do mar e vem girando em minha direção. Futuro e sonho, certeza e
segurança, projetos engendrados na insciência, fodam-se. Esfarrapados, doentes,
trôpegos (surgem de onde?), deixam o corpo de Cecília como quem deixa uma cidade
empestada. Uma nuvem de pássaros escuros, vindos do mar e multiplicando-se nos
ares, cobre por um momento o sol e uma noite breve, ilusória, escurece a praia e o
mar. Freiras centenárias, de hábitos arregaçados, enfiam lixo e bosta nas tabacas
sangrentas. Um velho, de cócoras, se esporra na mão. Estou ante Cecília e no seu
âmago. A roda passa por mim, refazendo o trajeto da tarde jubilosa em que Cecília e
eu, com o pastoril, seguimos de mãos dadas pela praia. Mordo os ovos do engano e
cuspo-os, mastigados. Porra! Santas velhas, de chifres nos peitos, os brancos
pentelhos negrejando de chatos, trepam com jumentos, com bodes, urrando orações
negras. As pastoras, enrugadas, sujas, batem pandeiros feitos com couro de colhões,
as bocas arrolhadas com caralhos. Destino puto e amargo. Todos se vão. Numa trilha,
a passo, de costas para mim, vai o cavaleiro solitário, assobiando. Entra numa zona
sombria. Onde as criaturas de números na testa? Não os vejo e os entes desvairados já
não estão por perto. Sugue outra vez o mundo a imensa boceta que o pariu. Os dentros
de Cecília estão vazios e as ondas vão arrastando para o mar o cavalo atrelado. O mar
devora o lugar onde Cecília morre. Ao longe, dois vultos aproximam-se correndo.
Meu pai, de pé a meu lado, espera por mim. Percebe, afinal, que não irei, faz um gesto
e afasta-se. Para onde, não sei. Levanto-me, olho em redor, vejo-me só. Então, fico de
quatro pés, ponho a testa no chão, enfio os dedos nas beiradas do sedenho, e brado,
cago, brado, clamo para o mundo, puto, soluçando, puto da vida, falo pelo rabo,
blasfemo pelo rabo, entre os dentes do cu que a terra come, cago no chão com a boca,
todo eu me transformo no esgoto do verbo, cagando palavras mortas, cascas de
palavras, dentro da morta, nem eu próprio as reconheço, estranhas, falar é nada e
ninguém mais me ouve, eu não me ouço, ninguém mais, ninguém. O mar bate nas
pedras.

E 1

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Fim e início. ʘ e eu, frente a frente, lado a lado, dorso contra dorso. O Sol, a Lua, a
Interferência, a Treva, a Convergência, p Percurso, a Cadência, o Equilíbrio. Dorso
contra dorso, lado a lado, face a face, os braços em T. Onde? Surgem, ao tempo de
Carlos Magno, os mapas trocóides e com eles vão ao mar os navegantes, águas,
nesses mapas, são desenhadas como um T sobre um O: um T sobre a Terra. Seremos,
nós, com os braços abertos, T ante, rodeados pelo mundo, um mapa? Que águas
seriam então em nós evocadas com seus peixes?

P 5
O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

A construção do relógio que Julius Heckethorn tem em mente, facilita-a, de


maneira indireta, a governanta que acompanha Heidi Lampl durante a sua estada em
Colônia. Decorre o mês de maio. As noites e manhãs, cada vez mais escuras para a
moça, sucedem-se, luminosas e tíbias. A governanta, um pouco inebriada pelo ar e
pelo seu papel de confidente, prepara os encontros da jovem enferma com Julius, e, de
regresso, exalta quanto pode, ante a família, esse artista gentil e um pouco assustado,
que fala com igual entusiasmo de Mozart e de Silvestre II, papa, relojoeiro e
entendedor de mecânica celeste. Em agosto, Julius vai a Münster e os Lampl o
aceitam. O casamento realiza-se em janeiro de 1930, sem pompa e um tanto às
pressas, a fim de que a noiva, então com vinte anos, possa ainda captar visões da
cerimônia: envolve-a, rapidamente, a cegueira total. Com a ajuda do sogro, Julius
Heckethorn instala-se na região em que vive os primeiros anos da infância e restaura a
fábrica de carrilhões. Dedica-se então a projetar e construir o relógio que, de maneira
ainda vaga, imagina.
A intenção inicial de Julius é basear-se num relógio de azeite ou numa
clepsidra. Os relógios correntes, que funcionam a saltos e com os quais estamos
habituados, parecem-lhe corromper uma noção que os primeiros instrumentos de
medir o tempo, como a ampulheta ou o relógio de Sol, restauram e transmitem de um
modo menos infiel: a de ser o tempo um fluxo, um fenômeno contínuo e indiviso.
Muito reflete sobre isto e sobre o quase impossível equilíbrio de processos modernos
e de elementos arcaicos que exige para a futura invenção.
Embora não chegue, em suas conclusões, a uma espécie de mística, como a
que constata, devido à influência da cabala, nos pensamentos do gramático Virgílio
Marão sobre o alfabeto — nem sempre comparáveis, as suas associações, aos
caprichosos símiles de Isidoro, autor das Etymologiae, onde encontramos a afirmação
de que a pena, o cálamo, com o corte na ponta, representa uma unidade que chega à
dualidade, constituindo portanto um símbolo do Logos, o Verbo divino, expresso
igualmente em outra dualidade, a dos dois testamentos, o Antigo e o Novo, visão por
certo emanada de Cassiodoro, para quem o fato de, ao escrevermos, segurarmos a
pena com três dedos prende-se à idéia da Santíssima Trindade —, pensa Julius
Heckethorn que uma conquista técnica em órbita de transcendência igual à da
escritura, a órbita da medição do tempo, jamais será gratuita. Impossível, trabalhando
com relógios, manter-se alheio e deixar de obedecer a vozes silenciosas. Por menos
que as ouçam ouvidos, nunca poderão ignorá-las mãos e imaginação. Ainda menos
pode admitir que Gerberto de Aquitânia, a quem admira mais que a Mozart, inventor
do relógio a saltos, homem de conhecimentos tão variados e pouco comuns a ponto de
surgir como protagonista de lendas que o dão por feiticeiro, e isto apesar de haver
reinado sobre a cristandade nos anos que assinalam a passagem, temerosamente
esperada e vivida, entre o primeiro e o segundo milênios — ou seja, exatamente entre
999 e 1003 —, sob o nome de Silvestre II, se apresente, em época de tão profunda
religiosidade, como responsável por um artefato despido de significação. E que pensar
de ser Gerberto um conhecedor da ciência árabe?

E 2

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO


Guia-se o homem, na sua viagem, com mapas incorretos e outras ajudas falsas.
Sempre se perde? Não. Existem mapas visíveis no escuro: entramos nas coisas, às
vezes por trás do que são. Poderia asseverar que ao lado de ʘ — nesses dias esparsos
e talvez insensatos —, mesmo quando silenciosa e eu de olhos cerrados, não leio e
nada ouço? O seu corpo me embebe de palavras e imagens. Tais palavras e imagens,
não as apreendo e quase nunca sei o que representam. Não agiríamos, porém, com
tanta precisão, se realmente nada soubéssemos do que nos cumpre e cabe.
Arqueólogos, inquietos e não sem a alegria de uma luz velando em seu íntimo, inter-
rogam o hermético texto em espiral grafado lio disco de Festo. Sabem que a
probabilidade de decifrar o escrito é nula por assim dizer, mas não desistem e voltam
sempre a ele. No disco, com os signos não decifrados sucedendo-se em espiral,
separados por linhas verticais, há um vozerio incompreensível e que certos ouvidos
podem escutar. O texto, vindo de fora, entra no disco pelas bordas.

R 17

ʘ E ABEL. ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Aproxima-se o termo da viagem, passa o trem por estações suburbanas cujos


nomes não leio e onde vultos pervagam nas plataformas úmidas. O panorama tende a
ampliar-se no sentido vertical: vejo sob as rodas do vagão ruas tristonhas, tetos
enegrecidos, quintais com bananeiras e latadas — e logo viadutos de metal
sobrelevam a via férrea atravancados de ônibus, de caminhões e de misturadoras de
concreto. Homens e mulheres taciturnos, na manhã enevoada, furam em todos os
sentidos a paisagem como que estruturada em andaimes, e, embora veja-os de longe e
de passagem, identifico a origem de muitos, Ceará, Bahia, Pernambuco: o Norte.
Quantos, dentre esses operários de fábricas ou da construção civil, terão votado
ontem, nas eleições para o Legislativo? Muitos com roupas leves e todos de bolsa na
mão cruzam apressados as ruas, escalam sendas abertas no matagal hirsuto e retalhado
em cercas, sobem ou descem os degraus dos viadutos. Vários, agrupados ante uma
cancela baixada, esperam que passe o último carro do trem. Saio da estação e os vejo
de perto, amontoados na carroceria de um Scania-Vabis, enquanto me aventuro sem
destino na cidade ainda estranha e que cheira a petróleo. Concluída com êxito missão
da Gemini XII. A luz dourada do amanhecer alcança os andares superiores dos
prédios. Mulheres, com crianças no braço e guarda-chuvas abertos, cortam o tráfego
compacto e moroso, em demanda dos postos de saúde. Perto de uma construção baixa
e extensa, enfeitada com muitas bandeiras encardidas (estação rodoviária?), dois ho-
mens entornam no passeio grandes tonéis de lixo. Sodré: surge uma nova democracia.
Ônibus chegam e partem fazendo curvas fechadas, carregadores atropelam os
passageiros e mendigos enrolados em jornais, os pés casquentos protegidos com
restos de sapatos, ressonam junto às paredes.
Sem que, com um gesto ou palavras, ʘ tente reter-me a seu lado, levanto-me e fico
de pé na escuridão do quarto. Sinto um corpo estranho sob a língua, uma agulha de
costura. Cuspo-a. Outra na mão fechada. Jogo-a fora. As palavras ou o silêncio da
hora e as trevas que me cercam arrancam a minha pele, estou descarnado e
vulnerável.
— Pode-se supor que um projeto literário pouco comprometido com a
superfície do real, e portanto com o tempo histórico, não contradiz, em princípio, a
gramática dos opressores. No nível em que indaga e se organiza, seguiria o seu curso
naturalmente e sem dilemas.
Os galos, imóveis na madrugada, fixam-me, os bicos apontados para mim.
Desejaria apoiar-me em objetos — e se possível em alguma coisa que me pertencesse,
um relógio, um porta-chaves, meus sapatos. Tateio as sombras e minhas mãos se
afastam, desprendem-se dos braços, os braços do tronco e as pernas se desmembram.
A escuridão: um ácido? Lâminas sutis? Espero o que pode vir, o que deve vir, o que
tem de vir, o que não pode deixar de vir. Vem? Os dedos soltam-se das mãos. Há um
ranger de madeira e de molas de aço, um ar, um ondular de manto, o cheiro de canela
dos lençóis (ó tardes de verão, inebriantes, as flores rubras do flamboyant explodindo
na janela do quarto e o som do mar — ou a espuma do som? — morrendo nos
ladrilhos mornos) e a sua voz, quase ininteligível, zune entre os dentes cerrados,
próxima das minhas unhas, das minhas jugulares, do meu baço:
— Abel, Abel, eu te amo.
Meu nome e a confissão atingem-me. Ficam em mim, voz e palavras,
projéteis, cravados: sólidos, cortantes. Facas. Desmembro-me para que isto suceda e
agora reúnem-se os pedaços soltos, articulam-se e encerram como em uma armadilha
a curta frase atirada na sombra. As flores do quimono, negras, movem-se, ela vem a
mim, lenta e segura, como se me visse, vem a mim e abraça-me: os olhos buscam meu
rosto. Pode um homem agir como se tudo fosse como antes, quando em seu coração
renega a vida estável e já partiu. Eis-me reduzindo as nossas relações a um encontro
fortuito, isolado, sem conexões com outras circunstâncias e eventos, eis-me dizendo o
que sou ou estou certo de ser, eu, inebriado e ferido, dividido entre um obstinado
projeto criador e a cólera ante um mundo armado de garras, nas patas, no rabo, nos
olhos, nas línguas (como, em face deste mundo, amar a um ser único?), tenho a força
de amar, sim, a força de amar, apenas como as bestas?, não, eu, animal inflamado e
visionário, possuo a força de amar, não, porém, a inocência e talvez a surdez que o
amor exige (não ouvir o clamor dos massacrados, não ouvir o protesto dos roubados,
não ouvir o gemer dos enganados, o ranger de dentes dos mudos, mas eu ouço),
doem-me ainda outras feridas e eu não quero, do amor, as doçuras, os sobressaltos, as
perdas.
Prende-me o rosto, pressiona-o contra o seu, ardente, e o seu corpo, febril,
adere ao meu. O mover dos lábios na pele do meu ombro e o hálito em fogo:
— Aqui, Abel, não é um quarto. É um aspecto, veja e saiba, do Lugar e da Hora em
qu e nos encontramos afinal. Pese-me pela minha substância e desespero. Abel! Não
me reconhece?
Reconheço-a? Fala-me, onde terá lido sobre isto, de instrumento musical
familiar aos hebreus, chama-se macul?, sim, macul, do qual se desconhece a forma —
era de cordas — e só o nome resta, só o nome. Será o amor, em nosso tempo, um
instrumento em vias de desaparecer? Só a palavra amor sobrevive ainda? Seja então
restaurado e através de nós, Abel, perdure. O que será de tudo, se também nos
arrancam a força de amar? A alegria de amar? A raiva de amar? A cera que me
obstrui os ouvidos se dissolve e eu escuto, não as palavras de ʘ, não a voz e sim o
nexo, o sentido, a lei, a ordem, a coerência, a relação, o conjunto, a simetria, o
desígnio, o desenho, a trama. Roos. Cecília. Amo-as? Sim. Amo-as e a extensão do
meu amor, em cada caso, exaure-me. Amo-as e sucumbo à gravidade do amor e de
tudo o que este amor desperta, subleva, aciona. Mas o amor que conheço em
instâncias precisas da vida e que me alça, por dois breves períodos, a um modo febril
e mesmo exasperado de viver, tornando candentes — como por uma espécie de atrito
— então e sempre uns poucos dias e noites (exaltantes, nessas noites, nesses dias,
mesmo o infortúnio, a perplexidade, a solidão), não seria o núcleo do que se anuncia
com as suas árvores crescendo no sentido das raízes, seus peixes cantores, seus touros
submersos?
Roos e tu, Cecília. Eu vos amei e amo e este amor é integral, não mais pobre
ou limitado que qualquer outro amor, sim. Vejo, mesmo assim, que vos amo de modo
parcial, conquanto absoluto. Pondera e mede, Abel: o que agora começas a aceitar é
como se ouvisses, triplicado, em três pontos de um grande pátio em silêncio, a mesma
voz pronunciar teu nome.
Agora, a ti mesmo te unes, vens e vens, eras três e agora, sendo um, és tríplice
— e o mesmo nome, o mesmo, é, de uma vez, ouvido três vezes. Isto.
A compreensão que arduamente alcanço é ofuscante e nas trevas do quarto nasce
outro corpo de trevas. Quero manter-me de pé e meus joelhos dobram-se e tudo na
Terra, tudo, parece ao mesmo tempo grande e lastimável. Nu, os joelhos nas tábuas,
tenho o rosto sobre o sexo de ʘ, cheiro de mar e de capim sob a chuva, canta uma
cigarra em algum verão longínquo, vejo o que sou, o que somos, dois entes
escondidos, destinados a solver o insolúvel, sós na madrugada e no mundo,
extraviados, batidos, habitados por visões, e clamo "O que será de nós?", a voz,
abafada, vibra como se eu gritasse, intensa, "Ó que será de nós?", pois não vejo saída
e uma tem de haver, e ela dobra os joelhos e abraça-me com força, e eu clamo outra
vez o que será de nós e ela me responde "Morreremos, Abel!", o que significa "Aqui
estamos, havemos de morrer mas ainda estamos vivos e afinal a vida, longa ou breve,
dura apenas um dia, ninguém vive dois dias, ninguém, importa que haja nesse dia uma
hora, um minuto, um instante que ilumine o resto e fure os socavões, os sótãos, eu te
amo, com garras e com dentes, ama-me. Vem a penúria? A desolação dos tempos?
Vem o apocalipse? As bestas flageladoras? Venham. Estamos enlaçados. Vivos
estamos. Amamos. Garras e dentes".
Vozes profusas vão e vêm no seu flanco, vozes no seu corpo, não nas paredes
ou além das paredes, indo e vindo, distantes, as vozes de um motim. Crava as unhas
no meu dorso, passam músicos na praia, abraço-a com força, uma flauta, um violão,
um trombone, uma rabeca, os pés descalços dos músicos na areia, nossos corpos
oscilando, céu estrelado e grandes aves na praia olham passar os boêmios, ofusca-me
nas trevas, fugaz, um arabesco, uma mulher segue à distância os quatro homens e
ginga ao som da música (os passos miudinhos e os meneios de cabeça, as mãos
levantando a saia), o céu empalidece sobre a linha do mar, duros cílices cortantes
laceram-me a língua, o chapéu do rabequista é arrancado pelo vento, ele corre com o
arco e a rabeca no ar, os demais intensificam alegremente a música, oscilamos
abraçados, rosto contra rosto, as tábuas rangem com o mover dos corpos, tão
crispados este abraço que os meus punhos vibram, cada vez nos cingimos com mais
veemência, não sabemos como interromper o abraço e decerto iremos agora rebentar
em soluços. Fabordão.

E 3

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

O corpo de ʘ e o meu, tudo o que temos para este encontro. Nossos corpos e o que
ambos trazem. De pé, as suas mãos vibrando entre as minhas como vibra a cidade na
hora ainda tumultuosa da tarde, contemplo-a. Desejaria que soubesse e é possível que
saiba: não vejo à minha frente um animal de presa. Ela responde, com a fúria e a
solidão que ressoam em sua carne, a obscuros vazios que me roem. Percorre-a um
rumor? Suas mãos nas minhas, vibrantes (assim vibra um sino percutido, o chão sob
um galope de cavalos vindo, vindo, vibra assim). As palmas largas e fortes. Bate-me o
sol na cabeça e no canavial, verde e crespa ondulação descendo pelo vale, montando
os flancos dos montes, quase branca à luz do sol que cai de chapa no canavial e em
mim. Extraviei-me do reduzido grupo e há um extenso silêncio, que abrange as
cigarras, os pássaros e o canavial. Vejo entre montes uma chaminé e de longe, de
longe, da margem das distâncias, vem o ganido de um carro de bois. Os anjos
invisíveis e severos que antecedem a vinda da Cidade, que a precedem, parecem haver
expulsado da paisagem todo bicho vivo e qualquer vento. Expressa o rosto de ʘ,
legíveis, símbolos claros e exatos como as letras que vogam entre os altos edifícios?
Segredos numerosos, nele, espreitam-me; e o confronto do meu corpo com o seu
atende a um esforço de perfuração ou rompimento, arrastam-me esse rosto e corpo —
ventre ancas jarretes, vulva peitos ombros, língua braços coxas — com todos os ímãs
e iscas e méis, mas arrasta-me com ainda maior potência o esconso, o que irrevelado
se move em sua carne, 0 ainda escuro e não aqui. Sua beleza estoura nos meus olhos e
trespassa-me, cruza-me, atravessa-me, crava-se fundo em mim.

P 6

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

Sim, Julius Heckethorn, dentre outros motivos, não menospreza o fato de o


beneditino Gerberto de Aquitânia, residente em Córdova num tempo em que a
esplêndida filha do Guadalquivir não é apenas a cidade das mil mesquitas, das fontes
de mercúrio e dos tetos com pedras preciosas, passar à posteridade como versado na
aritmética e na cosmogonia árabes. É, portanto, fundado em precendentes vários que
abandona a idéia arcaizante da água ou do azeite como princípio motor do seu relógio
e opta em definitivo por um mecanismo a saltos. O tempo, flua ou não, repudia as
interrupções, os seccionamentos. Contesta-se, no entanto, a tendência do homem a
imprimir-lhe um ritmo? Este ritmo surge — é conquistado — com o relógio a saltos.
A saltos move-se no corpo o sangue, a saltos atuam os pulmões, movemo-nos
a saltos, mesmo as aves de mais tranqüilo vôo a saltos se deslocam, nadam os peixes
movendo, a saltos, as barbatanas, dia e noite são saltos, ir e vir, passar e ressurgir, sim
e sim, não e não, e a própria consciência que temos de existir não é contínua, toma-
nos e foge, vez por outra assalta-nos, a saltos. Um erro ambicionarmos, para a
representação do tempo, engenhos contínuos, nunca interrompidos, sem pausas,
renegando a nossa natureza, que pulsa como pulsam os pulsos — e que tudo corta,
como corta o pensamento, em palavras, em sílabas, em letras. Acentua ainda sua
decisão: a presença, no mecanismo do relógio a saltos, do cabelo e das molas,
corações metálicos da engrenagem, peças em espiral e, a seu modo, figurações
palpáveis do tempo, tão claras qual se fossem, da palavra tempo, a representação
ideográfica.
Não sendo Julius, no mundo da relojoaria, um nome, portador de longa
tradição, e sim um amador com idéias, reconhece faltarem-lhe credenciais para sequer
aspirar a construir um relógio astronômico como o da catedral de Lyon. Insensato,
igualmente, elaborar planos para um relógio musical de grandes proporções, tal o da
Prefeitura de Iena; o de Lund, na Suécia; o Jacquemart, de Westminster. Onde um
Carlos v, de França, para confiar-lhe uma encomenda como o famoso relógio do
Palácio? Nenhum potentado ou administrador entregará a um obscuro cravista e
fabricante de carrilhões na Floresta Negra um relógio de torre (Julius tem o esboço de
um modelo inspirado no da catedral de Troyes) ou sequer algum relógio público, dos
que luzem nas praças ou edifícios oficiais, embora ele imagine alguns ainda mais
interessantes do que, por exemplo, o da estação de Waterloo, com quatro mostradores
e sem mecanismo visível.
Por outro lado, ele sabe: os costumes mudaram. As cidades já não precisam de
relógios para os seus habitantes e o sentido como que sacral das horas (hálito do
tempo?) perdeu-se para os homens. As informações relacionadas com o sentido
rítmico do tempo também caíram em desuso e agora o rádio assume a função dos
campanários, informando a esmo a passagem das horas, em cutiladas — e não em
obediência a um rito.
A idéia original, então, é construir um objeto mais ou menos portátil, uma
acordina de parede. Os primeiros desenhos convencem-no de que terá maiores
possibilidades de cumprir o projeto se dispuser de mais espaço. Um relógio de caixa,
eis a medida ideal. A linhagem a que se filia a sua criação, bem o vimos, não é a dos
relógios monumentais; nem é a dos relógios graciosos. Dir-se-á ao menos que Julius
Heckethorn, com o seu relógio, inscreve-se de modo indiscutível entre os relojoeiros?
Com maior força de justiça poderá ser incluído entre os intérpretes ou contempladores
do universo. Por sinal, nos meses em que desenha o mecanismo, o livro que traz
sempre consigo não é o Arte de reloxesou a Memória sobre o centro de oscilação do
pêndulo, de Jean Bernouilli de Basiléia, e sim, numa edição holandesa, o Manual de
astronomia árabe, de Alfraganus.

