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Avalovara Osman Lins
Avalovara Osman Lins
Antonio Candido
Como num relato de Borges, o modelo deste livro seria um poema, místico em
latim, de que se conserva apenas a versão grega da hipotética Biblioteca Marciana de
Veneza… O poema fornece o esqueleto de uma geometria rigorosa e oculta, que o
Autor revela numa espécie de guia metalinguístico do leitor, e que dá a narrativa um
movimento espiralado, sem começo nem fim quando tomado em si mesmo. O limite
está no fato de a espiral ser contida num quadrado, que por sua vez se repartee em
quadrados menores, cada um correspondendo a uma letra. O traçado da espiral vai
tocando sucessivamente as letras, e cada uma destas corresponde a uma linha da
narrativa, voltando periodicamente em segmentos cada vez maiores.
As linhas são oito, e o seu desdobramento se traduz na história de um homem
e das mulheres que amou: uma na Europa, uma em Recife e sobretudo, uma em São
Paulo, que de certo modo recebe a experiência amorosa vivida como nas anteriores.
As duas primeiras seriam passado, mas funcionando como presente; a última é um
presente que se forma a cada instante do passado. Toda a narrativa converge para a
plenitude amorosa, numa espécie de gigantesca câmara lenta, que concentrasse o
tempo no espaço limitado e no limitado instante em que a plenitude é buscada.
O que desde logo prende em Avalovara é a poderosa coexistência da
deliberação e da fantasia, do calculado e do imprevisto, tanto no plano quanto na
execução de cada parte. Falando do relógio de Julius Heckethorn (uma das linhas da
narrativa), o Autor diz que obedecia a “um esquema rigoroso”. E “sobre este rigor
assenta a idéia de uma ordem do mundo”. Mas “como introduzir, então, na obra, o
princípio de imprevisto e aleatório, inerente á vida?”. A execução do livro é a
resposta, fascinante para o leitor, á medida que este vai experimentando a precisão
geométrica do arcabouço, a minúcia implacável da descrição e a poesia livre que
rompe a cada instante.
SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS é uma frase inventada por um
escravo frígio de Pompéia, feita de cinco palavras, cada uma com cinco letras, que se
pode ler igualmente nos dois sentidos, e em cuja composição entram apenas oito
letras, que, distribuídas pelos quadrados menores, constituem as linhas narrativas. Nos
vinte e cinco quadrados que formam o quadrado grande, onde se contém a espiral, as
palavras se sobrepõem horizontalmente, mas também se estendem em colunas
verticais, pois a frase pode ser lida indiferentemente da esquerda para a direita, da
direita para a esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima, em diversos rumos.
Assim, na narrativa, o amor é visto do homem para a mulher, da mulher para o
homem, do presente para o passado, do passado para o presente, daqui para ali, dali
para aqui, numa reversibilidade vertiginosa que traz à baila a evocação da herma de
Jano e chega a uma mulher que é também homem, para um homem que poderia
eventualmente ser também mulher.
As reversibilidades prosseguem ainda noutro plano, quando o Narrador se
transforma periodicamente em Autor e a narrativa quebra a imagem do real, para
aprensentá-lo como fantasia composta. Neste romance, uma das linhas é precisamente
a da consciência crítica entrando a cada instante pela série ficcional, denunciando o
seu caráter fictício de empresa deliberada, igualmente reversível entre a representação
do real e o caráter ilusionista da representação. Daí um livro que não tem medo de se
apresentar como livro, como maquinismo montado, como não-realidade – mas do
qual jorram o fascínio de uma vida que palpita, o traçado do mundo exterior e a surda
potência das emoções.
Nada mais significativo desta mistificação demistificadora do que o fato de
um personagem não ter nome. Trata-se de terceira mulher, a mais importante,
representada no entanto por um signo meramente visual: ʘ. Abel amou/ama Ross,
amou/ama Cecília e finalmente ama/amou ʘ. Ela é espantosamente carnal e viva para
o leitor; mas é um ente mental do escritor, uma peça do jogo palindrômico,
representada simbolicamente pelo círculo fechado onde tudo começa e acaba, com seu
alvo fincado no meio. As pontas da espiral, desgarradas no infinito, unem-se aqui para
a consecução de uma plenitude que é toda a busca do livro.
Romance? Poesia? Tratado da narrativa? Visão do mundo? No universo sem
gêneros literários da literatura contemporânea, o livro de Osman Lins se situa numa
ambiguidade ilimitada. A começar pela linguagem, que varia também com o
movimento da espiral, indo da simplicidade das expressões até a paráfase do Cântico
dos Cânticos, do tom de arrolamento metódico aos vôos largos da poesia.
Para se encontrar nessa ambiguidade, o leitor deveria munir-se de um
sentimento duplo, que poderia ser chamado de sentimento do todo, ou da espiral, e
sentimento da parte, ou dos quadrados. Há uma visão do todo, que se desvenda
lentamente, custando a ganhar forma em nosso espírito. Não faz mal, porque o livro
parece feito para ser lido também nas suas partes. O sentimento da espiral leva a
buscar a concatenação e o contraponto dos fios, ao longo do tempo. Mas o sentimento
dos quadrados leva a tomar cada parte como um todo, bastante a si mesma e fora do
tempo, capaz de produzir um impacto completo de leitura. Daí o caráter poético e
geométrico do livro, que é uno e múltiplo, que carreia elementos narrativos do fundo
dos séculos, mas também se passa nalguns instantes, num quarto fechado, sobre um
tapete que se perde a cada momento no rumo do fantástico.
Avalovara representa na literatura brasileira atual um momento de decisiva
modernidade, porque o Autor (como diz a certa altura) exerce “uma vigilância
constante sobre o seu romance, integrando-o num rigor só outorgado, via de regra, a
algumas formas poéticas”.
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ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES
No espaço ainda obscuro das ala, nesta espécie de limbo ou de hora noturna
formada pelas cortinas grossas, vejo apenas o halo do rosto que as órbitas ardentes
parecem iluminar – ou talvez os meus olhos: amo-a – e os reflexos da cabeleira forte,
opulenta, ouro e aço. Um relógio na sala e o rumor dos veículos. Vem do Tempo ou
dos móvies o vago odor empoeirado que flutua? Ela junto à porta, calada. Os
aerólitos, apagados em sua peregrinação, brilham ao trespassarem o ar da Terra.
Assim, aos poucos, perdemos, ela e eu, a opacidade. Emerge da sombra a sua fronte –
clara, estreita e sombria.
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A ESPIRAL E O QUADRADO
Surge onde, realmente – vindos, como todos e tudo, do princípio das curvas -,
esses dois personagens ainda larvares e contudo já trazendo, não se sabe se na voz, se
no silêncio ou nos rostos apenas adivinhados, o sinal do que são e do que lhes
incumbe? A porta junto à qual se contemplam ou avaliam, face a face, rodeados de
sons, cheiro de pó e obscuridade, é limiar de quê?
Ingressam ambos na sala e talvez, ao mesmo tempo, no espaço mais amplo,
conquanto igualmente limitado, do texto que os desvenda e cria.
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ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES
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A ESPIRAL E O QUADRADO
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ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES
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A ESPIRAL E O QUADRADO
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A ESPIRAL E O QUADRADO
O 1
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA
Abraça-me este homem (para mim se dirige há tanto tempo que não mais se
recorda desde quando), uma serra mecânica corta tábuas de pinho, vai e vem no
relógio e o pêndulo em forma de sistro, um vento morno move as dálias sobre a mesa,
sobe da avenida um rumor confuso de veículos. Articulado na ausência e por mim
mesma descrito, de maneira caótica, incompleta e até certo ponto enigmática, nos dias
febris e de número impreciso em que minha boca parece saber mais do que sei, o
nosso encontro alcança agora a plenitude e o final. Abel!
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ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES
Vamos por ruas que não conhecemos, ʘ e eu, interrogando o céu límpido,
ecaminando a luz do Sol no chão e atentos a todas as mudanças no ar. Vestido de
verão, cabelos soltos, sandálias enfeitadas com falsas gemas roxas. Não sei como,
nossas mãos se encontram, estamos de mãos dadas, ela aperta-me os dedos e mostra o
rastro no céu do primeiro foguete Nike-Tomahawk. São exatamente dez horas da
manhã. Rápido encontro sob as árvores, ao cair da noite, junto á estátua de Dante
Alighieri. ʘ dá-me o braço. Contornamos lentamente os fundos da Biblioteca
Municipal, protegidos pelas ramagens que diluem e fragmentam a luz das lâmpadas.
Nossos pés tornam-se pesados, tardos – e nós nos abraçamos. Sua boca, sempre um
pouco aberta, abre-se mais e ela morde-me a língua. Motores e buzinas, vozes
confusas, passos, silvos estridentes dos guardas de trânsito. Na sua garganta, nasce e
repete-se um apelo inarticulado, nasce e repete-se (a palavra, talvez, que devo
encontrar?), repete-se, ecoa entre as clavículas, grito sufocado (não, não é ainda a
palavra, a frase, o enunciado), nos sons sem forma e lacerantes eu reconheço meu
nome. O enterro atravessa a cidade de São Paulo ao sol do meio-dia, furando com
dificuldade os pontos de congestionamento. Vai para o túmulo o corpo negro e gasto
de Natividade. Não nos movemos e mesmo imóveis range a cama, dormem os
homens do parque nas barracas na bilheteria, nos bancos do carrossel, as ondas
morrem na areia noturna e o ruído que fazem mal se ouve pela janela cerrada.
ʘ acelera o carro ainda úmido da neblina noturna, dá a volta pela praça Roosevelt
assustando os pombos, os sinos da Consolação vibram solenes na bruma da manhã e
ela ri. O calçamento lavado cheira a peixe, o bagaço de laranjas. A câmara ultravioleta
motada por Edwind D. Aldrin no exterior da cápsula especial e voltada para o campos
de estrelas Sírio e Veoloum busca informações sobre a idade do Universo. Números e
nomes, nesses campos, florescem. Percorremos lentamente as longas ruas desertas de
Ubatuba. Paredes encardidas das casas, com platibandas e decorações de massa,
jardins com pérgulas meio destruídas, calçadas gastas mato nascendo nas telhas e
beirais. Os eventos são enigmáticos e quase nunca se apresentam íntegros. Um texto
que cem bocas pronunciam, cada boca profere três palavras, quarto, uma, cada boca
ignora as palavras que emitem as outras bocas, ignoram inclusive onde as outras
bocas falam, quantas são e se existem. Pode uma boca falar e não sabe o quê. Nós sob
o lençol na escuridão do quarto, estendidos, de mãos dadas, rígidos e mudos, nus. A
cegueira dissipando-se e uma planta medrando no centro do meu corpo, acre raiz,
caule vermelho, folhas ásperas, rugosas, planta de chamas, urtiga.
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HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA
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ROOS E AS CIDADES
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ROOS E AS CIDADES
Com que mal fundadas esperanças encaro esta viagem que eu e Roos,
Anneliese Roos, devemos fazer juntos! Os outros passageiros, na cabina, lêem jornais,
Ngô Dinh Diem na Casa Branca, jardim zoológico holandês vai adquirir mil
crocodilos, foto de Churchill, olho os montes de feno espalhados na planura verde,
iluminada pelo sol ainda tíbio de maio. Sob o signo de Roos, cujo símbolo parece ser
o círculo, a volta, o progresso ilusório, posso, ao invés de seguir rumo a Lausanne,
estar retornando à fria plataforma descoberta de gare de Lyon. Se Roos e tu, Abel, de
mãos dadas, girásseis entre as gavelas de feno! Teu coração talvez se aquietasse e
talvez entrevisses o que procuras em vão.
Engulo com uma bebida podre a sua ausência, a certeza de que vai no mesmo
trem, fazendo, afastada de mim, não sei em que vagão, esta viagem sem significado
aparente. Levantar-me-ei, irei ao seu encontro afinal. Dirá, com o ar de censura e sem
rigor: “Você prometeu não procurar-me”. Perguntarei: “Que aconteceu? Porque eu
não devia vir?”.
O 3
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA
Meu marido, inclinando-se, olha-me no fundo das pupilas, com atenção, volta
brutalmente meu rosto para a lâmpada. Exclama, trêmulo: “Você tem quatro olhos,
uns por dentro dos outros. Que olhos são esses? Como não os vi nunca?”. Cerro as
minhas pálpebras, as pálpebras infantis: contemplo-o apenas com os olhos adultos.
Apaga a lâmpada que pende do estuque áspero e deita-se. O mar percute nos lajedos.
Não lhe falarei – agora, nunca – dos meus dois nascimentos, dos meus dois corpos. À
luz da lamparina continuam visíveis – e distantes – as paredes, os três espelhos ovais
do psichê, a grinalda no cabide alto.
Vem, Abel. Penetra-me e acrescenta-me. Obsedam-me as esponjas, seres de
vida estreita, sempre a trocarem de sexo, ora expelindo óvulos, ora fecundando-os,
obsedam-me as esponjas, há quinhetos milhões de anos já existiam, hesitavam entre
um sexo e outro, é tudo o que faziam e fazem, assim continuam, essa conformação
imota me apavora.
Não viverei sequer mil anos, minha vida é rápida, risco no tempo, tal como um
peixe salta um dia acima da vastidão do mar e vê o sol e um arquipélago onde se
movem cabras entre as rochas, assim eu salto da eternidade, como todos, eis me no ar,
vejo o mundo dos homens, logo voltarei aos abismos marinhos. Este breve salto, esta
aspiração ao ato de voar é tudo que me foi concedido para ir da grafita ao grafito para
consumar o que os espongiários, em meio bilhão de anos, nem se quer esboçam
limitando-se a passar, continuamente, de um sexo a outro, de um sexo a outro. Vens?
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ʘ E ABEL: ENCONTROS,
PERCURSOS, REVELAÇÕES
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A 3
ROOS E AS CIDADES
Deixo Roos na esquina tentando apanhar um táxi e corro para o hotel; subo
voando a escada; apanho minha bagagem. Quando volto, ela está dentro do carro
frente ao largo toldo vermelho do Dupontpamasse e acena-me.
— Estação do Norte. Depressa.
Homens e mulheres sob as luzes dos restaurantes e bares (La Consigne,
Bretagne, Paris-Rennes), lugares onde me vejo em outras noites ante copos de vinho
ou cafés sorvidos devagar. Roos enxuga- me a testa com um lenço de gaze, bordado,
o odor de violetas que a envolve no começo da tarde revive dentro do táxi, dissipa-o o
vento noturno. Enfim um encontro feliz, horas tão alegres e harmoniosas que por
pouco não esqueço a viagem programada. Se, quando chegarmos à estação, o trem
houver partido? Londres é apenas uma cidade e em Anneliese Roos subsistem tantas!
A seqüência sonhada e inviável: Roos subindo comigo, de volta, as escadas do Hotel
Ste. Marie, sob o olhar resignado do porteiro, ajudando-me a repor nos lugares roupa
e livros, transformando com a sua presença o pequeno quarto onde o sol da manhã
atravessa a cortina refletindo-se nos vidros fronteiros.
A mão tépida — condescendência nova — não foge ao meu contato. Os dedos
quase sempre esquivos pressionam agora os meus e eu descubro, na sua voz,
entonações ainda não percebidas, algo de frágil, uma espécie de desordem.
Abro a porta do táxi frente à ampla marquise da estação do Norte. Nós em meio à
multidão, rápidos, sempre de mãos dadas.
Esvoaça em tomo dos seus ombros o lenço oferecido por mim: um grifo cercado de
borboletas.
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A ESPIRAL E O QUADRADO
Não ignora Loreius que a palavra central da frase a ser descoberta — e que
servirá de suporte às outras quatro — deverá também, para desempenhar sua função,
ser lida indiferentemente em ambos os sentidos. Repassa, assim, nos banhos, nos
sonhos, só, em companhia, durante as representações teatrais ou ao longo de seus
habituais passeios às vertentes suaves do vulcão, todos os termos palíndromos de que
pode lembrar-se, acabando por, dentre todos, optar pelo que mais fascinante lhe
parece. Escolhe a palavra TENET, não apenas por ser um verbo indicativo de posse, de
domínio, fator de alta importância para ele, um escravo, como por subentender (tenet:
"conduz", "sustém"; mas quem conduz, quem sustém?) a existência de um terceiro,
um agente, alguém que age, desconhecendo-se porém a sua identidade e o que faz ao
certo. Também pesa em sua escolha a circunstância de que, escrevendo a palavra
duas vezes, em cruz, de maneira que o N sirva de ponto de intersecção, e eliminando
em seguida a sílaba pousada — ou plantada, ou cravada — sobre a palavra
horizontalmente escrita, evoque, a disposição das letras restantes, ampliado, o
desenho do T, início e fim do vocábulo.
Esta curiosidade não teria, para Loreius, maior importância se a cruz, a cruz em
T, não fosse o instrumento com que se supliciam os escravos fugitivos. No dialeto
dos seus pais, originários de Lâmpsaco, na Frigia, net, partícula que resta da palavra
tenet uma vez eliminada a sílaba inicial, significa "não mais", com o que entrevê o
imaginoso servo de Ubonius, nesse jogo com o TENET, uma espécie de logogrifo,
acessível apenas à sua compreensão de escravo. Assim se traduz o seu entendimento
da charada: "Loreius, caso descubra o que ambiciona o senhor, conduzirá livremente
a sua existência e não mais será crucificado se tentar fugir".
Estabelecida a preliminar do problema, resta ainda encontra quatro palavras, de
cinco letras cada e cuja letra central será inevitavelmente um E ou um T. Esta
limitação, por mais cerceadora que pareça, facilita a tarefa proposta. Loreius tem um
caminho. Com esta cruz central, formada pelo verbo TENET e que tão claramente
lembra os pontos cardeais, já não está perdido nos oceanos turvos, sem margens, das
palavras.
Chega assim, de experimento em experimento, à sua frase em ângulo, vista entre
espelhos invisíveis que ao mesmo tempo a cortam e a completam — e que, gravada
em pedra, reproduzida em pergaminhos, se difundirá pelo mundo, intrigando os que
com ela se defrontam e que inutilmente pensam em desmontá-la, alterá-la, subtrair-
lhe uma só letra, pois a frase nos fita como um olho, inviolável, circular na sua
quadradura, tão perfeita que tocá-la é ferir uma pupila a golpes de estilete.
SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. O sentido exato da expressão, tão concisa,
perder-se-á com o tempo, tornando-a ambígua. Aos contemporâneos de Loreius,
porém, a sentença é de uma grande clareza e o seu único mistério consiste numa
duplicidade de sentido. Diz-se: O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos.
E também se entende: O Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita. Esta
última significação, portanto, atende também aos anseios místicos de Ubonius. Sobre
um campo instável, o mundo, reina uma vontade imutável.