E 4

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

O texto em espiral do disco de Festo, quando grafado, teria um primeiro significado,


efêmero e já perdido. Hoje, ressoa de longe, de um mundo impenetrável e nos atinge
sem significar, evocando a presença e a visão do mistério. Não é isto linguagem na
sua expressão mais densa? Assim o corpo de ʘ. O capricho dos que lidam, para
qualquer fim, com a escrita, elege sólidos de forma inesperada — simbólicos ou
mágicos — sobre os quais exercer o seu ofício. Perpetuam-se feitos guerreiros em
cilindros; evoca-se em um cone a restauração do tempo de Marduque; reis assírios
fazem registrar num prisma suas guerras de conquista. Num fígado de ovelha,
petrificado, assinalam-se os pontos propícios ou nefastos; e inscrevem-se, aí, fórmulas
secretas, destinadas ao exorcismo e à adivinhação. Nenhum desses corpos, ostentando
textos decifrados, equivale-se, em significação, ao disco de Festo, com o seu texto
impenetrável. Aqui, o texto, em caracteres totalmente desconheci dos e resistentes à
decifração, entra pelas bordas, vindo do mundo exterior, vindo do princípio — e
enrosca-se em espiral, girando para o centro. De tal escrita, sabe-se — com aquela
espécie de certeza que ultrapassa e dispensa comprovações —, sabe-se que obedecia a
essa direção. Escrevia-se e lia-se, coisa única na história, fazendo girar entre as mãos
o disco: como a Terra gira e os astros. Escrita que reflete, mais que nenhuma, o
mundo e a nossa contemplação do mundo. Sendo-nos vedado, por uma afortunada
ignorância, saber o que exprime ao certo o texto — para nós noturno — do disco de
Festo, nele ouvimos e lemos uma verdade unívoca, prismática, laçada pela espiral
egressa de um disco invisível, do qual o disco de argila é o centro e cujo nexo final
está no centro do objeto moldado pelo ceramista e escriba. Evoca o corpo de ʘ esse
artefato irradiante. Nele, sem que eu realmente possa saber como, capto um vozerio
difuso; e a significação do vozerio ultrapassa a de um discurso, consistindo numa
espécie de entrelaçamento próximo do caos. Domina-me a convicção de que, no
centro do seu corpo, imagem de uma escrita esquecida — esta, por sua vez, imagem
do mundo e da sua contemplação —, pode-se entrever, entrever apenas, um nexo
possível, sem leis e ainda remoto.
R 18

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Abre-se o portão do asilo e os pneus do carro fúnebre esmagam o saibro do


jardim levando o corpo de Natividade; o Chrysler, vagarosamente, segue-o, sob o
olhar de alguns velhos sentados nos alpendres; a viatura do exército, estacionada na
rua, dá partida. O cortejo está completo. Duas religiosas, com seus hábitos brancos,
persignam-se e fecham o portão — há um breve tinido de correntes. O capelão do
asilo, a batina cinzenta desbotada e o guarda-chuva aberto comido de traças, vem no
seu andar semi e pára no centro do jardim, ao sol, junto à escultura pintada que
também sustenta um guarda-chuva: a ponteira voltada para cima verte um fio d'água.
O padre move os lábios, rezando ou chupando as gengivas. Ouve-se, no silêncio
apenas alterado pelo rumor distante do tráfego e dos passos das freiras na aléia
central, a soturna chuva artificial em torno da escultura.
— A esterilidade dos iólipos parece comprovar a sua natureza acidental ou
experimental. Como se uma corrente negativa, ainda em formação, sondasse às cegas,
através deles, a possibilidade de surgir em série e encerrar o ciclo humano. A glande
dos iólipos é gélida.
Alguém, sustendo ainda no ar, em uma ou outra janela, o vidro enfumaçado
com que segue o eclipse, olha-nos passar, mãos enlaçadas, espectros ociosos sob o
meio-dia tíbio. O sol, lunar, banha os frontões das casas e os vidros emitem reflexos
pálidos. Nossos passos realçam o silêncio nas ruas pouco transitadas. Ouvimos o rufio
das asas quando os pássaros desorientados levantam vôo e vozes de mulher
atravessam quarteirões, alcançam-nos, claras como se atiradas de trás das persianas.
As lojas fechadas e as aulas suspensas. Cinquenta mil pessoas, mantidas à distância
dos foguetes pelos cordões de segurança e suas automáticas, comprimem-se na praia
do Cassino, muitas desde a véspera, tendo passado a noite de verão na areia, nos
carros ou em tendas. Vistosas e inúmeras bandeiras, trazidas para que os escolares
acaso extraviados se orientem, flutuam sobre o acampamento. Cornetas, campainhas,
gaitas, assobios, garrafas quebradas, gritos, cascas de frutas jogadas à distância,
batuques, vozes, um hino marcial. Percorre as cinquenta mil pessoas um silêncio, uma
vaga de silêncio — como um rumor — e os mastros das alegres bandeiras aquietam-
se, prepara-se o tiro do Nike-Apache, último foguete a ser lançado antes que o eclipse
alcance o apogeu.
— Avesso à indiferença — da qual desconfio — e fazendo da minha
incompatibilidade com os tempos que passam uma espécie de justificativa para o
exercício continuado (e, posso dizer, desesperado) deste ato suspeito e pouco oficial
de escrever, continuo ordenando meus artefatos de letras. Procuro entrever e nomear
um fragmento do que jaz sepultado sob as aparências. Assoma, entretanto, nos meus
textos conflituosos e híbridos, a História dissonante, sem integração possível, em uma
de suas manifestações mais soturnas. Um quisto: cáustico e arbitrário.
No céu límpido — não um céu noturno, mas um céu tumultuado, onde noite e
dia coincidem —, no anel do horizonte, brilham constelações desconhecidas, tanto
sobre os tetos das casas como do lado do mar. Na calmaria, ò som das águas se
espraia, passa sem fazer sombra um bando de pássaros, uma onda cor de breu ondula
com mais ímpeto ao longe, cintilante, o refluxo cumpriu-se e a preamar da tarde se
anuncia forte. Algumas bandeiras ainda pulsam, as cores demudadas e envoltas desde
o extremo do mastro numa espécie de névoa, um reflexo tenso e sufocado.
Parte o Nike-Apache com seu rabo de chamas, sobe, invisível, entre as cortinas
grossas de fumaça e areia, cem locomotivas de vento e de fornalhas atroam soltas no
ar, todas as bandeiras despertam num golpe, estalam tesas sopradas pelo tiro como se
fossem despregar-se dos mastros, copos de plásticos, pedaços de papel e folhas secas
voam, voam os toldos dos quiosques de frutas, estala o madeirame dos tetos e os
pássaros fogem atordoados das árvores que esse vento zurze. Cheira, o vento, a lacre
fervendo. Sobrevoa-nos, baixa, uma nuvem de aves, os bicos mudos: parecem voar
com raiva. Ecoa na praça, apagado, o brado das cinqüenta mil bocas na praia do
Cassino e eu mostro a ʘ no céu cada vez mais profundo e estrelado o Nike-Apache
— um traço, diamante e fogo.
Acossado pelo cheiro de carniça que vem das áreas internas e pelos murros
impacientes dos que chamam em vários pontos do prédio, nos corredores com
lâmpadas queimadas, os elevadores surdos, subo os degraus do Martinelli. Apodrece o
faustoso palácio, com suas duas mil e cem janelas: alguns dos moradores habitam nas
privadas. Alcança-me, cada vez mais longínquo, nas escadas sombrias, o som de um
realejo e a mesma melodia, incansavelmente repetida, filtra-se com a luz vesperal
entre as cortinas da sala.
A mãe de ʘ, de negro, o que exalta o brilho e a cor das pernas, contempla-nos
— a mim e ao homem sentado numa das poltronas de veludo verde — do fundo de
um ódio incurável e que nada mais disfarça. Linhas como as das mãos cortam o rosto
ceroso, cercado pelos cabelos tingidos de vermelho-garança e que tocam os ombros
em ondas. Seus gestos aspergem um perfume intenso e reles. O homem, com luvas
leves, segurando o jornal e uma corneta de chifre, tem qualquer coisa de um morto —
bem moço, ainda— vestido para o enterro. O presidente Castelo Branco, rodeado de
crianças, concede autógrafos no V Salão do Automóvel. O globo de luz estala sobre
nós como se um besouro, preso, buscasse escapar. As portas, o estuque, o tecido com
rosas cor de chumbo sob o vidro da mesa entre as poltronas, o cheiro do jornal, as
paredes pardas, pintadas a óleo, com grinaldas verde-sujas, o realejo, os mosaicos do
piso, tudo se aproxima: como os ratos que saem dos buracos quando as casas
silenciam. O homem leva, rígido, a corneta à altura do rosto: "Eu estou muito bem.
Vejam". Voz clara e vazia de tudo, contrastando com as nossas, cheias de raiva ou
ânsia, mas vivas.
— Há textos com preocupações idênticas aos meus, voltados para a decifração
e mesmo para a invenção de enigmas (o que também é um modo de configurar o
indizível). Textos realizados com serenidade, e, vistos sob certo ângulo, não
contaminados pela opressão. Ora, nenhum indivíduo, instituída a opressão, subtrai-se
ao seu contágio. Nenhum indivíduo e comportamento algum.
O Chrysler negro e a viatura do exército seguem o carro mortuário através dos
pequenos quarteirões do Jaçanã, com crianças descendo as ruas ladeirosas sentadas
em carrinhos primitivos, a estridência das rodas de metal no asfalto coberto com um
lençol fino de areia, outras brincando sobre montes de barro em terrenos baldios,
velhas roupas secando ao sol de outubro ou de novembro, muros guarnecidos com
arame farpado, pequenas automecânicas graxentas, escuros botequins, o quadro-negro
à porta anunciando pratos populares em letras de alvaiade, calhambeques transportan-
do mudanças — trastes desconjuntados, trouxas, eletrodomésticos e gaiolas de
pássaros —, centros espíritas, canta um canário no silêncio e certas ruas permitem
uma visão fugaz: montanhas longínquas entre tetos baixos e postes de cimento.
Seguem os três veículos em direção ao centro, através das numerosas e bem marcadas
cintas que tanto graduam o traçado quanto a vida da cidade, abandonada, pobre e em
tudo semelhante, nesta zona — por trás da qual se estende ainda, seu contraste, o anel
das favelas e das fábricas, ladeadas por montes de ferro-velho e lixo —, a um
povoado de fronteira, com burros arrastando carroças sobre elevações argilosas, entre
casas rasteiras e desolados jardins onde medram pés de abóboras. Avançam, cinta
após cinta, as ruas tomam-se menos tortuosas, escuras portas de suspensão em aço
ondulado substituem as portas de madeira dos armarinhos, multiplicam-se — rede
emaranhada e negra — os fios da energia elétrica, com raros pássaros assustados e
raras armações de papagaios trazidos pelos ventos de agosto, caminhões e ônibus
sobem nos passeios meio esburacados, rodam sobre o mosaico tisnado dos quartos e
até as xícaras, os retratos nos álbuns e os sonhos, os que ainda subsistem, são
impregnados de fuligem. Frontispícios menos fumacentos, açougues mais arejados,
alguns cartazes de rua (Boas Festas!), a multiplicação de veículos ligeiros, de sinais
de tráfego e certa ostentação nos mostruários das lojas de tecido indicam um novo
círculo, mais opulento, dos muitos que gradualmente se sucedem, contíguos a outros
círculos e deles separados. Até que as estruturas dos palácios por vezes decaídos e
mesmo assim orgulhosos que governam a cidade, entrevistos de certos pontos do
percurso entre árvores outonais e sem nenhum esplendor, alteiam-se de súbito,
crivadas de janelas, coroadas de antenas e de luminosos desmedidos, com suas caixas-
fortes, seus computadores, seus guichês sonoros, seus elevadores lotados e a rede que
os laça e une, as vozes incansáveis das telefonistas. A carcaça negra de Natividade,
sempre mais pesada, trespassa devagar esse mundo vário e indiferente, alheia ao
traçado das ruas e avenidas, seguida pelo Chrysler e pelos poucos soldados distraídos,
rumo ao jazigo perpétuo da família junto à qual envelhece servindo, rumor de bilros e
de louça, cheiro de mostarda e de amoníaco, seu velho corpo e este anacrônico
cruzeiro entre o asilo e o jazigo, enfim morta, enfim aceita, o silêncio, a inércia e a
podridão do seu corpo encantando os lugares onde irrompe. Indispensáveis, à mestra
rendeira — para que nasçam dos seus dedos, na almofada, as malhas e desenhos
rituais das rendas —, espírito inventivo, gosto, conhecimento dos pontos e juízo
seguro sobre o valor dos efeitos.

E 5

ʘ E ABEL: AME O PARAÍSO

Sua posição, o dorso pesando sobre as almofadas que forram o espaldar do


sofá, as mãos soltas aos lados do corpo e ambas as pernas flectidas, inclina-a em
direção a mim. A saia plissada do vestido, leve e negro, estampado com aros regulares
de um verde-intenso, contrasta, ligeiramente erguida, com a claridade dos joelhos
dobrados. O rumor compassado e discreto do relógio ao lado do sofá ressalta o ritmo
da respiração. Com o braço direito, cinjo-a à altura do colo e sinto o peso da cabeça;
fazendo leve a outra mão — como um ladrão de cofres — desfaço o laço da blusa. O
porta-seios, de fazenda pespontada e também negra, apenas disfarça com um tênue
círculo de seda, nos bicos, os mamilos que logo se distendem, sensíveis, ao contato
dos meus dedos. As línguas tocando-se, continuam a ser, em um nível mais concreto,
instrumentos da fala. Palatal, alveolar, velar, constritivo, por vezes oclusivo o nosso
beijo, linguagem afim à das palavras, não ulterior ou anterior, podendo contudo existir
sem o verbo e passível de enriquecimento na medida em que este se amplie. Diálogo,
é verdade, intenso e pouco variado: diálogo de amantes. Revelo o meu desejo, ela o
acolhe e responde, confessa-me o seu. Os sapatos, verdes, duas folhas lanceoladas,
jazem sobre os ramos do tapete — entre os quais, por um momento, julgo perpassar
uma sombra.
O sol cai a pino sobre o canavial e eu não ouço mais as vozes dos que
participam da excursão. Deito-me à sombra de um cajueiro, nauseado — creio — pelo
calor e a luz forte. Grandes e raras nuvens flutuam ao sabor do vento alto. Suas
grandes sombras lentas deslizam sobré os montes, escurecem o vale e avançam sobre
mim. Cobrem-me — sinto o frescor desta passagem — e vão-se.
Ela encolhe mais as pernas e aperta meu joelho. Sua respiração torna-se ainda menos
ordenada: observo a aceleração do ssngue no seu colo. Neste ponto da sala, onde
começa a chegar o mormaço da tarde de novembro, é menor o ruído dos veículos.
Mas atravessa as cortinas, estridente, uma serra mecânica. A palavra estridor e todos
os seus derivados, e as palavras serra, aço, dentes, brilho, azul, madeira, operário,
mão, serragem (uma só palavra arrasta consigo todo o léxico existente ou virtual?)
cruzam o meu espírito e repercutem em nossas bocas. O licor a que sabe a sua língua
quente, Abel, não será então filtrado com palavras? Evoca-te, seu hálito, mirra e
violetas, uvas, sarmentos, folhas secas queimando, ou o que te embriaga é o olor das
palavras através das quais suscitas esse pequeno universo entre doméstico e vinario?
Arrefece a pressão das nossas bocas e entreabrem-se as pálpebras azuladas de ʘ íris
secretas contemplam-me à tona dos seus olhos, tão úmidas e dilatadas que parecem
alastrar-se pela órbitas.

P 7

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

Sabe perfeitamente Julius Heckethorn que, em outras partes do mundo, e


fabricados com instrumentos bem menos precisos, surgem relógios mais engenhosos
que o seu. Não o pode equiparar, em invenção e finura, à clepsidra oferecida por
Harum-Al-Raschid a Carlos Magno e na qual se abrem portas cinzeladas à medida
que o nível da água vai descendo; das portas, tombam hastes de prata sobre um
tambor de bronze, com um ruído tão sutil e intenso que se ouve à distância; pode-se,
além disto, saber quantas horas são passadas pelo número de portas já abertas,
existindo ainda, para coroar a maravilha, doze cavaleiros que aparecem na décima
segunda hora e desfilam ante o quadrante, fechando as portas, as portas das horas,
com o que novo ciclo se inicia. A ninguém, igualmente, causará a máquina de Julius
uma admiração fácil e exaltada como a que pede certo relógio de Sol: os raios solares,
atravessando uma lente, acendem um rastilho: com isto, um tiro de canhão celebra o
meio-dia.
Jean de Felains, ao instalar, em fins do século xrv, o relógio encomendado
pela municipalidade de Ruão, ira-se ante os louvores, exclamando que a palavra
relógio é mais fina e espantosa do que qualquer objeto ou mecanismo. Como este
ilustre antepassado, é possível que Julius repudie em seu íntimo, ao fabricar o relógio,
toda espécie de admiração. Visto exigir do observador um conhecimento geral das leis
que regem a sua invenção, sem o que facilmente parecerá fastidiosa, irregular e
destituída de um conhecimento aprofundado do ofício, quem sabe até se não visa,
com ela, enervar, desagradar, intrigar, perturbar, inquietar ou provocar julgamentos
ásperos?
Semelhantes obras, coisa que a tantos escapa, não surgem facilmente ou com
clareza. Os desenhos e os cálculos, na maioria das vezes, distanciam-se do projeto
inicial. Mal se reconhece, por isto, no plano final de Julius, seu primeiro esboço,
havendo sido abandonadas — sem deixar vestígios — numerosas idéias que, uma vez
a obra definida, lhe parecem ingênuas e rebuscadas, como a de um mostrador de vinte
e quatro horas, em vez de doze, repetindo o modelo renascentista de Chartres. Em
nenhum momento, porém, vacila ante o princípio de que o seu relógio deve ser
preciso. Isto porque todo relojoeiro deve ambicionar a exatidão; e em segundo lugar,
por não lhe parecer que um mecanismo como o que elabora possa estar associado a
engrenagens infiéis. No âmbito das possibilidades humanas e das limitações da sua
oficina, tudo ele dispõe para não malograr no projeto. Seleciona o ferro, o latão, o aço,
o bronze, a madeira da caixa. Não há uma só peça — cordas, rodas denteadas,
pinhões, eixos, ponteiros, platinas, âncora ou colunas — que negligencie.
Ao pêndulo, cujo desenho faz lembrar um cistro ou um alaúde, consagra
extremos cuidados. Nenhuma outra peça de relógio é mais afetada pelas mudanças de
temperatura; e qualquer aumento ou retração da haste apressa ou adianta sua
oscilação, variável também segundo as regiões da Terra. Julius, preterindo o pêndulo
de aço-níquel de Riefler e o compensador de mercúrio, idealizado por Graham,
decide-se pelo de Harrison. Distingue o engenhoso pêndulo de Harrison, a existência,
não de uma vareta, mas de várias, com coeficientes diversos de dilatação. Pende o
disco — ou lentilha, como o denominam alguns artífices — de varas de aço, ligadas
nos extremos por barras de latão; outras varas, unia de aço e duas de zinco, ligam-se
apenas à barra superior. Ao elevar-se a temperatura, as varetas de zinco se dilatam
muito, não sucedendo o mesmo com as de aço, como se pode ler em qualquer manual
de relojoaria avançada posterior a 1728. Com isto, fica praticamente resolvido o
problema das mudanças de temperatura. Para a adaptação do mecanismo às várias
longitudes da Terra, há, na extremidade inferior da haste, o parafuso regulador.
Faltam-lhe defesas contra as alterações de pressão atmosférica.
A lentilha, assim chamada devido ao formato de lente biconvexa e cuja
oscilação é de quatro centímetros aproximadamente, tem um diâmetro invulgar: cento
e noventa e três milímetros; e suas bordas, antepondo o mínimo de resistência ao ar,
são aguçadas a um limite inconcebível. Depois de roçar seiscentos ou oitocentos
milhões de vezes, indo e vindo, como um pássaro dócil, no ar desta gaiola
envidraçada (também, em seus trânsitos por terras e oceano, nem sempre a
resguardam sedas ou flanelas), embota-se a quase imponderável finura que ostentam
suas bordas ao saírem das mãos de Julius. Nova, porém, sua delicadeza espanta os
entendidos. E qual o principal utensílio responsável por este resultado? A paciência
do artesão.

E 6

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO


O relógio — desligada a serra mecânica — soa a nosso lado e nós nos
desprendemos: ouço claramente o carrilhão, descontínuo. (Meio oculto na massa um
tanto revolta dos cabelos, o outro rosto, mudo e sufocado, espreita-me, tenso de
significados.) Ela pergunta, aludindo a conversações que em outros lugares e
momentos, nestes poucos dias, revelam um ao outro — e também a nós mesmos —
um pouco do que somos, se as pancadas do relógio, na sua incongruência real ou
aparente, me dizem alguma coisa. Fala com naturalidade, as mãos amplas cruzadas à
altura dos joelhos agora desnudos, mas o tom e as inflexões da voz não correspondem
à simples pergunta que me faz: as palavras, veladas e um tanto dissonantes, como se
escapassem — e escapam — ao seu domínio, enraízam-se em nosso abraço
interrompido.
— São estranhas, sim.
Também a minha voz não me obedece e eu não a reconheço enquanto admito que o
magnífico relógio soa de modo bem diverso do que estou habituado a ouvir. Sempre,
acrescenta ʘ, dá horas de um modo incongruente e não se tem notícia de que alguém
ouvisse toda a seqüência de notas musicais, dispersas — diz-se — nos seus engenhos
de som.
Afasta o rosto como quem procura esconder um pensamento, desce do sofá e
atravessa a sala, descalça. Seus calcanhares, róseos, evitando assustar os pássaros
tecidos ao pé das árvores e nos ramos cobertos de flores, quase não pousam no tapete
que demarca a sala de estar. (Outro tapete, ainda maior e com desenhos de outra espé-
cie, sugere, pela disposição, a sala de refeições.) Meio voltada e sorrindo, a face
esquerda iluminada pelo clarão da janela, olha-me por sobre o ombro, o pé esquerdo
no ar, o torso maciço e impetuoso não obstante certo ar de lassidão — e sua
exuberância detona, impõe-se. Os móveis, todos pesados, escuros e um pouco
empoeirados, pertencem a estilos diferentes; fabricados por artífices de várias épocas
e com diversa maestria, representam aquisições de anos, todas valiosas. O mobiliário
de um velho casal com margem financeira, afeiçoado às coisas que possui e nem por
isto menos inclinado a reforçar, com novas compras periódicas, a consciência da
própria prosperidade. Porcelanas e objetos de prata, mais brilhantes do lado onde a
janela aberta franqueia a luz das quatro horas, enfeitam alguns dos móveis.
Fotografias de outros tempos, uma anciã de chapéu, crianças, um grupo familiar,
algumas esvanecidas como a lembrança que acaso ainda subsista dessas personagens,
animam, em delgadas molduras negras ou douradas, as paredes cor de limão — e não,
decerto, porque representem pessoas muito amadas e ainda lembradas, mas porque
conferem uma espécie de esplendor ao passado dos Barros Hayano, seus donos,
duvidosos — quem sabe? — de existência real. Uma grinalda pintada a óleo sobre
moldes encima as fotografias, ligando de ângulo a ângulo as portas e janelas. Todos
os ornatos, entretanto (ressoam ainda as pancadas do relógio), parecem descorados
ante a figura erguida de ʘ, a ostentação evidente da sala empalidece e reduzem-se a
bem pouco mesmo as suas dimensões. Ela desarticula os limites físicos da peça, torna
os móveis ocos, estiola as rosas dos festões, oxida as pratas, desgasta as porcelanas,
apaga o que resta das imagens nas molduras. Só o tapete com ramagens ganha força e
cor: colhe-as dos seus pés descalços.

R 19

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

— A aceitar que subsista em nós o seixo ou gato podre, preferimos morrer.