A 4
ROOS E AS CIDADES
O ritmo da vida e dos sinos de Eltville (aí nasce Anneliese Roos e aí vivem os
seus) repercute em tudo que faz: no andar, nos gestos, no falar. A língua de Racine,
que utiliza de um modo literário, digno e até elaborado, com uma pronúncia na qual a
exatidão constituiria a única falha, adquire, interposta entre idiomas diferentes — os
idiomas que cada um de nós traz do país de origem e que o outro não fala —, um
sentido mágico e benévolo: nós, sem ela, dois mudos. As vias que nos abre, contudo,
são limitadoras e mais para mim do que para Roos: raras vezes, e talvez nunca,
expresso com exatidão o que me esforço por dizer-lhe.
Assim, não obstante o meu fervor, nossas conversações, flutuando numa órbita
até certo ponto neutra, alheia igualmente à atmosfera da pequena cidade alemã onde
nasce Anneliese Roos e à parte do Nordeste que – sempre sem êxito – tento
descrever-lhe, ilustram, para meu desespero, as limitações da linguagem e mais ainda
as do escritor, egresso, com freqüência, de territórios pouco familiares.
Quanto, afastado, segundo a visão ordinária do tempo, desta aventura dúbia,
empreender falar de Roos, estarei repetindo, em certa medida, os nossos diálogos
insuficientes. Darei sem esforço os traços próprio de Roos que surgem em outras
mulheres: o sorriso fácil e a tendência a assumir sem transição uma atitude pensativa.
(Aflige-a alguma lembrança pesada e indesejável.) Poderei, entretanto, descrever as
cidades que flutuam no seu corpo como refletidas em mil pequenos olhos
transparentes? Como dizer que penetro nesses olhos – olhos ou dimensões – e
constato que as cidades, aí, são ao mesmo tempo reflexos de cidades reais e também
cidades reais? Inumeráveis, integras, eis as cidades de Roos, erigidas nos ombros, nos
joelhos, no rosto. Conheço, invasor, as suas ruas seus edifícios desertos, seus veículos
vazios, suas árvores, pássaros, insetos, flores e animais (nenhum ser humano), e os
rios sob pontes frágeis ou magnificentes. Haia, Roma, Estraburgo, Reims, Granada,
Hamburgo. Sim falar de tudo isso será refazer em outra direção com idêntico
malogro, os meus limitados diálogos com Roos.
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Vi? Vejo: o tempo e o tempo, as duas faces. Tempos. Vejo e afli jo-me. não tenho meios
para expressar. Entretanto, mesmo sabendo ser inútil, devo tentar— um sinal —, pois ver e
nào dizer é como se não visse. Um sinal.
A afluência à praia do Cassino, onde se erguem as rampas para 7
o lançamento dos foguetes Nike-Tomahawk, Nike-Apache, Nike- Hadac e Nike-
Javelin, esvazia as ruas e as praças de Rio Grande. O rosto de ʘ, alegre e talvez um
pouco insubmisso, passa pelas sombras das árvores.
— Abel! Este é o manuscrito do livro que você quer publicar? A viagem e o rio,
ensaio.
— Os iólipos nunca têm irmãos mais novos do que eles. Tornam para sempre
estéril o ventre onde são gerados.
Afago a mão de ʘ. Um enxame (de quê?) brilha agitado no seu torso. Ondula
entre nós um clamor, como se o vento trouxesse, meio apagadas, as vozes de uma
multidão reunida bem longe.
Um sinal. Sim, um sinal, sim. Como o rastejador que diz: "Aqui passou uma rês perdida
". Sabe a cor da rês? Não. Conhece a marca da rês, a ferro e fogo gravada? Não, isto o rastro
não revela. Mas ele sabe, o rastejador: "Aqui, perdida, passou uma rês".
A carne desmemoriada da negra avança sobre as unhas, finas e brilhantes na sua
juventude, apesar das tarefas brutas, retrai-se descobrindo a implantação dos oito
dentes que restam e desponta na esclerótica, incorporando-se às sombras que nos
seus olhos escurecem o mundo. Sobre o guarda-roupa vazio — a sua roupa e o par de
sapatos cabem na gaveta inferior do móvel —, numa caixa de chapéu, estão
guardadas as suas lembranças. Fotografias dos patrões, da criança que ajuda a criar e
vê crescer, folhas secas, conchas, seixos, um prisma, lápis de cor meio usados e sem
ponta, frascos de remédio, barbantes, um anel de latão, cacos de um jarro, estampas
de santos, um dobrão de prata. A escuridão que invade o mundo e o coração de
Natividade tritura essas lembranças. Ela não reconhece a negra alta, de branco, que
se curva na areia ante o mar resplandecente e apanha algumas conchas que esconde
no bolso do vestido, para não esquecer, para jamais esquecer a alegria e a beleza
dessa manhã.
O 6
Pus de lado o velocípede, que enfeitei com fitas coloridas: pendem do guidom
e enlaçam os raios das três rodas. Estou no terraço do edifício, estendida junto à
caixa-d'água. Ninguém me vê abrir a porta do apartamento, tomar o elevador, descer
no último andar, puxar escada acima o velocípede, deitar-me no cimento áspero, ao
sol. Cobre-me um céu de luminosas nuvens brancas. Uma ave, bem no alto, faz
evoluções. Voa tão longe que por vezes torna-se invisível, perdida entre as nuvens e
o azul fulgurante. Com os lábios, de leve, Abel aflora meu rosto, a penugem do meu
rosto, contorna a linha das fontes, desliza pela face, busca-me a curva do queixo, sua
respiração dobra-me os ossos, movo rápida a cabeça, mordo a sua boca. A ave
solitária cresce e cada vez perco-a menos de vista. Custo a perceber que as suas
evoluções são rigorosas. Voa com disciplina, traça uma espiral descendente, que se
reduz em direção a um vértice. Esse vértice funde-se com o ponto em que estou
deitada, vejo isto com clareza, como se a noção de cone me fosse familiar, funde- se
comigo o vértice do cone, o fundo da espiral e pela primeira vez sinto a distância
entre mim e as coisas. Ao mesmo tempo, contenho um sobressalto: aquele vôo talvez
seja o meu nome. A ave ainda está longe, posso ver que é negra, a cabeça vermelha,
mas não ouço baterem as suas asas e ainda está longe quando sinto no centro do meu
corpo, o ponto. Na cicatriz do ventre. Não é uma dor. É um ponto, sim, um ponto, o
início de um ruído, como se ali um pequeno cálice vibrasse. Fecho os olhos, cruzo as
mãos sobre o peito, ouço o rumor das asas, asas imensas, sinto deslocar-se o vento
em torno do meu corpo, voarem minha saia curta e meus cabelos, sucede-se um
silencio, eu abro os olhos, nenhuma ave me contempla ou voa, nenhum vestígio de
vento, nenhum vestígio. Duas pequenas borboletas negras, pousadas no guidom do
velocípede, abrem e fecham as asas. Começo a rir e as borboletas voam. Rolo no
cimento, rindo, duas garras me prendem pelos ombros, erguem-me, grito de terror e
logo de alegria. Minha mãe, chorando, leva-me de volta.
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ROOS E AS CIDADES
Vejo Anneliese Roos quando nos detemos ante a profusão de torres, chaminés e
lucarnas de Chambord e os passageiros dos dois ônibus, conduzidos por um único
guia, se misturam. Acenamos de longe um para o outro ante a grande escadaria e
logo nos perdemos de vista misturados com os outros visitantes. Prosseguimos
viagem, favorecidos pelo límpido domingo de abril. No Recife, o dia está nascendo e
o céu vermelho se reflete na areia das praias. Uma dúvida começa a perturbar-me:
passei, realmente, por uma aldeia de casas pequenas e velhíssimas, tetos pontudos,
com tamancos vermelhos e amarelos sobre paredes escuras — ou apenas a imaginei,
adivinhei-a, entrevi-a num rosto? Passam crianças, em trajes de primeira comunhão.
Um casal almoça no meio de um trigal ainda verde, a mulher sentada e o homem
reclinado. Aparece em meio à plantação, de braços dados, um casal de noivos, os
acompanhantes dançam, alguém toca uma rabeca cujo som não chega ao ônibus. O
casal que almoça acena para os noivos.
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A ESPIRAL E O QUADRADO
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ROOS E AS CIDADES
Assim, a sombra de um lírico grego, vertido para uma lingua que não é a de
Goethe nem a de Camões por um tradutor do século XVIII, lido por mim numa
edição de mil setecentos e tantas cheirando a fumo e a vestidos velhos, em voz alta,
junto à cisterna do chalé, enquanto soam apagados os risos da Gorda e as vozes dos
meus vários irmãos, fala pelas nossas bocas a dois milênios e meio de distância e
estabelece entre nós um liame provisório, mas não frágil.
O 7
EIS AIONA, EISAIONA. Assim como um tecido poroso absorve a umidade, vai o
meu corpo bebendo, permeável, os desenhos do tapete. Projetam-se, em minha carne
e ossos, ângulos brancos, barras, franjas fulvas, ramos, gamos rubros, coelho, flores,
pássaros, folhas de cor imprecisa. Um bosque abstrato, onde as coisas surgem,
crescem, mas não vivem: não bramam os gamos, as flores não recendem.
No fim do século, o naturalista Wilhelm Bolsche publica um livro sobre os
animais. Nele se lê que as estrelas-do-mar podem partir-se em duas; e que, com isto,
todos os seus órgãos se dividem. A terrível ferida não tarda a cicatrizar. Com o
tempo, cada metade do Asteróide cresce e toma outra vez a forma de estrela. Então
perguntam Bolsche e seus contemporâneos até quando a estrela-do-mar pensa como
uma unidade e a partir de que momento adquire a noção, rudimentar, de sua dupla
existência. Pergunta inquietante e ociosa, que a poucos interessa e a que não se pode
responder, ainda que se viva experiência idêntica.
O pequeno cálice, o som em meu umbigo, o som, o cálice vibrante continua a
soar por muitos dias. Quando afinal as vibrações esmaecem, há uma presença em
mim, uma presença. Algo semelhante a um besouro, não, a uma aranha de
movimentos lentos. Logo, não é mais uma aranha e sim um pássaro de asas curtas,
sem bico, os pés cortados, um pássaro cinzento, mais tarde um peixe quadrúpede,
aflito e inquieto, nadando com esforço em meu útero verde. Abro a janela e os olhos
do peixe se iluminam, choro e o peixe entristece, tenho sono?, adormece, corro e suas
pernas se agitam, assusto-me e ele se encolhe, alegro-me e as suas escamas res-
plandecem. Sem que eu saiba, há em mim uma cisão, de mim mesma estou nascendo,
invado-me. Já não é um peixe, mas um cão, um cão ornado de plumas, com grandes
barbatanas, que me ocupa. Tem pés e mãos. Às vezes estende a perna, com o pé fura-
me o ventre, o baço, eu me contorço de dor. Ergue o punho e me fere o coração,
atravessa-o: surgem manchas roxas no meu corpo. Lambe- me a garganta e eu
vomito. Ligo tudo isto, aturdida, à ave que desce sobre meu ventre e, muitas vezes,
muitas, sondo as nuvens. Mas a ave não volta, nunca mais, nunca, não reaparece.
0lhando-se o tapete, não se vê entre as flores e pássaros o crocodilo. Este,
dissimulado na profusão de motivos, mais facilmente pode ser descoberto no reverso,
no lado sempre oculto da trama, onde se cortam os fios e dão-se os nós. Liberto dos
hábeis artifícios que o escondem, fazendo-o a um só tempo presente e invisível, o
crocodilo (absorvido como os motivos evidentes do tapete) passeia no tronco
estendido de Abel. O gamo rubro, de pé entre os nossos corpos abraçados, olha o
mostrador do relógio como se olhasse para o Sol, cauda e patas traseiras no flanco de
Abel, a cabeça e o peito no meu flanco. O crocodilo, escurecendo o torso de Abel,
tem a boca à altura do seu sexo e pressiona-me a coxa. Morde o bico do meu peito o
coelho, morde de leve, como se mordesse um talo tenro de capim.
Sei o que são outros homens, deito-me por cólera com eles, abro as coxas de
raiva, dão-me prazer e nada arrancam de mim, dão-me prazer, o prazer que se tem
quando se mata um cão raivoso a tiros, um gozo mudo e dilacerador, mas a ti eu quero
dar-me, Abel, de um modo novo e único, dar-me com alegria, hei de franquear à tua
intromissão minhas identidades, meus sexos, meus corpos, hei de receber-te nos
âmagos de mim e de dois modos te amar, com duplo desejo, ânsia dupla, duplo
assentimento, e não serás um intruso, um inimigo — e sim o hóspede, o invocado, o
aceito, eu te receberei com todas as portas do meu corpo abertas, eu, Asteróide
cindida e unificada, eu, eu, dual, eu, una. Morde me. Basia me.
R 8
Detritos, jogados pelas maretas, batem nas paredes do pequeno cais em T, agora
pouco usado pelas canoas de pesca. Nos extremos do espesso paredão correspondente
ao traço sobre o qual incide a perpendicular da letra, duas lâmpadas, pendentes de
postes delgados e recurvos no alto (girassóis sobre hastes murchas), iluminavam à
noite as duas pedras rombas e escuras destinadas a amarrar os barcos. Uma das
lâmpadas (um dos girassóis?), a da direita, foi arrancada pelo vento que às vezes
sopra com força em Ubatuba. Este acidente atenua a simetria perfeita do cais,
brilhante sob a chuva leve. Isola-o um pouco do mundo a névoa pouco espessa que se
estende sobre a cidade, a praia e o mar cinzento.
— O pai de um iólipo, claro, pode ter filhos com outras mulheres. Isto, em geral,
nunca sucede. O iólipo é sempre o filho mais novo ou único. A mãe do iólipo nunca
volta a conceber.
Natividade ergue as mãos e diz às outras duas velhas: "Façam alguma coisa. Não
estão vendo toda essa gente no quarto? Vão buscar água e copos. Eles querem beber.
Muita sede". Quatro homens carregam o seu caixão. Quando o Sol, ao meio-dia,
escurece ʘ, e eu nos abraçamos, invasores de um firmamento ao qual somos
estranhos. Asas gigantescas cruzam a escuridão, sobe ao ar o Nike- Apache, o grande
ser alado faz zumbir os telhados, agita as árvores, levanta o pó da praça e desliza
sobre nós, com o seu canto rouco: pesadas pedras rolando num longo tubo metálico.
O Sol poente, rubro, reflete-se nas águas da praia Grande — espada vertical de
chamas que, rompida pelas ondas, logo se recompõe. ʘ, com uma touca imitando
margaridas, ri, estendendo para os lados as mãos translúcidas e ágeis, quando o mar
se quebra à altura dos seus peitos: o maio vermelho, sob o sol vermelho, empalidece.
Damo-nos as mãos e, com as águas tornando imponderáveis os nossos corpos,
corremos lado a lado, corremos vagarosos, devagar e sem peso, imitando essas
seqüências de cinema nas quais a câmara lenta, arrancando os personagens ao
compasso normal de suas vidas, assinala instantes singulares. A lâmina de fogo
fragmenta-se na superfície agitada das águas e nascem da espuma flores mais tênues
que as de ʘ. Corremos de mãos dadas, lentamente, num campo de papoulas e de
margaridas efêmeras.
Existe o Pai? Nele e em torno dele: um rumor sem silêncios, cortiço ressoante de
abelhas, a Eternidade ressoando: em torno dele e nele. Abelhas zumbem imóveis soando: em
torno dele e nele. Abelhas zumbidoras, suspensas — não se movem — em toda a extensão do
Tempo e do Mundo. Muito havendo convivido com as águas e à força de ler na superfície, diz
o pescador: "Aqui há peixe". Onde? Quantos? Não sabe e o peixe é veloz: não pára ante o
anzol e as interrogações.
Natividade, viva e morta, vendo apenas o que vemos ou julgamos ver, nós os
cheios de trevas, e rompendo com a sua visão já sensível e ligeira os limites das
limitações, ergue as mãos entrevadas à altura dos olhos e fala: "Já estou morta. Por
que minha carne ainda não secou? Não entendo. Estou cheirando a vivos".
As mãos de ʘ, bem desenhadas e de palmas largas, sublinham o que diz com
gestos rápidos. Ergue-as, por vezes, entre uma frase e outra, afasta os cabelos das
têmporas. Assim como se vê, contra o Sol, a sombra fina dos ossos na asa desplumada
de um pássaro, acredito descobrir, nas suas mãos erguidas e embebidas na
transparência da manhã, outro par de mãos, secreto.
O 8
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA
Salta o peixe das vastidões do mar, salta o peixe e este salto nem sempre ocorre
no momento propício, nem sempre advém próximo à terra, às ilhas, aos arrecifes,
nem sempre há luz nessa hora, pode o peixe encontrar um céu negro e sem ventos, ou
uma tempestade noturna sem relâmpagos, ou uma tempestade de raios e relâmpagos,
assim o salto, o instante do salto, esse rápido instante pode coincidir com a treva e o
silêncio, pode coincidir com o mundo ensolarado, enluarado, o peixe no seu salto
pode nada ver, pode ver muito, pode ser visto no seu brilho de escamas e de bar-
batanas, pode não ver visto, pode ser cego e também pode no salto, no salto, no salto,
encontrar no salto, exatamente no salto, uma nuvem de pássaros vorazes, ter os olhos
vazados no momento de ver, ser estraçalhado, convertido em nada, devorado, e o
espantoso é que esses pássaros famintos representam a única e remota possibilidade,
a única, concedida ao peixe, de prolongar o salto, de não voltar às guelras negras do
mar. Mas não serão essas aves, seus bicos de espada, uma outra espécie de mar, sem
nome de mar?
A música de Orff continua: coro dos jovens, das jovens, coro dos anciãos.
Proclamam os velhos a transitoriedade das paixões, IMMENSA STULTITIA, mas os jovens
contestam ferventes de esperança. Sem pressa, Abel me sujeita, morde meus seios
nus, toma-os entre as mãos, neles descansa o rosto, o paletó azul-marinho jogado
sobre uma poltrona, a mão esquerda (asa?) desce pelo meu flanco, um dos sapatos de
borco junto à cristaleira, sua mão alcança-me o joelho, outro sapato com o bico no
rodapé cinzento (parece um cágado que explorasse a parede), a mão domina uma
espécie de tremor, sobe entre as coxas, morna e cautelosa palma, cautelosa. "Estou
ouvindo seu coração bater. Bate como se eu ouvisse ao mesmo tempo a pancada e o
eco da pancada. Conheci dois pássaros assim. Dois canários.Um repetia o canto do
outro."
Volta-se para mim, apoiado num braço, a outra mão afagando- me a axila, volta-
se, quem sabe escutarei dentro em breve no meu corpo as vozes que só ouço pela
madrugada e que desde Inácio Gabriel têm sido neste mundo a minha companhia, a
única, tiro a sua gravata, lanço-a para um lado, começo a desabotoar sua camisa,
carros desfilam na avenida, lentos. Ouvirei aquelas vozes, o enxame de palavras que
jamais distingo e ainda assim me conforta? Faz calor nessas tardes de novembro. Meu
corpete negro, atirado longe por ele, pende de um bule de prata não polido, uma das
meias atravessada sobre os meus sapatos, não sei onde foi ter a outra, introduzo a mão
na abertura da camisa branca, sinto a sua pele, não, não a pele, antes uma força
existente sob a pele, um ímã, minhas mãos deslizam sobre o ímã e não podem
desprender-se, o coelho e o crocodilo saem lentamente do meu corpo, instalam-se no
seu, ele recomeça a falar e a sua voz vem através das lianas, das flores e animais em
que estamos ambos enredados: "Posso graduar as suas pulsações. Afasto-me de você;
elas se espaçam. Ponho as mãos na sua pele; as batidas tornam-se mais rápidas e você
respira mais depressa". Enquanto o ouço, enquanto a sua voz me envolve, enquanto
soergo-me, desato meus cabelos, movo a cabeça, movo-a, meus cabelos desenrolam-
se, frouxos, cobrem minha espádua.
— O que é isto?
— Um furo de bala.
— Que tempo faz?
— Quase dez anos.
— Quem disparou?
— Eu mesma.
Emudecemos e os dois ficamos estendidos, lado a lado, presos pelas mãos, olhando o
lustre, nascem-me flores na língua, flores de caule espinhoso, e em minha garganta há
um rebanho de ovelhas tosquiadas.
A 7
ROOS E AS CIDADES
Detém acaso a minha companheira algum poder secreto? Qual a afinidade entre
ela e a ave? Flui do seu corpo uma paz peculiar, adequada à natureza arisca dos
pássaros? Vejo-me sem governo, submetido à sua presença e seguindo-a como um
manto, uma sombra, vou em sua direção tal esse pássaro ferruginoso e é possível
tenha-me estendido Roos, sem que disto eu possa me certificar, outra mão, que não
vejo mas existe.
S 8
A ESPIRAL E O QUADRADO
O quadrado a que já nos referimos e que constitui, por assim dizer, o recinto
desta obra — a qual, sem isto, arrastada pelo galope incansável da espiral, perder-se-
ia por falta de limites —, subdivide- se em vinte e cinco: os vinte e cinco quadrados
com as vinte e cinco letras da frase que custou a vida de Loreius. Cada quadrado,
como as divisões do ano abrigam o nome de um mês, como os raios da rosa invisível
dos ventos abrigam a designação de um ponto cardeal ou intermediário, cada
quadrado, dizemos, abriga uma letra. Estas, conquanto sejam ao todo cinco vezes
cinco, longe estão de totalizar o alfabeto. Não passam de oito, sendo que o S e o P
aparecem duas vezes; e as demais — à exceção do N, que não se repete — surgem
quatro.
Tendes então a simples — embora não usual — estrutura do livro. A cada uma
das oito diferentes letras corresponde um tema, que volta periodicamente, sempre que
o giro cada vez menos amplo da espiral a ela retorna, depois de haver provocado o
aparecimento ou reaparecimento de outro, de outros. A espiral sobrevoa os vários
temas; e estes não voltam por acaso, nem por força do arbítrio ou da intuição do
autor, mas governados por um ritmo inflexível, uma pulsação rígida, imemorial,
indiferente a qualquer espécie de manejos.
Tanto a espiral como a frase que temos sob os olhos parecem tensas dessas
fusões de contrários. Existe um ponto, um centro, um N para o qual tudo converge. O
S de SATOR é o mesmo de ROTAS. No quadrado e na espiral, o Lavrador tem dois
rostos e vem em duas direções, vem das cercas do campo, cavando em rumos
opostos, sob estações simultâneas. Por último: não são todas, essas, concepções da
inquietude humana — deus, anfisbena, espiral, casal alquímico, dragão bicéfalo e
frase palíndroma — sem princípio e sem fim, ou cujo fim, se existe, coincide com
seu próprio início?
A 8
ROOS E AS CIDADES
Como escapar a este resíduo irracional que me induz a ler nas coisas, onde
tantas vezes penso decifrar (e já não leio em Roos?) representações da minha vida,
textos, grafados numa escrita esquecida e nos quais, entretanto, identifico o meu
nome? Ocorre-me, ante Roos e o pássaro fascinado, que o meu destino ou uma parte
dele — tão torto, apesar das ilusões da Gorda, quanto o de todos os meus irmãos e
irmãs, com os seus inúteis instrumentos de música — pende da cena que atento
observo: suba o pássaro à mão dessa estrangeira e estou para sempre enredado num
baraço. Sem tentar dominar-me, bato palmas, o pássaro esvoaça, foge, desfaz-se a
tensão no rosto mágico de Roos, ela se levanta e dá-me as costas.
Pouco retenho, ao longo da tarde, dos demais castelos visitados. Com o meu
gesto, desapareci — como o pássaro — dos olhas de Roos. Escreve Leonardo da
Vinci que os testículos "aumentam a audácia e a ferocidade dos bichos" e espanta-se
de que o homem cubra e esconda o pênis, "quando, na verdade, tal como se procede
com um ajudante idôneo, deveria adorná-lo e solenemente mostrá- lo". É isto o que
praticam, todas as manhãs, com Gargântua, as alegres governantas, enfeitando seu
"ramo de coral" com flores, fitas e outros arreios. Por que então não enfeito com
folhagens meu ramo de coral? Por que não exibo de uma vez a Roos e com
solenidade este ajudante idôneo? Escondo-o em todas as paradas da excursão, sem
que ela uma só vez me fale ou se volte para mim; o que faço é contemplá-la e
inquirir, calado, os seus espaços, vespas cravando o ferrão nas minhas costas, de sorte
que os salões, os pórticos, as escadarias, tudo percebo como que flutuando em sua
imagem e de mistura com a dor, com as vespas raivosas. Cruzam-se pedaços de frases
em várias línguas estranhas, cresce em mim uma espécie de pressão (introduzo num
cilindro de lata o eixo do pião japonês acionado a corda, introduzo-o com mãos
infantis e a mola escondida no cilindro, a mola, cuja ponta recurva sobressai, fisga
uma ranhura oval do pião, eu giro o cilindro e sinto a mola enroscada, pronta a
disparar, mas em vez de premir o eixo do pião e fazê- lo girar eu o aperto um pouco
— só um pouco — para sentir a força contida da mola, e agora é como se surgissem
em mim outros piões, trinta, sessenta, cem, presos em seus cilindros brilhantes, as
cordas apertadas, prontas a desprenderem-se por si) até que noite fechada, novamente
em Chambord, após esse dia febril e abundante em imagens, ouço aproximar-se um
ronco, um estrondo e me vejo envolvido pelos faróis de dezenas de motocicletas,
conduzem-nas rapazes com blusões de couro, moças nos porta-bagagens, enlaçando-
os, cruzam-se as máquinas em ziguezague, os motoristas, todos de negro, gritam uns
para os outros calcando os aceleradores, os faróis trespassam-se na noite, novos
veículos chegam, ninguém desliga o motor, o trovão vindo do ar e da terra me rodeia,
levanto os braços em meio ao turbilhão de pneus, luvas, rostos, canos de escape,
guidons e jatos ofuscantes — e brado, mãos nos ouvidos, o nome de Roos, um grito
longo, o mais longo que posso, no bojo do bramido provocado pelos setenta motores
de explosão e com tal violência que enrouqueço. Como se estivessem à espera deste
apelo, quase a um tempo só, os motores emudecem e os faróis começam a apagar- se,
quase a um tempo, e eu me vejo livre das vespas, dos seus aguilhões, mas fendido,
sem fôlego, só, rodeado de estranhos.
T 1
Bairro de Casa Forte, estrada das Ubaias. Nós, duas velhas, vivemos das pensões
todo mês recebidas na delegacia fiscal e de alguma ajuda vária, rodeadas de gatos e
canários, tocando bandolim (uma de nós, apenas) com dedos meio surdos, tudo como
determinado. A agulha, caindo de ponta, mergulha na água: o vício de costurar.
Caindo de lado, flutua e prova ser a água um corpo sólido. Não nos desvanece a
função de conducentes. A agulha, artefato perfurante, fere? Também ajuda a coser.
Hermelinda, Hermenilda. Agulhas, nesta fábula fiada pela Morte.
O 9
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA
Tomam-se providências: eu devo ser protegida. Nada sei e por isto devem
resguardar-me, resguardar minha vida. No entanto, fora, a poucos passos da porta
sempre fechada, a poucos passos das salas e dos quartos onde, manhãs e tardes,
rondando como um cão trespassado de cólicas as janelas guarnecidas com redes finas
de aço, giro e giro no meu velocípede, abre-se inúmeras vezes por dia a porta
gradeada do ascensor. Este é o lugar da queda. Aí devo precipitar-me, e não — como
estão certos — para morrer, antes para nascer. Gero-me para a queda, para isto
cresço, para esse lance amadureço enquanto os dias surgem, passam, surgem e
passam, os dias. Quem me pare outra vez? De quem sou filha, eu, na segunda vez em
que nasço? De uma palavra? Ordena alguém: "Nasce!", e então obedeço, sou nada?
Serei, em meu segundo nascimento, um ser como os outros nascido de mulher? Nado
de si mesmo? Nado no ar, do ar?
O cão com barbatanas e de mãos arredondadas está em mim, sim, está em mim,
contudo é um estranho. A luz inunda os olhos, na luz eles se banham, mas ante um
clarão muito forte se retraem, fere- os uma chama intensa e próxima. Esse corpo no
meu é intolerável, luz demais para mim, fulgor intolerável no meu corpo, no olho do
meu corpo. Invadido por ele o meu corpo se fecha, fecha-se mas dentro de si prende a
centelha, a chama, e anseia pela solidão, essa treva em que novamente encontrará a
paz. Anseio inútil. O esplendor incessante, doloroso e cada vez mais claro, só o
esqueço no sono.
Súbito, de algum ponto, voz subterrânea, a queda começa a atuar sobre mim.
Exerce sobre o meu ser sua atração, chama-me como o mundo exterior chama o
nascituro e eu não sou alheia a essa invocação. Minha inquietude agrava-se; deixo-me
cair vinte vezes por dia, do velocípede, da minha cama, da velha e rangedora cama
dos meus pais, da grande mesa redonda, subo nas cadeiras (têm o espaldar guarnecido
com um pequeno medalhão almofadado, de damasco azul-claro), faço-as oscilar, elas
tombam comigo, rastejo pelo chão, percorro as janelas e golpeio com os punhos, com
a testa, as telas de aço, olhando para baixo. Do corpo no meu corpo vem um cheiro de
laranjas maduras, mesclado com alfazema queimada e flor-de-enxofre. Apenas este
odor, sim, só ele me protege, parece resguardar-me de tudo, sinto-o tecer-se e
espessar-se em redor de mim hora após hora, um casulo que eu mesma segregasse.
Um casulo.
Estou no quarto do meu pai, quando o leque se abre dentro de mim. Não se abre
aos poucos, com a lentidão própria do mundo vegetal. Abre-se de um golpe, são asas,
os braços da criatura-em-mim abertos continuam, as mãos quase tocando meus
ombros, mas agora a revestem duas asas, estas asas revestem-na, cobrem a sua nudez,
uma espécie de manto, umerais, tectrizes e álulas são de um roxo-brilhante, as
rêmiges douradas, principalmente nas extremidades, enquanto as penas entre as zonas
dourada e roxa se alternam, umàs cor de sangue, outras azuis. Indistintamente, tanto
sobre as penas miúdas como nos remígios, cem manchas semelhantes a olhos (ou
serão olhos?) contemplam-se a si mesmas. Nada mais vejo, nada mais percebo, senão
as asas que escondo. Duram apenas segundos essas asas ornamentais e que nunca
voarão. Duram apenas segundos, ou, se maior é a sua duração, com tanta força me
atraem que os dias passam ao largo. Cerram-se os cem olhos das asas, elas se
desprendem, desfazem-se como se fossem de pó e um vento as levasse, desfazem-se e
o ser que antes circundam surge nu, corro à janela e esmurro a tela de aço, o céu está
escuro e os edifícios emitem uma fosforescência surda, fulge um raio, o estrondo e o
brilho me derrubam. Então, desaba o temporal. O Sol, envolto em nuvens, abre a
porta de Câncer.
R 9
O 10
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA
T 2
CECÍLIA ENTRE OS LEÕES
Tenho dezesseis anos: meus olhos furam sombras. Mesmo assim, mal vejo as
minhas mãos e braços, refletindo surdamente, à borda da cisterna, as parcas luzes de
Olinda. Nenhuma estrela. O farol, rítmico, revela de relance a superfície da água, os
limites das coisas, o ondular da tarrafa mal lançada por mim. Uns sessenta passos
separam-me do chalé. As luzes do alpendre e as que jorram, ambarinas, das
numerosas janelas, não descem até onde estou; o teto de zinco, que protege a cisterna
em quase toda a extensão, intercepta-as. Afluem, misturados com a respiração do mar
e o rumor — agora menos forte — de suas investidas na praia dos Milagres, sons
imprecisos de clarinete, de flauta, de viola, o pigarro com que o Tesoureiro se impõe,
vozes joviais dos meus irmãos e irmãs, doze; na cadeira de balanço, a Gorda,
instigada pelo bicho, dobra a risada. Sinto de maneira mais intensa, a intervalos, o
cheiro de umidade. Apurando o ouvido, posso distinguir, nesses segundos, dentre os
rumores vagos, algum salto de peixe. Faz calor: dezembro se aproxima. Dentro de
casa, formigas de asa giram em redor das lâmpadas, anunciando chuva.
Jogo outra vez a tarrafa, ouço o chapejar soturno dos anéis de chumbo e dos
fios encerados. O peso dos anéis não está bem calibrado, a trama fecha-se lenta e os
peixes — pouco numerosos — fogem a tempo. Assim escapa, entre as malhas da
busca, o que procuro e cuja natureza ainda desconheço. Mas cuidado, Abel. Atenção
para a rede. Seguram-na? Não há, embaixo, ganchos ou ferrolhos em que possa ter-se
emaranhado. Que, então, prende-a dentro da água escura, multiplicando por mil ou
por dez mil os seus pesos de chumbo? Sustenta-a algum espírito lodoso? Arrasta-a,
maligno, para o fundo cimentado? Verá com quem. Seguro-a com a mão esquerda e
com a outra vou abrindo rapidamente a camisa. Estes fios no fundo da cisterna, presos
nos cornos das trevas, vêm interferir, como um ruído importuno ou a vinda de
estranhos, em meu trabalho secreto, a procura cega de uma indicação (o onde, o
nome, o porquê) que aplaque em minhas veias o castigo de buscar. Enxergo mais do
que pretendo e suporto. Por que, então, não vejo o que procuro?
A 9
ROOS E AS CIDADES
S 9
A ESPIRAL E O QUADRADO
A 10
ROOS E AS CIDADES
T 3
Se passo horas na sombria umidade da cisterna e se lanço a rede até não poder
mais, não é com apanhar algum dos poucos peixes aí prisioneiros: procuro fazer, deste
ato ocioso e que executo mal, um eixo em torno de onde giram, nunca chegando a
termo, minhas indagações sem cabeça. Só, sob a cobertura — estalam as folhas de
zinco, nas noites mais quentes —, vou jogando a rede, colhendo-a e indagando.
(Onde? O quê? Por quê?) De respostas, nem sinal.
Estou sem camisa, jogo no chão os sapatos e desfaço-me das calças. Ouço,
como em outro ponto do tempo ou da memória, o vozerio e as risadas — do
Tesoureiro, da Gorda, de Leonor, de Augusto, de Mauro, de Cenira, de Cesarino, de
Isabel, de Janira, de Lucíola, de Damião, de Eurílio, de Dagoberto, de Estêvão, a
dispersão e o desacerto já instalados entre nós, sem que ninguém perceba o seu odor
nas roupas, nos hálitos e atrás das portas. A decisão de saltar, mergulhar na água
sombria e desprender a rede, empurra-me. Ordem enérgica ante a qual não ouso
refletir. Mais uma vez puxo a rede, que não cede, e enrijeço o corpo para o salto. É
quando um quem, um quê ou um ninguém me segura pelos rins e desarma o impulso
iniciado. Está mergulhando para o Nada, Abel? Hein? Em pagamento de quê? O mar
desfaz-se nas pedras. Mais uma vez a asa luminosa e leve do farol. Ajoelho-me, nu, à
borda da cisterna. Vejo-me (como quem toma um revólver, faz girar o tambor (roleta-
russa: há no tambor uma bala), volta a boca do cano para a fronte, arrepende-se e
aponta para longe, aperta o gatilho, ouve o tiro), vejo-me nas águas negras, entre os
peixes, emaranhado na rede, tentando vir à tona sem poder. Quem ajunta esse peso
aos chumbos da rede é a Morte. Penso isto e o sortilégio, se há, rompe-se — a rede se
desprende e eu recolho-a. Um peixe se debate entre as malhas. Tateando, apanho-o. O
corpo rabeando com aflição em meu punho. Atiro-o à água e me deito no cimento,
exausto, como se na verdade houvesse mergulhado, lidado com o Não, escapado.
Vozes e sons de instrumentos musicais rolam pelo declive. A flauta de Eurílio,
músico precoce, Leonor com o seu bandolim, os dedos infantis de Janira ou Isabel no
piano meio rouco. Gorda e alva, minha mãe na cadeira de balanço, as solas dos
sapatos já um pouco delgadas. Impressão de ouvir passos mortos afastando-se. Os
passos da Leve! Acaso não serei o quem, Abel? O onde? O porquê? Não é a mim que
procuras? Estendido ainda à beira da cisterna, inventando estas perguntas e
percebendo esses passos, não me acodem expressões ou idéias de terror, de gratidão,
de alívio. Volto-me de borco e um nome escorre, cuspe grosso, entre meus dentes cer-
rados: Cercírlia. Cercília? Ercília, talvez? Cecília? Nesta noite, Cecília e eu não nos
amamos ainda. Ainda desconheço-a. Conheço, entretanto, uma Ercília. Tenho nove ou
dez anos e alguém me impele na sua direção. De luto, sentada na sala, junto ao piano
e envolvida num halo pesado de abandono, ela me olha séria. "É Ercília, a viúva do
seu tio Abel. Ele morreu afogado. Lembra-se?" Beijo os dedos de Ercília, frios, com
este mesmo cheiro de cisterna, limoso e úmido. Anda por onde? Não torna a visitar-
nos, sua figura é esquecida, seu nome é esquecido. Meu tio Abel arrastado pela
correnteza. Temos o mesmo nome, ele e eu.
O 11
O seio da mulher, esfera alva e pejada, desfaz-se num sabor tépido. Penetra-
me o espesso perfume que a envolve. Vejo-a pela primeira vez e ao mesmo tempo a
reencontro. Ela não sabe que a vejo. Pálida, parece ainda mais pálida em seu
esgarçado roupão de seda negra. Negra ou escarlate? Na penumbra do quarto, tudo é
igualmente vago e nítido, familiar e estranho. Já não contemplo no meu corpo a
criatura-em-mim, já não existem escamas, plumas ou asas temporárias; pés, tronco,
mãos e rosto, inseridos nos meus, pertencem-me; tenho nos meus olhos os seus olhos,
aos meus incorporados. Vejo sabendo e vejo sem saber, vejo tendo visto e vejo sem
ter visto nunca: inauguro este dúplice olhar nunca fundido num só. Sugo, sôfrega, o
peito da mulher, ela murmura. Em minhas mãos, vejo deslizarem (réstias?, pequenas
salamandras fluidas?) enxames delicados de manchas para mim ainda indecifráveis.