Viver não nos parece impossível, amargo ou difícil. Você não age contra a vida:
inclusive, quer viver. Mas o ódio contra a presença instalada no seu tronco é mais
forte do que tudo.
O cortejo diminui a marcha e aguarda a abertura do sinal. À direita, vindo de
um parque de diversões exíguo, soa rouco e invisível um alto-falante: invade,
estridente, as casas de muros muito baixos e onde as folhas das plantas, nas nesgas de
jardim, lembram pedaços de sola. Frente às duas barracas de tiro, uma caminhonete
maltratada e na carroceria um colchão velho. A peroba-rosa (Aspi-dosperma
gomezianum ), cortada em retângulo e portanto assentá-vel em desenhos variados, é a
mais empregada, dentre as madeiras de lei, como revestimento dos pisos. Dura e
resistente ao caruncho, custa menos que as outras, devendo-se também a isto a
preferência das firmas construtoras. O oficial do Chrysler percebe um novo
acompanhante e nele reconhece o Ser: sem chapéu, a cabeça perpétua e o nariz, pouco
a pouco, move-se rente às coisas com gestos relativos, voltado para o centro. Uma
freira conduz o trabalho das serventes. As serventes desinfetam o quarto e repartem o
legado de Natividade — conchas, um rosário, alguns metros de renda envolvida em
papel fino. Queimam o resto. Erguem-se, mesmo sem vento, entre a montanha-russa e
o carrossel, nuvens lentas de pó, como se o terreno argiloso do parque fumegasse.
Atravessa o cruzamento, ágil, no sentido do regresso, o Ser — costuradas nos lugares
as vestes de listas invertidas —, envolve o préstito e volta, os braços fixos, ao ponto
triplo. O sexo da morta, nunca tocado ou acordado por mão de homem e duro como
nos tempos em que, adolescente, apanha café e algodão, rebenta violado, mancha o
capucho branco e meio desfiado que o protege. As duas barracas, enodoadas, cheias
de furos que parecem de bala, têm sob o sol intenso qualquer coisa de uma colisão.
Aparece um homem por trás da caminhonete, vê o carro fúnebre, desliga o alto-
falante. A cor súbita do Ser, paralelo à transversal deserta, revela-o: a causa das
conseqüências.
O calendário é uma rede no ar, o calendário caça o ar como se existissem
borboletas de ar. Veja: o barqueiro segue o rio, da cabeceira àfoz. Segue e está
presente, no curso da viagem, em todos os pontos do percurso. Pode, em momentos
privilegiados, ter a visão simultânea — não da viagem toda: a tanto não alcança —
de alguns segmentos da viagem. Incursões.
As mãos enluvadas do homem repousam sobre a corneta de chifre. Sei que
muitos dos seus ossos são restaurados com placas de metal e que o sangue, obtido
através de transfusões, circula em vasos com emendas de náilon. "Eu estou muito
bem." Estimuladores eletrônicos regularizam a pressão arterial e mantêm o coração
ativo. Traz enxertos no fígado, nos rins, na bexiga, nos pulmões. Parece-me,
entretanto, saudável e ainda conservado, embora um tanto hirto e custo a perceber (as
cortinas são escuras) a dentadura dupla, o nariz de silicone, um olho de vidro. Armas
farão advertência. A mãe observa-me com desprezo, suspeita a exultação a um só
tempo. Procuro, inutilmente e talvez sem habilidade, obter informações concretas
sobre a idade verdadeira de ʘ. "Vejam." O carrilhão da Sé ondula sobre a tarde de
domingo e os vidros estremecem nos caixilhos. Por que estou aqui? Vão morrendo as
vibrações, vaga que vem e reflui: o realejo, submerso, ressurge. "Então, o senhor está
de férias. Conheceu o nosso genro?" "Não." "Ah... Sabe? Nunca vamos lá. Saímos
pouco." O tapete aos pés da mulher lembra um cachorro com rabugem. As orelhas do
homem, vejo, são postiças, os cabelos transplantados, tem uma perna mecânica. Por
que as luvas? Com um quê de artificial nos gestos, ergue a corneta: "Eu estou muito
bem. Vejam". Emudecemos. Ouço os murros dos que chamam, em vários andares do
Martinelli, os elevadores decrépitos.
Pode um artista manter-se fiel às indagações que mais intensamente o
absorvem e realizar a sua obra, ignorando a surdez e a brutalidade, como se as
circunstâncias lhes fossem propícias, a ele e à obra. Talvez se convença de que deste
modo a preserva e se resguarda da infecção. Engana-se ou procura enganar? Isto, não
sei. Sei que obra e homem, ainda assim, estão contaminados e, o que é mais grave,
comprometidos indiretamente com a realidade que aparentam desconhecer. Ele e sua
obra resgatam uma anomalia: testemunham (testemunho enganoso, bem entendido)
que a expansão, a pureza e a soberania da vida espiritual não são incompatíveis com a
opressão, e nos levam mesmo a indagar se esta, além de as admitir, não propicia
grandes percursos do espírito.
Máquinas poderosas ampliam em todos os sentidos o alcance das sondagens
em torno do eclipse. Instrumentos ópticos de várias procedências, instalados no mais
denso ponto do oval de sombra, espreitam astros de existência duvidosa. ("Você atira
no peito ou corta os pulsos, para que suma o seixo. Preferiria viver e se morre é por
acaso.") Uma frota de grandes aviões a jato, emissários da NASA, voando a tal altitude
que confinam o imaginário, estudam os círculos solares. Sobre o Peru, a trezentos mil
metros dos Andes, num espaço povoado de zurros, esturros e urros sem gargantas,
astronautas da Gemini filmam o eclipse e o oval de sombra onde estamos eu e ʘ,
imóveis, rindo, meio bêbados e com os braços abertos, num retângulo deserto e junto
a nós a árvore, um ponto, um grão. O Nike-Apache, equipado com instrumentos
eletrônicos, investiga os ventos superiores, acelerados com a sombra e o frio, e a
zoologia da alta atmosfera, revelável — como, sob o reagente adequado, um desenho
normalmente invisível — pela contorcida e misteriosa luz do eclipse.
Sós, nesta praça revestida de pedras, quadrangular, as janelas cerradas, de
pedras entre as quais o mato cresce, no centro uma árvore mais alta do que todas as
casas sem beirais, uma árvore frondosa (réstias solares atravessam-na, pequenos fios
recurvos sobre as pedras), entre golpes de vinho mastigamos queijo e pão, a árvore
assemelha-se a um carvalho antigo, casas sem beirais, lívidas na luz crespuscular e
infestada de mariposas brancas, a árvore um marco na praça, o mato cresce entre as
pedras e nós bebemos vinho, sós junto à árvore, entre as mariposas, sós, no quadrado
da praça, o Sol gangrenado no zénite, olhamos para a frente e para trás, nós, eu e ela,
dez, fora de nós, como se aguardássemos a vinda dos nove coros de anjos, o fim do
mundo, a queda das estrelas ou o início de tudo.
Caminhões frigoríficos, jamantas transportando cargas de madeira, de sal e
grandes lingotes de aço metem-se — cunhas — entre os carros do cortejo. Cortejo?
Manobrando rente a outros veículos cada vez mais próximos e lentos, o tenente-
coronel entrevê — e logo perde-os de vista — o coche fúnebre e os soldados, prestes
a cruzar a ponte das Bandeiras. Os gases lançados pelos mil canos de escape
misturam-se ao cheiro grosso e como que viscoso das águas. Natividade ergue as
mãos e confessa às duas outras velhas cheia de alegria: "Acreditam? Estou sentindo
um perfume de terra. Vou ser recebida! Vou ser recebida por Deus!". A palavra Deus
queima a sua boca e ela põe-se a chorar, agitando-se na cama, procurando erguer-se e
assentar os cabelos lanosos, certa de estar a caminho de Deus, nos arredores — e
talvez até dentro — dos muros do Paraíso, cujo odor é o mesmo, tem de ser o mesmo,
da terra sobre a qual anda sem rumo certo até que endureçam os joelhos e onde só
conhece a servidão, o favor, os disfarces da solidão. Queima-se a cal virgem com
água e esta operação não deve ser interrompida, para evitar — conseqüência do
resfriamento — que parte do material deteriore. Eventualmente, a simples umidade do
ar pode queimar a cal virgem, poupando-se, com isto, água e mão-de-obra. Flutuam
ao vento, entre mastros, as bandeiras brancas e vermelhas do Circo Norte-Americano,
armado num terreno inculto à esquerda. O homem do Chrysler procura o carro
fúnebre entre os caibros, tábuas e lingotes empilhados nas carrocerías. Vê apenas
pedestres apressados, outros veículos, as escuras torres quadrangulares aos lados da
ponte das Bandeiras e cartazes da Varig, sobre os quais grandes e alvos cúmulos
vogam lentos. Ovais de grama empoeirada e seca dividem a avenida Tiradentes,
rodeando as agrestes palmeiras de cânhamo-da-china. Os cemitérios têm hoje um ar
festivo com os seus visitantes incontáveis e as compras de Natal movimentam as
lojas, Natividade não conhece os pais e muito menos os avós, não tem notícia de
irmãos, tios, sobrinhos, morre virgem e as ancas enchem-se de rugas sem que um
noivo apareça. Todos os anos, ao longo de mais de trinta anos, no dia 2 de novembro,
às três horas da tarde, sai sem dizer para onde, compra um ramo de margaridas, entra
no primeiro cemitério, procura um túmulo — seja de quem for — abandonado,
deposita as flores, reza para um nome, imagina uma afeição, chora em silêncio.
Denomina-se pique — ou risco — a reprodução, em papel ou cartolina, dos desenhos
sobre os quais se tece a renda.Assemelham-se, com variações, os desenhos
tradicionais, a motivos freqüentes na azulejaria portuguesa. Quanto aos azulejos,
inspiram-se no mundo e na geometria. A puta, o bombeiro e o servente de obras
rondam o Chrysler. O coldre com o revólver, no assento à direita, tem um cheiro forte
de cavalo. O cano funerário dobra à esquerda, violando o gramado no centro da
avenida: o cano militar e o do tenente-coronel seguem-no aos trancos, varam a lona
do circo, entram. Natividade e um menino estão sós na arquibancada. A lona azul
ondula e entre os mastros as flâmulas. Atravessa o espaço, alto, um turboélice, rumo a
aeroportos longíquos. As flâmulas brancas e rubras oscilando. Metódico e sem jamais
coincidir, o Ser equilibra-se: por ter os pés entre os dois e nele só existir o lado
oposto, há na sua acrobacia qualquer coisa de oculto e incompleto. Arisco, inverte e
fica junto, as mãos de fora para dentro, onde. Aplausos, tambores, cornetas e vozes
cruzam o oco do circo, desligam-se as chaves dos carros e no silêncio do meio-dia
estalam os ossos humilhados da morta, estalam, quebrados por dentes ou instrumentos
de ferro. Artistas aparecem, gente de outros países, alguns com sandálias havaianas,
por trás dos vestiários bale uma cabra, aproximam-se da morta os pobres domadores e
acrobatas estrangeiros, mas os carros dão a volta e partem, acelerando.

E 7

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Soam guizos em um ponto qualquer do edifício ou no long-play posto por ʘ.


Que significa essa música, ardorosa desde a abertura e destoando, com seu coro
violento, seus timbales rebeldes, desta sala formada para exprimir aceitação e con-
tinuidade? Devo entender que tão ríspida cantata, moldada no que há de mais
elementar no homem e governada, entretanto, por uma inteligência lúcida e sensível,
constitui uma espécie de norma — ou de aspiração — para o rito carnal que
iniciamos? Toda a noite da véspera, cruzando despertar e adormecer, mãos
desconhecidas mantêm contra a parede do meu quarto um lençol desdobrado. Sei que
se trata de um lençol de bramante, tornado flexível pelo uso mas ainda um tanto
áspero, um lençol resistente, destinado a seguir extensas fases de uma vida, talvez de
mais de uma — e por isto sem marca bordada ou monograma —, terso lençol lavado
com sabão às margens de rio, azulado em branda solução de anil, seco sobre lajedos,
aspergido com água de arroz e engomado por mão de negra, com ferro aquecido a
carvão. Tudo isto ou sei e não sei quem o sustenta à minha frente, cobrindo parte da
parede. ʘ cruza outra vez a sala, os braços erguidos para soltar os cabelos, retorna a
mim, lenta, os punhos apertados das mangas comprimindo a carne acima dos pulsos,
alteiam-se os peitos e a blusa meio aberta mostra o profundo sulco entre eles, vou ao
seu encontro e ficamos de pé sobre o tapete, cara a cara, ela joga a cabeça para trás e
os cabelos jorram, aço e mel, sobre as espáduas sólidas. O rosto, entre eles, como que
se recolhe para a sombra e envelhece, a linha do nariz mais nítida— uma aresta — e
rugas entre os olhos. Leio em sua testa uma palavra, como se eu a houvesse escrito, e
não percebo o que significa: a palavra, em língua estranha ou inexistente, desaparece
antes que eu a guarde. Enfio as mãos nos seus cabelos (procuro a palavra não
grafada?), ela abraça-me, nossos rostos unidos e rumor de vozes: apressadas, falam
em segredo.
As transições sutis. Sem que se saiba como, um salto — e vos surpreendeis em
outro grau ou zona de percepção. Tenho-a nos braços e a tarde é de novembro? Eis,
porém, que esta não é mais e simplesmente a tarde onde um encontro ocorre:
ultrapassa, nosso encontro, a condição de episódio aprazível e arma-se em fecho ou
ápice de uma estrutura que o transcende. Não está em jogo o seu êxito, mas a sagração
de tudo o que, em nossas existências, dizemos e fazemos. Onde quer que andássemos,
fossem quais fossem enganos e acertos nossos, agora estamos um em frente ao outro,
sós
— e de nós depende tudo. Pouco importa, além disto, que ingressemos, os amantes,
em algum gênero de futuro. Devemos completar, mediante rítmica e feliz ordenação,
o complexo arcabouço a nós confiado. Este é um confronto sem depois — ou no qual
o depois já pertenceria a outra órbita ou ciclo.
Pesa-me, nítida, enquanto flexiono os joelhos num gesto ritual ou alusivo, a
condição de oficiante. Ela comprime sobre a parte inferior do ventre a minha fronte
(outra vez as vozes segredadas), seu corpo cede, os joelhos claros sobre flores, as
mãos cheias de anéis com as palmas generosas voltadas para cima. Tomo-as e
contemplo-a. Coexistem dois corpos no corpo diante de mim e de nenhum pode-se
dizer que seja o outro. Nada me faz supor antagonismo entre ambos e os traços dos
rostos coincidem. Um ser e dois. Só um deles tangível: um, prisioneiro, olha-me
súplice do silêncio que o isola: as suas mãos desguarnecidas de anéis estão nas mãos
que seguro. Reflexos, vermelhos?, roxos?, pulsam no colo de ʘ, vindos de algum
ponto da sala ou nascidos na carne. Abraçamo-nos com um grito surdo e tombamos
no tapete. Vejo, na queda, um par de olhos fitando-nos entre os ramos. A Cidade
aproxima-se do vale ensolarado como uma nuvem de aves migradoras, a Cidade e seu
rio, extraviada, tanto a procuro e agora surge na luz do meio-dia, pousa na plantação,
sem nome e um pouco gasta no seu esplendor.

P 8

O RELOGIO DE JULIUS HECKETHORN

Todo o zelo que o descendente de Charles William Heckethorn aplica em seu


trabalho não bastaria para o elevar à categoria de arquiobjeto, de obra pessoal e
merecedora de exame. Teríamos, se se limitasse a isto, um produto artesanal de alta
qualidade, amorosamente construído, porém inexpressivo. A novidade do relógio que
tanto esforço exige do seu inventor e fabricante reside no tríplice — ou quádruplo —
sistema sonoro, gerado em sua infância entre alguns livros antigos.
Sempre fiel ao cravo, escolhe, para trabalhar em seu projeto, a introdução da
Sonata em fá menor (K 462), de Scarlatti. (Seria de esperar que preferisse uma
passagem de Mozart, a quem não se cansa de admirar.) Secciona a introdução em
treze partes, numera-as pela ordem e, pondo de lado a penúltima, põe-se a manipular
as outras doze. Distribuir esses grupos de notas de tal modo que se percam uns dos
outros dentro do relógio, soem separados e só de tempos em tempos voltem a reunir-
se — constituindo essa reunião um evento pleno de intenções —, eis o objetivo de
Julius. Voltar a ouvir, íntegra, a frase de Scarlatti, será como testemunhar um eclipse.
Os eclipses, para ele, afiguram-se o mais fascinante dentre os fenômenos que pedem
— como tudo que merece existir e ser fruído — uma conjugação feliz de
circunstancias.
Firmada esta preliminar, desenha e constrói três sistemas sonoros inter-
relacionados, designando-os pelas três primeiras letras do alfabeto.
O sistema A reúne os grupos de notas 1, 5 e 11, funcionando com os intervalos
de quatro, uma e seis horas, ou seja, cumpre-se em onze horas: soa, na primeira vez
em que ocorre, o grupo de notas 1; na segunda, os grupos 1 e 5 soam; na terceira, os
três. Este processo acumulativo repete-se nos outros dois sistemas.
Outros grupos, quatro — o 2, o 4, o 7 e o 9 —, cabem ao sistema B, cujo ciclo
é de treze horas, aos intervalos de duas, duas, três e seis horas.
Maior é o sistema C, que abrange cinco grupos de notas: o 3, o 6, o 8, o 10 e o
13. Também seu ciclo é o mais longo de todos, com os intervalos de quatro, três,
cinco, seis e três horas sucessivamente, totalizando portanto vinte e uma.
Em todos estes sistemas há interrupções. Exemplo: antes de soar, completa, a
série C, observa-se um silêncio; este silêncio aguarda que ressoem (mas raramente
ressoam) o grupo 1 do sistema A e o grupo 2 do sistema B; entre os sons do grupo 3 e
os do grupo 6, nova pausa sobrevêm e é aí que deverão vibrar, acontecimento também
raro, as melodiosas notas do grupos 4 e 5; o mesmo entre os grupos 6 e 8; entre o 8 e
o 10; e entre o 10 e o 13. Funciona o aparelho de som como um jogo de armar e do
qual só tivéssemos, de cada vez, certo número de peças, sempre variáveis. Estas,
postas no seu lugar, deixam muitos vazios a serem preenchidos; mas quando temos as
peças destinadas àqueles claros, então nos faltam outras. O jogo raramente se
completa, e, visto por partes, não é compreensível.
Numa réplica intencional da nossa própria existência — incapazes que somos
de prever se o instante para o qual nos voltamos será ou não decisivo —, nem todas as
horas são marcadas com alguns fragmentos de Scarlatti. Muitas vezes, o ponteiro dos
minutos cruza em silêncio o número 12, de modo que nunca sabemos se a próxima
hora fará cantarem as engrenagens. Aduzir que não se destina a invenção de Julius,
como em tantos relógios, a anunciar as horas, parece-nos ocioso. Vê-se claramente o
que pretende, criar um símbolo da ordem astral. Não, por certo, à maneira de Jean-
Baptiste Schwilgué, construtor do último relógio de Estrasburgo, com o seu
mecanismo de equações solares e lunares, agulhas, indicadoras do Sol e da Lua, esfera
celeste, mostrador do tempo aparente e anel do tempo civil. Julius quer evocar as
conjunções do cosmos, mas poeticamente; não apenas a móbil ordem celeste, mas a
harmonia de imponderáveis que permite a um homem encontrar a mulher com quem
se funde, que faz nascer uma obra de arte, uma cidade, um reino.
Cremos, se ignoramos seus segredos, escutar a voz do caos ante o relógio
desse contemplador. Ouvindo-o dar, às sete ou às dez horas, quatro notas, seguidas de
um silêncio e de mais sete ou vinte e cinco notas, ou, então, vendo correrem duas
horas sem que nenhum rumor — salvo o do pêndulo — venha da engrenagem, dedu-
zimos que a máquina, alternando silêncio e som, desdenha a ordem, ignora-a e serve à
fúria. Não é sempre esta a nossa conclusão ante fenômenos que nos escapam? E pode
alguém inculpar-nos se não captamos o sentido de desígnios que, difusos, parecem
recusar todo esforço de compreensão? Também isto é visado por Julius: colocar as
pessoas, frente aos sistemas de som do seu relógio, na mesma atitude de perplexidade
que se sofre perante o Universo.
Ainda uma intenção o orienta, representar o que há de aleatório em nossas
existências. Sabemos, todavia, que o relógio de Julius Heckethorn, ou melhor, seus
aprestos de som, obedecem a um esquema rigoroso. Sobre este rigor, assenta a idéia
de uma ordem no mundo. Como introduzir, então, na obra, o princípio de imprevisto e
de aleatório, inerente à vida?

E 8

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Beijo com brandura as pouco numerosas sardas dos seus ombros e espalmo os
peitos que, deitada de costas, pendem, os bicos semelhantes a botões de flor, de um
lado e outro do torso, volumosos. Anunciam-se, nos duros e pontudos bicos, rosas
sem caules? Todo o corpo de ʘ, já inteiramente nu sob o vestido e ainda guarnecido
com os adereços que traz para o encontro, ressalta do tapete. Volumes ondulantes e
compactos. Solto o laço da blusa e desabotoados os punhos, caem as mangas frouxas
quando ela estende os braços e quase nada esconde o busto. Peças dos nossos
vestuários, arrancadas com crescente impudor e uma violência que parece imitar as
vozes da cantata, jazem em vários pontos, sobre móveis ou no piso, algumas nos
limites da sala. Distamos pouco da absoluta nudez e, não sei por quê, a solidão em
que estamos parece esférica, embrião no seu óvulo. Estivéramos, ela e eu, gerando
algum ser afável e gracioso, o júbilo dos homens, a idade da concórdia, a universal
sabedoria! Consciente do corpo, ela, descalça, não se permite assentar as plantas dos
pés quando anda. Deslocai se, os calcanhares suspensos, como se pisasse em ladrilhos
muito frios ou evitasse ser ouvida, ondulam os flancos nédios graças a esse artifício e
as mãos erguidas (um pouco) integram o alado encanto da marcha. Imóvel, firma-se
em um dos pés e alça (um pouco) o outro avançando, mediante flexão calculada com
astúcia, o joelho bem modelado, com o que inclina o tronco e finge uma postura
desatenta. Não negligencia, então, os ombros, lançados para trás — e assim mantém
os seios na altura que deseja, as veludosas aréolas grandes, como pêssegos e nos
mesmos tons de ouro. Esse jogo de espádua dissimulado e preciso, reflete-se nas
costas, cavando a curva acima das nádegas trêmulas e ressaltando, pelo contraste, o
seu modelado. Com isto, a linha do ventre, brando e adiposo, desenha-se tensa;
lembra um arco entesando para o tiro. Pulsam, no pequeno conca vo do umbigo,
origem de uma leve penugem descendente, reflexos, azuis. (Os coros arcaicos e os
versos latinos do long-play, o compasso do relógio, nossas palavras gastas e mesmo
assim verdadeiras, beijos mudos, gritos contidos, tilintar das pulseiras nos seus
braços.) Com a mão esquerda, devagar, exploro as gradações de resistência e calor da
sua pele, quente, acetinada e úmida entre as coxas, áspera e com algo de animal nas
axilas raspadas, cremosa nos jarretes, fresca e seca nos flancos, viva nos mamilos, rija
nos joelhos. Doçura e tepidez do ventre! Cálida, seca, tensa, flácida, úmida, imberbe,
macia, túmida, gélida, em fogo, fresca, tépida, é o mesmo tecido atento e inflamado
que responde aos meus gestos errantes. Tocando-a, os dedos ardem e onde quer que
pousem há um zumbido, um frêmito. Habitam-na enxames de abelhas? Besouros?
Imóvel e sem desejo de mover-me, mãos sobre o estômago, pernas estendidas
(soam, longíquos, motores de ônibus, vozes, passos nas calçadas), sonho jazer no
preciso lugar em que, dormindo, sonho. Interrompe a barra escura da parede, à minha
frente, um retângulo claro, nas dimensões de um lençol e talvez branco. Aguardo que
algo suceda e tudo o que sucede é a dissipação da dúvida a respeito da cor e da
natureza do retângulo: há um lençol alvo, desdobrado, estendido na parede e eu posso
distinguir, inclusive, as leves marcas das dobras. Quem o sustenta?
Cerra os olhos e verga rígida a cabeça quando sigo com a língua o desenho
entre a mandíbula e os botões dos seios. Mordo os seios, zona de textura indefinível
— entre sólido, líquido e fumaça sugo as aréolas, ela ergue uma perna e joga-a sobre
as minhas, soam guizos em torno do tapete, vara a janela um vento súbito e morno,
vibram pingentes dos lustres e sobre nós range uma fronde, o vento agita-a e eu tenho
nas mãos, na boca, os grandes frutos da fronde, seus frutos gêmeos, redondos, únicos,
maduros, impossível colher esses pomos encantados e cuja pele não os fecha ao
mundo, antes encerra na sua polpa o mundo, e, no mundo, outra árvore com novos
frutos gêmeos, fruíveis mas inseparáveis da árvore e nos quais o mundo mais uma vez
— e sempre — se repete. Ouço passos, pés descalços sobre folhas?, volto-me
apreensivo. Visão surpreendente: no tapete, um vulto, mulher nua ou homem, como se
nos espreitasse e fugisse, esgueira-se entre as ramagens umbrosas.

E 20
ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Um caminhão, já com os faróis acesos, aproxima-se da praça, sem carga,


vacilando sobre as pedras. Os feixes amarelos dos faróis, cortados pelas mariposas,
iluminam o vulto de ʘ, radiosa na sombra mais densa e estrelada, a mão cheia de
anéis sustendo o copo de vinho, oculto o rosto entre os cabelos dourados e centenas de
asas sobrevoando inquietas as flores do vestido. Um cào e um velho, vindos de pontos
opostos, cruzam a pequena praça sem verse, envolvidos um segundo pelos oscilantes
faróis amarelos do veículo, o cão de rabo entre as pernas e o velho pensativo, olhos no
chão ou em nada, um embrulho na mão, alheio ao frio repentino, às estrelas que luzem
ao largo do dia de novembro, ao silêncio da cidade, ao mundo. Entra numa rua, o cão
enfia-se em outra e o rumor do caminhão — o motor fatigado, a carroceria batendo —
perde-se em alguma transversal. Nossos relógios marcam doze e cinco, hora da
sombra máxima.
Grupos de operários, com, amarelos e vermelhos, capacetes vermelhos e
amarelos, núcleo ruidoso de geradores móveis, perfuratrizes elétricas, lanternas,
esburacam o asfalto, ferramentas e avisos de HOMENS TRABALHANDO, esburacam
perto do Correio, do Correio, o estridor das máquinas, chão e paredes das lojas
estremecem, o estridor, abafam o estridor o ruído dos motores e as buzinas raivosas
dos transportes que despejam, a cada dia útil, nesta área, quatro milhões e seiscentas
mil pessoas, a cada dia útil, vindas de todas as nascentes de todas as nascentes dos
ventos e depois e depois arrastam-nas de volta, o asfalto, operários esburacam o chão.
O vale do Anhangabaú e os dois e os dois viadutos sobre ele, parte da avenida São
João, a passagem de nível no encontro dessas duas artérias dilatadas e todas as
ladeiras, todas, ruas, largos, travessas e alamedas, todas, num raio que se amplia,
HOMENS TRABALHANDO, vibram sob o peso dos veículos. Os pedestres entre os carros
atravancam-se entre os carros, os pedestres, tensos, as caras fechadas, alguns,
pedestres, correm, estugados por varas implacáveis, solo e paredes tremem, estridor.
Abraçados sob a chuva leve — agulhas frias — que o vento agita, observamos
as proas harmoniosas dos barcos inclinados na areia. Ela descreve o rosto secreto e
verdadeiro desse indivíduo chamado Olavo Hayano, o rosto só visível na obscuridade.
Quando ouve o homem ressonar, apaga a lamparina, escruta-o. Tem duas vezes a
idade do Olavo Hayano diurno e as sobrancelhas eriçadas avançam sob a fronte
estreita em direção às têmporas: aí, descem, cercando as pálpebras pesadas. (Quase
desertos, ao entardecer, os gramados do parque Ibirapuera. As águas do lago refletem
as nuvens acobreadas e os anéis de ʘ cintilam sobre a direção do cano. "Brutal e
grosso o nariz, de narinas largas; o lábio superior extenso; extenso e quadrado o
queixo." Entre nós e a poderosa muralha de edifícios que fecham o horizonte flui o
tráfego compacto. Vejo, através de sua descrição, a boca do intruso entreaberta na
sombrados dentes largos, o riso de quem se sabe invulnerável. (As águas ondulam na
enseada, cor de estanho, entre os penhascos anedondados e as colmas suaves de
Ubatuba, entorpecida, sob a neblina que emaranha a paisagem numa rede impalpável.
"Arrancar do tronco o animal ou o seixo. Você preferiria viver e se morre é por acaso.
Mas o pior de tudo é quando a gente aceita o corpo estranho e começa a pensar que
não é tão mau viver com ele encravado." Impressão, por vezes, de que as gaivotas se
embaraçam nos fios e logo irão tombar sobre os dois pesqueiros fundeados ao largo.)
As orelhas de Hayano, peludas, moles e longas, descem até o pescoço com verrugas.
Parece, mesmo dormindo, dizer a si próprio: "Toda a injustiça que eu fizer terá
sempre o nome de justiça. Sobram-me a força e a indiferença necessária para usar a
força. A força, sem isto, não nos pertence". O mais assustador é que, nesse espectro
trevoso, falta uma parte do rosto. "Uma parte do rosto?" "Sim, há um vazio." Duas
meninas brincam no gramado com um pequeno cão branco. Os cabelos ouro e feno de
ʘ parecem acesos nas pontas.) Lemos os nomes dos barcos meio inclinados na areia.
As colinas e penhascos, de um negror sem relevo, com manchas verde-garrafa,
diluem-se em azul e cinza.
O militar, distanciado dos seus homens e do carro funerário, observa, entre as
ambiciosas torres habitadas do Banco do Brasil e do Bank of Boston, o Martinelli
com suas duas mil janelas e o céu escuro sobre esses edifícios. Vai a menina de um a
outro andar enegrecido, com um ente — peixe, ave ou embrião humano — crescendo
no seu tronco, vai, usa os cansados elevadores e vagueia nas escadas com degraus de
mármore, aflita e muda, ansiando pela queda. A chuva que começa, a chuva, começa
a cair, a chuva, intensifica a desordem, a impaciência e o clamor das buzinas a chuva
que começa, a desordem, travessas e alamedas, que, a chuva. As mãos até então e os
braços entre si, o Ser recua a esmo, raso, abre os dois lados da boca e grita com a voz
pela metade, exultante, preso ao seu também e ao seu desconexo. O carro fúnebre
invade o subsolo de São Paulo e sons da superfície chegam até a morta através das
galerias negras; tambores e soldados em marcha compassada, correrias, galope de
cavalos, o rolar dos veículos e o embate das línguas. As flores dos ipês rebentam,
sulfurinas, em jardins particulares e avenidas. As construções jamais devem assentar
na superfície do terreno: elimina-se, assim, o perigo de deslocamento lateral. Além
disto, os corpos orgânicos, freqüentes nas camadas superiores do solo, não merecem
confiança como base. Os bilros, talhados em madeira resistente, apresentam na parte
inferior uma cabeça e na superior um cabo que serve de bobina: nele se enrola o fio.
Seu peso e dimensões devem estar em relação direta com o fio a empregar e o gênero
de renda que se empreende. Natividade corta uma nota alta da cantiga, suspende o
manejo dos bilros e decide vencer a solidão, gerar em segredo uma família de
sombras, sua. Volta a cantar, já grávida e feliz. Nascem filhos e filhas, morrem dois
com alguns dias de nascidos (chora, trancada no seu quarto sem ventilação, lágrimas
reais por esses dois mortos imaginários), os outros crescem e pouco a pouco
desgarram-se, vão-se, somem no mundo: Natividade inventa-os e desfaz-se do
invento, outra vez só e agora gasta, de útero seco. Sua voz ecoa, forte e comovida, sob
os alicerces dos prédios, nos obstruídos corredores do subsolo, a voz das horas em que
tece na almofada as rendas corrente cheia, flor no quadro, riso de Cecília ou coroa de
rainha, seguem, voz e rendeira, subterrâneas, cortadas pelos fios elétricos e pelas
vozes dos cabos telefônicos (eis, Natividade, o amor e o rompimento, as transações,
os processos, as edificações, as demolições), avançam em curvas, cantora e melodia,
mordidas pelos ratos e saúvas do báratro, turvadas pelo lixo da enxurrada,
sucessivamente lustradas pelas águas dos condutos e contaminadas pelas podridões e
fezes e mênstruos e urinas e escarros e vômitos e fetos abortados que descem pelas
bocas dos vasos sanitários.
— A indiferença do escritor é adequada à sua presumível elevação de espírito?
Para defender a unidade, o nível e a pureza de um projeto criador, mesmo que seja um
projeto regulado pela ambição de ampliar a área do visível, tem-se o privilégio da
indiferença? Preciso ainda saber se na verdade existe a indiferença: se não é, e só isto,
um disfarce da cumplicidade. Busco as respostas dentro da noite e é como se estivesse
nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira, por mais que procure defender-me,
fazem parte de mim, de nós. Pode o espírito a tudo sobrepor-sé? Posso manter-me
limpo, não infeccionado, dentro das tripas do cão? Ouço: "A indiferença reflete um
acordo, tácito e dúbio, com os excrementos". Não, não serei indiferente.
Soa o telefone, alguém atende na portaria, passos rápidos na escada. Batem à
porta do quarto. Atendo no corredor mal iluminado. ʘ instrui-me para o encontro,
não mais um encontro como os outros, mas o encontro total, decisivo —
amadurecemos para isto —, a sua voz soando de modo inesperado, lenta e plácida,
com uma nota de solidão, como quem lê uma escritura, sem as irisações e dis-
sonâncias que tanto animam o que diz. Encontro decisivo. A porta do quarto, aberta,
ilumina um pouco a passadeira de linóleo, com as apagadas iniciais do hotel. Soa o
carrilhão da Sé: hora e meia para o nosso encontro. Ainda? Gane, emperrada, a
fechadura do quarto, como um cachorro na corrente que deseja fugir. Racha-se, como
golpeada, uma folha da vidraça. Desço a escada (o corrimão tem o mesmo odor dos
móveis, velho e deteriorado), saio, a tarde abafada, sigo entre vozes e passos rumo à
praça da Sé. Quem será este, frente à catedral? O Assomo Anônimo? O Não-Sendo?
O Furado-às-Avessas? Ele: o que nasce em outro lugar e só surge onde está quando se
foi. Muda de cor, como se muitos discos transparentes — azuis, verdes, vermelhos —
flutuassem, cruzando-se, entre o Sol e a praça. Ele e os passantes, os veículos, o chão,
a face ensolarada dos prédios. Volto-me: imensa, vacilante, cristalina e leve pirâmide
de corrupios vem e pousa, mais elevada que as torres, ante a catedral, sem interromper
ou alterar os rugidos de vagos animais subterrâneos e as vozes angustiadas dos
meninos que gritam à frente das lojas. Solene. Os corrupios giram, festpes unindo as
pontas. Abro as mãos. As cores dos corrupios nos meus dedos. As pernas da vi-sagem
sobre garras que pousam como sombras, sem agarrar o asfalto oleoso onde se
refletem. Triângulo? Ângulo? Não, um A. Garras imóveis, erguido, aproxima-se o A,
ouço o giro, os corrupios. A.
Como narrar a viagem e descrever o rio ao longo do qual — outro rio —
existe a viagem, de tal modo que ressalte, no texto, a face mais recôndita e duradoura
do evento, aquela onde o evento, sem começo e sem fim, nos desafia, imóvel e móvel?
Vejo no mundo, na superficie do mundo, nas suas águas, um convexo e um côncavo.
Somos, junto à grande árvore, e nos seus ramos desliza alguma asa, os únicos
seres humanos. Cintila sobre nós um céu armado para outras noites e encontros, o céu
para nós oculto e que esplende aos nossos pés, pisamos à meia-noite os astros que ora
nos cobrem e contra os quais se projeta, nódoa, a fronde negra e raiada de brilhos da
árvore única. Um halo frio reveste e distancia as platibandas das casas — e os vidros
luzem roxos. A linha estendida entre Sol e Terra cruza o centro da Lua, disco negro,
cerca-a uma claridade azulada sobre a qual logo se fecha, noturno, o céu constelado,
uma última língua resta, rutilante, explosão demorada resvalando na Lua, e ʘ, ao
mesmo tempo visível e oculta pelo eclipse, os cabelos com um brilho de peixes na
penumbra, vulto vago, ondeante, árvore ineal, caminha para mim, as mariposas indo e
vindo entre nós como se nos atassem.
Que afortunada e imponderável parcela então desfaz os cálculos dos
astrônomos? Na praia do Cassino, cem mil olhos atentos vêem o Sol enegrecer de
todo.

E 9

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Enquadra o tapete, prolongado, nas bordas menos largas, por duas franjas
pálidas, fina moldura sanguínea, cercando duas seqüências florais, ambas com
predomínio do azul, mas baseadas em distintos modelos. Segue-se uma barra bem
mais larga, também florida e onde as flores, ligadas entre si por uma caligrafía de
folhas, salientam-se, douradas e índigo, sobre fundo vermelho, evidentemente
estilizadas e repetindo-se, rítmicas, com variações quase imperceptíveis. Repetem-se,
então, as duas seqüências das bordas, agora na ordem inversa. Esta quíntupla
demarcação isola no espaço o verdadeiro motivo da tapeçaria, o festivo retângulo
onde avançamos talvez para o conhecimento. Nele viceja uma vegetação nascida de
meditações felizes, estranhas à idéia de Mal — nem o mínimo vestígio de destruição,
de violência, de morte — e sem que esta recusa (como saber, com segurança, se
desconhecimento ou recusa?) redunde na invenção de um mundo sem força de
verdade. Estamos abraçados sobre um quadro fantástico e engendrado na Beatitude,
mas permanecem os liames que o associam ao mundo perecível e sem os quais
corresponderiam apenas a frágeis idealizações esta vegetação imaginosa e a fauna que
a povoa. Troncos retorcidos e curtos, obviamente sem raízes e apoiando-se em um dos
lados do retângulo, procuram identificar esse lado com uma superfície sólida,
convenção negada pela existência de outras árvores cujos troncos levitam,
acrescentando ao espaço do jardim uma qualidade arbitrária e vagamente celeste.
Abrem-se como sargaços os ramos desses troncos, pouco providos de folhas e
animados, em compensação, por uma explosão de flores vermelhas e azuis, de forma
variada e nítidas pétalas abertas. Os ramos não se curvam ao peso dessa floração
opulenta. Lebres e aves que tanto podem ser garças ou íbis como pássaros estranhos
para nós mas familiares ao tapeceiro, ou, também, pássaros extintos e sobrevivos
apenas em algumas imaginações, aparecem em várias atitudes sobre o fundo entre
laranja e tijolo, quase sempre ocupando — um tanto florais, também elas, na
plumagem e na quietude — os belos ramos floridos. Por que, seja qual for seu nome e
mesmo pousadas nas árvores, pertencerão, sem engano possível, a alguma espécie
aquática, essas aves de pescoço elástico? Para tornar presentes, com tal artifício, os
peixes ausentes. Assim, sem que se altere a unidade do quadro, o espaço, terreno e
aéreo (levitação das árvores, existência de seres alados), completa-se: eis, invisível,
um lago.
Eu estaria errado se entendesse que apenas o lago participa (e os rios oriundos
do lago), por uma espécie de reflexo, deste mundo que ʘ e eu rondamos. As
representações são sempre enigmáticas, alusivas, fracionárias e quase nunca
contempladas na sua totalidade. Como introduzir com ordem, num espaço
forçosamente limitado, tudo que pretendemos? Estas árvores e flores que se alastram
em toda a área do tapete não são de modo algum estas árvores, estas flores: resumem
em si uma vegetação de inconcebível variedade. Peixes, animais do chão (não os
animais aborrecidos) e toda uma população ornitológica transparecem nas pernaltas e
nas lebres — e se figuram no tapete, precisamente, lebres e aves ribeirinhas, será,
dentre várias outras intenções secretas e não alcançadas, devido ao seu exterior
pacífico: denotam o reverso da violência.
Mas, se no tapete eu visse o Todo, também veria além dos limites, e, então,
nada mais veria. Tenho aqui o mundo, sim, porém ainda inviolado e por isso não
existe, nas flores abertas, nas aves despreocupadas, nas lebres alheias a eventuais
perseguidores, a mínima sombra de destruição ou de qualquer gênero de horror. Paira
em tudo um ar de imunidade e mesmo o olhar distraído bem depressa adivinha, não
sem nostalgia, que os seres aqui tecidos são imortais. O tapete é o Paraíso e, com os
sons da cidade, em torno da muralha constituída pela quíntupla barra de motivos
vegetais, ruge a morte.
Ocorre que, nesta versão do Paraíso, as árvores, todas carregadas de flores, não
frutificam: falta a portadora da maçã a ser colhida e que transmitirá, a quem a colha,
conhecimento e castigos. Ausente, ainda, o casal humano. Contudo, um casal meio
despido se ama na manhã eterna do tapete e na hora fugaz da tarde, o homem tendo
nas mãos os seios da companheira e sorvendo-os em êxtase. Situa-se, o casal, aquém
ou além dos limites floridos? Até que ponto completariam a representação e através
de que fios a ela se unem? Pertencem à multidão dos seres expostos às vicissitudes
terrenas ou habitam, felizes, o mesmo espaço inexpugnável onde os contemplam as
aves imóveis? Podem adquirir, ingressando no recinto arborizado e protegido do mal,
a perenidade que o inunda; e, também, invadindo-o com a sua substância perecível,
tornar os muros inúteis. Mas antes preferiam não participar do jardim e preservá-lo,
que, fruindo-o, nele introduzir a morte que circula em torno desses muros.

P 9

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

Cálculos elementares — se os compararmos aos empregados na confecção do


pêndulo ou à sutileza dos sistemas de som — acusam um ciclo de cento e vinte e
cinco dias e três horas para o reencontro dos astros por Heckethorn dispersos em seu
pequeno cosmos. Ninguém, a não ser talvez um matemático, e matemático a quem
não seja estranha a música de câmara, tem probabilidade de chegar a essa conclusão,
sem indicações sobre as leis do mecanismo. A dificuldade de estabelecer-se um ponto
inicial para o estudo do ciclo é acentuada por circunstâncias fortuitas. Pode-se estar
dormindo ou ausente no momento em que soem, pela ordem, os doze fragmentos da
introdução. Resta ainda um pormenor: ainda que estejamos próximos, e despertos, e
os escutemos, não teremos ouvido toda a frase musical, desde que Julius, como foi
visto, subdividiu-a em treze partes. A penúltima, não incluída nos três sistemas
descritos, associou-a a um dispositivo que a faz vibrar de cinco em cinco horas. Com
semelhante recurso, salta de cento e vinte e cinco dias e três horas para seiscentos e
vinte e cinco e quinze horas o ensejo de ouvir-se, sem falha, a frase de Domênico
Scarlatti.
Ora, esta solução, se bem complique um pouco o esquema, também admite
previsões exatas. Sabemos, entretanto, que Julius tem motivos para introduzir, na
ordem, um preceito de desordem. Que faz então? Fabrica de maneira imperfeita o
dispositivo complementar, atingido — e portanto desregulado — sempre que a tem-
peratura sobe, pela dilatação de uma delgada barra de zinco, posta de maneira
apropriada. Assim, há momentos em que o penúltimo grupo de notas, chegando a hora
de soar, não soa; inversamente, às vezes dá um salto, soando com uma hora ou duas
de antecedência. O que decorre desta inexatidão é evidente: tanto pode antecipar a
inserção das penúltimas notas na primeira confluência dos doze grupos restantes (aos
cento e vinte e cinco dias e três horas), como pode adiar indefinidamente a conjunção
perfeita das partes. Com tal imperfeição, o relógio de Julius alcança a perfeição. E
como no projeto a que alude o incunábulo impresso em Basiléia, agora uma vida
inteira pode decorrer sem que o mecanismo venha a repetir, da primeira à última nota,
a introdução da sonata K 462 — denominada, por alguns adeptos do cravo, Sonata de
Heckethorn. O valor simbólico que ele pretende incutir à sua obra foi alcançado: estu-
dando-a, um indivíduo capaz de traduzir criptogramas lê quão incerto e entregue a
imponderáveis é o destino humano; que a Ordem está sempre exposta a rompimento e
que um pequeno fator tanto pode impedir como rematar as harmonias.
Dois ou três anos consagra-os Julius à elaboração dos planos, manejando
cálculos que o enervam e afetam a convivência com a mulher, para quem a cegueira já
é familiar quando ele afinal os dá por terminados. A fabricação das peças, iniciada em
1933, poucos meses após a subida de Hider ao poder, dura quatro anos e oito meses.
Não falta muito para a conclusão, quando o intimam (como a outros relojoeiros,
transformados em fabricantes de material bélico) a readaptar sua oficina, com o
subseqüente silêncio dos carrilhões, cujo som constitui como que a sua atmosfera
natural.
O espectador do mundo, preocupado com o equilíbrio, com as junções felizes
e afeito à fragilidade, passará a trabalhar para a Luftwaffe.
Levanta-se uma noite disposto a incendiar o relógio. Não o faz. Volta a deitar-
se e durante vários dias tritura essa idéia nos dentes. Todo alimento sabe a vidro e
areia. Enfim, desiste. Não por amor à sua obra, mas por compreender de súbito que
algo bem diverso de um relógio e a que, até então, mais que Heidi Heckethorn, esteve
cego, forma-se com rapidez, de modo inexorável, não poupando ninguém.
Aos treze anos, lê, num estudo sobre o modo como é vista, no Renascimento, a
ciência medieval, a história de um homem cujos chifres crescem para dentro e que
destrói o mundo à medida que essas raízes furam-lhe os miolos, atravessam a
garganta, escavam o coração e esgalham-se. Hider, para ele, é aquele homem.
Destruir o relógio, tão laboriosamente construído, parece-lhe o anúncio, em escala
restrita, do que os chifres internos do Führer vão deflagrar em proporções amplas. O
relógio está pronto, mas ele não se dispõe a acioná-lo. Questões vitais o obsedam. Em
sua ânsia de abranger a totalidade das coisas, não terá voltado as costas ao fato
particular?
Não será ele próprio um erro na máquina? Que máquina? A Máquina da
História? Deve pôr em movimento a sua invenção? Para as horas que se acumulam no
tempo como hordas, marcadas por uma brutalidade cuja natureza ele ainda não
entende com clareza, são inúteis relógios como este. Diz-lhe um sonho: os
mostradores serão de pele humana; os pêndulos, balouço da Morte; sangue, em vez de
azeite, lubrificará os eixos e os pinhões; e os ponteiros vão girar para trás.
Não tem ainda resposta para uma só das perguntas que o fustigam, quando
recebe um telegrama de Münster: a mãe de Heidi está agonizando. Viaja com a
mulher. Ouve-a, à medida que os vagões verde-escuros perconem as estações,
descrever uma Alemanha de sonho, evocada pelos nomes dos lugares e oposta à
verdadeira. Este país de torres e de mirtos, onde navios singram a paisagem, gerado
nas trevas de Heidi, comove-o e agrava sua inquietude. Após as exéquias, o viúvo
roga que a filha permaneça em sua companhia nessas primeiras semanas. Julius
regressa sozinho e sozinho se decide. Desarma o relógio, volta a Münster e sonda o
conetor. O que ouve, assombra-o: Hampl está embriagado pelas idéias de Hitler. Sem
nada lhe dizer, Julius conversa uma noite inteira com a mulher, convence-a a
atravessar a fronteira e, favorecido pela ascendência inglesa, instala em Haia, não
longe do Museu Mermanno-Westreenianun, uma oficina para consertos de relógios.
Cinco meses depois ouve no rádio que a Áustria foi anexada. Então, dirige-se ao
relógio e o põe em marcha.

E 10

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Minha fome e sede, de modo algum saciadas, sugam e mordem, presa a mão
esquerda entre as suas coxas, sugam os solenes frutos gêmeos, cuja consistência entre
aérea, líquida e firme, lembra o espaço contido no tapete, celeste, aquático e tenestre
simultaneamente. (A árvore não nomeada que me cobre e da qual, frutais, pendem os
seios sobre que me inclino, abre-se em flores tão vivas quanto as do Paraíso.) Retiro a
mão de entre as coxas cenadas e que se afastam de leve, descubro mais o seu ombro,
afago o peito e de súbito percebo uma cicatriz sob a pele. Ela estremece e com um
gesto fora do seu ritmo prende-me ágil o pulso. Haverei tocado uma ferida viva. A
mão larga, um laço em torno do meu pulso, um laço rígido, seu corpo rígido. Os
cabelos espalhados sobre os desenhos de lâ. Vêm à tona os seus olhos secretos.
Sobrenadam ainda, quando o ser a que pertencem incha, como um prisioneiro
amarrado e amordaçado. As narinas palpitam, e o seu ritmo é o do sangue na aorta.
Ela orienta hesitante (que gesto e noite aqui ecoam?) os meus dedos para a marca
ferida. Os olhos tornam ao fundo de onde emergem.
Pouco sofre no lugar do golpe o acetinado da pele: tecido cerzido. A
verdadeira cicatriz, rastro de aço ou de chumbo, esconde-se como o estrago de um
verme sob a casca.
— Que é isto?
Na pressa com que me responde há um certo desafio:
— Furo de bala. Um tiro.
A voz, desgovernada, soa com estridência, um grito insultuoso. Sinto a
dilaceração e talvez a mágoa da carne, as fibras estouradas e saradas em nódulos, um
vácuo. Deixo cair o rosto sobre a marca.
— Casual?
Ante a sua resposta negativa, quero saber quem dispara contra ela.
— Eu mesma. Eu mesma.
Ficamos lado a lado, apenas de mãos dadas, em silêncio, fixando o estuque, as
respirações agitadas. Posso ouvir, através das vozes da cantata e da grande bateria
associada às vozes, a marcha do relógio, a serra elétrica e murros numa porta,
descontínuos.
Sua pele, sensível embora ao calor, tende a conservar a brandura, sendo
esbatidas e quase inexistentes as demarcações de matizes do seu corpo, mesmo nos
meses propícios a estações marítimas, quando (nas ausências freqüentes do marido,
ou, confessa, em sua companhia) busca o litoral e aí se expõe ao sol praiano — nunca,
é certo, nas horas mais calmosas, preferido o entardecer ou a primeira parte da manhã.
Nádegas e seios são talvez mais claros que braços e cintura, mas a diferença —
decorrendo, em parte, do modo como as superfícies bojudas e não apenas curvas
refletem a luz — é a que existe, nas paredes das salas com pintura clara, entre um
ponto mais próximo e outro mais distante da janela, aberta para um dia nublado.
Gradação idêntica observo entre as coxas e as pernas, entre os braços e os ombros. A
cor da região axilar e na qual, através da suave almofada de gordura, apenas adivinho
vagos desenhos de veias, é igual à dos jarretes. A cabeleira, com os seus reflexos entre
argênteos e dourados, solta sobre as espáduas, disfarça ainda mais tão leves diferenças
e, desde os pés, toda a epiderme desse corpo transbordante de formas parece de um só
tom. Sobressaem-se na branda e uniforme alvura, que deleita igualmente as mãos e a
vista, os pêssegos dos seios, o umbigo e o tufo do púbis, crespo, negro, frondoso.
Seu corpo, refratário às queimaduras de sol, é, em compensação, suscetível às
gradações da luz, fenômeno mais claramente observável em ambientes fechados e em
certas horas do dia. Leves ou espessas sejam as nuvens entre o Sol e a Terra, a cortina
da sala ondule, passem ante a janela alguns pombos, ou, simplesmente, mude a sua
posição ou a minha — e a pele amadurece, ou freme, ou pulsa, ou simula uma patina.
A fartura de carnes contribui para tantas e tão surpreendentes mutações.
Quando se desloca, os calcanhares suspensos, empenhando em cada passo toda a
ciência que possui do próprio corpo e dos seus movimentos, as banhas luxuosas —
detestáveis em outras pela ausência de lucidez e que, no seu caso, fazem evocar as
estivais figuras femininas de Tintoretto ou de Tiziano Vecellio, mulheres nas quais o
esplendor das formas é também um modo de exprimir a opulência e a fartura de
Veneza em sua fase áurea — ondulam ao longo das coxas e em torno dos quadris com
uma espécie de líquida fluência. Tenho presentes, vendo-a mover-se, caudas
numerosas de peixes e superfícies de açudes.
Concorrem ainda para as irisações de sua alvura os pêlos cambiantes. Quando
ergue os cabelos, vemos como desce da nuca e acompanha a coluna vertebral uma
penugem: torna-se mais palpável à altura do sacro e então se abre em tridente, um dos
quais se perde na junção das nádegas e os outros sombreiam, leves e em volutas, a
zona superior dessas undosas saliências, cercando as covas que aí surgem sempre que
firma no solo as pontas dos pés.
Tão lisa, a face interna dos braços, quanto as coxas e as pernas depiladas com
cuidado, enquanto (estranho e evocador vestígio de virilidade) uma camada de pêlos
mais ou menos densa e que ela talvez descore com loções, corre entre cotovelos e
punhos. Um traço vertical meio apagado desce do umbigo e emaranha-se no triângulo,
nos seus frisados e anéis.