Mergulho outra vez na escuridão, na fuligem. Atravesso lentamente as noites,
noites sem dias, montada num cavalo. O cavalo tem um chifre brilhante entre as
orelhas e no casco esquerdo traseiro há um ferimento, ele marcha com três patas,
soluçando, aos saltos. Nas intermináveis noites, passa de tempos em tempos uma
estrela cadente e eu vejo à luz da zelação que o animal é verde. Passamos por cidades
escuras, rios de lama negra, galgamos montes de trevas e descemos encostas ainda
mais sombrias. Uma das cidades, situadas neste caminho que não sei se é reto ou
sinuoso, cheira a frutas; todas as pessoas, fechadas nas casas, comem em silêncio, sem
nada ver, safras de laranjas, de abacaxis, de melões; dentro das casas ou nos seus
quintais há pessegueiros, pereiras, macieiras, árvores pesadas de frutos. Num dos
vales invisíveis alguém martela um ferro, não seguidamente, mas a largos espaços e
uma pancada é igual à outra. Acende-se na noite (em que noite?), extraviado, sus-
penso, sob esta neblina de quinze anos além, um anúncio luminoso, branco e
vermelho, um escudo com estrelas, imenso, sobre grandes letras. Acende-se e apaga-
se. Uma pulsação. Atravesso outra cidade — não tem perfil, não tem nome, nenhuma
é visível, nenhuma tem nome —, todas as portas batem, portas e janelas, as distantes e
as próximas, batem, já estou longe e ainda escuto-as, batem.
Sobre mim, apenas o vestido, os anéis, as pulseiras, o colar e os brincos. Abel,
os pés nus, toca nos meus, suas mãos e seu hálito desarmam-me. Em meu corpo
invadido, que governo ainda? Crocodilo e coelho correm no meu sangue, correm no
seu, passam dos seus ombros para mim, dos meus joelhos deslizam para os seus.
Dentre os motivos geométricos, dentre as negras ramagens, dentre as franjas e os
sossegados ramos, nascem cabras com chifres longos e recurvos, cabras de pêlos
brancos, no cio, cadelas com cabeça humana, leoas, todas sem vida, mas galopam e
saltam, berram as cabras, urram as leoas, as cachorras ladram, enfio a língua na boca
de Abel, enfio a língua entre as flores que brotam em sua boca, duas cabras famintas
sobem dos meus pés, sobem à minha língua, devoram as suas flores, ele diz que me
ama.
Equilibro-me, sustenho-me nos pés, insegura — e dou um passo. Que
estranho, o peso do meu corpo sobre o chão! São muitos pesos, pendem e oscilam —
dos braços, da cabeça, das pernas — em busca de um centro. Passo ante o espelho,
vejo um rosto infantil. Meu? Em certas circunstâncias (à grande maioria das pessoas é
vedada essa oportunidade), em certas circunstâncias, deitados, sob iluminação
apropriada, nem excessiva nem pouca, entrefechadas as pálpebras, pode-se ver a
membrana ante a pupila. Dispostas de maneira circular e com as extremidades
voltadas para o centro da íris, há cinco ou seis formas (impossível contá-las, devido à
rapidez com que se agitam) semelhantes a folhas, folhas ovadas, cujos pecíolos
ficassem ocultos. Dessas folhas sem cor e sem nervuras, só as bordas, constituídas por
uma espécie de luminosidade metálica, podem ser vistas; e movem-se, velozes, não
cessam de mover-se, como se uma força tentasse desfazê-las e toda a existência
dessas formas consistisse num embate para manterem íntegras a aparência de folhas e
a disposição circular. Vê-las, fascina, espanta e aterroriza: tem-se a impressão de que
o olho é habitado por serpentes. Vendo meu rosto ao espelho, idêntica é a minha
reação. Distingo uma ameaça tentando desfazer todos os meus traços. Meu rosto, a
cada instante, voltando a ser o que é, vários rostos batendo-se, rostos enfurecidos,
dotados de esporões, de garras, de dentes afiados, batendo-se entre si como as várias
cabeças de uma hidra. Minhas tranças, crescidas, presas com fitas de veludo azul,
tocam-me os ombros. Mais próxima do espelho, examino a risca ao longo da cabeça:
entre os cabelos, penteados em tranças, nasce agora uma penugem clara, cabelos
quase de recém-nascido, cabelos também meus. da outra cabeça, minha também,
incrustada na minha. Duas? Uma?
Ainda muda, evoco dia e noite o meu nome, intuído e buscado durante tanto
tempo. Pronuncio-o em mim, faço-o correr em mim, rolar em mim. Pedra cheia de
arestas, arredonda-se, seixo. Logo se dilui, dilui-se em mim, anilina, um matiz.
Descubro a palavra boca; eu, o pronome; o verbo ser, uma partícula, em. Dois termos
permanecem magicamente iluminados em meu novo mundo de limites, impossível
que é elucidar se designam uma fração do mundo ou o mundo inteiro: aqui; lugar.
Aposso-me da aditiva e, com seu dúplice poder de unir e separar, e então me divirto
em encontrar e confrontar noções afins: ir e voar, veia e impulso, cão e látego, centro
e espera, eu e vós, eu e eu. Meus dentes caem. Nascem outros, menores e mais frágeis
que os anteriores. Conquanto ainda não fale, vou armando em mim palavras que ainda
não existem. Tenderna é essa luz que evoca a porcelana e que vemos no quarto antes
do amanhecer. Lanstoso: o ar da pessoa que deseja agredir-nos e não o faz por temor.
Emarame-. ato de ir e vir ao mesmo tempo; e também o duplo, o indissolúvel
movimento, ante o espelho, de um corpo refletido em seu cristal, desde que ambos —
corpo e reflexos — sejam contemplados por alguém.
R 10
Dos lóbulos corados das orelhas, rentes à cabeça e talvez um pouco largas na
curva superior, pendem brincos de forma variada, que tira e repõe. Os cabelos, quase
sempre, avançam sobre o rosto. Joga-os para trás com as mãos translúcidas e um
erguer de cabeça que realça a linha saliente dos seios.
— Muitas vezes mais dolorosa que os partos comuns, por mais difíceis que
sejam, a expulsão do Iólipo. Nada, entretanto, faz a gestante supor que traz em si uma
variedade tão rara da espécie humana. Sabe-se que o número de iólipos, em cada
geração, não chega a seis no mundo.
Quase ao pé do cais em T, planta-se, sentada à esquerda, uma velha de
aparência rude; o chapéu de feltro desabado cobre parte do seu rosto; tendo dobrado
as pernas, abriga-as com a saia ruça — roxa ou negra — e tão encardida quanto a
blusa vermelha. Com gestos mecânicos, substitui seguidamente as iscas do anzol; não
consegue fisgar um único peixe. Ainda desse lado, mas na asa do T, perfila-se um
segundo pescador, munido de luvas e agasalho de lã. No extremo direito do cais, sob
o poste cuja lâmpada o vento com certeza arrancou, o pobre homem mal abrigado
num plástico amarelo — com tão pouca sorte quanto a velha — sustém resig-
nadamente a sua cana. Entre ele e o homem de luvas, mais perto dele que do outro,
vemos o quarto figurante do quadro, de costas para nós, os pés pendendo sobre as
águas: tira e repõe a intervalos o chapéu, um chapéu incomum, azul e cónico.
Rege esses pescadores e os demais elementos da cena — as silhuetas delgadas
dos postes a um lado e outro do T, as pedras de atracação fincadas junto dos postes —
-, rege tudo isto um ritmo preciso e claro, uma simetria que, sabemos, o acaso nunca
oferece e que os leves desequilíbrios existentes fazem ainda mais tensa.
Eu e ʘ, aturdidos ante a coerência do que vemos, esperamos definir-se o
evento já em elaboração, peça a ser executada e anunciada na disposição caprichosa
desses elementos, sua introdução ou abertura. Aqui, através dos fios e dos nós sempre
emaranhados das coisas, aqui, fragmentos dispersos associam-se e entre si estabele-
cem um nexo que evoca a seu modo as narrativas. As narrativas e os eclipses. Um
barco a motor passa à distância com uma figura de pé na proa, faz um desvio junto
aos dois pesqueiros ancorados e avança, o compasso abafado do motor espraiando-se
no silêncio da tarde e parecendo separar com um traço a cena do cais, estática, das que
devem seguir-se.
Natividade ante a sua almofada de rendeira, quatro bilros nas mãos. A pia,
limpa, cheira a potassa e as panelas brilham sobre os azulejos das paredes. Natividade
prefere fabricar nessa hora da tarde suas rendas, quando a quietude do apartamento
sucede-se às tarefas matinais e a posição do Sol torna a copa mais clara, favorecendo
os seus olhos que começam a ver menos. Vai mudando sobre o risco os alfinetes e
cruza em torno deles as linhas, os bilros de madeira estalando um contra outro,
sempre quatro a quatro, um par na mão esquerda e um par na direita, abandona-os,
toma outros dois pares entre muitos da almofada, trança-os. O rumor seco e breve das
cabeças dos bilros, polidas pelo uso de anos, ressoa alegremente no silêncio.
Natividade acha-o parecido com o dos corrupios ao vento e com o barulho de um fio
d'água entre seixos. Põe-se a cantar em voz baixa. O menino em quem concentra toda
a sua carga de amor — e que às vezes assusta-a com os seus olhos ao mesmo tempo
rapaces e neutros — entreabre a porta, teso e sem elegância, duro, o uniforme cinza
com vermelhos no quepe: "Mamãe está dormindo no sofá. Não cante". Ela interrompe
a canção e a porta se fecha sem ruído. Estalam menos rápidos os bilros.
Dois novos personagens se aproximam do cais, um de roupa escura, com botas
de borracha e gordo; outro de calção azul e camiseta branca, abrigado sob um velho
guarda-chuva. Vêm devagar, conversando, as varas de pesca na mão. Hesitam um
pouco sobre a plataforma, olhando em torno, sem que nenhum dos outros se volte
para eles. Caberá ao Congresso decidir se as eleições de 1970 serão diretas para
governadores e presidente da República. O cenário em que ingressam já tem as suas
leis: há, entre objetos e homens, um equilíbrio tão preciso e claro, que a indecisão de
ambos, creio, dissimula uma recusa, resistem a ocupar, no cais, os lugares para os
quais um ritmo subjugante impele-os. Afinal, o de botas apanha dois caixotes, avança
resoluto e os dispõe lado a lado, mais ou menos no centro do cenário, entre o tipo de
luvas e o de chapéu cónico. A simetria, evidente, também aqui não é perfeita. Há,
entre o burguês à esquerda e o primeiro caixote (onde se senta o homem de guarda-
chuva), intervalo um pouco maior que o observável entre o caixote da direita (senta-se
nele o de botas) e o obscuro figurante que, mais uma vez, tira e repõe o estranho
chapéu azul, sem voltar-se para os lados. Move ʘ a cabeça e olha-me, as narinas
acesas: sua mão forte aperta-me a coxa. O duplo baque dos caixotes, soturno, acaba
de demarcar, assim como a passagem, ao largo, do barco a motor, mais uma unidade
da composição que, à semelhança de um texto, ante nós se organiza e da qual somos
parte (pois não seria incompleta e, em certo sentido, perdida, inútil, se aqui não
houvesse alguma consciência que, contemplando-a, apreendesse o sentido que contém
— ou, ao menos, simula conter — e a seu modo o traduzisse?). A mancha amarela do
plástico afia ante o mar fosco.
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T 4
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ROOS E ÁS CIDADES
S 10
A ESPIRAL E O QUADRADO
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ROOS E AS CIDADES
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Ainda não falo. Sem falar, desagrego as coisas, desmonto-as, separo umas das
outras, reorganizo-as em mim. Removo, do edifício, o nosso apartamento; o edifício
(chama-se Martinelli), removo-o do quarteirão; o quarteirão, isolo-o da cidade.
Instauro brechas e vãos. O mundo é uma constelação de espadas regirantes e todas as
manhãs, esta pergunta me assalta: "Como sobreviver?".
Meu pai é alto, claro e fala pouco, através de uma corneta de chifre, que traz
pendurada ao pescoço por uma corrente prateada. Introduz a corneta na boca e a sua
voz parece vir de longe, desfigurada e sem inflexões. Impossível ler o que dizem seus
olhos: fita-me, por vezes, longamente, como se eu não estivesse à sua frente, como se
ele contemplasse uma recordação. Sempre de boina. A boina, posta de banda, ajuda a
manter no lugar uma orelha postiça, rósea, de borracha. Seu estúdio, que também
serve de quarto de dormir, tem as paredes cobertas com fotografias de artistas líricos
dos anos 20 ou 30, quase todas com dedicatórias. Sobre um piano que jamais se abre,
vê-se também seu retrato, os cabelos ondulados, o queixo voluntarioso, os olhos fitos
um pouco à direita da objetiva, cheios de ardor e confiança, presos a realidades
ilusórias, o cândido e desassombrado olhar de quem não percebe o giro das espadas.
O rosto do tempo em que ensina piano e minha mãe é ainda sua aluna. Aí está ele, em
algum ponto do tempo, corrigindo, talvez com excessiva complacência, talvez com
excessivo rigor, a posição dos dedos dessa adolescente viçosa e arrebatada, com as
asas do nariz sempre vibrando e que o olha com insondáveis desígnios enquanto o
ouve falar de Stefania Doratti, de Del Nigro, das Corday, de Norma Bergantini
(seriam estes os nomes?), personagens brilhantes, trágicas e voluntariosas como as
das óperas, e com as quais ele priva, cujos perfumes sente e de quem possui
fotografias com dedicatórias. Participa de orquestras, move-se feliz em meio a uma
população fictícia de sopranos, baixos, tenores, contraltos, barítonos, maestros,
empresários, quase sempre estrangeiros, que se cruzam sob as bambolinas do
Municipal, sorriem para ele, recebem o pagamento e os aplausos com o mesmo fátuo
desdém, com uma espécie de untuoso desvanecimento rabiscam o nome nas
fotografias e vão-se. Não vê as espadas.
Um dia, de olhos baixos, no momento em que sente na sua a mão do professor,
corrigindo-a, minha mãe, sem voltar-se, pousa sobre os dedos do homem sua face
febril. Com esse gesto, traz para a família horas de desassossego e precipita-se,
podendo escolher dez outros caminhos, pois oportunidades não lhe faltam, precipita-
se em um labirinto de reflexos, onde, sempre na esperança de dias favoráveis, vai
morando em lugares cada vez piores e abrindo mão de tudo, nesse mundo de sombras,
de sonoros nomes fugidios. O que destrói fisicamente meu pai, além do tempo? Um
acidente? Alguma enfermidade? Animais famintos, em sonhos, roem a sua voz, a sua
carne? Não sei. O começo da destruição pode ser medido pelas datas das últimas
dedicatórias. Sem a orelha esquerda e tendo de falar por um chifre com aplicações de
prata, ele perde os alunos e não é mais aceito nas orquestras. Reduz-se a afinar pianos
(o único ouvido escuta por dois) e faz cobranças para uma casa bancária.
Minha mãe, para ver o efeito que causam os seus chapéus ou para transportar-
se por um gesto mágico às festas e solenidades em que serão usados, sempre tem à
cabeça, em casa, os que acaba de fazer ou os que está criando; e neles,
sucessivamente, experimenta um sem-número de fitas, flores de papel, miçangas,
plumas e alfinetes com pérolas ou vidros coloridos, antes de decidir-se. Frieza e
orgulho, mais que sofrimento, também um pouco de tédio, lê-se nos seus olhos. Os
chapéus, dentre outras coisas, servem de pretexto para que se esquive das obrigações
menos interessantes. Nossa alimentação reduz-se a ovos e conservas. O pó acumula-
se sobre os espelhos, os vidros das janelas e as olheiras das prima-donas.
As chaves, agora, permanecem nas portas e as telas de aço apodrecem nos
caixilhos. Da janela, vejo um prédio sendo construído. São três ou quatro da tarde e
um caminhão apanha madeira já utilizada. Um velho, as calças frouxas presas com
barbante, presta ajuda aos outros operários. Apanha com esforço uma tábua partida,
um sarrafo curto, vem arrastando os pés, joga a carga na carroceria e olha para os
lados. Tira o boné, passa na calva o punho da camisa. Um rumor na janela: pardais
furam com o bico a tela de arame, a tela fragmenta-se. Faço pressão com a unha, os
fios cedem, partem-se. Afasto-me, assustada. Posso mover-me à vontade no edifício,
nenhuma cautela existe mais em relação a mim. Exploro, solitária, no elevador ou nas
escadas, os longos corredores onde pendem do estuque globos de luz jaspeados, uns
sem lâmpadas e outros com lâmpadas de poucas velas. Do mesmo modo que se
empreende conhecer um bairro, eu empreendo a conquista desse pequeno mundo
vertical, quase sempre mal iluminado, de corredores, portas, salas, degraus, números,
esse mundo sem árvores, sem vento, sem horizonte, sem firmamento, um mundo
ecoante, repetitivo, onde cada andar, com alterações insignificantes, se superpõe ao
seu próprio reflexo ou imagem. Mas é um mundo. Encontro advogados nos seus
corredores, oficiais de justiça, prostitutas, famílias, no sexto andar há uma escola de
danças, um bilhar no décimo, um sindicato no décimo segundo, meu pai, aos
domingos, leva-me a passeio pela rua 15 de Novembro e tudo que vemos são fachadas
de mármore, placas de bronze, silenciosos pórticos de ferro, vai à praça da Sé, pessoas
tomam bondes para lugares que apenas imagino, numa cadeira de rodas, vendendo
loteria, aos gritos, encontro um aleijado que mora no edifício e afaga-me a coxa
quando vamos no mesmo elevador, uma velha, na sobreloja, suborna-me com
biscoitos para que eu a deixe untar com margarina meus dedos e o seu gato lamba a
margarina, faz-me rir a aspereza da pequena língua em minha pele, em algum ponto
há uma enfermaria, eterno odor de éter, consultórios de dentista (fenol), um
restaurante vegetariano, o hóspede do 128 discute sempre com as vozes do rádio, uma
adolescente é encontrada violada e morta no poço dum elevador e nem assim sou
impedida de abrir a porta quando quero e circular sem destino pelo Martinelli.
Contudo, e isto me intriga, ninguém sabe que sou outra desde a queda naquele mesmo
poço, ou que o mundo desde então é outro para mim, ninguém, e mesmo assim
nenhuma chave é retirada das fechaduras, as telas de aço originariamente destinadas a
impedir que me precipite das janelas se desfazem, não resistem sequer ao bico de um
pardal e eu vago sozinha, livremente, nesses corredores onde há um estuprador. Por
que não continuam a proteger-me?
Meu pai, numa poltrona da sala, as pernas estendidas, cola recortes num
álbum. Enredada em flores artificiais, fitas coloridas e chapéus femininos, minha mãe
ocupa outra poltrona. Olho para um e para outra. É domingo, a tarde está escura,
ameaça chover, decerto não vamos à praça da Sé. Levanto-me, olhando com suspeita
para os dois, abro a porta que dá acesso aos corredores.