R 21

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

— Não estou em condições de afirmar, modifica-se constantemente a luta e


também os sistemas de defesa, que jamais cederei a outros métodos de ação. Mas sei:
serei sempre inferior, como homem e artesão, ao que seria em outras circunstâncias.
Tornamo-nos, sob a opressão, piores do que éramos. Na melhor das hipóteses, somos
assassinados ou aprendemos a amar a violência. Apenas, não nos cabe de todo, sob a
opressão, o peso dos nossos atos: a posição do opressor não é sem ônus. Por mais que
acuse, e ele necessita de acusar, pois detém o privilégio das sentenças e das exe-
cuções, arca, embora se recuse a isto, com as respostas dos demais. Ele é o culpado,
se investe contra mim; se eu próprio me destruo, a culpa é sua; se eu o mato, o
culpado ainda é ele: assassino de si mesmo.
Os três carros do enterro percorrem sinuosos as avenidas e ruas cobertas de
veículos, algumas decoradas com grandes cubos superpostos, em cores vivas, o velho
corpo seguindo ante a pobreza dos filhos e os cartazes de publicidade com as suas
imagens de opulência, de juventude, de rapidez, o mormaço estiolando as cinerarias e
as rosas, a garganta obstruída, a carne desfazendo-se no centro do rumor — de
motores, de freios, de imprecações, de passos apressados, de explosões —, suas
cantigas das tardes sossegadas indo e vindo em surdina, fio invisível e melodioso
enleando a penúria e a prosperidade (delineiam-se à distância os perfis de potentes
instituições financeiras), vai Natividade cada vez mais pesada entre os cimentos e
aços de São Paulo, a cabeça povoada de vozes que se calam e manhãs luminosas que
se apagam, rebentam nos jardins e nas ruas as flores pascais das quaresmeiras,
distinguem-se nas rendas o fundo e a flor, panos roxos cobrem as imagens na capela
do antigo Colégio Arquidiocesano, as detentas do Presídio Feminino erguem-se todas
de uma vez à passagem do caixão, ficam de pé junto às grades para que o enterro as
atravesse, o enterro atravessa-as, Natividade atravessa-as, atravessa o refeitório, o
pátio, as sentinas, as celas, morta e presídio com o mesmo cheiro de ossos no
monturo, o Ser, de costas para todos, gane pelo avesso a palinódia, são dez horas no
relógio da estação da Luz, a flor da renda também se chama ornato e se forma pelo
cruzamento de fios entre as malhas, os jovens pés da negra vencem rápidos as sendas,
percorrem as plantações de café e de algodão, endurecem com os anos e os percursos
restringem-se, sempre mais cautelosos e lentos e pesados os pés, como se tendessem
para a quietude e agora atravessam na manhã de maio os corpos das mulheres,
rasgam-se nos corpos, artelhos e unhas vão sendo extraídos (corpos de arame farpado
os das presidiárias?, de cacos de garrafas?, de ganchos de açougueiros?), trespassados
pelo corpo de Natividade os corpos parecem engrenagens malignas, dilaceram o couro
crestado dos beiços, furam os olhos cegos, rasgam a casca de rugas e descobrem —
mas sem dentes, e também cortam fundo — a cara da menina negra que, iludida, canta
no algodoal.
Minha mãe, em longa e desordenada carta, acusa o cartão enviado de Rio
Grande e espanta-se do meu telegrama. Que estou fazendo em São Paulo, quando meu
objetivo é tentar a edição, no Rio, do manuscrito incluído na bagagem? Os editores,
"esses passadores de seixo", não me receberam como devem? "Abri a tua gavetinha e
vi umas folhas escritas. Me deu uma saudade, Abel, de te ver na mesa escrevendo..."
Sem transição, no estilo que invejo, se queixa dos ovários: "Uma parideira fora de
combate como eu e esses troços acham de doer ainda! Mas pensando bem, Abel: não
é melhor doer agora, quando já não serve para nada, o que foi na vida a minha
ferramenta?". Espera que eu descreva, quando volte, o grande eclipse. "Aqui, foi
parcial, uns dez por cento. Cara de Calo, seu grande amigo, andava do alpendre para
as salas, a cabeça maior do que o corpo, bebendo água sem sede e falando de
legisladores, de ângulos, de aspectos, do poder comatoso de Netuno, que diabo será
isso, de oposições, de luminares reinantes e de outras coisas que nem ele entende. Já
vi menos doidos jogando pedra em santos e comendo hóstia com manteiga. Tenho a
impressão de que esse sujeito só tem mesmo o lado que a gente está olhando."
Conclui: "Não sirvo para nada, um traste, mas sou a sua mãe e filho meu, no duro, pra
valer, é você e mais ninguém, e se você precisar e quiser vou até o fim do mundo,
você conta comigo para o que der e vier, custe o que custar, dane-se tudo, não sirvo
para nada, mas amor não me falta".
Y. T. O que anunciam e de onde vêm essas letras? (Suprem, algumas, com o
verdor de folhagens semelhantes a leques, a ausência de árvores e flores na avenida
São João.) X. Isoladas ou unidas, quase sempre isoladas, florido o V, armação de
discos móveis e espelhantes o I, severo e negro o H com mil emblemas secretos.
Vogais, consoantes, o S, o U, algumas com tal força de ornato que me custa ler e
outras ilegíveis por surgirem caídas, alteiam-se, essas capitulares leves, na tarde
abafada e de ríspidos ventos passageiros que estouram nos tímpanos como tiros. A
cabeça intercalada e duro como isto o queixo, torso sem pontos fixos, espreita-me o
Não-Ser com seus olhos perpétuos. Seguidor ou espia? Apenas me adverte? As
iniciais guardam entre si distâncias só concebíveis numa cidade tão desmesurada e
algumas ultrapassam os pára-raios e as antenas das imponentes construções que
dominam, com as suas janelas incontáveis, a paisagem áspera, tumultuosa, pontuada
de bocas-de-lobo, de onde sobe e injeta-se no ar saturado de carbono, pó negro e
petróleo queimado, a podre respiração dos esgotos. Parlamentares acatam os atos
punitivos de Castelo Branco. Renuncia o presidente da Câmara
— O meu modo de ver a opressão exige um comentário. Há o tempo em que
aspiramos a ser um aferidor equânime das coisas. Queremos, justos, evitar os erros da
paixão. Desejaríamos, para julgar os fatos, todas as informações. Chega-se a quê, com
isto? Como não vi mais cedo que realmente eu não era um juiz? Não quero mais
julgar e pouco me importa ter todos os dados na mão. Sou um ninguém, um renegado,
e basta. Não compreendo e recuso-me a entender os que são meus inimigos. Para
mim, nunca têm razão: eu não os justifico.
O carro da empresa mortuária, o Chrysler e o transporte militar, deixando para
trás as pequenas marmorarias e os efêmeros mercados de fogos de artifício, ladeiam o
cemitério: à direita, por trás do extenso muro, figuras aladas, santos, pontudos tetos de
pedra, cruzes. A galharia seca das árvores no meio da avenida desliza contra o céu
desbotado; só os velhos troncos, crespos de parasitas, permanecem verdes. A luz do
Sol, filtrada através dos plásticos que cobrem a fila de barracas na linha das árvores,
projeta no chão úmido, nas caras rubras das vendedoras de flores, nas flores e no Ser
— sempre alarmado e de través, contrário — manchas de cor meio encardidas. Os
pais do oficial adiantam-se e a mulher permanece junto ao portão de ferro,
concentrada e dura, forçando uma espécie de isolamento. Seis soldados, dóceis às
ordens do superior, saltam do carro e com esforço carregam o ataúde, peso de três
mortos, chumbo, as tábuas cedem um pouco à pressão vinda de dentro. O peso do
ferro entregue nas obras pode ser inferior ao constante das notas, ou, para falar claro,
pode ser roubado. Alguém, durante o percurso, subtrai ferro dos feixes? O
encarregado do depósito frauda na pesagem? O próprio chefe da firma vendedora
seria o responsável pelo roubo? Olavo Hayano reveza os seus soldados nas alças do
caixão, olhar tenso e espáduas tensas.

Mortal, não pertence à morte-, histórico, rompe as limitações de uma


aparência familiar. Conciliam-se, nele, hóspede dos dias e das noites, abrigando no
seu corpo os zumbidos das abelhas imóveis e suspensas, as duas faces do Tempo.

Flui, no primitivo leito de um rio banido do seu curso pelos formadores de São
Paulo, o vale do Anhangabaú. Sobre esse vale asfaltado e inundado pelo tráfego,
vibram, da manhã à noite, percutidos por milhões de pés e abalados pelo curso dos
veículos, os grandes viadutos, pontes unindo as margens de torrentes-fantasmas. Eis
um W, vegetal e zoológico (gaviões nas escamas das serpentes, bodes nas penas dos
gaviões e girassóis nos chifres dos bodes), um W oscilante, os duplos vértices da base
emaranhados entre os ferros do viaduto Santa Efigênia. Os dois arcos sobre os quais
se apóia o viaduto parecem abrir-se com o peso do arcabouço e dos ônibus lotados.
Rasgando-se nos rebites que estouram como botões numa túnica estreita, ergue-se o
W, desprende-se e tomba, estandarte sem . mastro, sobre as fuliginosas árvores da
praça e nas copas sem viço floresce uma primavera breve e inesperada. Vejo o
Assomo Anônimo por trás dos reflexos: intraduzido e, exceto, de costas para a
esquerda, as mãos coincidentes, com o aspecto de quem passa ao largo.
Desaparece a língua de chamas. Voassem as aves cósmicas de Humboldt, ou,
aterrados, monstros da alta atmosfera, em bandos e compactos cerrados, a um só ir,
zás, do oval de sombra, levando a sombra nos pelos e nas penas das caudas, atrás,
como o pó e o vento dos galopes? Verga-se, nos seus pesos e forças, o mecanismo
vultoso e delicado do eclipse? Fulge ainda na Lua um espelho mínimo, mas,
contrariando previsões e cálculos, o disco negro traga-o: eis a caligem absoluta. Que
nome tem esse grito que estruge de uma vez no acampamento, grosso e animal,
lançado até pelos mudos? Clamor dos dentes? Trovoada negra? O mundo vindo
abaixo?
Agitam-se cor de chumbo os perfis das bandeiras, um fulgor acende-as, abre
no cenário clareiras e vazios, borrões de betume, parte o quinto foguete da seqüência
de quinze.
Um vento move nas trevas os ramos da árvore na praça, inquietando os
pássaros, rítmico. Abano de plumas, rítmico, a cabeleira de ʘ pulsa ao sopro
compassado. Ouço um ruído áspero e vindo de grande altura, como se todas as portas
da cidade, arrancadas, boiassem no ar e se abrissem de um só golpe, rhroêirh. A vasta
nuvem escura, compacta e adejante só evoca em mim e ʘ a idéia de pássaro no
momento em que nos sobrevoa com o seu cantar informe. As asas, tão largas que,
abertas, apagam muitas estrelas e a brilhante coroa em torno do disco betuminoso da
Lua, tornando ainda mais negra a breve noite meridiana, sacodem os tetos das casas
quando batem, encurvam os galhos da árvore, levantam o pó das pedras e atiram
mariposas contra nós, contra o chão, contra as casas. Curvamo-nos, as mãos à altura
dos olhos, fazendo o possível, apesar dos ciscos e das asas nas pestanas, para não
perdê-lo de vista (sua plumagem de ébano) e rimos, sufocados, do seu grasnido
lastimável, um aleijão: larinje de chifres e de botinas velhas? Sua passagem é rápida,
um vôo reto, embora dificultoso (as asas, longe de erguê-lo como as dos pássaros
diários, arrastam-no, cabeça e asas, vivas, levando um corpo morto, um fardo) na
direção sudeste— noroeste, parecendo evoluir de um lugar ensolarado para o centro
da escuridão, cruza os céus, grotesco e estúpido, desaparece. ʘ está nos meus braços,
a respiração descompassada, mariposas debatem-se nas pedras e algumas folhas voam
ainda. O volume, a vibração, a consistência, o peso, o calor e o perfume, sob o
eclipse, do seu corpo desejável e ainda secreto, Sol e Lua apagados sobre nossas
cabeças juntas (a face aveludada e febril), as ocultas estrelas diurnas reveladas. Sua
boca, tépido fruto sugador, sabe nesta escuridão a vinho e a pão fresco.

E 11

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Nossas mãos, enlaçadas, não se pressionam entre si e apesar disto seria falso
dizer que apenas se tocam: une-as uma corrente sem sinais exteriores.
— Eu própria disparei. Faltava dizer isto. Não me despreze. Golpes de punho
abalam não sei onde uma porta. A irada insistência com que batem significa alguém
do mundo exterior ameaçando os que a chave protege. A porta é arrombada com um
estrondo longíquo, nós estremecemos e cingimos com força a mão do outro. Ela
pousa no meu peito a cabeça. Aperto-a ainda mais contra mim, afago os seus cabelos.
— Abel... Não me faça perguntas. Não quero que faça. Odeio perguntas: já
ouvi muitas.
Ouço bater de asas e mergulhos sucessivos de pedras ou rãs. Sorrateiro e frio
como répteis, perpassa entre nós um odor de folhas mortas e úmidas. As aves, nos
ramos do tapete e sempre incólumes, rodeiam-nos, inscientes da morte e de toda
espécie de mal. Talvez levemos em nós o gérmen destinado a matá-las e a corromper
o bosque onde cantam em silêncio. ʘ, com a marca da bala no seu corpo, será a um
só tempo a mulher do jardim e a árvore mortal da sabedoria.
Que segredos esconde o lençol e quem o mantém suspenso contra a parede?
Adormecido e podendo vagar no estado não nomeado em que ingressa um homem
enquanto dorme e não sonha; podendo sonhar com lugares e pessoas distantes ou
mesmo inexistentes — podendo respirar, portanto, entre espantado e nostálgico,
algum entardecer da infância ou rever os meus mortos — vejo-me, no sonho, deitado
numa cama igual a esta em que durmo, luzes apagadas e fechadas as cortinas musgo,
o que não impede — na vigília e neste sonho sem disfarces — que a claridade da
iluminação pública, reforçada pela infiltração, sob a alta porta envernizada, da
lâmpada acesa a noite inteira no corredor do hotel, revele as formas do móveis
antiquados, o globo apagado no teto de madeira envernizada e, à minha frente, a
parede vazia, clara na parte superior e pintada a óleo até a altura de um homem. A cor
e os desenhos da pintura, volutas desenhadas com um pincel grosso e meio seco sobre
a tinta castanha ainda fresca, não são muito nítidos: toda a parte inferior da parede, à
escassa luz do sonho, parece-me compacta e trevosa. Acordado, não a veria mais clara
e real do que vejo. Do breve e imprudente encontro no parque Ibirapuera (as mãos
largas sobre o volante ou atirando para trás os cabelos que o poente incendeia), trago
o seu fular com desenhos de lagartas. O perfume de que está embebido e que torna a
ausência menos drástica (ela está distante: não este lenço e este perfume, vestígios do
curto passeio) também penetra o sonho. Que se oculta no exíguo espaço entre o lençol
suspenso e a parede? Nada?
Curvada sobre mim, assume certo ar celeste e chuvoso: cobre-me com doçura
e eu me entrego a isto, enleado. O rosto concentrado é o de quem tenta desenredar
barbantes, enquanto ela executa lentos meneios sinuosos, tocando-me com as mamas
e os cabelos. Os cabelos pendem e sua fronte brilha tênue entre eles, mas a partir dos
supercflios uma atmosfera noturna esbate os traços da face. Postos para fora, os ubres
soltos balançam, cheios, rolam pelo meu torso. Tocam-me ainda as contas do colar e
as pulseiras tilintam nos seus punhos. As vozes dos cantores alçam-se com ardor, um
carneiro, recendendo a jasmins, atravessa o tapete e cruza a sala, que dádiva oferecem
os peitos?, sou um homem cheio de secura e minha piedade se existe é acre, unguento
cáustico, nadam estilhaços de ossos no meu sangue e em mim o ato criador se
confunde com obstinação, transito afável e calado entre as pessoas, morto de cólera e
amolando os dentes em segredo para morder, despedaçar e cuspir o que me cerca,
como quem morde, despedaça e cospe o nó de couro ou de corda apertado nos pulsos.
Mas, cobrindo-me como um dossel, o colo furado de bala — e a cicatriz, nessa postu-
ra incomum, os peitos farejando-me, mostra-se mais funda —, ela me renasce ou me
transforma em outro ou faz com que eu retorne a alguma hora festiva. Risca meu torso
e rosto com os pêssegos dos peitos, leva-me ambos à boca sucessivamente (parecem
respirar) e algo da invulnerável harmonia do tapete faz-se em mim, solene, faz-se em
mim. Não sou, porém, inocente e o desacordo participa da minha natureza: existo
dentro e fora dos muros. Os guizos do carneiro ressoam em vários pontos. Anda na
sala ou ingressa no tapete. Armistício algum, aqui, com as iniquidades que o meu olho
constantemente acusa. Insubmisso e colérico, sem que a cólera me envenene ou
deprede. Sim, intactas a cólera e a insubmissão, embora avulte em mim um estado
próximo à serenidade. O que se reduz não são as marcas em mim deixadas pelos bens
que por obra dos homens me são arrancadas ou que nem sequer logro alcançar — e
sim as que devo a mãos como as da morte. Se, despojado, privo-me de tantos gestos
francos, de tantas palavras de amor e de tantos impulsos ardorosos, tudo isto
convertido, dentro de mim, em coisas sem serventia, vejo-me sob os seus ombros e: o
que está calcinado, o emperrado, o silente, o seco, o sombrio, verdeja, move-se, res-
ponde, jorra, esplende, sem o frescor — é certo — das coisas novas e ainda não
ofendidas, compensada porém esta carência por um traço de maturação ou mesmo de
sabedoria, de modo que uma confissão de amor, arrebatada e ao mesmo tempo lúcida,
será também marcada pelos meus enganos e desastres. Abraço-a, os seios pluviais
achatam-se contra o meu peito, abraço-a, à luz da tarde, com ímpeto e franqueza, o
carneiro pisa no tapete, o seu claro perfume de jasmins, exclamo convicto que a amo,
amo, amo-a, eis que te amo, solto e desatado grito, minha amada, amo-a, falo com três
bocas, três são as minhas vozes e se dirigem às mulheres a quem amo. Todas me
ouvem: ela me ouve. Alguém me chama de longe, eu, talvez, dentre as ramagens do
tapete.
Contínuo e firme, roda ou rio aéreo, o vento alto tange em direção a mim,
sobre o canavial imóvel, as enfunadas nuvens.

P 10

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

À cegueira de Heidi, vêm acrescentar-se, em Haia, dores intensas nos olhos.


Julius, apreensivo consulta especialistas. Suas despesas crescem A afluência à oficina
é pouco numerosa, Ele assume algumas aulas particulares de musica. Heidi, porém,
não é beneficiada com os florins assim obtidos pelo esposo. A juventude em Londres,
os dias encantados em que descobre o cravo e Wolfgang Amadeus Mozart, tudo- isto
Julius revê nos alunos. Decide retomar os estudos musicais. Emma Ledebôr aceita-o
como discípulo. Aplicado em eliminar os vícios adquiridos em anos de exercícios
solitárias, ele mal se apercebe de que as dívidas crescem. Após um acesso mais
doloroso que os outros, os médicos sugerem a Heidi consultar certo especialista em
Rotterdam. Julius, que não quer interromper os estudos, põe o relógio à venda. O
embaixador sueco oadquire.
No trem, de volta, Heckethorn aflige-se com as novas. Hitler arremete para o
Norte. Inversamente, sobrevem certo alívio em sua vida. Com o novo tratamento, as
nevralgias da esposa, que se intensificavam de modo intolerável, extinguem-se;
Emma ledebôr, impressionada cóm a evolução desse aluno invulgar, dispensa-o de
pagamento e meses depois; recomenda-o a um quinteto de câmara que programa
visitar a América. Julius acolhe a oportunidade. Bem sabe que as fronteiras da
Holanda não o protegerão da violência. (Hitler incendeia a Potôma; A Inglaterra e a
França participam agora do conflito.) Seu piano é não voltar a esse continente cada
vez mais ameaçador. Instalado em algum país americano, Heidi irá encontra-lo. A
excursão está programada para julho. Em fins de abril, reaparecem as dores nas
pupilas da cega. Elea acompanha outra vez a Rotterdam. O médico sugere que ela
rjermâneça na clínica alguns dias. A 8 de maio, Julius regressa a Haia; a 10, as tropas
alemãs agridem simultaneamente o Luxemburgo, a Bélgica e a Holanda; a 13,
Guilhermina asila-se na Inglaterra; a 15, o exército holandês depõe as armas.
J. H. não revê a mulher, um dos trinta e cinco mil mortos no bombardeio da
Luftwaffe a Rotterdam. A 30 de maio, após um julgamento de seis minutos e meio, no
qual em nada o ajuda — antes contribuir para a condenação — a sua origem inglesa, é
fuzilado como traidor.: Qs invasores, cônscios da inutilidade dos cálculos e esboços
para uma acordina encontrados entre os seus papéis, quando neste produtivo e
destrutivo mundo só têm sentido os relógios de ponto e os cronômetros de precisão,
incineram-nos junto com todos os outros documentos do homem cuja vida é o oposto
da desejada harmonia expressa era seu relógio.
Mesmo antes das incursões aéreas, tem-se como certa, rios meios oficiais, a
Invasão da Holanda, O relógio de Julius, vendido pelo diplomata sueco à esposa do
representante brasileiro, desce aos porões da Embaixada, cuidadosamente
encaixotado. Evidencia-se às primeiras bombas, temerário, e inútil permanecer no
país, O acreditado do Itamâraty, imitando, na emergência, outros diplomatas de
ultramar, foge para Lisboa, não levando senão aqueles objetos escolhidos pela
embaixatriz, a quem devota um amor incongruente, apesar de estarem casados há
mais dei vinte anos. Nervosa e trêfega, torna-a fascinante a imaginação inquieta,
nunca aplicada em alguma tarefa definida e sim dispersa em atos quase sempre
requintados, não raro afins à pura extravagância. Leva apenas os cristais, as baixelas
de prata, um sári, bolas de gude (às vezes, sozinha, diverte-se horas inteiras, jogando
com elas sobre os grandes tapetes da Einbaixada, algum dos quais utíto para proteger
as coisas transportadas e jarros chineses da época azul, uma fotografia da rainha com
dedicatória, o diadema oferecido por um velho amigo do Nepalrremédios para enjôoe
trintaeoito pares de sapatos. O relógio de, Julius fica no porão, esquecido com outras
alfaias.
Custam a obter transporte marítimo para o Brasil Os salvados de guerra ficam
em Portugal, sob custódia menos os cristais pulverizados no trajeto entre Hala e
Lisboa, (Durante anos, a embaixatriz alude a este prejuízo, maldizendo a guerra que
reduziu a pó as suas taças. Também lamenta a rainha (não a Holanda), obrigada a
viver na Inglaterra, longe dos seus jardins.)
Ei-la no Peru, nova missão do esposo. Os objetos deixados em Lisboa são
enviados por mar. A embaixatriz, que nunca lê jornais, repassa atenta os noticiários.
Teme que afundem o cargueiro. Tudo, porém, vem ter às suas mãos, o que não a
impede de enervar-se: o sari não tem as mesmas cores de outrora, ou, ao menos, as
cores sào menos brilhantes que as adquiridas em sua imaginação.
Não esta longe outra viagem do casal e dos seus pertences: o embaixador é
designado para Roma. Onze meses mais tarde, finda a guerra, vem uma mensagem do
Países Baixos, com o lacre da Chancelaria, indagando se acaso lhes pertence um
relógio de caixa encontrado entre as ruínas da antiga Embaixada do Brasil. A consulta
alvoroça-os. Haverão mesmo esquecido algum relógio? A partir do momento em que
a embaixatriz, removendo os jarros, vestidos, adereços, risos, perfumes e cortinas que
flutuam nos festivos porões da sua memória, redescobre o relógio, parece-lhe urgente
reavê-lo. Viaja na mesma semana para Haia e, de volta, orna com ele um dos
corredores da Embaixada, na piazza Navona, onde o seu doce rumor por vezes se
confunde com o das fontes luminosas.
Jubilado o embaixador, regressam ao Brasil. Aqui, as depressões nervosas que
a embaixatriz sofre na Europa e que desaparecem com as sucessivas e faustosas
recepções na Embaixada, agravam-se. Morre em 53, sob o lençol carmesim e
debruado a ouro. Roga que a enterrem com o diadema do Nepal — e sob o
travesseiro, no leito mortuário, os parentes descobrem várias bolas de gude coloridas.
Viúvo, o embaixador, nostálgico de uma Europa que não mais existe e incapaz de
readaptar-se ao seu país, vende em leilão os seus trastes e viaja, para não mais voltar,
esperando encontrar amigos que morreram ou que nem sequer se lembram dele ou da
embaixatriz.
Agora, aí está o relógio, há doze anos e meio aí está, ante tapetes sem vida e
poltronas fanadas, elegante e sóbrio, soando de tempos em tempos, com os seus
misteriosos sons. Já ninguém acredita que os aparelhos sonoros, se é que existe
mesmo mais de um, reconstituam a frase de Scarlatti. Nem sequer ocorre (a que da,
voluntária, do mecanismo imperfeito, marcham calmamente para esse milagre: a
confluência, o eclipse. Julius, perdido no pó, ouvirá esse momento?