R 11
Vemos, então (na minha coxa a pressão dos seus dedos agitados), vemos,
contra o mar nevoento e perfilados no sentido da leitura, o poste com a lâmpada
apagada e a pedra romba não ocupada; de pé, o pescador enluvado; mais ou menos no
centro, o do guarda-chuva velho e o de botas, nos caixotes; o de chapéu azul, sentado
no chão; sobre a pedra da direita, o envolvido em plástico amarelo; o poste sem
lâmpada, termo final da seqüência.
A cor dos braços de ʘ não é idêntica à do rosto e nem mesmo à do seu colo.
Mais claros e tocados de uma leve penugem, visível apenas sob iluminação propícia
(anuncia, eriçando-se, as suas emoções), absorvem, estejam ou não expostos à alvura
solar, a luz reinante. Esbate-se nos pulsos, pálido, o azul das veias.
Cresce a irritação da velha à medida que substitui as iscas no anzol sempre sem peixe.
Distanciada dos postes, das pedras de atracação e dos outros pescadores, o seu
isolamento é enganoso. Motivo dissonante e solitário, concentra na sua figura terrosa
as linhas de força advindas das pessoas e das coisas, que de outro modo ficariam
soltas. Esta convergência integra-a — eixo de leque — na simetria do todo e torna-a
indispensável.
Imaginai uma viagem fluvial. O barqueiro, da nascente ao estuário, segue o
fluxo das águas. Esse percurso começa? Termina? O barqueiro acha que assim é e
assim vê: e na verdade há uma face do percurso onde o começo e o fim existem, onde
existe uma leitura ou execução da viagem. Há uma face da viagem onde passado e
futuro são reais; e outra, não menos real e mais esquiva, onde a viagem, o barco, o
barqueiro, o rio e a extensão do rio se confundem. Os remos do barco ferem de uma
vez todo o comprimento do rio-, e o viajante, para sempre e desde sempre, inicia,
realiza e conclui a viagem, de tal modo que a partida na cabeceira do rio não
antecede a chegada no estuário.
Serão atraídos para que lugar do cais, indagamos, o ciclista e a moça vinda no
quadro da sua bicicleta, ambos vestidos como a tarde úmida exige? Há, na disposição
das figuras entre os postes, uma distorção, uma inclinação, conquanto não ostensiva,
para o lado onde pesca o indivíduo coberto com um plástico amarelo: um verso onde
as tônicas, divididas igualmente entre os dois hemistíquios, pesassem mais nas
últimas sílabas. Apeando, dirige-se o casal ao pescador enluvado, sempre de pé à
esquerda. Não os conduz ainda, vemos bem, o misterioso impulso de obedecer às leis
do ritmo que governa a cena: conhecem-se. Mas logo os move uma força exigente.
Não só não permanecem em grupo, como não parece ocorrer ao ciclista ou à moça a
idéia de ocupar, imitando o do plástico amarelo, à direita, a pedra de atracação,
sempre disponível no extremo esquerdo do cais. Quebrariam, fazendo-o, a límpida e
tensa harmonia do que, em silêncio, contemplamos.
A partir de agora, muitas das questões e inquietudes que participam do meu
modo de ser ligam-se aos perfis, móveis ou não, sobre o cais. Leio no que vejo? Na
calma e implacável gestação de um evento ordenado? No ritmo e nas simetrias, leio?
Tais realidades falam-me diretamente — não como um escrito — e alcançam em mim
uma zona pouco acessível. Chegamos, eu e ʘ, através do mundo (erradios, os nossos
passos?), a este ponto de intersecção e aqui não há desordem. Estamos numa esfera de
milagres, onde os fragmentos se ajustam e refaz-se o uno. Nosso espanto é justo e
legítima nossa ebriez. Este frágil equilíbrio: lápis com a ponta sobre uma base plana, o
eixo de gravidade, mais delgado que um fio de cabelo, descendo ao longo da grafite e
incidindo sobre a exígua base. Vai inclinar-se e tombar, sabemos, e nunca mais,
sabemos, nunca mais. Coordena-se um texto, geométrico, dentre inumeráveis letras
desconexas.
As veias, meio ocultas nos pulsos, são de todo invisíveis no dorso lívido das mãos e
nos dedos de ʘ, fusiformes, de unhas ovais. Nas articulações entre as falanges, a pele
não escurece e cede em delicadas covas, quase sem enrugar-se. O casal, afastando-se
alguns passos do amigo comum e permanecendo na asa esquerda do T, toma posição
de frente para nós, sobre a parede do cais — que é espesso, uns três metros de largura
— oposta ao mar, compensando assim a leve sobrecarga do hemistíquio final. ʘ põe
mais uma vez os brincos, ri exultante e agita a cabeleira, que dá a impressão de um ser
com vida autônoma. O perfume fugidio e talvez misterioso que então perpassa vem
dos seus cabelos ou da sua exultação?
O cais, até aqui cenário de um jogo abstrato de forças e onde o único indício
de um embate é a impaciência da velha sentada sobre as pernas, enquanto os demais
pescadores, igualmente infelizes, sustém com resignação as canas, agita vagamente o
cais um imprevisto. Mal atira o anzol nas águas meio sujas e pouco ondeantes que
ocultam em parte os lodosos degraus nesse ângulo formado pela construção, o ciclista
fisga um peixe. Grita de alegria, arrancando do anzol a presa que se debate, escura c
sem brilho, quase da cor dos degraus, à luz morta da tarde. Os outros pescadores,
mesmo os que não se voltam, demonstram perceber o grito. Todos, menos a velha.-
imóveis o chapéu e os braços. Novos gritos do ciclista, sucessivos, anunciam sua
pescaria feliz.
Adorno algum na mão direita de ʘ. Move-a, entretanto, bem mais que a outra, onde
só o polegar não é guarnecido com anéis valiosos, dois e três, de prata e ouro.
A impaciência da velha, sentada a poucos metros do pescador afortunado e
entre os quais, por contraste, forma-se um eixo de tensão, vai ficando menos ostensiva
e talvez mais concentrada, uma raiva. Instaura-se, no raro equilíbrio de que fazemos
parte, uma dissonância. Outras forças estranhas e como arbitrárias (é apenas a perícia
que vai enchendo de peixes, seis ou sete, fisgados um após outro, o cesto a seu lado,
ao passo que os outros anzóis, ali bem antes dele, nada apanham?) insinuam-se.
Decreto do marechal Castelo Branco unifica sob a denominação de INPS os
institutos de aposentadoria e pensões. O barco a motor, na proa a figura impassível,
cruza em sentido contrário as águas cor de estanho.
O 14
Meu pai, em silêncio, a cometa de chifre sobre o peito, cola clichês num
álbum. Sem mais acesso a atrizes e cantores que se apresentem no Municipal e não
podendo abdicar por completo desse mundo, não se desfaz do piano, instrumento que
jamais chega a tocar em público (na fotografia, empunha uma viola) e mantém um
álbum de celebridades, com retratos cortados de jornais. Minha mãe, às voltas com as
suas encomendas de chapéus, ocupa outra poltrona. Na penumbra da sala, escurecida
pelas nuvens espessas que se formam, suas pernas lustrosas. Suspicaz, olho para um e
para outra, vou à porta que abre para os corredores, para as escadas e os elevadores
desregulados. Dou volta à chave, saio. Dos dois, na sala, nenhuma palavra. Nenhum
gesto. Engano-me supondo haver pressentido, entre ambos, um rápido olhar de
expectativa? Vou até o elevador, o mesmo elevador em que me precipito com o
velocípede, chamo-o; não o utilizo; volto, fecho a porta e retomo meu lugar no sofá.
Ambos de olhos baixos. Meu pai tem nas mãos a fotografia que corta no instante em
que eu saio; minha mãe continua a prender no chapéu a mesma flor de cambraia
alaranjada. São meus pais? Ou são meus assassinos?
Olho-os, com o meu dúplice olhar, sinto-me protegida e ao mesmo tempo
irada, mas também trespassada de terror. Escondo a mão direita sob a coxa, movo-a
como se moesse uma rolha de cortiça. Trituro entre meus dedos, sob a coxa, os
indícios das últimas semanas. Mais do que outros, este: voltando de um passeio nos
outros pavimentos do edifício, encontro a porta fechada; calco o botão da campainha,
bato na porta com os pés, a porta custa a abrir-se, enfim abre-se, e minha mãe quando
abre não olha na altura dos meus olhos, olha três palmos acima dos meus olhos, na
altura do seu rosto, do rosto de um adulto. Por quê? Sou injusta em supor que
adivinho? Espera que venham trazer a notícia da minha morte. Os indícios coincidem,
as negligências: chaves nas portas e telas de aço que um pardal esburaca. Levo a mão
à boca e mordo esta certeza, este espanto, esta amargura, este ódio, esta ira, levanto-
me e decido-me, não guardarei silêncio, porei termo ao silêncio, vou falar, abro a
boca, mas não é fácil falar, tenho a língua e a laringe cheias de teias de aranha, aspiro
o ar e expiro-o, pela boca, com dificuldade, eles me olham, meu pai leva a corneta aos
lábios, crispam-se no chapéu os dedos de minha mãe e eu grito, cuspo, vomito em
suas caras: "Inrerno. Inrerno". O nome não é este, mas tenho de dizê-lo, o esforço me
exaure, eu caio de joelhos, perduram os movimentos convulsivos e eu tento outra vez
como quem tenta um salto, um mergulho, um passe acrobático, tento outra vez, agora
com mais força, com mais ódio, e grito: "Inferno!". É a primeira palavra que libero, a
primeira, volto a repeti-la, quatro, cinco vezes, de modo cada vez mais débil, depois
me curvo, toco o chão com a fronte e caio em pranto.
O me felicem!! A carroça do Sol roda conosco nos campos de Capricórnio.
Como sou feliz, que feliz sou, eu envolvida no meu júbilo, oh! eu, feliz? eis-me feliz,
o me felicem, o me felicem, Abel. Eu, feliz, ah! e te amo e estou nua, desprendidas as
minhas cabeleiras e despojada de anéis, colares, brincos, braceletes, tudo, veste-me a
minha nudez, só, os meus adereços são os bicos dos peitos, a cova do umbigo, os
pêlos do púbis, as unhas polidas, estou nua e Abel sopra em meu ouvido que nenhum
manto haverá tão esplêndido, deito a cabeça, rindo, sobre meus próprios pulsos, alegre
de exibir minha nudez, ele beija-me ombros e sovacos, roça o rosto em meu ventre,
sinto a aspereza do queixo escanhoado.
Que o meu corpo se entregue com toda a sua carga de animal. Durante
séculos, trazem os navegantes, da Melanésiá, aves empalhadas, de espantosa beleza,
mas sem pés. Chamam-nas aves-do-paraíso e não é difícil acreditar tenham escapado
do Éden no instante em que o portão se abre para a expulsão dos pecadores.
Parecem vir do mundo privilegiado em que de prata — e não fulvo — é o pêlo
dos leões, em que os peixes voam quanto querem e onde a Lua, todas as noites, surge
acompanhada por um deslumbrante cortejo de pavões que se casalam em vôo. Em
vôo, afirmam os navegadores, cruzam-se e incubam os ovos as aves empalhadas que
trazem da Oceania. Na realidade, os selvagens que as vendem cortam-lhes os pés. Que
eu não arranque os pés a esta hora de cambiante e lúcida plumagem: nela mergulhar
com toda a minha carga de animal. Os melanésios, recusando admitir aquele pássaro
como um ser terreno, aviltado pelas exalações do mesmo barro sujo em que vivem
com os seus obscuros sonhos irrealizáveis e onde quase tudo apodrece, decepam-lhe
os pés. Com o estratagema, as aves mortas são reenviadas às alturas, onde, mutiladas,
permanecem, graças à cúmplice imaginação dos homens. Que eu não arranque os pés
a esta hora.
Rolamos no tapete, batemos com os flancos na mesa do centro, tombam a
mesa e o bule de prata não polido, mais uma vez desço a mão pelo ventre de Abel,
sopeso em minha palma o obelisco, o marco, o centro do seu corpo — encosto-o no
meu rosto, roço-o com os cabelos soltos, beijo-o de leve e ouço-o: mariposas voam
dentro dele, muitas, zumbem as asas inúmeras, tentam sair, cabeceiam nas paredes,
tontas. Desde quando, com sua energia e suas mariposas, dirige-se para mim?
Orgulho-me vendo-o erguido, rijo, em toda a sua altura, de que em mim acenda a sua
flama, de que nasça em mim seu engrandecimento. No meu corpo, nas promessas do
corpo.
A testa ainda no chão, começo a balbuciar. Meu pai e minha mãe acreditam
que eu esteja possessa do demônio. Falo aos solavancos, sem pensar, sem nexo,
minhas palavras são pus, minha boca um abscesso aberto, falo sem parar, às vezes
murmurando, aos brados em seguida, e assim como antes muitas palavras se formu-
lam em mim sem que as pronuncie, falo agora de coisas que estão fora do meu
entendimento. Leio um dia em Virgílio que as nações submetidas a Roma, os dias de
triunfo, jogos públicos, ovações, sacrifícios, coros de matronas, naus de guerra,
deuses monstruosos e todas as batalhas, postas por ordem, aparecem no escudo
fabricado para o filho de Vénus. Este, quando cinge a obra de Vulcano, ignora cingir
os eventos e figuras de que participa a sua estirpe. As palavras que lanço em meu
discurso sem fim e incontrolável também representam a minha própria vida, embora
ao proferi-las tudo eu ignore sobre isto; e ainda maior que a do Troiano é a minha
ignorância, pois, ao contrário das batalhas cinzeladas em seu temível apresto de
guerra, postas por ordem, os personagens e eventos a que devo ligar-me vêm
fragmentados nas palavras, frases e nomes que enuncio, nomes, frases e palavras dos
quais muitos voltam, são repetidos, pela manhã, à noite, nesses dias e noites em que
falo e falo sem parar, quantos, quantas?, muitos, talvez três, talvez cinco, difícil saber,
dias e noites em que quase não durmo e, mesmo enquanto durmo, ainda falo.
Visitantes contristados olham-me de longe, nem sequer atrevendo-se a passar a porta
do meu quarto, eu como pouco e mal, engolindo palavras, bebo apenas para refrescar
a garganta dolorida, a voz extingue-se, exausta eu fecho os olhos e mesmo assim
meus lábios secos continuam a mover-se, eu continuo a falar, dentro de mim, dos
passeios com Inácio Gabriel, anunciador, antecipador deste homem a quem me
entrego e amo, da adolescência vivida e revivida, dos nomes de pessoas que pesam
em meu destino, dos enganos, da bala disparada e cravada no meu peito, da minha
morte e, reiteradamente, do iólipo, o qual ninguém conhece e o qual descrevo com
minúcias, sem nada entender e sem saber (saber como?) que um dia o encontro. A ele,
um iólipo. Iólipo?
T 6
O leve e ritmado som dos sapatos de Cecília, com saltos de latão, percute no
piso do alpendre. Passos rápidos, de quem necessita andar muito e vive com uma certa
urgência. O homem, no outro lado da rua, baixa o braço e some com os meninos.
Desce a mão de Hermelinda, firme, sobre as cordas do instrumento. O gato, na porta,
pousa a pata no chão, os pássaros soltam o canto. Hermelinda vara o círculo de leões
que ameaça Cecília e beija-a no rosto. Também o canto dos pássaros soa, nítido,
metálico. Cecília, com um sorriso, faz os leões subirem nos telhados balançando a
cauda. O que conversam, Hermenilda e Cecília, não escuto. A língua de Cecília: leão
lascivo. Hermenilda faz um gesto em minha direção e indica-a: "Chama-se Cecília.
Trabalha no Hospital Pedro II. Serviço Social". Ela inclina a cabeça, fita-me um
instante e desvia o olhar. Volta a fitar-me rápida (abelhas solitárias, esses olhos,
riscando as superfícies). "Abel é homem das letras e dos livros. Filósofo. Conhece o
outro lado da Terra." Zumbem leões negros e velozes nos olhos de Cecília. Cecília
senta-se no banco de vinhático ao lado de Hermenilda e cruza as pernas delgadas.
Visível a ossatura dos joelhos. O silêncio de Cecília é atravessado por leões.
Assim, frente a frente, com a nossa ajuda malsã, eis Cecília e Abel. A eles
cabe apertar o laço por nós urdido. Quiséramos estender entre ambos uma distância
qualquer — para que não se ligassem. Quiséramos? Desejo vão. Lançado está o grão e
com ele alguns eventos sobre os quais nenhum domínio havemos. Abel considera os
galernos de Cecília e seus contrários. Vê a discórdia entre a branda curva dos ombros
e a falta de curvas nos quadris; entre os seios grados (de bicos tensos) e o peito do pé
com seus tendões, um pouco largo à altura dos dedos; espanta-o que venha de Cecília
o eco de inúmeros ramos delicados, secos, cautamente pisados e que ao mesmo tempo
algum sinal no seu rosto sugira determinação; e, mais ainda, que essa figura alada e
plena de graças seja sustentada por um impalpável arcabouço de virilidade. Decerto,
isto é ainda o início. Sem que nenhum dos dois saiba, ou escute, duas bocas, mágicas,
falam entre si. Logo ele a verá de um modo novo, vária e múltipla, habitada na carne
por visões ou corpos — e sob reverberações, como aclarada pelo Sol rebatido em mil
facas oscilantes. Procurar na vida o rumo é igual a buscar, num palheiro, a agulha que
pode ter caído em outra parte.
Retiro da gaveta, na pensão, as páginas escritas da história que venho
elaborando. (A gaveta exala um odor inexplicável e nunca dissipado de pólvora.)
Começam a definir-se, no papel, os perfis das quatro irmãs, todas setuagenárias e cada
uma ansiando por sobreviver às outras. Para quê? Não sabem. Vivem na mesma casa
— isto me permite acentuar o ódio com que se espreitam entre si. Mas o cenário onde
se movem — o chalé de Olinda, reproduzido com a possível exatidão — continua a
desgostar- me. Tento, em vão, evocar o labirinto de quartos e alcovas, com roupa
pendurada atrás das portas, às vezes cheirando a virilhas. Pinto de azul o forro de ma-
deira, aqueço no fogão de pedra as panelas desmedidas e ladrilho o piso com
mosaicos. Introduzo o mobiliário desigual, que aumenta junto com a minha família e
se deteriora usado pelas velhas. (Tudo, às vezes, no mundo, cheira a verrugas, a
cascas de ferida e a unhas secas.) Deixo de mencionar os instrumentos de música
negligenciados nas gavetas, o piano East Coker, os jarros pomposos, o enorme
espelho entre arandelas na sala de visitas e o retrato oval de casamento. Mantenho,
com alguma ênfase, a estampa alemã do tempo de Holderlin, representando três
jovens fiandeiras. Faço ainda entrar o sol pelas bandeiras de vidro — colorido no
chalé real e branco no fictício.