E 12

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Amada: quando incontáveis seres conhece e cruza o homem sem que seu
próprio ser se amplie, avance e alcance, tu me conduzes (para onde, para onde?) e não
casualmente rondamos nós os limites deste bosque no qual perpassam aparições.
Afluentes e afluentes, muitos desde sempre e para todo o sempre insuspeitados,
formam o nosso encontro. Desnudamo-nos, imersos em mútua ebriez lúcida. Ah,
fosse o vestíbulo do nosso prazer, também, o da unificação e do conhecimento!
Reinas através desta hora como um astro. Teus numerosos beijos roçam a pele
dos meus ombros como se temesses magoá-los, intensificas a pressão do lábios
(desejas aspirar a minha substância, a ti incorporando-a?), a seguir beijas-me de leve e
outra vez com força, mas, brandos ou incontinentes, cada um desses beijos vai fundo
em minha carne e planta vozes em mim: eu mais e mais habitado. Volto-me e fico de
bruços no tapete para que me cinjas com teus beijos incansáveis, tu me cinges, várias
bocas me marcam — na espádua, à altura dos rins e ao longo das costelas — e tua
mão afaga-me e também os teus cabelos, soltos. Clamam as vozes em mim, algumas
desconexas e todas exaltadas, clamam e não silenciam — eu deitado de costas, eu
com o peito no tapete, quente e agitada tua língua em meus ouvidos, eu debruçado
sobre mim, tu e eu, com ânimo exuberante, rolando entre os quatro muros floridos do
Jardim, tua mão cheia de anéis no meu ventre —, múltiplas clamam as vozes, através
da minha boca ou autônomas, no corpo onde vais semeando-as. Clamam. Querida!
Arca o homem que encontras, na sua maturidade, com o peso de algumas nódoas
senis: tolhe-me, certos dias, um velho e seus gravames. Tu, certamente, me impões
não 'sei que violentas leis e eu recupero, sob o teu influxo, uma plenitude que me
ultrapassa e que o sexo alteado reflete. Chegarei porém, a decifrar, eu, por que te
amo? Transitas entre os viventes carregando o peso de uma formosura copiosa e cuja
avaliação veio a tornar-se difícil. Contudo, que expressivo o teu corpo em sua vi-
gilante desmesura! Não dilatam os homens, opondo, com tal artifício, à diminuição e
ao olvido — estes roedores implacáveis — o que decidem conservar como exemplo?
És, de certo modo, a tua própria ampliação. Tentassem meu amor e meu desejo
magnificar-te: inventariam uma mulher aquém de ti e que seria, se tanto, o teu reflexo
esmaecido. Precisarei dizer, enquanto apertas voraz a minha língua entre os dentes,
que me fere a beleza manifesta na carne? Aflige-me, pelo que abrigam de transitório,
o esplendor do teu rosto, o do teu corpo. O efêmero, entretanto — ainda não é tempo
de que eu saiba como —, funde-se, em ti, à permanência: ungida de perenidade, outra
presença me espreita no espaço do teu corpo. Também te amo por isto e ainda pelos
vultos femininos que integram, vívidos, a tua substância, a ela acrescentando uma
qualidade plural. Tu: estuário. Amando as convergências, o que de convergente há no
teu ser havia de atrair-me. Isto, amor, é tudo? Não e não saberei, com clareza, por que
te amo e não poderei alcançar todos os motivos e sentidos deste encontro, numerosos
e talvez até contraditórios. A decifração, afinal, seria a prova de que tudo — nós e
nossos passos e esta hora — dispensavam existir.
O lugar que prefiro para desenvolver as minhas incompletas meditações
juvenis é a cisterna, de onde ouço o trabalho ruidoso das ondas nas pedras dos
Milagres e os rumores vindos do chalé, cantos, risos ansiosos, instrumentos de
música. Aproxima-se a noite prematura de julho e o terral retardatário, que sopra forte
e constante, joga folhas mortas na coberta de zinco. Resta do dia alguma luz, a areia
na praia ainda brilha e sobre a extensão marítima paira uma reverberação prateada.
Aqui, já não se enxerga o fundo da cisterna e a água levemente encrespada começa a
exalar seu verde odor noturno, misto de azinhavre e iodo. O costume de lançar aos
poucos peixes a rede e que tanto me ajuda, durante certa época, a indagar sobre o que
busco, não mais é necessário: deitado no cimento, deixo-me vogar inutilmente ao
encontro das revelações. Assim estou, quando, sem voltar-me, com olhos raros e
como deslocados, soltos acima da minha cabeça, vejo um movimento no centro da
cisterna. Antes que eu identifique no corpo que flutua, aí, à luz difusa, uma cidade
miniatural e transparente, abate-se o mar contra as pedras duas ou três vezes.
ʘ afasta-se de mim. Assentada sobre as pernas, os pés de tal modo dobrados
que os calcanhares perdem a cor, leva as mãos à nuca e as largas mangas pendem
frouxas, descobrindo os braços. (Vêm do tapete, das jóias ou do meu desejo os
reflexos que neles surgem e apagam-se?) Olha-me de dentro, olhos de fome e de
febre, fundos: animais de presa a ponto de saltarem — elásticos, alegres, na sombra
— sobre a caça. Respira fundo e rápido, descomposta, os peitos livres acentuando a
agitação com que sorve o ar pelas narinas e também pela boca. A testa inclinada, tira
o colar e prende-o entre os dentes, os olhos quase ocultos por trás dos cabelos despen-
teados. Sempre com as pérolas na boca e sem afastar de mim o olhar, cuja flama não
arrefece, desfaz-se um a um dos anéis. Apesar da cantata, do passar dos veículos e da
serra mecânica novamente ativa, ouço-a arfar e tilintarem as pulseiras nos alvos
braços carnosos. Livre dos anéis, junta-os ao colar e os depõe no chão, ao lado do
tapete. As olheiras que só então descubro e que a cada instante parecem mais roxas
ampliam as suas pupilas.
— Abel, eu te amo.
Estendo a mão e acaricio o seu joelho. Ela prende-a entre os dedos nus — pela
primeira vez os vejo sem anéis —, ergue-a devagar e beija-a. Pousa-a depois sobre o
tapete e, soerguendo-se um pouco (avulta dentre as coxas o negro e abundante tosão),
despe o vestido, joga-o no meio da sala e atira os cabelos para trás com um
movimento de cabeça. Sinto, como se abrisse ou se rompesse o frasco, o perfume
lancinante que usa e vejo à plena luz do dia a magnitude do seu corpo, de si apenas
ornado e dos reflexos que o embebem. Restam as argolas de prata nos pulsos, também
delas se desfaz subitamente concentrada, solta-as ao acaso, as argolas giram em várias
direções, antes que se imobilizem eu arranco as roupas que ainda me cobrem, ela se
precipita sobre mim — o voar dos seus cabelos nesse gesto — e tal é o ímpeto do
nosso abraço que o meu peito se abate contra o seu e ambos lançamos, juntos, um
grito sufocado. Bocas e gritos se confundem. Rumor de água corrente sob nós e um
estrondo de trovão, surdo.

R 22

ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES

Desarma-se o equilíbrio: ressurge o sol — um nada — e o espaço inteiro,


abalado, estremece. Lenta e em ondas tão nítidas que o céu parece desmontar-se, a luz
desce do alto, do disco lunar deslocado: incontáveis anéis concêntricos e autônomos,
deslumbrantes alternâncias de reflexos e de azuis ainda noturnos, pesado relâmpago
espiralado ou circular, originado no zénite, aceso no zénite. Antes que o primeiro
pássaro, alertado pela percussão da luz no mundo, voe ou cante, antes que nos alcance
o grito unânime da cidade, antes mesmo que ʘ e eu gritemos, antes que alguém grite,
eu, transgredindo um espaço selado, abarco e aceito, à reveladora claridade desse
relâmpago regirante que rompe — unindo-o em seguida — o véu das coisas,
restringindo, creio, a minha insciên-cia, abarco, peso e aceito duas verdades ligadas à
essência de ʘ e do mundo. No momento em que, golpeado e destruído o efêmero
simulacro de noite, ressoa o espaço, empalidecem o azul e os astros, anula-os uma
transparência fugaz e eu vejo o verdadeiro céu — ou um dos céus existentes, em geral
inacessíveis, quem saberá por quê, à nossa privação. Menos belo e confortável que o
céu de nuvens, planetas e quasares — e simultaneamente mais perturbador —, essa
fase veloz e ofuscante do eclipse descobre um céu lavrado pelo uso, sólido, evocando,
na cor e na penúria, eu diria mesmo na textura, um velho muro riscado ou uma porta
de privada, com os seus desenhos e inscrições. Nada traduzo do que no alto
descortino. A profusão de signos, visíveis de alto a baixo, alguns sanguíneos, poucos
em outras cores e quase todos como gravados a fogo, atesta a procedência das
sondagens e convicções dos homens, sempre induzidos a recortar em zonas, casas,
mansões, quadrantes e círculos a vastidão estelar, povoando-a de deuses, animais e
veículos. Como saber, porém, se o que vejo são vestígios do sobressalto humano, ou
se a escrita nesse muro demarca a nossa passagem, ou ainda se as letras e figuras —
geométricas, fabulosas e domésticas — nele sobrepostas nunca foram traçadas, desde
sempre estão, para sempre estão, consistindo o trabalho dos homens em ver (com que
olhos?) e deslindar, na superfície velada que contemplam, algumas das possíveis
armações que os sustentam e os salvam do desamparo em que nascem? Natividade,
apertando o dinheiro no bolso do vestido e procurando entender, pára no meio da
escada. Quantas vezes sobe esses degraus e outros, o escritório muda tanto de
endereço, para resgatar as infindáveis prestações do seu sonho, o terreno ermo e
ladeiroso nos confins da zona Norte, a quase um quilômetro das linhas de ônibus e
inundado na época das chuvas? Cento e sessenta ou mais, sim, não sabe ao certo,
precisa ver, faltariam menos de dois anos para o final da compra. Aceitar que homens
tão sinceros a iludissem, vendendo a pessoas diferentes as mesmas quadras do chão?
Doze ou treze anos de palavras sem fundo! Pecadores. Fogem, ainda por cima, os
irmãos de Judas. Comprar outro terreno? Foram-se os tempos, anda à beira dos
setenta e agora se conforme, louca, não comece mais nada, tudo urgente e breve,
acaba o dia, reze o credo e o ato de contrição. Quanto antes. Os pais do oficial
marcham de braços dados entre os renques de ciprestes. "Ótima empregada." "Sempre
dócil." "Merece o túmulo da família." A mãe, obesa, anda a passos de cágado para
não cair, move com dificuldade a cabeça e os olhos míopes são dois ânus. A bengala
do pai fere o asfalto rachado. Vôos rasteiros e breves dos pardais entre os túmulos. Os
seis soldados, suas sombras e a-sombra do caixão. "Obediente." A voz de Natividade,
vindo e vindo, de numerosas tardes, vindo, plácida, vozes, o cheiro de vinagre e o
rumor calmo dos bilros, cinerarias e rosas queimadas pelo Sol, rumor de passos nas
sendas e o céu uma flor com doze pétalas, agosto à esquerda, fevereiro à direita e à
frente novembro. Os filhos assistem à passagem do enterro e só o olhar da puta é de
ódio. Escavadeiras amarelas trabalham perto do muro, caminhões descarregam
madeira e ferro, ouvem-se as vozes e os risos brutos dos homens, o bate-estaca abala
o meio-dia e as serras mecânicas zunem. O ser, esfomeado, morde os dentes com um
tinir de esporas e contorce a volta, ido. Natividade ergue as mãos e observa, a voz
pastosa, a língua meia presa pela costura da morte: "Já morri e estou cheirando a
vivos. Água para todos!". Jamais acreditou, realmente, que chegasse a possuir um
pedaço de terra. Ludibriada, não se queixa e acaba por dizer, trancada no seu quarto
sem ventilação, que afinal de contas o terreno encharcado e ladeiroso é seu, não de
todo, mas em parte, sim, pagou muito por ele e ainda há justiça neste mundo, alguém
há de vir, dar-lhe o que foi comprado, alguns palmos da Tenra. Paciência. Alguém.
— Dentro de mim ou dentro da noite, procuro ouvir as respostas. Não
pretendo ser limpo: estou sujo e sufocado, nos intestinos de um cão. Angustia-me,
claro, reconhecer que a sombra da opressão infiltra-se nas minhas armações e
envenena-as. Por outro lado, isto me causa uma espécie de alegria negra. Que se
salve, das tripas, o que pode ser salvo, mas com o seu cheiro de podridão.
Os coveiros vão fechando a parede do jazigo. Painéis de paredes a prumo e
alinhados; fiadas em nível; juntas de argamassa cheias: eis as três normas para
assentamento perfeito dos tijolos. Não obedecidas, tem-se de aumentar a espessura da
massa entre as fiadas e a do revestimento para acertar as paredes. Avultam, neste
caso, os custos da obra. A mulher do oficial, sempre retraída, sustendo ainda o ramo
de malmequeres, a mão crispada e um pouco para trás, como quem traz uma pedra
para atirar num cachorro, observa a operação, a ponto de ceder, de aderir à cena (o
homem e os velhos choram sem mover-se), mas protestando — os lábios meio abertos
— que alguém deve abster-se de chorar pela negra e desvalida, sepultada com honras
de parenta no jazigo da família: "Nunca sentou-se à mesa com eles", sim, alguém
deve recusar o jogo magnânimo, circunstancial e vão, ser o corpo de Natividade,
assumir a sua raiva ou irar-se no seu lugar, não ver quitação na condescendência, não
incorrer no engano de medir um modo de ser pelos momentos em que é interrompido
e substituído, como agora, por outro, ritual e passageiro. "A vida é pesada no dia-a-dia
e esta hora não quita coisa alguma. Nada. Nada. Nada." Um fogo queima os braços de
Natividade, queima ombros e peitos e as mãos resistem, soltas, a carne avançando nas
unhas. "Vou ser recebida!" Erige-se, perto, um alto andaime cilíndrico. Os operários
movem-se num mundo de tratores, compressores, tábuas, betoneiras rotativas, bombas
centrífugas e auto-aspirantes, motoniveladoras, serras zumbido-ras, tijolos, cal,
guindastes — e a Torre avulta, cónica, oca. Ora. Colocados os bilros no devido lugar,
cruzam-se na ordem indicada pelo risco os fios neles enrolados. Variados são os
cruzamentos; e o número de bilros corresponde em geral à complexidade da renda.
Então. Reduz-se, pequeno limão seco, o estômago vazio de Natividade. Assim.
Fígado e baço desfazem-se em vorazes lagartas negras. O pulmão dilui-se, papel
úmido e usado, sujo. Pois. A saber. Uma serpente insinua-se por entre as cinerarias,
penetra no caixão e morde — como um cão morde um osso — o coração assustado e
poeirento da morta. Os operários interrompem a construção da Torre. Então. Assim
sendo. Afinal.

Filtram-se, através do Filho, Ele {quem?) e o seu Tempo. Tudo Ele pode e não
pode descrever-se. Tentasse e a descrição tudo romperia, transcenderia tudo, tudo
esmagaria e a duração dos reinos não comportaria o seu discurso, chamas
estourando e mordendo-se, rolando sobre as coisas, nós um reflexo atravessado e
apagado por velozes pássaros vermelhos, reflexo no muro, voam reflexo e muro e
curvo o casco urdido rãorrerrão o verbo contorcido hic cede a sintaxe velho barril
aros quebrados.

Sob o mesmo relâmpago vertiginoso que descarna o muro celeste, num olhar
tão unificador que ela e o espaço transtornado pelos círculos concêntricos e ondeantes
parecem-me idênticos, faces de uma só verdade ou realidade encobertas, surpreendo a
substância de ʘ. Desnuda-a a efêmera transparência que tudo subverte e dois seres
superpostos fitam-me, plenos de complacência ou de amor, ela e ela, coincidentes,
uma incrustada na outra, entranhada na outra, rodeadas de mariposas imóveis, a
mesma pessoa e no entanto pessoas diferentes, uma exterior e uma oculta, nascida e
ainda embrionária esta, silenciosa dentro da mulher que fala, os lábios meio abertos
como os da mulher que fala, órbitas dentro das órbitas de quem sempre a encobre, os
peitos menores, as cabeleiras confundidas e o mesmo rosto, talvez mais radioso.
Menos insciente e tão modificado, no curso desse rápido instante, como o firmamento
e a cidade, antes imersos na atmosfera noturna e agora embebidos numa espécie de
aurora lívida, ouço mover-se um pássaro entre os ramos da árvore: defronto, ouvindo-
o, a mulher e o céu de sempre, cândidos, novamente acobertando, sob aparências reais
e assirn mesmo truncadas, suas identidades secretas. Canários ainda imprecisos novas
réstias cruzam o ar ladra o chão matinal o Sol multiplicado um galo refletindo-se nas
casas canta sob pedras um cachorro breve muitas estrelas ressurgem chão e casas
perdem a intensidade esvai-se com o retorno do Sol árvore da noite novas réstias
curvas — o Sol multiplicado — refletem-se nas pedras sob a árvore, canários cruzam
o ar, um galo canta matinal, ladra um cachorro e chão e casas, ainda imprecisos,
ressurgem da noite breve, muitas estrelas perdem a intensidade, esvai-se com o
retorno do Sol, crescente ainda fino, o núcleo central da mancha escura ao longo da
divisa, na coxilha povoada de rebanhos, de carneiros e de bois atordoados, as garças
afastam as asas, ouço vozes indistintas de adultos e meninos vindas das ruas próximas
ou dos corpos de ʘ, mariposas feridas pela passagem da pesada ave do eclipse e pela
volta do Sol debatem-se no calçamento e no ar em redor dos corpos de ʘ, do corpo
tangível e do corpo que, oculto como o céu das profusas imagens, números, letras e
riscos, contempla-me de dentro de si mesma.
Ornado com leões vermelhos e discos violáceos, pousa um K sobre o viaduto
do Chá, as pernas laterais voltadas para baixo, formando um ângulo que abrange em
toda a extensão — do Othon Palace Hotel aos escritórios da Light — a larga e bruta
passagem de concreto. A barra vertical da letra, deitada, equilibra-se no vértice do
ângulo como sobre uma pirâmide de vidro, com seus discos móveis e leões hirtos. Os
pedestres que atravessam em todos os sentidos — aterrados como se varassem um
campo sob disparos cruzados — o nó urbano formado pelo encontro da avenida São
João com o vale do Anhangabaú, evitando os que vêm em direção contrária, afastando
os que lhes embaraçam a corrida, saltando entre os carros que buzinam e aceleram
agressivos os motores, gente do Norte e de outros pontos do mundo, todos com
espigões na cara, nos ombros, nos joelhos e no dorso das mãos, não parecem notar o
Ó que se abre, flor ou explosão, luminoso, frente ao pardo edifício dos Correios e
Telégrafos, refletindo-se nos pequenos vidros quadrados das janelas, um Ó circular e
talvez mesmo esférico. Os seus ornatos são as outras letras do alfabeto, soltas ou
agrupadas em nomes, uns familiares e outros não, e o que deslumbra nessa vogal são
as cores, variadas e vivas. Afasta-se, aos poucos, da fachada dos Correios, rola em
direção ao vale do Anhangabaú, suas cores projetam-se no ar empoeirado e acendem
o asfalto. Precedendo o alvo cordeiro que atravessa o viaduto de ferro, a passo lento,
visível através dos ornatos curvos e delgados do balaústre, segue-o a figura foi, conse-
qüência das causas, avançando para dentro, o olho sorrelfo, nem isto nem aquilo,
sentença lida no espelho, personagem soslaio e trom. O rumor emaranhado de sinetas
e chocalhos corta o violento ruído dos ônibus, dos táxis, dos gritos, dos passos, dos
silvos, dos golpes, como se bois, éguas de carga e cabritos soltos galopassem no O
que vai girando, roda sem raios, ao longo do Anhangabaú e no qual também leio (é
tempo de ir afinal ao seu encontro) o nome de ʘ, escrito com punho firme.

E 13

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

A Cidade, faustosa e já em ruínas (textos de prestígio prometem a volta de


legendários reinos submersos), aparece no centro da cisterna, como um peixe que
houvesse crescido e envelhecido em segredo no fundo deste cubo, exatamente no
lugar onde costumo indagar: "Que procuro?". Persigo uma caça ignorada, anos, caço
na cegueira. Posso, se desconheço o objeto da procura, chegar um dia ao seu termo?
Compulsiva, insensata e sem qualquer esperança a minha busca. Agora, próxima e
contudo imaterial na sua transparência, a resposta se apresenta. Busco uma cidade,
esta, com seus templos e suas construções profanas, algumas de um luxo para mim
ofensivo, entre obeliscos e arcos, sobre colinas que separa um rio ou braço de mar.
Que cidade é, porém, não sei, ela não se nomeia.
Sem objetivo, levanto-me num salto e corro em direção ao chalé. São que
olhos, estes que me aparecem com a Cidade e per-cebem-na? Uma visão inteligente e
aguda? A vinte passos da cisterna e dando-me conta das primeiras estrelas, surpreso
apesar de vê-las há quase vinte anos, também vejo que os grãos de que é feita a
Cidade, móveis como formigas e incontáveis, vão cisterna adentro e das torres e
cúpulas algumas não mais apontam o céu de zinco (vozes dos meus irmãos e sons dos
seus instrumentos, o vento move as frondes das mangueiras e suas folhas mortas),
desfaço o percurso imotivado. As sombras adensando-se na água e no cimento
rachado: e a Cidade boiando no centro do recinto, anacrônica, com suas praças de
esmalte, circulares e não maiores que anéis. A sensualidade dos que a edificam
manifesta-se em cada aresta de parede. Assim, as fortificações, expressão da soberba
e da brutalidade militares, parecem nascer de mãos estrangeiras. Cedo são arrombados
esses muros sólidos, desabam os torreões, as torres, as ameias, mas também vão-se as
construções particulares e os templos, funde-se como sal a estátua do menino a quem
o pai ou mestre parece oferecer num gesto largo o mundo, toda a Cidade alui no
silêncio, dissolve-se em nada a Cidade e o seu mergulho na cisterna em nada perturba
a superfície calma da água, em silêncio a Cidade deixa de existir e não me diz seu
Nome. Dissolve-se a visão, sim, não me revela seu Nome, sim, mas a procura de seis
ou sete anos afinal se define, sei por fim o que devo buscar e contemplar, sendo
indispensável que o intente. Vai, Abel, busca a Cidade: eis a tua incumbência.
As cobras fogem ao calor do meio-dia na espessura do canavial. As sombras,
vagarosas, das nuvens, deslocam-se através da paisagem, em direção a mim, cobrem-
me e vão-se, arma-se e arma-se o encontro sonhado, vem a Cidade ao encontro do
homem que — havendo-a farejado como um insensato por muitos países — admite o
insucesso e renuncia à procura. Sua rota, na direção este—oeste, é perpendicular à
direção do vento, que leva as nuvens para o Sul.
Giramos abraçados e rindo sobre o largo tapete, o carneiro observa-nos, um dé
nós bate com o flanco na mesa de centro, tombam a mesa e o bule de prata agravando
a desordem que o nosso desejo vai impondo, ela corre as mãos pelo meu corpo e
prende num assomo os testículos como se receasse que fugissem, esmaga-os sem
precauções, crava os dentes no meu ombro direitp, cruzam-se as dores que me
perfuram e a sua nudez ilumina esses atos veementes. O ar que expele entre os
incisivos escalda-me a tábua do peito, enquanto (gestos de quem lida com alaúde ou
lira) corre as pontas dos dedos no meu sexo, da base à glande, elevando-os, com-
passada, acima do nível real da glande. Modela um caule imaginário, muito longo —
além de tenro — e o extremo do caule abre-se em umbela. O ar escaldante da boca vai
pelo meu ventre, uma esfera nos envolve, ela beija o caule nodoso, vozes correm no
caule, o caule cresce e desata-se a umbela que a sua mão modela, abre-se e abre-se e
abre-se, grande guarda-sol, flor súbita e mágica onde vozes — como aves — habitam.
Dois ou três sinais pontuam a uniforme alvura do seu dorso, tornando-o — não se
sabe por quê — mais deleitável. Outros surgem, agitados, a carne os absorve:
maiores, reaparecem nos rins. Ela explora com unhas penetrantes a região em torno
do meu sexo, busca a raiz obscura da força que o alça, beija-o, beija-o voraz e seus
cabelos rastejam sobre ele. Pesam os colhões como pedras e as pedras me queimam,
ovos de fogo, abro em cruz os braços, clamo ou julgo clamar o seu nome — e o tapete
me recebe entre pássaros e flores, um tiro. A visão lampeja em mim — um tiro — e
ensurdece-me, eu sob a umbela no seu caule, a meus pés um rio imóvel e ʘ do outro
lado, nua e severa, eu, ela e a umbela que me cobre (e ainda o rio imóvel) cobertos
por uma árvore de nove ramos imensos, árvore das árvores, os ramos, nove, como
estradas e veredas, signos incontáveis entrançados sem ordem, os signos, no corpo nu
do outro lado do rio, tão visíveis que bem os posso tomar por sombras e réstias das
flores, dos frutos, da folhagem nos nove ramos desmedidos. Essa rede ilegível,
entretanto, constitui seu corpo, o mesmo corpo e outro, e não devo crer que sobre ele
se projete. Ela: carnal e também ente verbal. Imóvel como o rio cujas margens, nus,
demarcamos, é a hora clara e sem cuidados que faz parte deste mundo, visto — um
lampejo — e logo perdido: um tiro.
Vibra um trovão, distante, no céu com poucas nuvens e lívido. Sem
interromper a marcha, menos rápida que o apagado compasso de tambores na pista de
corridas, Olavo Hayano volta com dificuldade a cabeça que a nuca pouco flexível
constringe. Abre sem pressa a porta do Chrysler e parece avaliar as batidas dos
tambores antes de ligar o motor. Atravessa em linha reta, lento, o pátio varrido e
calçado com pedras irregulares, roçam na capota as folhas mais baixas dos plátanos.
As sentinelas apresentam armas e ele continua voltado para a frente, as mãos espessas
segurando o volante com firmeza. Hayano: o Portador. Soturno e temível.
Quem mantém o lençol contra a parede do quarto? A questão seria irrelevante,
que importa, afinal, se está suspenso como nuvem esse lençol de sonho ou se o
erguem mãos de mortos?, mas se sei quem o segura também sei por que está aqui e o
que significa. Seu cheiro múltiplo e enovelado, de capim, de sândalo, de cedro, de
glicerina, de hortelã, de rosas frescas, mescla-se ao perfume de que o fular e as suas
lagartas estão impregnados. Quero escapar do sortilégio, e, sonhando estar consciente
de que sonho, luto por despertar. Acaso dormiremos sob a terra? Abaixo de nós
mesmos? Subo do sono, das profundezas do sono, devagar e arduamente, subo, o sono
pressiona-me e eu venço-o — e de súbito, as mãos sobre o estômago, na mesma
posição e circunstâncias do sonho, vejo que estou livre. Livre? O globo apagado, um
halo marcando o centro do forro envernizado, sons nas ruas, passos na escada, visível
na penumbra a parte superior das paredes, o perfume, cheiro de hortelã, de sândalo —
e o lençol pendendo sobre a pintura a óleo, o lençol, não encerrado nos limites do
sonho. Ouço, acordado, tecidos rasgando-se: rasgar frouxo de trapos, rasgar cantante
de veludos, tenso rasgar de sedas, lonas (som rascante e grave).