Represento, afinal, com mão grosseira, o seu interior, onde as cortinas de
renda com cenas de caçadas ondulam ao vento terral. Mais inábil a extensa descrição
do exterior. O teto de duas águas, inclinado sobre as paredes laterais, o beiral
sombreando os oitões e a fachada, os lambrequins de um azul-desbotado,
acompanhando a linha dos beirais e alçando-se em frontão com um mastro torneado
no vértice mais alto, a flor geométrica, posta à maneira de tímpano no meio do
frontão, cercada por um círculo e tendo ao centro uma esfera azul de vidro, as
molduras brancas das janelas, o alpendre à esquerda também com lambrequins, cada
pormenor (e, mais do que todos, a pintura nas paredes, em ocre, anil e branco,
imitando cubos transparentes, disto resultando uma inútil aparência de relevo) exige-
me centenas de palavras e acaba sempre numa construção desmesurada, sem peso,
cujos telhados flutuam como asas.
À beira da cisterna, de joelhos no cimento limoso, tento ver meu rosto dentro
da água. A água, que parece dura, petrificada pela ausência de peixes e de vozes,
olha-me baça — o olho de um morto. Reflete apenas linhas imprecisas, a
interrogadora mancha da cabeça contra o céu nublado. Cuspo na minha cara, no vago
reflexo da minha cara e levanto-me. A água da cisterna e o fartum de percevejos. Na
praia dos Milagres, perto, as ondas abandonam — fortes, mesmo na vazante —
construções de que só o traçado ainda sobra. A ferrugem e o ar marinho corroem o
teto de zinco. Faço o trajeto em aclive entre a cisterna e a casa, sem pressa, alvejando
com pedras apanhadas no chão os troncos das mangueiras, todas pegando uns tons de
árvores bravas. Salta acaso entre essas árvores, quando entediado ou supérfluo, o gato
com cabeça de macaco noturno?
Paro a certa distância do chalé, no qual durante anos ecoam as vozes da
família e de onde agora não vem som algum. Jogo pedras nas colunas do alpendre e
no terraço. Minha mãe aparece, gorda, sustentando um ferro de engomar. Repuxa a
boca miúda, de lábios estreitos, no seu gesto costumeiro:
— Sim, senhor! Trinta e dois anos e ainda jogando pedra nas coisas. Agora é assim
que se anuncia a chegada? Entra, homem. Vem almoçar? Não apareceu no outro
sábado.
Beijo-a no ombro esquerdo, onde tem a cicatriz. Borrifa água de arroz nos
lenços que passa a ferro: "Dos luxos do Tesoureiro, sobra isto. Lenços engomados".
"Ele não é mais Tesoureiro." "Pensa que se conforma? Fala dia e noite na readmissão.
Tinha de acabar nisso. Como era Tesoureiro na porcaria de um banco, acreditava ser
Tesoureiro do mundo. E você, meu filho? Na outra semana, estive pensando: cinco
anos que assumiu o seu emprego. O tempo voa." "É verdade." O gato com cabeça de
macaco e que ela traz no corpo desde o nascimento salta para a tábua de engomar.
Contempla-me, daí. com seus olhos súplices e afetuosos: duas contas roxas.
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ROOS E AS CIDADES
R 12
ROOS E AS CIDADES
T 7
O 16
HISTÓRIA DE ʘ, NASCIDA E NASCIDA
T 8
Minha irmã Lucíola, com seu perfil e seus olhos de cigana, a Mauro, nosso
irmão:
— Por que não trouxe a esposa? Podia ajudar a lavar os pratos. Cesarino
mostra os dentes podres e ergue o rosto ceroso, com olheiras roxas, que tornam ainda
mais neutro o seu olhar de cadáver:
— Damião, estou admirado. Que vai dizer seu patrão, o dono do táxi? Você,
um empregado tão zeloso, parar o serviço mais de duas horas, para jantar com a mãe
que nem é sua?
Minha mãe repreende Cesarino. O gato, no seu peito, volta para ele a cabeça
de macaco. Os olhos claros de Dagoberto, olhos de homem destinado a morrer
tuberculoso (contemplarão, com espanto, a carência de sentido das nossas vidas?),
também se dirigem a Cesarino:
— Deolinda Ferro-Velho se queixou de você. Deu-lhe dinheiro para comprar
uma passagem na rodoviária e você nunca mais apareceu. Isso é papel?
— Aquilo é uma vaca — responde Cesarino.
Mauro, que deixou passar a observação maldosa de Lucíola, fala-lhe:
— Não me conformo com uma coisa. É seu primeiro marido, o falso
fabricante de moedas falsas, fugir com aquela dona, deixar a roupa na beira do rio, pra
fingir que morreu afogado, e depois baixar numa sessão espírita.
Lucíola, os olhos baixos, finge não ouvir e ignora as risadas. E a que menos se
distancia, hoje, dentre as caras agrupadas em torno desta mesa e sobre as quais os
anos trabalham duplamente, com duplo poder de erosão, do seu próprio modelo na
fase do esplendor e da ausência de preocupações. Mesmo o rosto de Isabel, mesmo o
seu, curvado sobre o piano e meio oculto entre os cabelos louros, sugerindo, aos treze
anos, inteligência e mistério, reflete agora a seu modo o espesso e obtuso rosto do
marido, vinte e um anos mais velho do que ela, aposentado, contrabandista amador,
ex-foguista de navio mercante e que se serve empurrando com os dedos a comida para
o garfo.
Aqui estamos, obedecendo a um hábito persistente e inútil, para festejar o
aniversário da- nossa mãe. Em que evoca este jantar ainda cheio de risos mas
impregnado de melancolia, as ruidosas comemorações anteriores a 1950? Brilham
todas as luzes do chalé e o Tesoureiro preside a mesa. Tosse, porém, vez por outra e
fala sempre que pode no seu novo emprego: fazer cobranças para uma empresa de
reputação mais duvidosa que a dele.
— Quero ver o que vão dizer os meus inimigos, quando souberem que estou
trabalhando com dinheiro e que os patrões têm toda a confiança em mim. Uma
confiança cega. Cobro mais de cinqüenta prestações por dia. Honestidade vale uma
fortuna, principalmente hoje que o governo vive estimulando o roubo.
Minha mãe, à sua direita, procura desviar o assunto, fala da mone de Marilyn Monroe:
— Que deu naquela dona? Uma mulher que tinha tudo.
— Era uma vaca — atira Cesarino. — Uma vaca igual às outras. O Tesoureiro
tosse e reforça o que dizia, alheio:
— Confiam em mim como num filho.
Qual dos filhos confia nele? Sequer o vêem e de todos, carnais ou não, só eu
— apesar de tudo — ouço o que diz. Os restantes — Mauro, Cesarino, Lucíola,
Damião, Dagoberto e Isabel com o marido — apenas erguem as cabeças para servir-se
de omelete ou cerveja e trocar palavras pouco amigas.
— Querem passar o molho? (É o marido de Isabel, juntando, com o polegar, o
arroz no garfo, ávido.)
As travessas não sustém, como no período da Tesouraria, cabritos e leitões ao
forno, brilhantes de unto e fartamente guarnecidos; nem grandes lagostas rubras,
nadando em molho de coco; nem postas de cavala a escabeche; nem dourados com
recheios preciosos. Faltam os vinhos finos; os queijos-do-reino, redondos, vermelhos
e tão odorosos; o licor de pitanga, fabricado pelas monjas de Santa Dorotéia; as cinco
ou seis espécies de doce. A louça inglesa não é uniforme e a toalha branca de
damasco começa a encardir.
Cesarino, que bebe sem parar, pergunta a Damião qual o seu próximo grande
papel no teatro, se entregar uma carta ou trazer um copo d'água.
— É melhor trazer um copo d'água para uma condessa no palco do que fazer
mandados para aquelas catraias da rua do Apolo, como você.
Cesarino defende-se, impudente:
— São minhas amigas.
Mortos Eurílio e Estêvão; Leonor num convento da Bahia, após três noivados
desfeitos; Cenira num subúrbio do Rio de Janeiro, casada antes dos dezoito anos com
um dentista sem clientes, comendo o pão amassado pelo diabo (seu violino descola-
se, sem cordas, numa das muitas gavetas do chalé); Augusto no oco do mundo há oito
anos, sem dar notícias e sem que se saiba ao menos se ainda vive; Janira foragida da
polícia, em algum cabaré de quinta classe, depois de fazer o que fez. Mudos, com o
violino de Cenira, o bandolim de Leonor, o clarinete de Damião, a viola de Mauro, a
flauta de Eurílio, o piano East Coker. No alpendre ou nas outras dependências, hoje
iluminadas, nem sombra dos amigos — tantos — do Tesoureiro; dos rapazes e moças,
companheiros, nossos, que invadiam a casa nesses dias, nenhum. Nós, mais ninguém,
participando desta aparência de festa e exibindo uma alegria que é apenas a versão
maligna da outra.
Mauro volta para mim os óculos grossos e quase negros:
— E o nosso letrado? Sempre inédito, mon amour? Não foi mais à Europa, ver
as francesas?
O seu riso espasmódico e mordente secciona as palavras. Cesarino
acompanha-o nas perguntas, mostrando os incisivos estragados:
— Por que não escreve uma novela para o rádio sobre a sua esposa. Abel?
Ouvi dizer que dá dinheiro.
A flauta de Eurílio faz-se ouvir, da cova ou do puteiro onde morre varado de
balas.
— Ainda ontem, o chefe falou comigo. Disse que nunca teve um cobrador
igual.
Vinda quem sabe donde, cai na mesa a voz nasal de nosso irmão Augusto, há
oito anos sumido: "Vocês me dão notícia de Janira?". Leonor, do claustro, ereta numa
cadeira de espaldar alto: "Um mês depois de casada, ganhou a zona, Augusto. Deus a
proteja. Matar os próprios filhos! Dois!". A voz de Janira, branda e monótona, de
virtuosa moça de família: "Morreram antes que tivessem um nome. Isso é morrer?
Afinal, eram meus. Se pudesse, matava pai e mãe. Não pedi para nascer".
— Sua mulher já sabe ler? (Isabel a Mauro.) Corre que você fez cartas
anônimas a você mesmo, dizendo que ela lhe punha chifres. Para ter um pretexto de
largá-la.
Mauro ri, assentindo. Ecoam risadas na mesa.
— Basta dizer que eles nem contam o dinheiro, quando eu entrego a cobrança.
Mandam um menino conferir.
— Quanto está ganhando? — indaga o marido de Lucíola. Minha mãe
pergunta se ele ainda está aposentado.
— Claro.
— Pensei que tinha arranjado um emprego de fiscal.
Com sua voz de tenor, um dom desperdiçado, canta Dagoberto: "Noite alta,
céu risonho./ Aqui tudo é quase um sonho...". Esses irmãos. Também os outros, os
que andam pelo mundo ou morrem desastradamente, a irmã que pare os filhos e
enterra-os no quintal, são meus irmãos apenas de sangue? Não nos liga, em nossos
desacertos, um projeto comum? Marca-os, talvez, o mesmo impulso obscuro que me
move. Com outras formas, porém. Outros nomes. "Só tu dormes: não escutas/ o teu
cantor..."
— Vou na cozinha comer a sobremesa — avisa Damião. — Preciso trabalhar.
Afinal, meu patrão confia em mim. Devo retribuir.
— A que horas você lambe os ovos dele?
— Na mesma hora, Cesarino, que você lambe o rabo daquelas marafonas.
— Feliz de você, quando casar, se sua mulher tiver um rabo limpo como
aqueles.
O animal, no ombro de mamãe, espreguiça-se com o dorso de gato e salta para
a mesa, a cauda erguida. Ela censura-nos:
— Bons irmãos são vocês. Não vejo nenhum lembrar-se dos que estão mortos
ou ausentes.
— Que se danem. Isabel:
— Por quê, Damião?
— Porque sim, que se danem.
— É uma firma que ainda vai crescer muito.
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Compramos nossos bilhetes (eu para Verona, ela de volta a Paris) e ficamos
um momento no alto da imensa escadaria, absortos, olhando o ir-e-vir das pessoas nos
degraus. Ruídos de locomotivas, distantes sons de sereia na piazza Duca d'Aosta,
gritos agudos de aves nos portões, no restaurante, nas passagens subterrâneas, no
guiché de informações, nos lavatórios, nas cabines telefônicas. De procelárias?
Restam-nos apenas vinte e dois minutos, o ar está frio e nós cansados, refugiamo-nos
no salão de espera. Nossa excursão dominical nos lagos: vento gelado, chuva e águas
agitadas. Atravessamos sem palavras os salões do Palácio Borromeu, sapatos mo-
lhados, sob uma temperatura pouco diferente da que faz lá fora. Quadros ordinários
(mas os grão-senhores do Renascimento prestigiavam os inovadores do seu tempo,
não imitadores como estes) e ausência de livros, que não merecem a honra dos
arreios, orgulhosamente exibidos (quando a Biblioteca Ambrosiana, em atividade há
três séculos e meio, é fundada justamente por um Borromeu). O guia informa que a
família só habita o palácio dois meses por ano. Roos, ante a janela, olha os gramados
e as flores sob a chuva. Corre-me as veias, lento, um tropel de caititus: batem as
mandíbulas. Fecho os olhos e escuto-os desfilar. Vão-se. Da varanda envidraçada que
circula o edifício ocre e branco do hotel, formando uma espécie de jardim de inverno
(Regina Palace, Orchestra, Spiaggia privata, Equitazione, Sci nautico), observo um
veleiro em luta contra os ventos que descem das montanhas, encrespam o lago
Maggiore. "Vi estes lagos, ontem, na Geografia de Lorenzo de Medici. Foi aí que me
ocorreu, caso você viesse, trazê-la aqui. Não estava chovendo. Não chove, nas
Geografias." Seu rosto, contra a vidraça e a paisagem, lívido do trajeto entre o castelo
e o barco, e da travessia sobre aquelas ondas inquietas, vai retomando a cor habitual,
absorve a claridade incerta deste meio-dia: "Também tenho visto alguns mapas
antigos. São tão estranhos. Dão a impressão desses desenhos da fauna asiática ou
africana, feitos por europeus que não haviam saído da Europa e imaginavam um
elefante de acordo com os animais que conhecemos: cães, cavalos, melros". Falta um
vidro nos altos do salão de espera e alguns homens, com roupas pouco espessas,
deixam-se ficar nos bancos ao pé das paredes, decerto para fugirem ao mau tempo.
Roos consulta o relógio. "Digo, em geral, que sei bem o que faço. Mas a verdade é
outra. Sei que amanhã devo estar em Paris. Sei por que vim a Milão? Por que estou
aqui? Não. Também não sei por que vou embora quando podia ficar. Nada me
impede." Vagas abatem-se contra os vidros da lancha. As franjas espumantes
rebentam nos portais e molham os passageiros. Soltam-se as amarras, fecha-se a
porta, vai a lancha conosco para isola Bella. Três australianas, sua governanta, seis
japoneses, oito ou nove matronas do Alabama, todas de chapéus floridos, um casal de
alemães em viagem de núpcias e três religiosas de não sei que convento em
Campobasso. Silva o vento, as ondas se sucedem, salta a embarcação, range o
madeirame. Uma das freiras, ainda muito jovem, tosse sem parar. Não estaremos em
nosso próprio velório? Trinta cadáveres vogando sob a chuva, entre destroços. A
cerração, balsas de salvamento, refletores, sereias, Roos fragmentando-se, um
cosmos, cidades vazias de seres humanos, vindas de inúmeros pontos da Terra e
precipitando-se no lago, como os porcos possessos de Gerasa, porém em silêncio e
não sem grandiosidade. Falham ás manobras para atracar. A embarcação vibra de proa
a popa, cheia de asas e de nadadeiras tortas e o casco de madeira bate no molhe,
seguidamente, com um ruído cavo.
Movimentos cautelosos e enérgicos ligam-na ao cais; as ondas continuam a lavar as
janelas. Sob a chuva e o vento, agora mais intensos, vencemos a distância entre o
ancoradouro e o Palácio Borromeu, rentes às paredes das pequenas casas de comércio.
O vento gélido fere-nos os olhos. Picos nevados, de nítido desenho, à luz sem
esplendor da tarde; casas de campo aglomeradas no sopé verdejante das elevações
mais próximas, algumas subindo pelas encostas. Roos mantém a taça à altura do colo.
Ouço claramente, enquanto falo, o bater do sangue no seu pulso! "Desenhar o elefante
com base no que se sabe dos melros... Mas talvez alguém que só conhecesse o
elefante através dessas estampas, encontrando um elefante verdadeiro, o identificasse.
Daí voltamos à cartografia. Com aqueles mapas imperfeitos, os navegantes chegavam
sempre aonde desejavam. E quando se perdiam, sabiam que estavam perdidos. Isto dá
o que pensar. Na verdade, um mapa, para ser exato, deveria ter as dimensões do país
representado e então já não serviria para nada." As plantas colocadas no salão de chá,
pouco a pouco, voltam-se na direção de Roos, como se ela fosse, no recinto, uma
janela aberta. Ouve-se a voz frágil da religiosa: "Io non vorrei morire senza aver visto
ti Varese". "Percebeu o que ela disse, Roos? Que não queria morrer..." "Sim." A vista
panorâmica do lago: verde, cinza, azul e violeta, com seus barquinhos que parecem
besouros arranhando as margens. Esta visão perante, a jovem freira fechará os olhos.
Ainda hoje, talvez; ou amanhã. Vê-se a morte no seu rosto. Mas o lago Varese, para
ela, nunca, não foi sonhado e anônimo. Situava-o nos mapas. Escrevo no guardanapo,
sobre o oval com uma coroa onde se lê HOTEL REGINA OLGA — CERNOBBIO — COMO:
Je vous aime. Roos volta o rosto para fora, esquiva. Barcos de cores diversas presos à
margem do lago, as proas um pouco empinadas, alguns protegidos com encerados.