E 14

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Afasta-se de mim, os pés quase de criança e parecendo insuficientes para o


corpo, vasto, com algo de aquoso e ondeante, afasta-se tocando com as pontas dos pés
os desenhos do tapete, a espádua lançada para trás e as longas mãos intranqüilas aos
lados dos quadris, descubro, com o olhar aguçado, mais um encanto secreto, as covas
do cotovelo, são seis ou sete passos, mas ela os executa com minúcia, há uma
ondulação de bandeiras, algo de triunfal no modo como leva o corpo, cada passo
equilibra-se no passo anterior e determina o próximo, e ela ainda meneia os braços
nessa dança. Pára junto à vitrola, o calcanhar esquerdo soerguido, as nádegas
tremendo a cada movimento do,corpo, imensa alvura arredondada e agora luzindo de
suor, absorvendo mais intensamente os reflexos difusos. Curvada sobre o disco, o
sexo ressalta um pouco entre as coxas, roxo e úmido a ponto de espumar. Um vento
quente invade a sala e as dálias estremecem na mesa, tilintam os pingentes dos lustres,
o carneiro se move, vai e vem o grande pêndulo, o Portador entra em casa, silêncio,
repõe no gancho o telefone desligado, percorre os cômodos, aberto o guarda-roupa da
mulher, meias e vestidos jogados sobre a cama, vidros de perfume destampados,
repõe as rolhas de vidro nos gargalos, vai ao escritório e puxa uma gaveta da sua
secretária, enche o ar um odor forte de cavalo.
O processo dos eventos é longo e alguns sinais os prenunciam. Vêm os
eventos como um monstro marinho que ascende dos abismos e antes que mostre a
cabeça alteiam-se as águas, estranhas e escumosas, o monstro se debate e revolve-as.
Conquanto não veja a Cidade, ingresso numa órbita pouco natural. Desviados por uma
espécie de corrente que entre mim e eles, separadora, insinua-se, os poucos
companheiros distanciam-se. Chamam-me ou jazem adormecidos? Não ouço as suas
vozes e eu próprio deito-me. A sombra do cajueiro, quando passam as nuvens,
acentua-se, adquire um ar de beira-rio.
As mãos para cima, sustento os peitos que pendem sobre mim e passo o rosto
no púbis, de joelhos; ela, de pé ainda, afaga a minha cabeça e comprime-a a espaços,
incontida, contra os pêlos fofos como uma cabeleira crespa e onde respiro uma tarde
mais quente e ecoante de perfumes que esta de novembro, bosque úmido e escondido,
com flores carnívoras abertas na sombra. (Este desejo que disparas em direção a ti e
cujas molas apóiam-se em tantos pontos estranhos ao meu corpo — assemelhando-se
ao impulso que conduz, imperioso, os machos sobre as fêmeas e multiplica as vozes
—, algumas distinções o fazem incomum. Sim? Ou, ao contrário, devo situar aquelas
distinções em ti, objeto e alvo do meu desejo, sendo este incomum na proporção em
que tu mesma te sobressais?) Roço a testa nas gorduras do seu ventre, modelo as
ancas poderosas como as de um cavalo — mas com resistência de algodões —, junto
as pontas dos dedos na coluna e desço-os devagar acompanhando com as unhas a
linha das vértebras como se tencionasse abrir seu corpo, separar as duas metades,
enfio os dedos na cálida junção das nádegas, ela afasta os joelhos e suas mãos
prendem com violência os meus cabelos, mordo o centro do seu corpo. (Arremesso-
me em direção ao teu ventre, sem recuo possível: cego animal fascinado, converto as
minhas garras em dedos de lã. Conhecer-te na carne, porém, cada vez mais parece
desdobrar-se em conseqüências que intensificam esta aventura.) Mordo e sugo o
centro do seu corpo, ela repete o meu nome entre repreensiva e deslumbrada, a voz
alteia-se e morre num sussurro, suas mãos não param, a cantata melodiosa e áspera,
incôngruo vozerio no seu corpo, corre o carneiro, o guizo de metal, grita um pássaro
na sala e debate-se, o estalo das asas, a ventania, eu te amo, o Portador sopesa na
palma grossa algumas balas, o brilho amortecido da espoleta e do aço, azuis e baços.
Fito a impenetrável superfície do lençol como se encarasse um animal
desconhecido e armado de garras — e procuro livrar-me, no sono, da persistente
visão. Adormeço e reencontro, inalterado, esses dois metros de bramante costurados
nas bordas e que transita, com tudo que me cerca e situa, do sonho para o estado de
vigília. (Unindo-me a ti, que amo e desejo, uno-me também por fim a certa ambígua
visão inalcançável, vacilante entre o vir e o partir; e recupero, pois ela subsiste em teu
corpo, a frágil companheira — companheiro, também posso dizer — que realça, entre
velhos chapéus, luvas desbotadas e antigos colares arrancados do fundo de gavetas, a
única estação encantada e realmente feliz de minha vida.) Reencontro o meu sonho
híbrido, agora acrescido dos múltiplos rumores de panos dilacerados e de uma febre
que me lavra. Iludo-me, procurando expulsar do corpo a febre por um esforço da von-
tade. A febre aumenta e eu sinto o coração estourar, bombeando o sangue em fogo.
Grito, a febre castiga-me, os olhos fixos no lençol que parece adquirir então um
significado, conquanto nada veja, sobre ele, das imagens ou letras que a superfície
virgem e imóvel parece anunciar ou esperar. Sofro, solitário, sem ajuda possível —
estou fechado a chave e não ouso mover-me —, e só do meu corpo batido pela febre
espero socorro. Ainda os rasgões rápidos e raivosos, lenços, cobertores, vestidos.
Ambos de pé e voltados na direção da mesa, nós, colado às costas de quem,
passando por íntegra, se designa por fêmea, o peito de quem, sabendo ser incompleto,
passa por macho, nós, bicéfalo, eretas as duas pernas direitas, um pouco flexionadas
as esquerdas, de forma a deixar livres os colhôes, que a mão de unhas polidas e sem
anel algum, voltada para trás, apalpa (pertencem-lhe esses ovos de pássaro?) enquanto
a outra afaga o próprio seio, ficando o outro seio entregue à mão mais grossa, a
direita, que imita, no mamilo túrgido, os movimentos executados pela esquerda na
cabeça pulsante e dilatada do membro, preso entre as virilhas molhadas e parecendo
sair de dentro da vagina, nós, macho-fêmea, as cabeças lado a lado e voltadas na
mesma direção, uma curvada para a esquerda à maneira de um cão que vai morder a
cauda e na verdade dando a língua a morder, meus seios, meus colhões, meu duplo
sexo. Que me falta a nós? (Mistura-se ainda ao desejo, manifesto no que agora
prendes com doçura entre os dedos frios e ainda impacientes, a ambição de desvendar
ou liberar essa mulher silenciosa à qual te assemelhas, cuja voz parece vibrar com um
timbre rude em certas frases tuas e cujo olhar, mesmo quando cerras, lívida, as
pálpebras, permanecem fixos em mim.)
Nossos pés ficam mais leves no chão, meu púbis mastigado pelas suas
nádegas, cinjo-a, mordo a sua nuca, o seio esquerdo na minha mão direita e o outro
seio alegrando a outra mão, pesado o ar e menos luminosa a tarde, ela abre as pernas e
distende para trás os pés, entrança-os nos meus tornozelos, curva-se e eu me curvo
sobre ela, agarra com dez dedos os escrotos e o bastão que sobressai à sua frente,
apoiado ao longo da fenda escorregadia, ungido pelo mel que as entranhas em brasa
segregam sobre ele e por vezes expulsam em jatos violentos, vogamos, os quatro pés
no ar, ela se contorce e nossas bocas unem-se ávidas, pendem os seus cabelos e voam,
vamos sem leis ao longo das paredes, passamos ante os rostos amarelos das
fotografias, flutuamos sobre as dálias, roçamos um dos lustres, nosso reflexo
impreciso ante o vidro do relógio, o ser alado e bicéfalo, quatro horas e trinta e três
minutos, meus peitos de mulher é seu membro de homem, ocupamos uma esfera de
caprichos e decifrações, rodeiam-nos as máquinas, as vozes e os miasmas da cidade, o
Portador, pousamos sobre a lã ordenada do tapete.

N 1

ʘ E ABEL: O PARAÍSO

Nas omoplatas, nos rins, forma-se o prazer-, este, no âmago dos olhos, é o
prazer que surge, clarão; os músculos das nádegas, cerrados como um nó, amarram o
prazer; os ouvidos surdos a vozes e ruídos insignificantes ouvem apenas o prazer
crescendo; entre um ventre e outro, insinua-se o prazer; as bocas chamam o prazer e
tudo que escandem entre as cerradas maxilas são nomes do prazer; as pontas das
unhas — dos pés, das mãos —, a espessura do sangue, a medula dos ossos; desce a
flor do prazer ao longo da coluna e se abre nas ilhargas: papoula.

E 15

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO


Pousamos no tapete, eu por trás de mim e de costas para mim, o duplo ser,
círculo fechado, boca e boca, bifronte, quatro pernas, quatro mãos diligentes e
permutáveis. A claridade exterior amortece; toda a sala, com os seus objetos, resiste a
esse declínio — prematuro e insólito —, cada superfície salienta-se e lateja, emitindo
uma luz surda. As dálias flamejam nos seus amarelos — dálias ou girassóis? —, os
rostos dos retratos nas paredes e as dobras das suas roupas avultam, palpáveis, tendem
para um brilho de esmalte os damascos e veludos encardidos, o verniz, os vasos de
prata, as maçanetas de vidro, as jóias espalhadas no chão, e, mais do que tudo, as
cores meio apagadas do tapete, sua vegetação, as pernaltas, as lebres.
O que na carne de ʘ clama por liberar-se — tensão de mola presa, ânsia
dominada, explosão latente na neutra aparência da bomba — é a sua beleza em outro
plano, mais depurado? Escapa dos meus braços e senta-se sobre as pernas, meio
apoiada nos longos dedos ágeis sem anéis, de frente para mim, réplica, em outro
plano, da luminosidade íntima que vibra em tudo. A fronte estreita não parece mais
alta, o arco das sobrancelhas, sim, revela certo espanto e os olhos fitam-me com um
brilho quase insuportável entre as pestanas grossas, mas o nariz é o mesmo, reto e
pontudo, apenas mais distendido e com as asas afiando, nenhuma alteração no
contorno dos lábios, abertos como se nunca lhes bastasse o ar, talvez esteja mais
branca — ou mais luminosa? — e se acho mais compactas as deslumbrantes volutas
dos cabelos, onde se fundem ouro e aço, deve ser porque estão soltas, desfeitas, em
desordem, fios úmidos colados à depressão entre os seios. Alterações nas curvas da
cintura e das ancas transbordantes, no volume dos peitos, no torneado dos braços, na
grossura das coxas? Nenhuma. Contudo, grandiosa, o rosto insubmisso meio oculto na
massa dos cabelos, as mãos tocando ligeiramente o tapete, ela é a mesma e outra, ela
transformada e intensificada, havendo, entre a mulher que entra na sala ainda escura e
esta, respirando rápido e brilhante de suor, a distância existente entre uma faca cega e
a mesma faca afiada: sua beleza, agora, tem gume de navalha.
O isolamento absoluto em que me vejo, sob o Sol a pino, é o primeiro anúncio
do prodígio. Voa bem alto um gavião, voa acima das nuvens, o braço esquerdo
mantendo-me à distância, pássaros — alguns dos quais identifico — cantam
escondidos, sob os pêlos úmidos, velado, seu sexo atento, um casal de canários pousa
no cajueiro e foge, discretos espasmos nos joelhos macios, zunem nos eixos, nota
incerta e sem fim, as rodas, um carro de bois, a mão esquerda cede e a direita continua
suspensa, protetora. Abelhas e moscas: seus zumbidos. Aspira fundo o ar e ergue os
joelhos, os pés miúdos deslizam no tapete. Refletindo o vento que incita as nuvens
altas, vem dos outeiros longínquos um vento de superfície, faz ondearem as folhas do
canavial e alcança-me, cheirando a roupa lavada. Perfila-se entre os montes, negra,
uma chaminé de engenho — e isto, com o som do carro, é tudo que existe de presença
humana. Alteia-se ainda um grito, mas tanto pode vir de uma criança aterrada como
de alguma ave para mim desconhecida. Agudo, esse grito, distante — "Raah!" —, um
só.
Estende a mão e retira-a quando tento segurá-la, jogo de gatos, os dois peitos
balançam, as pontas mais e mais enristadas, sempre que ágil puxa o braço, por fim
acerto o bote ou deixa-se agarrar, puxo-a e vou sobre ela, grita o pássaro
desconhecido, risos e ais estrangulados, seus pés miúdos no ar, crava-me as unhas nas
costas, sua boceta ardorosa lambe-me a palma úmida, ela sustenta-me o pulso com as
duas mãos, urra baixo e feio como se esmurrada no estômago, golpeia-se fundo entre
as pernas com o meu punho, mordendo os lábios a ponto de sangrar (palavras no seu
colo?, na garganta?), amolece e afasta-me, atira-me de lado e abandona-se, uma ruga
entre as pálpedras cerradas, as órbitas roxas, os cabelos espalhados sobre a exuberante
e pacífica representação do Éden, uma espécie de beleza solene e vagamente
aterradora — seus gumes acerados —, placas lívidas no rosto, o peito imóvel, a mão
direita sobre o sexo como se nele se aquecesse, bate o coração?, os lábios cor de cera,
o braço esquerdo erguido, um pouco, conserva-me à distância. As imagens descoradas
das fotografias crescem mais nessa espécie de vácuo e abandonam as molduras em
direção à sala.
Arranco-me, despertando, à febre e ao lençol do pesadelo: aqui estou,
acordado, mas o coração bate ainda, os tecidos invisíveis continuam a romper-se
(ouço-os, ouço-os) como se entes predadores partilhassem o quarto, dilaceram, sem
pausa, sacos, fronhas, véus, rasgam o ar e a pouca luz vinda do corredor, tudo rasgam
e não rasgam o lençol, funesto, contra a parede, imune às alternâncias de vigília e
sono. O Portador sopesa na sua palma fugidia o pente da pistola, os sete furos laterais
acusando a presença dos projéteis. Adormeço e acordo e adormeço e entre dois
estados, como se ambos fossem um, debato-me, arrastando para o sonho elementos
reais e dele trazendo, extraviada, com os seus variados odores campestres e
domésticos, a imagem do lençol, neutra peça familiar, tornada indecifrável e
ameaçadora pela insistência com que — visão ou sonho — impõe-se. As salas e os
quartos, com a presença do Portador, ficam mais vazios, há uma torneira gotejando e
este som compassado avulta. O pedaço de bramante, inalterado, trespassa vigília e
sonho, até que alguém apaga a luz do corredor e ele, aos poucos, desgasta-se
(envelhece?), dissipa-se — e também os rumores de panos que se rasgam —,
desaparece aos poucos, tão sutilmente que não sei ao certo quando deixo de vê-los. O
Portador, com um golpe seco e exercitado, enfia o pente na coronha áspera; guarda a
arma na bainha de couro. Uma mosca, bêbada talvez do cheiro de cavalo, zumbe no
quarto, pesada.
Sopra o vento raso e as folhas do canavial também plantado em mim roçam
umas nas outras, verdes, as bordas como fios de navalha. A solidão, nesta hora do dia
e a céu aberto, ou, o que também é possível, o sortilégio da Cidade, vindo na dianteira
da Cidade, pouco a pouco esbate e confunde os meus limites. Aspiro, pelo nariz e pela
boca, as cigarras e os pássaros. Depois, apenas as cigarras: calam-se os pássaros ou
vão-se. Meus olhos descem das órbitas e se unem na garganta. Abrem-se os cantos
das cigarras, caudas de pavões, cinco ou seis, pousadas ao acaso, eu busco o ponto de
intersecção entre os sons (aí está o equilíbrio e, com o equilíbrio, a visão conjunta, um
pavão de pavões), busco esse ponto e quando encontro ou acredito encontrar o centro
do polígono, cai o vento, as cigarras silenciam e neste centro (ou em mim, pois com o
centro me confundo) muge um bezerro. Ergo-me sobre o cotovelo. A sombra da
última nuvem, vagarosa, rasteja em direção ao vale, azula as folhas imóveis do
canavial, sobe a encosta a meus pés, cobre-me, passa. O céu, no mormaço do meio-
dia, pálido e, na minha vista, ainda mais afastado, parece a ponto de romper-se —
superfície tensa. Vejo, então, no ponto onde o Sol nasce, longe, uma breve mancha
negra, móvel e coruscante, planando com destino certo.
Ave de grande porte a mancha negra alada fulgente surgida no horizonte?
Absurdo. Sequer esta luz feita de lentes polidas a aproximaria. Que corpo então este,
brilhante e em silêncio, que voa? Ave alguma, tivesse o porte de um boi e a
envergadura de um telhado, seria visível a tal distância. O sol bate de chapa na
paisagem: nem sombra do gavião. Novas manchas, várias, agora mais compactas,
voam lestas e sendo muitas se impõem mesmo assim como um todo: vejo, nesses
objetos distantes e que conquanto céleres, oscilam, um ser único, ainda fragmentário,
esquadra de outros mundos, formação bélica, peças de um arcabouço, letras de um
nome. Isto.
Contemplo, deslocando-me no rumo da vertical que a divide, o claro corpo e
seu fausto. Ergue com preguiça os braços, deixa-ós cair sobre a cabeça e abre os olhos
pesados, olha sem direção, vaga, os joelhos erguidos movem-se de leve e um tanto
sem governo, as carnes leitosas das coxas ondeando. Os flancos, pousados sobre o
tapete, ampliam-se, tornam mais grada e convidativa essa arca.

E 16

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Curvo-me e beijo os dedos arredondados dos pés, o peito arqueado dos pés
com suas veias sutis, dois cordeiros nos ladeiam, elai amplia dócil a distância entre os
joelhos e começa a falar, os braços soltos, a cabeça sem sossego, cruzam-se vozes
discordantes e tumultuosas, um clamor impaciente, àbrem-se as coxas e revela-se o
acesso, a entrada, a via, o esconderijo, o N, o centro, emergindo entre alvuras e
negrume, o bico rubro e as múltiplas dobras violáceas, satura o ar um cheiro forte de
vinho, de rosas frescas e de chifre queimando, a fenda espumosa perde-sé na sombra,
um torso masculino esgueira-se entre as árvores do tapete, mais uma vez grita o
pássaro, minha língua pesa, avanço, as noções de abertura, de ingresso e de
conhecimento fundem-se no ato de avançar e descer lentamente sobre ela, os braços
luminosos se estendem para mim, uma voz dentre as vozes implora com deleite e
autoridade "Vem! Vem!", um grito, os cordeiros soltam um berro de boi no
matadouro, o rosto esplende entre os cabelos com uma beleza inumana e violenta, ela
enfia as unhas no meu flanco, ergue sôfrega a bacia, ergue-a, crava-me fundo em si.
Faço-me ao seu corpo, penetrando, mais e mais fundo, voz potente dos
cantores, gesto do Portador o cinto na alça do coldre, vultos translúcidos de sérpia
respiram fora das molduras, o pássaro e o grito (’’Raah!’’), o relógio o ritmo, a
Cidade vôo luz do meio-dia, fundo e mais fundo o mergulho, cego? não. Revelações.
As peças voadoras progridem sobre o vale, mais brilhantes à medida que
progridem e de repente eu posso ver quanto diferem das formas — naturais ou
mecânicas — destinadas ao trânsito no ar. Voam em silêncio e sem asas e nada têm de
orgânico nem de máquinas, lembram um circo em pedaços, arrancado com os mastros
e as lonas, tudo — tapetes rubros, roupas brilhantes de acrobatas, partes da
arquibancada, elefantes — trazido por um vento que a calmaria antecede. Leve para
longe de mim esses entes informes o vento que os traz! Mudam de rumo e parecem
desviar-se para o Sul. Constato, nessa hora, mais os desejar que temer. Corrige-se a
curvatura e há na formação uma aparência de desordem, um desequilíbrio logo
superado. Abrem-se em ventarola os grandes pássaros irregulares, crescem em
quantidade, em rapidez, em brilho, o Sol no zénite e o espaço ofuscante — como
atravessado por partículas de ferro: limalha —, mas inflama-se o ar e outro dia, enso-
larado, infiltra-se na luz do meio-dia e cega-me.
Ela e ela, tu, o acesso, ó corpo mágico, ó glória e privilégio desta travessia, em
quantas superfícies cruzadas reflexas opostas afundam falo e Abel, espaço de vozes e
vozes e vozes e vozes, múltiplas bocas múltiplas, nossas línguas um laço, o ar que
expira e seu odor ácido e quente, jasmins abertos Sol meio-dia, outro sexo oculto no
seu sexo mastiga a glande atônita, exaure-se a cantata e cresce, entre súplicas e gritos,
o compasso do relógio, Julius os engenhos conjugados de som, uma criança e um cão
caberiam na caixa de madeira, Heckethorn, ventos ligeiros tapete bosque canto festivo
de aves, meu nome se enuncia em algum ponto, dos corpos? meu nome um centro?, o
Portador e o curto relâmpago sobre os edifícios, ela grita o meu nome prende o meu
rosto, arrebatada e enérgica, o nariz mais nítido e os lábios inchados e lépida chama
rubra a língua e os quatro olhos abertos, cruza-me e rega-me, Abel, vê como te recebo
e como te festeja a minha carne, ai, não mais o vilipêndio não mais a ofensa não mais
o corpo solitário não mais, vem e cruza-me em triunfo com a tua vara florida,
pertenço-te sem normas e sem exigências e abro ao.teu ingresso tudo que sou e hei,
amo-te-amo-te-amo-te-amo, os cordeiros e seus guizos, os insuportáveis gumes do teu
rosto, contemplo-o e beijo as aréolas, maiores os pêssegos e mais escuros, doces,
tenros, maduros, curva a minha cabeça contra os peitos, a sucção, os beijos, a pele
machucada entre os lábios e os rápidos signos esquivos que assomam nos bicos
retesados, rápida multiplicação como se lanternas nascidas no seu corpo, mágicas,
iluminando-a, reflexos?, emblemas?, insetos?, contas de vidro?, débeis lâmpadas
veladas dentro do seu corpo, o grito acidulo do pássaro, afloram os signos e
fermentam, vivos, os signos, outro corpo no seu corpo, lutam e devoram-se, nada
amenos ou plácidos ou domesticáveis, enxame cambiante e rosnador, com sua força
de dentes e seu fogo de pederneiras feridas com aço, indisciplinado combate, ela em si
oculta, ela e ela, o vento e seu alto do báculo, alto, alegrando o centro do meu ser o
cotovelo esquerdo para cima e a mão à altura do rim afago a planta sedosa do seu pé,
seu calcanhar polido, ela alteia mais a perna em direção ao lustre, trança os pés nas
minhas costas e nosso mútuo olhar, afetuoso, é também grave e atento, cada rosto
uma inscrição, o destino ou o azo do outro, a chave, o veredicto, a alternativa, a carta
de baralho, a estrela, a sorte.
O mal das coisas espantosas é que nos subjugam, arrastando-nos para as suas
leis e natureza — e assim o nosso espanto, em face de um fenômeno novo, nunca
ultrapassa os limites usuais: mágicas e monstros, afinal, pertencem ao nosso mundo e
só o que nele não ingressa é realmente assombroso. Ofuscado e sentindo vacilar o
chão sob os pés, levo as mãos à cara e por três vezes tento ver e a vista se desanuvia.
Corpos desmesurados e leves como nuvens, velozes como pássaros, compactos,
deslizam entre si e se aproximam do vale, sem ruído de nenhuma espécie e sem que se
movam o cajueiro e as canas; o mundo estático. As sombras dançam na paisagem —
grandes como pastos, açudes, boiadas — e os primeiros corpos descem ou abatem-se,
torres e jardins, escadarias, esculturas, pórticos, uma cidade, a Cidade um dia
anunciada, buscada, cujo encontro obseda-me e por fim se revela, se ordena, simula,
violando espaço e tempo, uma forma particular de existência e alivia-me o fim da
busca: à luz do meio-dia, descortino-a.
O temporal armado a janela aberta sombreando a sala passar dos carros ganido
das buzinas teus cabelos enlaçados nos ramos do tapete parecem haver crescido o
Portador comprime as orelhas com as mãos abre a porta desce pela escada o vazio em
torno dele os dois carneiros sobem no sofá a marcha dos ponteiros quatro e cinqüenta
e quatro a marcha do mecanismo de som o raio a explosão outra explosão outra
explosão pausa breve o estrondo e ainda outra explosão vibram as folhas de vidro nos
caixilhos tua beleza um rugido no teu rosto a serra mecânica descargas hidráulicas
bater de porta as exclamações os beijos a vertigem o rumor no teu sexo de laranjas
sugadas ou espremidas abre-se a porta do Chrysler os vultos dos retratos interpostos
entre nós e as paredes seu odor naftalina madressilva pó vagos borrões amarelos nos
chapéus ano 1910 nos véus nas rendas nas botinas um clarão na sala seus espectros
lívidos vem a chuva grossa respingos soprados pelo vento, molham o chão ela alteia
as ancas bate no meu dorso implora morde-me a boca.
O livor dos relâmpagos movimentos das paredes e das sombras os rostos
espantados das figuras que povoam a sala vivas as mesmas das fotografias o
movimento triturante expande-se e amplia-se o ventre contraído ondear das ilhargas e
das nádegas mais alto no meu sexo o anel o outro sexo o sexo escondido solerte e
constritor escavo força e poder da minha insígnia escavo fundo firme e fundo quanto
posso busco um centro um alvo um portão sou esta insígnia e busco seus cabelos
agitados no meu braço direito e minha mão esquerda firme sobre o punho uma
travessa arrastando-a para mim acunhando-a um golpe sua cabeça a de um ser
torturado e rumores de asas de vôos próximos na cabeleira revolta trançada cheia de
nó sibila a sua língua como um rabo de lagarto (a língua sibilante móvel dupla
insaciável, a língua sopradora veludosa quente ágil cheiro de verniz sabor de
amêndoas cheiro de manhãs sabor de cuspe cheiro de barricas sabor de pão cheiro de
pano queimado sabor de leite a língua: dança na minha boca) escavo em busca do
centro "Raah!" o Portador a chuva o odor de cavalo calçadas invadidas água cor de
barro e na sala as crianças dos retratos golas marujo sépia os vestidos rendados laços
de seda à altura dos quadris tu portagem tu pórtico tu porto eis que finda a travessia e
as palavras me invadem a princípio em tumulto irrompem em mim horda ríspida e
silente irrompem em mim e minha carne conhece-as conhece e sofre a presença
desses insetos de mica lâmina veloz do relâmpago correm entre nós as palavras e com
elas o caos a balbúrdia a barafunda os carneiros mochos fitas rubras guizos os
carneiros entre os viçosos girassóis que pendem pétalas ouro a chuva estronda pesada.

E 17

ʘ E ABEL: ANTE O PARAÍSO

Estende-se na paisagem a Cidade, dominada por um alvo templo arredondado


e cingindo-a uma tríplice muralha com dispositivos de defesa — torreões e ameias.
Quando se for, não serei eu um velho, muitas vezes tendo as foices dos cassacos
cortado e replantado este canavial? As elevações que a flanqueiam (numa das quais
reconheço um cemitério cercado de ciprestes hirtos) estavam aqui ou nâo antes da sua
vinda? Corresponde ao meu o seu norte verdadeiro? Arrancada do mundo, tem algo
de uma ilha simulada, sem águas em redor, território cercado de desmoronamentos, os
limites anulados por fantásticas máquinas de terraplenagem. Amplo é o gesto do
colosso que indica o horizonte a um menino e transparece no seu rosto tão evidente
soberba que nele creio ver o reflexo do mar e de muitos barcos com cargas de valor,
mas, na verdade, nada me garante que a Cidade seja portuária — e, portanto, não
saberei se as águas que a dividem e nas quais se reflete o mesmo sol que me queima
são um braço de mar ou algum rio imóvel, vindo também pelos ares com o seu leito
ilusório. Outra incógnita, cheia de irradiações, cerca o evento, a Cidade vem a mim e
mostra-se, com isto a caçada termina mas outra se inicia, pois a Cidade aparece-me
inominada (o caçador abate um animal sem nome), tenho então de buscar o nome da
Cidade ou seu equivalente, uma espécie de metáfora, que, concisa, expresse um ser
real e seu evoluir e as vias que nele se cruzem, sendo capaz de permanecer quando tal
ser e seus caminhos não existam. Esta escuridão no que se refere ao contorno da
Cidade e ao seu nome se opõe ao que sei (até que ponto e por intermédio de que
indicações?) a respeito do que jaz sob os seus discutíveis alicerces. Sob a Cidade há
outras, a Cidade existe sobre os ossos de doze outras cidades varridas pelo tempo ou
por outros flagelos, sei que estas cidades suportam a sua altivez e que a água das
cisternas, na Cidade, tem um sabor específico e mesmo inquietante, um sabor de
admonição e ameaça. O nome ou metáfora de nome, como a Cidade, deve repousar
sobre doze cidades soterradas.
Cruzamentos e trocas minha língua em meu ouvido por trás do pássaro na
árvore um seio e um braço levantado grita a sua boca no meu fémur e o coração que
bate na garganta (minha? sua?) pertence a algum bicho. As mãos descolando os
nossos ventres avançando em direção ao rumor de laranjas espremidas as duas mãos
fechadas sobre o falo — Abel, eu te — amado — a rijeza do teu — este prazer — as
pancadas do sangue — eu e — oh! pródigo eixo inflamado — deixa que — sim, eu te
agradeço por — como é possível — tu não — o peito — meu amor —nada entre mim
e as — entre mim e. Olavo Hayano, o Portador, olha através do pára-brisa cai a chuva
um relâmpago olha o relógio de pulso quatro e cinqüenta e cinco vultos borrados nas
calçadas os veículos molhados o colar as argolas no tapete os brincos os anéis fios e
postes contra o céu cor de couro mal curtido andaimes negros e desertos janelas
iluminadas antenas de TV e páfa-raios reflexos vermelhos dos faroletes na enxurrada
pedras de calçamento arrancadas pela água fechados os vidros do carro liga a ignição
parte abre caminho entre os ônibus os automóveis que avançam lentos sob o temporal.
Imóveis eu e ela imóveis súbito silêncio suas coxas deslizam em meus quadris e os
pés devagar pousam no chão.
Crivada de torres e sendo ela própria o capitel — ou mesmo o friso e
arquitrave — de uma vasta coluna soterrada cujo pedestal e fuste as doze outras
cidades constituem, a Cidade, com uma topografia tão movimentada corno a
paisagem do Nordeste sobre que, efêmera, desce e pousa, com suaves depressões
entre cômoros arredondados, ostenta o seu fastígio em tudo: nas vinte e nove portas
das muralhas e na pompa das demais construções. Mesmo os fossos entre as três
muralhas, faixas sombreadas onde limoeiros, plátanos e laranjeiras floridas se
alternam, testemunham fartura e gosto de viver. Certos conjuntos — o alvo templo de
mármore, o hipódromo, com esculturas de carros e cavalos, o arsenal e um palácio
quadrado, mais amplo do que todos, no centro de uma esplanada verde — quase
obscurecem os outros domos e torres, os reservatórios limpos e as ruas calçadas de
pedras. Neles alcança o auge a suntuosidade que se manifesta no material dos
obeliscos, nos motivos vegetais e zoomórficos dos pórticos e frontões lavrados, nos
tetos glaucos da faiança e onde o Sol se reflete.
Golpes de vento sucessivos, rápidos murros, agitam os lustres, as dálias, os
indecisos girassóis que se abrem no ar e os ramos do tapete fremem sob os nossos
corpos placidamente ligados. O temporal, rijo, simula o anoitecer, sombras compactas
sob os móveis, a algodoada penumbra e os espectadores vindos dos retratos.
Relâmpagos constantes, cerúlea, nervosa e como laminada a sua luz, rasgam o espaço
antes que silenciem os trovões, ameaçam as junturas entre as coisas, acendem vidros
pingentes jarros de prata adereços no chão aros verdes do vestido, trespassam os
rostos de sépia esparsos na saia, embebem os girassóis. Tudo, passado o relâmpago, é
cinza e fogo extinto, tudo que não seu corpo: nele — um dom, um estado, um
merecimento — perdura este brilho precioso e réstias latejam no espessor da carne. A
cabeleira derramada em leque, a língua sem pouso na boca seca e o traçado da face
imerso entre a paz absoluta, o êxtase, o enigma solvido e o júbilo sem medo, segue
com as pontas dos dedos o meu rosto, colhe ponto por ponto o meu rosto, incorpora-o
a não sei que desvão do seu conhecimento e afaga-me, errática imperícia, o torso, o
flanco, os pêlos riçados do púbis confundidos com os do seu, bojudo. O tronco firme
sobre o lado esquerdo, finjo contornar com a mão direita (ousaria tocar?) a face
radiosa e como interdita, fora de meu alcance, sagrada. Plantado no seu sexo, sinto,
sem mover-me, cada dobra das paredes e sua temperatura, a das tripas de um boi
ainda vivo, ela não se move e olha-me de dentro, íris raiadas de púrpura, nenhum de
nós se move, ela ou eu, move-se porém essa garganta e corte, comprime o membro
sensível — e outro corte menor, garganta mais estreita e mais febril, tenta engolir a
glande. As engrenagens de som armam-se nas trevas móveis do relógio: faltam quatro
minutos para as cinco, estão no ar os dados.
Sobre o esplendor e a harmonia da Cidade pesa uma nota sombria. Tem a
Cidade, na sua deslumbrante riqueza, algo de um cadáver podre e perfumado. Além
disto, a ausência de bichos — existentes apenas nos entalhes, mosaicos e esculturas
— e também de movimento, mesmo as ramagens e as flores como que petrificadas,
isto e a erosão em redor da Cidade, separando-a das estradas e tornando inviável a
aproximação dos homens, com os seus detritos e tumultos, esse isolamento
monstruoso que as três linhas de muralhas, cada uma com três metros de espessura,
reforçam e expressam, confere ao radioso aglomerado de torres, balaústres, fachadas e
pomares, uma espécie de mudez ou de insanidade. A Cidade: tartaruga sem cabeça.
Vir e refluxo dos signos Vir e refluxo das vozes mortal combate dos signos as
garras as mutilações vejo-a e o ser carnal a que me uno faculta-me o acesso ao seu
mistério e algo de difícil e precioso uma realidade segunda contígua à que
entorpecidos — o hábito, o hábito — manipulamos eis então seu sentido e sua força
ela guarda em si o que nomeia o mundo o surgir o evolver o acabar sua carne é
também uma jazida aí jazem as palavras jazem e dilaceram-se raivosas brutas
virulentas ímpeto de pedra atirada no olho (jazem? ou formam-se? ou abrigam-se?) aí
são e por isto o corpo que conheço que em mais de um nível e plano conheço e que
luxuriante copioso aprazível imita o aprazível copioso luxuriante mundo do jardim
com ele quase se confunde (curva roliça do ombro com a marca dos meus dentes) por
isto o corpo mas qual dos dois? e acaso não há outros? o corpo o seu é espelho do
mundo foz das coisas arcano do nomeável por isto nele é possível contemplar com
olho insubmisso o consumado o vigente o esperado o temido pêndulo relógio dois
minutos e meio para as cinco suaves rostos de sépia chapéus asas de pássaro cabelos
frisados girassóis plastrons bengalas espartilhos girassóis abertos eu te amo amo-te é a
ti que eu amo tu a quem amo tu amada mordo meu queixo mordo cada vez mais
próximo da boca dentes contra dentes surdo e rouco gemido o anel escondido e além
do anel no segredo da carne finas patas da aranha tocam o falo seus tornozelos roçam
meus jarretes suas unhas minhas nádegas arrasta-me fundos golpes compassados
direção aranhas (cavidade do sovaco, nívea, sombra dos pêlos raspados) canta
invisível nela em mim por trás dos girassóis ou escondido nas eternas ramagens do
tapete um pássaro e lenta ela me invade e é em mim e mostram-se em nossos corpos
fundidos vultos que reconheço e amo pulsam presenças perpassam vozes corre o
agora entre margens e nós próprios lá estamos enlaçados nós enunciados ou passíveis
de enunciação nós e o que provocamos nós e o que fabricamos nós e o que
perguntamos nós e o que testemunhamos nós e o que ambos deglutimos o que ambos
odiamos o que ambos escandimos o que ambos amamos sonhamos desejamos o que
ambos.

N 2

ʘ E ABEL: O PARAÍSO

Transitamos entre nós, vamos de mim a mim eu eu nós eu eu de mim a mim,


laço e oito, boca e boca, transitamos e somos, a esfera circunscreve-nos e nós próprios
uma esfera, boca e boca (de quem?) coxas braços joelhos bunda orelhas (de quem?)
membro garganta bainhas rorantes o prazer formando-se os colhões acesos cabeleiras
ais. Relâmpagos arabescos convulsos lento rolar dos trovões estrondos dos trovões
carradas de pedrouços entornados sobre lastro de madeira uma explosão atira-os para
o ar a sala treme cintilam cristais lustres vidros caixilhos moldura nuvens de chuva
açoitadas edifícios pára-raios antenas de TV. Frios rostos sépia atitudes idênticas às
das fotografias, gamos com dentes de cachorro cobrem em nossos corpos ovelhas com
cabeça de leoas, grupos juvenis chapéus de palha rendas crianças golas marujo,
mariposas verdes e vermelhas, cabelos olhos mãos cor sépia silenciosos grupos
enchem a sala uns mais visíveis outros apagados todos concretos tangíveis, os
cordeiros passeiam, relâmpagos acendem redondos girassóis entre as figuras de sépia
girassóis nos seus peitos e ombros e cabeças, afia na sala pássaro feito de pássaros
bico rubro diademas e como ataviado em sedas laços flores o pássaro do júbilo da
glória do encontro da misericórdia e seu nome é claro um Sol um dia. O ponteiro dos
minutos quase vertical XXI as rodas denteadas executam o projeto do obscuro
fabricante fascinado pelos carrilhões pela confluência dos fatores pela ordem precisa e
vulnerável do universo, veemência do abraço cabelos soltos glande em V dentes
luminosos (nomes de cidades e cidades com peixes aves insetos quadrúpedes
nenhuma sombra humana) vem o prazer como um sopro benigno e temível na sua
intensidade, eu sob e sobre, dois e um, sou e somos, "Raah!", o Portador a chuva
ondula com o vento toldos agitando-se calçada úmida avenida Angélica o guarda-
chuva negro os prédios mais distantes como apagados ruídos muitas águas detritos na
enxurrada as árvores atormentadas Olavo Hayano o Agente a Chave o Emissário,
lama nas botinas rangentes, ramos e flores do tapete, mais pesada a chuva a sala
menos sombrosa pneus no asfalto úmido ó Abel amanhece-me atravessa os cristais
desperta as aves vem amanhece-me ah (nós a árvore a praça o Sol escuro platibandas
caminhão o céu lavrado mariposas brancas) rangem no ar rude peças ferruginosas
"Raah!". A deplorável solidão da Cidade, primeiro passo na revelação — não
completa, decerto — da sua natureza, embebe-a de melancolia e mesmo os seus
pomares agora se afiguram beluosos. Cândido peso dos escrotos aprazível peso doces
calcanhares nos meus rins abre-me a vara pródiga une-me a vara pródiga golpeio o
chão com as mãos cerradas sucções e gritos ferem-me as unhas morde-me o ombro
(ondas fortes contra as pedras dos Milagres flores vermelhas dos flamboyants no
quadro da janela e urros de leões rondando os tetos das casas) teu rosto as flores
abrindo teu rosto os dias surgindo as alegrias vindo e lanternas secretas revelando na
tua face carnal o luminoso rosto de palavras. Olavo Hayano a entrada do edifício
azulejo policromo com cena de caçada os cordeiros berregam amedrontados e giram
Hayano o Conducente a esfera o Jardim ainda impenetrável hirtas figuras
circunspectas meio devoradas pelas traças seu flébil odor de flores e de luvas
guardadas em malas de viagem (pêlos cambiantes dos flancos carne amável airosos
peitos coxas venustas fragrância inebriante do púbis o falo insigne as egrégias
nádegas de margaridas camélias e açucenas a língua sábia a excelsa fenda dúplice) ah
corpo verbal e ressoante e proliferador eis que suponho invadir-te por ti sou invadido
libra-se o pássaro de pássaros em círculos maiores e mais altos roçando chapas como
de aço as chapas giram devagar voa o pássaro através pesadas nuvens feridas por
relâmpagos pouco para as cinco prematuras completas da chuvosa abafada tarde de
novembro o guarda-chuva molhado no braço esquerdo do Agente ele ignora o
ascensor galga os degraus de mármore lama nas solas. Contemplo a Cidade, radiosa e
insulada, sobre o canavial, contemplo as águas imóveis, os palácios brilhantes como
quartzo, as colunas muito altas e, de súbito, como se tivesse nas mãos um pássaro de
plumagem sedosa e multicor, e, soprando-a, descobrisse no pássaro um animal
escamoso, minado de piolhos, pústulas e vermes, a Cidade, sem nada perder da
pompa visível, revela o seu asco, a sua doença, suas camadas maléficas, até aqui
dissimuladas. Volvo para o teto a vulva ergo-a para o zénite escuro como à espera de
que finquem em mim do alto e para sempre o tronco da árvore do mundo cruzo os pés
nos briosos rins de Abel e alteio o mais que posso a vulva em fogo boca de cão
uivando uiva o meu útero eu uivo e abro-me abro-me e urro trovão amor girassóis
estendo os braços em T os visitantes abstrusos e seu cheiro de sótão conservo o
membro implantado prego batido lâmina e cabo forço e não recuo os beiços do
períneo mordem a pele do saco estendo a mão esquerda ao longo do seu braço direito
prostrado no tapete cruzam-se os dedos convulsos espécie de aflição o quase o ápice o
limite os animais em nós as lianas em nós o pássaro de pássaros as placas de metal
ferruginoso empluma-se um pássaro em nosso corpo e uma grande ave preta uma ave
não visível sobre as nuvens baixas voa firme lançando o seu canto estropiado canto de
couros grossos cortados com serrote Olavo Hayano nos últimos, degraus a arma
destravada relâmpago dentes línguas ventres as vulvas latejam cinge-me o anel
secreto e no fundo uma língua miúda quente ágil lambe a testa do falo (andando nas
pontas dos pés mãos erguidas espáduas para trás o tremido das gorduras) armam-se os
martelos do relógio o pêndulo um sisto ou alaúde eu mais e mais o teu corpo mais e
mais a voz de grande e rebelde multidão e eis que nossos flancos e espáduas rompem-
se abrem-se lascam-se fendem-se e a delícia dos acende os nossos e nós nos e o
mundo se e jatos de chamas em torno do e todas as nossas bocas clamam como e
quando nos parece haver enfim alcançado o limite supremo do canta o relógio e nota
após nota flui a melodia fraturada na máquina e conhecemos o que poucos ou
ninguém, vivam o que viverem... ó formosura do teu rosto, aguda e afiada, reinando
numa riba oblíqua, a magia da Cidade me parece perigosa pérfida infestada de ferrões
e não só isto, os martelos do relógio ferem precisos as cordas vamos de patamar em
patamar e a Cidade, imóvel, move-se, aproxima-se com lentidão, a armação Julius
Heckethorn vai formando a seqüência a harmonia reúne-se o disperso e nós
rejubilados a vertigem o vôo galopam saltam e lançam vozes os animais que nos
habitam fria e turva a beleza da Cidade, as garras do Só e Soez, e por que este
silêncio?, quero arrancar-me à Cidade e não posso, grito um pedido de ajuda, mas
quem iria acudir-me, a minha voz é uma voz de condenado, boca contra boca
lançamos sem governo gritos e gemidos e palavras cortadas meu amor que maravi eu
te e ovelhas e cães se enlaçam em nossas bocas e gazelas e leões revoam mariposas
também em nós heliantos florescem ejaculo os testículos beleza filha da puta a do seu
rosto bala na agulha o Portador falha no relógio o penúltimo grupo da seqüência
delícia extrema da carne aberto o seu braço direito e nossos dedos cruzados seus pés
mimosos nos meus jarretes uma das pernas mais estendida que a outra e a mão livre
metendo-me puxando-me enfiando-me falha o penúltimo grupo notas musicais soa o
último e o relógio continua a sua busca. Aterrado em face da Cidade e como um
homem que não pode mais contar com as próprias forças eu berro, uma expressão
humana, mas a voz é um cuincho, grita um porco por mim, grito com boca de suíno,
pensando ainda quanto erro em buscar essa Cidade única, ostentosa e ameaçadora e o
dia escurece e certo do meu fim perco a noção de tudo. As figuras estáticas fugidas
das molduras voltam-se a um só movimento Olavo Hayano ladeado pelos girassóis o
guarda-chuva num braço e no outro a pistola a sala obscura o tilintar dos guizos o som
da chuva e a voz de ʘ que ainda repete "Abel, Abel, eu te amo!" a Gorda vem ao
alpendre ergue a cabeça envelhecida olha o tempo o lólipo um buraco no mundo nós
esperamos calados os ternos dedos no meu rosto juntam-se as placas de aço abre-se o
pássaro de pássaros toda a minha vida se concentra no ato de buscar sabendo ou não o
que pesada como chumbo perde-se nas nuvens a fuliginosa ave de canto ignóbil o
Portador na mão direita a morte o fim a conclusão o pássaro dentro de nós agita as
asas de seda e canta com bondosa voz humana Olavo Hayano o cabelo negro e branco
os dentes grandes e vazia devorada uma banda de cara volta para nós o cano vemos
bem o seu gesto e não sabemos o que significa, nada sabemos além do
reconhecimento e da beatitude, as figuras antigas e recendentes a flores e a guardados
seus bandós plastrons rendas chapéus continuam imóveis e voltadas para o Portador,
ele abre a boca exicial e vários cães ou abonaxis latem de uma vez, canta apaziguador
o nosso pássaro mais forte o nosso abraço, novo relâmpago na sala e ouvimos irado
cheio de dentes irados o ladrar dos cães e cruzamos um limite e nos integramos no
tapete somos tecidos no tapete eu e eu margens de um rio claro murmurante povoado
de peixes e de vozes nós e as mariposas nós e girassóis nós e o pássaro benévolo mais
e mais distantes latidos dos cachorros vem um silêncio novo e luminoso vem a paz e
nada nos atinge, nada, passeamos, ditosos, enlaçados, entre os animais e plantas do
Jardim.

São Paulo, 22.9.69/1.12.72

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