"Há inúmeras maneiras de amar e eu jamais conseguiria dar-lhe uma idéia do modo
como a amo, um amor mesclado com o inalcançável e a geometria. (Move-se na
minha boca o instrumento estranho?! Sim, léxico e sintaxe, dóceis, obedecem-me e
tornam-se, associados, um mapa menos rasurado e mais preciso.) No entanto, Roos,
quando eu escrevo que a amo, exprimo a substância e a natureza do que você deflagra
em mim. Não se parece com os mapas? O que eu digo é algo incompleto e falho. Mas
você chega ao porto. Com estas palavras, orienta-se e chega à compreensão do que eu
quero dizer." "Pode-se mentir." "Neste caso, trata-se de um mapa enganoso. O mapa
de um continente irreal, não um mapa imperfeito." As flores e as folhagens incli-
naram-se mais em direção ao seu rosto de uma simetria rara. "Pouco depois que você
seguir de volta a Paris, sai meu trem para Verona. Não há melhor cidade no mundo
para que eu lhe diga com a carne o que disse com palavras. Tem alguns minutos para
decidir. Por que não vai comigo? Talvez, lá, você saiba por que foi." Veio a Milão e
está a meu lado, o calor da sua coxa direita atravessa as lãs e me aquece docemente o
flanco. Nem assim estamos próximos. Sem essa chuva constante, sim, quem sabe,
sem esse vento veloz e incansável! O silêncio retorna e eu fixo, vago, a moldura sem
o vidro nos altos da parede. Outro barco, maior, aporta a isola Bella. Através da
chuva, vamos distinguindo os ocupantes vestidos a rigor e as mesas postas, com
flores. Protegemo-nos sob um toldo agitado pelo vento. No barco, irrompe uma
música festiva — xilofone, flautas doces, uma corneta, pandeiro, bandolins. Decerto
um epitalâmio. Mulheres com chapéus e pelicas desembarcam, os garçons, enluvados,
protegem-nas com guarda-chuvas de gomos brancos e verdes, os cavalheiros, aos
saltos, correm com as mãos sobre a testa, um cão põe-se a latir. Tábuas são jogadas no
caminho, e mesmo assim molham-se as meias das mulheres, os sapatos revestidos de
cetim. Surge a noiva. Há um grito isolado, sem resposta:" Viva la sposataf". Ressoam
palmas úmidas. Com a mão esquerda, estreita o buquê de camélias sobre o peito: com
a outra, sustém a grinalda; o véu de gaze, pregueado e amplo, esvoaça. À sua
aparição, o vento se levanta, sopra mais rápido, quebra as varetas do guarda-chuva
azul com que tentam protegê-la, o véu, a ponto de rasgar-se, ondula, afia, estala à
direita e à esquerda dos seus ombros, entra pela boca, emaranha-se nos restos do
guarda-chuva, o casal de crianças ataviadas de veludo vermelho que sustenta a longa
cauda do vestido esforça-se para mantê-la presa, mas tanto cabeceia o vento nessa
vela de rendas enfunada que a moça vacila, a ponto de voar. Da capela para onde se
dirige o cortejo vem um som de órgão. Volto-me, Roos está a dois passos de mim, o
rosto salpicado da chuva, e nosso olhar se cruza com uma força estranha, tenho a
impressão de que me vê pela primeira vez, sem espanto, sem paixão, apenas surpresa.
Somos quase os únicos ainda sob o toldo, até as freiras se foram, ela sorri, um sorriso
desolado, volta a olhar para as águas inquietas: "Quando eu casei, também estava
chovendo". Que posso fazer, eu, contra essa recordação? Aperto-a contra mim.
Abalam-na, secos, dois ou três soluços, como se alguém a houvesse esmurrado nas
espáduas. O vento e as ondas rosnadoras do lago misturam o hino sacro com a música
profana executada no barco.
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Três dias vacilo entre ficar e fugir. No terceiro, estou junto ao piano, sempre
coberto com a sua toalha de brocado, estou de pé ao lado do piano, no exato ponto em
que meu pai, crédulo, enleia sua aluna, sem o saber, num destino adverso. O relógio
de mesa, ladeado por dois viçosos tinhorões em cachepôs de louça, marca onze horas
e dez. Estão abertas todas as janelas, as cortinas franjadas recolhidas e o sol cai sobre
o tapete, onde uma jovem de vestido leve diverte-se, entre árvores, num balouço de
cordas floreadas. Inês, toda de branco, sentada numa cadeira baixa e não menos feliz
que a moça do tapete, faz um trabalho de tricô. Lendo agitadamente um jornal, minha
avó, ereta e um pouco voltada para a sua direita, ocupa o sofá — de palhinha, com
medalhões no espaldar. Seus óculos de aros dourados cintilam. Do centro do sofá e
sentada à amazona, sempre com o aspecto de quem se planta no alto, na sela, reina
sobre os consolos e dunquerques com pastores de faiança tocando instrumentos
campestres ou falando ao ouvido de pastoras, sobre as bandejas de prata, os jarros
coloridos de porcelana e, principalmente, sobre as doze cadeiras — umas de braço,
outras simples —, todas vazias e voltadas para ela. Vejo-a refletida em um dos
grandes espelhos com moldura dourada que pendem da parede. A repetição do seu
vulto torna-a ainda mais dominadora.
Apraz-me, nessas idades, ouvir a minha voz. É ainda uma voz de criança de
dois anos, rouca, nasal e estridente, mas eu atiro-a às paredes, sem muitas vezes ouvir
o que digo, atenta apenas ao seu volume e inflexões. Do mesmo modo que, durante o
meu longo período de mudez, crio palavras não pronunciadas e chego a pensamentos
que não me atrevo a externar, lança a minha boca, nesta fase segunda, idéias,
narrativas e nomes que ninguém conhece, que nem eu conheço, que não conheço
melhor ouvindo-os de minha própria boca e que decerto assustam ainda mais os que
me escutam por serem proferidos numa voz insegura de criança, traduzindo uma
experiência que sobrepassa a deles e não é justificada pela minha idade ou aparência.
O relógio de mesa marca onze horas e catorze minutos. As agulhas de Inês
enlaçam os fios de lã. Minha avó, duplicada no espelho, lê as notícias de falecimentos.
O céu toma-se escuro e ameaçador. Duas andorinhas atravessam juntas o espaço, da
direita para a esquerda; em sentido oposto, bate asas um pombo solitário. Ressoa um
trovão, surdo e prolongado. Vem-me, de súbito, o impulso de falar.
Então, falo. Inês, interrompendo o tricô, olha-me com espanto. Minha avó, a
palidez realçada pela pintura supérflua, levanta-se e o jornal cai da sua mão; sem tirar
os óculos, faz-me, com voz incerta, uma pergunta que não compreendo. Continuo a
falar, exultante com o som da minha voz, novo trovão repercute, ela repete a pergunta
três ou quatro vezes e por fim traduz: "Onde aprendeu a falar alemão?". Mais: "Que
monstro é esse de que fala e que está na minha frente? Aqui não há ninguém".
Ressoa ainda na sala a última sílaba das suas palavras, quando a chuva tomba:
ouço a campainha e o portão se abre. Através das janelas, vejo correrem no jardim,
curvados, uma mulher baixa, espessa, com cerca de cinqüenta anos e um cadete ainda
adolescente que deve ser seu filho. Sempre com os olhos fixos nos meus, minha avó
dirige-se a Inês: "Veja quem vem". Inês, pressurosa, apanha o jornal a seus pés e corre
para abrir a porta. A mulher e o filho, com respingos de chuva na roupa e nos cabelos,
entram. Ele descobre a cabeça, Inês fecha as janelas. Minha avó, com um gesto,
convida a visitante a sentar-se a seu lado, no sofá. O rapaz, após um instante de
hesitação, atravessa a sala, afasta ligeiramente uma cadeira e senta-se de frente para
elas. Vejo-o de costas, o dorso é um tanto pesado para a sua idade. Por cima do ombro
dele, minha avó lança-me um olhar inquieto, não, um olhar aterrado e talvez
inquiridor. Saio de junto do piano e me sento no tapete, aos pés do jovem: "Como é o
seu nome?". Indago como se procurasse alguém cujos traços correspondessem aos
seus ou como se apenas precisasse dissipar as últimas dúvidas de uma evidência
qualquer. Ele assusta-se com a minha voz acidulada e recua um pouco na cadeira,
antes de responder: "Olavo". "De quê?" "Olavo Hayano."
Duas imagens planas, unidas no estereoscópio, adquirem relevo. Vejo Olavo
Hayano, com o meu duplo olhar, como ninguém o vê, vejo-o em relevo, o quepe
sobre os joelhos, figura num estereoscópio. Abranjo-o na sua forma carnal e no
consternador vazio que se esconde na carne perecível. Olavo Hayano? Não, este não é
o seu nome. Assim o chamam, assim ele assina, mas o nome cai de sua boca tal um
manto que ilusoriamente revestisse um corpo, um manto erguido entre o observador e
o homem nu, com um muro de vidro entre o manto e o homem, sendo portanto
vedado ao homem chegar a vesti-lo e bastando ao observador sair do seu lugar — um
pouco à direita, um pouco à esquerda — para constatar que o homem está despido,
que o manto não o veste e nem o pode vestir. "Não é." "Não é o quê?" "Não é Olavo
Hayano." A chuva cai em cordas, ruidosa e pesada. Inês está a meu lado, a mão
erguida e indicando o jovem, decerto exaltando-o. Eu me levanto, lenta, levanto-me e
recuo um passo. Olho-o do meu centro, do fundo de mim mesma, com impaciência e
raiva, sentindo que esta raiva, esta impaciência, batem nos seus olhos e voltam
redobradas, olho-o como se entre nós houvesse um rio caudaloso, um fosso — e nos
fosse necessário muito caminhar, dar muitas voltas, antes de verdadeiramente
defrontar-nos. Mas ele ainda pergunta, mãos crispadas no quepe: "E você? Quem é?
Como se chama?". Sua algidez envolve-me, penetra-me. Deixo-o e respondo da porta,
sem voltar-me: "Não sei".
À noite, fico mais uma vez à espera da máquina, que gira para ninguém sobre
o meu leito vazio, em outro ponto da cidade, no Martinelli. Olavo Hayano, postado
em minha mente, tem o ar de um intruso sobrenatural, reunindo em si os sentidos de
isca e de advertência. Por trás dele se esconde o meu destino, do mesmo modo que ele
próprio se oculta sob a opacidade do seu nome. Há um sim e um não, uma opção
entranhada no ar que o envolve.
Quando desperto, estão separadas e deitadas no leito, lado a lado, as duas que
sou. Vejo-me, sempre, no espelho. Vejo-me agora fora de mim e os rostos que
contemplo me surpreendem. Um deles é ainda um rosto de criança, mas o outro
começa a entrar na sombra da adolescência. Olho-me duplamente, a noção que eu
tenho da minha individualidade é una, sinto-me uma, mas ao mesmo tempo eu me
sinto uma em cada uma que sou e nas duas simultaneamente. De modo que em
nenhuma hipótese poderia dizer: "Ela me olha". Ou: "Respondo-lhe". É como se eu
estivesse no espelho, mas sem saber em qual dos lados está o meu reflexo. Com as
agravantes de que estes reflexos não são idênticos; nem agem como reflexos; e
nenhuma lâmina os separa. A lamparina está acesa no seu copo vermelho e não há
relógio no meu quarto. Nem sempre, daqui, ouço o relógio da sala, entre os cachepôs
com tinhorões. Não sei que horas são. Digo: "Vou embora. Preciso da máquina".
Estou sentada na cama, vestida numa camisa de lã e de pé ao lado da cama, nua. Estou
abrigada e tenho frio. "Isto mesmo. Devo ir. Mas talvez seja tarde demais." "Que se
danem as horas. Vou de qualquer modo." As vozes são diferentes, as duas abafadas,
quase um sopro. "É perigoso andar tarde da noite nas ruas." Ergue-se em mim grande
desprezo por mim. A resposta já não é proferida no mesmo tom de voz, e sim mais
alto, e como que eriçada, sim, há na voz qualquer coisa de um javardo no ataque: "E
isto aqui é seguro? Que quer dizer seguro?". Há um ruído, ou uma série de breves
ruídos secos, trinta bastões de giz partindo-se dentro de mim ao mesmo tempo.
Levanto a mão, afasto-a o mais que posso para trás: a bofetada me flagela à uma o
rosto e o punho. Ainda falo?, respondo?, insulto?, eu?, eu? O combate é longo e
violento. Um duelo de morte. Quero ir-me, outra vez ir-me, tantas quantas forem
necessárias, quero ficar pelo menos por uns dias, as vontades se opõem e a luta nada
tem de infantil. Abrem-se dois olhos vulneráveis? Neles procuro enfiar as pontas dos
meus dedos. Está próxima a parede? Golpeio-a com a cabeça que tenho entre as mãos.
Se alcanço o travesseiro, utilizo-o para sufocar. Se posso, mordo. Se posso,
estrangulo, dou com os cotovelos, bato com os joelhos nos queixos, nas costelas, no
fígado — e exauro-me a cada golpe dado ou recebido. Em meio à luta, várias vezes
trespassa-me um problema: destruindo a oponente, subsistirei? Vencê-la não será meu
fim? A pergunta não modera a ferocidade do duelo. Passam na rua soldados a cavalo,
as ferraduras batendo forte nas pedras — e eu em luta. A lamparina crepita, a chama
intensifica-se, apaga-se, o quarto fica às escuras: eu em luta. Cães latem e silenciam,
passa uma ambulância, há explosões longínquas. Eu luto. Pássaros começam a trilhar
sobre o telhado, eu luto, a débil claridade da manhã penetra pouco a pouco no quarto,
delineando os móveis e as paredes, delineando a inimiga — e eu luto, luto ainda.
Afinal, rolo no assoalho, fico de costas, deitada, braços abertos, respirando rápido.
Digo: "Eu gosto de Inês". Com outra boca: "Odeio Inês". Há uma pausa e eu
proponho: "Quem quiser, fica; quem quiser, vai". Minha voz, em resposta, após breve
silêncio: "Nada de separação. Para o que der e vier, seja uma vida só". "E o Iólipo?
Ele vem. Ele já veio." "Que venha. Veremos quem vence." Levanto-me, sento-me na
cama, estou deitada no chão, nua. Com dificuldade, ponho-me de pé e ando: de costas
para mim. O cantar dos pássaros é mais alegre e de alguma parte, longe, vem um
rumor de garrafas. Alguém põe-se a gritar na Santa Casa. No meu coração,
discordante a princípio e logo em uníssono bate o coração mais novo. Doze anos, seis
meses e dois dias vivo nessa casa.
T 10
ROOS E AS CIDADES
"Quase na hora do seu trem, Roos." Seguimos lado a lado, as valises na mão,
rumo às plataformas de embarque, nomes sonoros precedem-nos, os nomes da nossa
viagem, desolam-me a altura do teto, das escadas, as dimensões da estação, seus
espaços inóspitos, essa aridez, passamos ante a banca de revistas, ofereço-lhe algumas
(Burda, Stern), cruzamos a borboleta, ouço apitos de trem e gritos de pavões, a
paisagem alpestre e as luxuosas vivendas desfilam sob a chuva.
— Grata pelos lagos.
— Se puder, mande-me um cartão para Ravena. Estarei lá numa
semana.
— Mandarei.
— Nunca agradecerei bastante a você por ter vindo a Milão. Sobe no trem, acomoda a
valise, olha-me através da vidraça.
Falta um minuto, ainda pode descer. Varese, Como, Intra, Baveno, Stsesa,
Chiasso, Verbania... Acode-me a esperança de que estes nomes lacustres e o domingo
chuvoso voltem em alguma tarde hibernal a essa mulher que se vai, enredados no sol
de outros momentos. Baixa a janela de vidro, estende-me a mão, Ciao, o trem se
move e seu gesto é o mesmo com que busca, o mesmo, em Amboise, fascinar o
pássaro que espanto com um bater de palmas.
Novos dias de caça. Os últimos? O complexo ferroviário, quilômetros de
trilhos, de dormentes, postes inúmeros, cabos elétricos, locomotivas, pessoal da
estrada e de escritório, regulamentos (VIETO), horários (PARTENZA), estações
(SOTTOPASSAGIO), controles eletrônicos, rádios, ligações telefônicas, uma roleta
imensa e bem lubrificada onde migro durante treze dias, sempre com insucesso, em
rápidos, expressos, noturnos e composições de bitola reduzida que seguem devagar e
se detêm em muitas estações, entredormido sobre a trepidação das rodas, ou
procurando um modo de obter, com perguntas de través, indicações sobre o que
procuro. Vou e vou, de Milão a Verona (cento e sessenta quilômetros), quarenta entre
Verona e Pádua, entre Pádua e Veneza o duplo disto, duzentos de Veneza a Ravena (a
cidade está em festa, fechado o correio, não sei se me espera alguma carta de Roos),
setenta ou oitenta separando Ravena de Ferrara, mais cento e vinte Ferrara de
Florença, oitenta no trajeto Florença a Pisa, de Pisa a Roma: trezentos e tantos, de
Roma a Nápoles: duzentos e trinta?, não muito menos de quatrocentos — ou talvez
até mais — de Nápoles a Assis e daí a Arezzo, e quatrocentos no lance Arezzo—
Milão, sem falar nos oitocentos e vinte e dois que me separam de Roos, para quem, de
todos os lugares, envio cartões nos quais desenho o mapa de austrálias possíveis,
faunas de sonho e um golfo onde escrevo Je vous aime.
Os dois mil quilômetros desse itinerário têm alguma coisa de demência.
Caberia sensatez? A própria aceitação da busca já contraria normas ordinárias de
conduta; e, por vezes, a decisão de ir a certa cidade surge improvisa. Só em Nápoles
— e não em Florença — me ocorre, já desesperado, como se jogasse, em números nos
quais não confio, os últimos centavos, fazer a tentativa de descer em Assis e Arezzo.
Por outro lado, estou convicto, como aquele tão versado em buscas e viagens, de que
para certos empreendimentos "uma desordem bem meditada constitui o verdadeiro
método". A meditação, é certo, faz-se neste caso com o auxílio de mapas; e minhas
conjeturas, quando muito, apóiam-se nos dados, sempre tão sumários, dos impressos
turísticos. Em última análise, nesta migração, entrego-me um pouco cegamente à sorte
— já que me transformo, nisto, em jogador — e, para fazê-lo, bloqueio as íntimas
vozes que me advertem sobre a discordância entre as proporções da busca e as minhas
posses, que só me permitem, neste jogo em que o capital é também constituído pelo
tempo da minha existência e que em mais de um sentido pode arruinar-me, arriscar
em um número muito reduzido de possíveis. Não importa, jogarei o que puder. É o
mínimo que devo fazer e este mínimo é também o único
acesso lógico ao sorteio.
Persuado-me de que a Cidade, por pouco que se identifique — e não foi seu
aparecimento que impôs esta convicção, desenvolvida com o raciocínio, mas a
evocação de alguns antecedentes e o exame de símiles —, emite uma luz prestigiosa.
Ahab, para citar apenas um exemplo, assumiria o encargo que o destrói, aceitaria a
exigência de sua longa caçada, não fosse Moby Dick um ser desmesurado e no qual se
encarna "tudo o que remove o sotavento das coisas"? Este princípio, até certo ponto
incontestável, vale-me. Desfaz a tentação de descer em todas as cidades onde passo,
limitando-me às que por motivos precisos — história, obras de arte, mortos —
elevem-se por sobre o geral. O meu olhar torna-se mais analítico, agudo e cauteloso.
Farejo, cão, nas cidades percorridas, uma presa intangível, uma caça que vi, eu, cão,
por um espelho, mas da qual não cheguei a distinguir o cheiro.
Não poderia afirmar, fraudado em minhas buscas, desperdiçados estes dias.
Silencio sobre códices e incunábulos vistos; e quanto a estas realizações artísticas que
— contempladas, por vezes, naqueles lugares onde foram concebidas — me
transmitem instruções sobre o livro que em segredo aspiro escrever e cujo tema
central seria o modo como as coisas, havendo transposto um limiar, ascendem,
mediante novas relações, ao nível da ficção. Não me responde Pádua? Nápoles não
me responde? Nelas me desmembro, em exercícios vários. Olhos nos bairros da
periferia, o nariz nas feiras, solta no ar a pele, os pés extraviados, a boca nos cafés,
nos bordéis, exangue, o sexo, as orelhas nos mercados e em ônibus que ignoro aonde
vão, a população dos subúrbios, suas casas, peixes, legumes, frutas, calamares, as
temperaturas e as consistencias das coisas, ruas desconhecidas, seguem-me putas
fatigadas e pederastas tímidos, vinhos e perguntas, o sexo exangue, manipulado por
mulheres que não penetrará, pois assim decidi, para que riam do seu possuidor,
julguem-no impotente, alguém mais lastimável do que elas, as vozes, os gritos, os
latidos, os dobres.
Errôneo, ainda, dizer que a Cidade não encontrada continua desconhecida e
oculta quanto antes; que não tenha sofrido, a sua identidade, um processo qualquer,
inacabado, de desvendamento. Revela Amsterdam a existência, em suas ruas, de
claridade ou de algo de que a claridade seja o sumo? Em Pisa, leio a declaração de
que uma incerteza, um talvez, uma dubiedade nela estarão presentes (nela, a Cidade),
sem o quê, minha procura não encontraria recompensa.
Quem me esclarece por quê? Em todas as praças de qualquer cidade, surge um
cordeiro branco, manso, com um guizo e uma fita rubra no pescoço. Pressiona-me
docemente a coxa com a cabeça tenra e segue-me calado. Ante a grande torre
cilíndrica, desequilibrada pelo male oscuro, infiltrações e erosões subterrâneas, mais
dois cordeiros, igualmente com guizos e fitas no pescoço, vêm juntar-se ao que
sempre nas praças me aparece. Dóceis, seguem-me. O sol deste final de maio, como
uma poção alquímica, penetra os mármores, óleo ígneo que acendesse o interior das
pedras, todas as pedras florindo, em chamas, no âmago, de modo que a claridade
parece ao mesmo tempo vir de fora e ser emitida pela torre, o batistério, os outros
monumentos. Um prenúncio? Contemplo estas construções mais ou menos inclinadas.
Sei que os sedimentos marinhos, no subsolo minado pela torrente do Arno,
desequilibram a cidade, fazendo vacilarem os fios de prumo, lei dos edifícios, que
quase todas as velhas construções cedem ou inclinam-se (Pisa, cidade birrefringente,
construída no zircão ou no espato-de-isiân-dia), mas nem assim perco a noção de
verticalidade. Contíguas a essas obras, outras delineiam-se, do mesmo modo
esplendentes, com os mármores brilhando contra as nuvens, porém na vertical, e esta
torre, esta catedral, são ilusórias, pois os edifícios reais inclinaram-se com o tempo,
mas é nestes, nos inclinados, que perpassa o vulto do irreal, exatamente porque neles
se instalou o fio tênue entre o que persiste e o que passa. ~
Como em Amsterdam, Roos, ser — além de ofuscante — dúbio e fugidio,
desequilibrado em sua absoluta simetria, não está alheia a essa experiência. Do
mesmo modo que, em outras circunstâncias, ela presente (carne limitada e espaços
construídos), sou precipitado nas suas cidades, descubro-me, ante a dubiedade e a luz
pisanas, não ante Roos, mas introduzido no universo da sua presença — certeza não
perturbada pela mínima sombra de dúvida. Reconheceria um arqueólogo, com a
mesma segurança, uma epígrafe ou um friso de civilizações com as quais houvesse
convivido, acaso os descobrisse, a centenas de metros de profundidade, ainda que des-
figurados.
Assim, dos grandes espaços, um gato cósmico estende-me a garra. Mas
cuidado! Não supor que por causa desse gesto me pertencerá. Logo recolherá a garra e
ele mesmo, em seguida, se recolherá a outro gato, de que — quem sabe — é a unha.
Avançar na rede dos enigmas pode levar-nos a enigmas maiores. Afinal, constato, de
volta a Paris, não ter-se alterado a natureza ou o ritmo da extensa frase que, sabendo
ou não, Roos, foz do ir e do vir, me escreve: uma correspondência de três ou quatro
dias, inclusive carta de Lausanne e a mensagem que, tudo fazendo para assediá-la,
mando de Verona — uma folha das vinhas que precedem a cripta com o presumível
túmulo da jovem Capuleto e o verso "It is my lady; o, it is my lové" —, aguarda uma
vez mais a sua volta.
R 13
ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES
O céu de Rio Grande, nesta manhã, radiosa manhã, embebido de uma luz que
diria retorcida, como se a Lua agisse de algum modo sobre os raios do Sol que o
eclipse reduz, adquire um tom e peso vesperal.
— A viagem e o rio. Trata de quê, Abel?
— Do tempo mítico e das suas relações com a narrativa. Percebe-se, mesmo a olho
nu, que a luminosidade do Sol
Amortece, mareada pela conjunção celeste. ʘ, evitando agora a proteção das
zonas sombreadas, afasta-se das árvores e vai por onde está ensolarado, compensando
a queda da temperatura. Os urubus planam mais baixo e as aves miúdas ampliam os
intervalos entre um vôo e outro, pulsam mais tempo nos ramos ou nos fios elétricos.
Lançam pequenos gritos inquietos e parecem ao mesmo tempo desejosas de fugir e
entorpecidas, como sob os olhos de serpentes. ʘ é a primeira a ver, na amplidão de
um azul cada vez mais profundo, o rastro branco e ascendente do segundo foguete,
um Nike-Javelin, apontando-o com a mão esquerda adornada de anéis, enquanto o
grito da multidão aglomerada na praia do Cassino aclama o vôo e ecoa — um urro —
sobre os telhados. Leões? Pergunto se me engano ou se algumas estrelas — embora
sem firmeza, como se viessem à tona e pouco depois afundassem — começam a
perfurar a luz meridiana. Ocupamo-nos, rindo, em descobrir novos lumes fugitivos, ao
sul, a nordeste, a sudoeste, de repente eu ouço a queda, em que águas?, de uma rede
de pescar, sopra no meu rosto um vento úmido e noturno, e eu olho para ʘ, imóvel:
ela finge apanhar grandes feixes de chamas, como se o asfalto fosse um campo de
fogo que fulgisse sem nos envolver, finge apanhar esses feixes e jogá-los para o alto,
onde se fixam. Que me diz, à medida que o espaço celeste parece absorver as
fogueiras imaginárias? Fala e eu não traduzo as palavras proferidas: atento para a voz
e a voz não é a mesma, não é a mesma, outra garganta ressurge na sua e a voz rouca,
uma voz conhecida e pontuada de tons viris, não é a mesma, não lhe pertence. Tomo-a
pelos pulsos e escruto-a, não apenas com os olhos, com o meu ser total escruto-a,
como se fosse — ela ou seu rosto — um vaso de recordações ou um texto enigmático
e a partir de então indispensável.
— Que está vendo? (Sim, esta é a sua voz, instrumento restrito e usado com
sabedoria.)
— Nada. Nada, ainda.
A luz do Sol vara as copas das árvores e as réstias estampadas no chão
repetem o que, através de um vidro esfumaçado, observamos: a esfera de fogo sobre a
qual a Lua avança, morta e negra. As réstias sob as árvores, moedas corroídas.
— Sabe, ʘ? Abro os olhos no âmago da noite, como se a noite fosse o mundo. Abro
as mãos ante os olhos e não vejo as mãos. Nem assim me satisfaço: o quarto não
parece escuro como deveria. Pressiono as pálpebras, assim, os dedos sobre a testa.
Abertos. Crio um casulo de trevas e no centro da escuridão faço a pergunta.
— A pergunta?
O carro negro, com o ataúde de Natividade, pára no cruzamento, perdido entre
automóveis, ônibus e misturadoras de concreto. O barracão para a guarda de materiais
— deve ser feito com tábuas ordinárias já usadas e tijolos assentados somplesmentes
com barro. Finda a construção, tijolos e madeira, intactos, podem ser ultilizados de
novo em outra obra. O sol desta manhã de fevereiro cresta as corroas de rosas e as
cinerárias jogadas sobre a ataúde. Dois únicos veículos acompanham o carro fúnebre:
uma viatura do exército e um Chrysler negro, com algum uso, lataria e vidros
espelhados. O motorista, mãos firmes no volante, iguinora o tumulto, estilo de ação
que repudia e considera ameaçador (não vá proliferar, na desordem, algum princípio
insólito). No seu rosto espesso e impassível, na rigidez da postura, pressente-se uma
espécie de susto resguardado por poderes. Como trouxesse nenhuma segurança e ele
sempre esperasse, sem jamis dignar-se a olhar para traz, uma bala no cachaço. O calor
acelera o fácil apodrecimento de Natividade, no caixão de pinho, sob as flores da
vida.
—Exasperante, Abel, a presença do corpo estranho na carne. É como se
doesse o coração e você, para livrar-se da dor, se dispudesse a arrancá-lo. O corpo
estranho nos envenena e envenena o ar. Amar ou ser amado, coisa de valor discutível.
Não acha? As fontes do amor, as direções do amor, sim, importam.
O trem reduz a marcha e as paredes e objetos que passam na manhã ainda
enevoada, fuligionosos, lúgubrs, com uma espécie de indefinível dureza, como se os
contagiasse a vizinhança dos trilhos e das locomotivas, dão-me a impressão de coisas
naufragadas ou explodidas, sem uma ordem que de algum modo as torne coerentes:
não leio o que vejo. Pilhas de madeira jogadas à margem da estrada, guarita de ferro,
montes de areia, sucatas, nas quais se enredam negras plantas selvagens, ônibus lá em
baixo, telhados de duas águas e mesmo os números e letras dos vagões, tudo, visto do
leito, através do vidro baço, parece-me isolado para sempre o seu próprio horror, furos
mal obstruídos no mundo, como os pedaços de lona e papelão, irregulares, que
disfarçam as vidraças arrombadas daquela velha fábrica e depósito. Sopra um vento
úmido na plataforma, com certeza não falta nas manhãs de São Paulo, mesmo fora do
inverno, esta cruviana que me fura o suéter e o terno de brim. Gemini XII bate recorde
no espaço e encerra com êxito sua missão. Conforta-me, apesar do frio e da sufocação
que me provocam as grandes estações ferroviárias, evocar, enquanto sigo entre os
outros passageiros, a existência, nesta cidade estranha, de uma ilha familiar: em
segredo, alguém espera por mim.
— Mesmo que fosse possível, à mãe de um Iólipo, conceber ainda, não é de esperar
que se arriscasse: a placenta do Iólipo assemelha-se a um ouriço. Seus espinhos, claro,
não magoam a gestante durante a gravidez. Mais ou menos assentados, só começam
realmente a crescer e endurecer, pode-se dizer que por malícia, nas duas ou três
últimas semanas que antecedem o parto. São implantados, sobre a placenta, em várias
direções. Imagina-se a dilaceração que provocam. É como se a mulher parisse garfos
ou cacos de garrafas. Nunca, por mais que viva, volta a curar-se inteiramente das
feridas e sofre até a morte de hemorragias temporárias. Mesmo as que, por acaso,
submetem-se à cesariana, padecem com os espinhos. Não é preciso acrescentar que
pai e mãe nunca ficam solidários ante essa experiência.
Abre, sentada na cama, o quimono com crisântemos azuis e as luzes do
parque, móveis, refletidas nas paredes brancas, revelam em parte o ventre e os peitos
volumosos com as rosetas vibrantes, passeamos de mãos dadas ante as barracas de
prendas e nos dirigimos para o carrossel, range o carrossel em torno do eixo ao morno
vento noturno de novembro, negras aves noturnas rangem as asas (articuladas com
dobradiças velhas?), ameaçam entrar pela janela aberta e cruzam os agitados reflexos
que animam os cabelos desprendidos de ʘ.
A 18
ROOS E AS CIDADES
Decorre uma semana, sete dias se vão, uma semana se escoa. Tempo incerto,
com rápidas pancadas d'água, trovões surdos, a chuva fustiga a vidraça do meu quarto
de fundo em Montparnasse e logo as nuvens se vão, brilha efêmero o céu deste fim de
primavera e ventos leves tocam as flores nos outros soturnos peitoris. Vago nos
museus (Guimet, Instrumental, Armeniano), ouço rádio (ONU, Leo Ferré, Sierra
Maestra, Suez, Charles Trenet) enquanto escrevo cartas que nem sempre envio ou
sento-me nos parques, ocioso. Faz uma semana que voltei? Quantos dias nesta espera?
Sete? Seis? Restam poucos visitantes nos bancos ou cadeiras portáteis do
Luxemburgo. Adolescentes jogam tênis e no céu quase noturno perpassam relâm-
pagos. Um dos jogadores, inexperto, atira a bola em minha direção. Curvo-me para
apanhá-la e fico imóvel: creio ver Roos num banco, as róseas pernas cruzadas,
pensativa. Está de volta e não telefonou?
Faz espaço no banco, sem demonstrar surpresa e eu me sento. Lívida, sombras
de cansaço nos olhos, o costume de lã cinza um tanto frouxo nas ancas. Regressou
pela manhã. Esteve em Eltville, a chamado do pai. "Minha mãe não tem passado
bem." "E seu marido?" Exime-se de responder. Nós: as duas margens do rio? As duas
faces de uma faca? Evasiva. Impressão de estar amedrontada ou à espera de alguém.
Fala pouco, levando em conta o tempo decorri-do desde o nosso domingo de chuvas e
ventos na Itália. Escassas perguntas. Gostei de Veneza? Recebi em Arezzo o seu
cartão? Quanto aos que enviei, estão na sua bolsa. Pode acompanhar, por eles, o meu
itinerário.
Apitos prolongados e exclamações dos guardas atravessam as árvores. Vão
cerrar-se os portões. Levantamo-nos. Os pés de Roos no saibro, o compassado ritmo
do seu andar: o ritmo com que segue, no meio-dia da Loire, os versos de Anacreonte.
Ao longe,
bate um portão.
— Bom o seu hotel na rue d'Odessa?
— Classe C. Resta-me pouco dinheiro.
Da única janela, conto muitas outras, cinzentas, todas nos fundos de outros
edifícios. Poucas as estrelas visíveis quando me debruço. Constrange-me a idéia de
que Roos consinta em ver-me, talvez em desnudar-se, num lugar tão aquém da sua
claridade e magnificência.
— No hotel, ao menos, você pode visitar-me, Roos... Cada vez mais eu a amo. É
como um seixo no estômago. Como pedaços de vidro nos olhos.
Finge não ouvir e indaga sobre meus amigos da rua Guynemer.
— Fui lá, esta semana, duas ou três vezes. Agora, há um pouco de paz na
família. O velho tem passado melhor.
Entramos num bistrô junto ao Teatro de França. Os cálices de Porto entre nós,
suas mãos junto às minhas, nossos joelhos tocándose de leve. Frente a frente. O nome
em néon do bistrô, Le Petit Suisse, reflete-se nos espelhos, rubro. Carnal e luminosa,
esplende, inflamada pela luz do letreiro, a pele de Anneiiese Roos. Esta é a mulher a
quem amo. A noite se aproxima e um resto de luz, coando-se nas leves cortinas
brancas, enreda-se nas coisas como teias. Mal vejo as pessoas que nos cercam.
Deslumbrado, só atento para o rosto de Roos, onde cidades desconhecidas agora se
revelam e novamente se ocultam, na pele, silentes.
— Sinto-me bem, na casa dos Weigel.
Omito, por quê?, haver observado que o entusiasmo do chefe de família ao
falar dos próprios pecados e do romance russo diminui; que seu rosto adquire certa
rigidez e a cor da pele altera-se; que começou a morrer e só eu vejo; e que, contra a
vontade, desata-se em mim o impulso de proteger as irmãs, resguardá-las do mundo e
do golpe que ante as minhas vistas se arma, esquecendo-me de que nem sequer tenho
defesa contra a violência, as recusas, os flagelos que me estão reservados. Mesmo
agora, a noção de que um golpe qualquer está a ponto de ferir-me é tão nítida que olho
receoso por cima do meu ombro. Atrás de nós há apenas um espelho na parede e
alguns casacos leves. Contudo, entre frases neutras da conversa difícil, como o perfil
da morte saltando dentre as cartas de um baralho, desliza a frase que há muito receio
escutar, sabendo que um dia ela seria emitida:
— Esta é a última vez que nos falamos.
Meu olhar é como um molde da cidade que em Roos, silenciosamente,
lampeja e sorve-me. Onivejo as ruas e o interior das edificações, os tonéis de bebida
nas adegas sob a rua, ante canais, as pontes e os objetos empoeirados nos sótãos, a
topografia (identifico-a) de Utrecht, a luz de uma tarde de outono, os interiores civis e
oficiais, tudo e o que está dentro de tudo, armários e arcas, e o que jaz nas gavetas dos
móveis, e nesses ais ressoa a minha voz, com uma inflexão de condenado:
— Você acaba de dizer essas palavras, mas tenho a impressão de que estavam
fechadas nas sua garganta, como num vaso, e que eu as ouço, abafadas, há tempos,
dentro do vaso.
— Eu... não o amo.
Suas mãos espalmadas sobre o tampo da mesa. Com as extremidades dos
dedos toca a pele fluida à altura dos pulsos, em direção às falanges (sobre a vitrine
dos cigarros, acendem o abajur enfeitado com rótulos de White Label), toco a pele
fluida, de leve, docemente, o gesto de quem tentasse afagar, sem enrugá-la, a
superfície da água num recipiente, mas a água revolve-se, a carne revolve-se,
sucedem-se fontes — secas, limosas —, ruas esburacadas, pontes com parapeitos
quebrados, casas desoladas margeando um lance de estrada de ferro, postes
emaranhados de fios negros, fachadas de fábricas em ruínas, cheias de vidros poentos
e partidos, lixo amontoado em terrenos baldios, canais infectos, jardins abandonados.
Esquiva as mãos, devagar, de sob meus dedos. O gesto de tirar o lenço da bolsa e
discretamente passá-lo sobre os olhos baixados. Através de que meandros, de que
jogos de espelhos colocados no tempo a viu Bellini?
— Desejaria saber por que a amo de um modo tão cortante.
— Se não continuar a falar, tudo será mais fácil. (A voz demu-dada, tensa, veia cheia
de sal, a ponto de romper-se.) Peço que não procure ver-me. Também peço que não
me acompanhe. Preciso ficar só.
Não percebo se acrescenta uma despedida ou se a palavra adeus é o gesto de
erguer-se e ir embora. Ondulam, à sua passagem, as leves cortinas brancas do bar.
Sigo-a, rua de Vaugirard, ao longo do Luxemburgo já fechado. À distância, junto às
grades negras e aguçadas, Roos parece menor. Quatro coroinhas, com batinas escar-
lates e sobrepelizes, sustendo um pálio negro com varas e ornatos dourados me
ultrapassam, alcançam-na. Ela vai sob o pálio na estreita rua sem árvores e talvez
devido à noite seu costume também parece haver escurecido. Continuam os
relâmpagos, mais freqüentes e breves, acendendo as pontas amarelas das grades que
limitam o Luxemburgo. Ouço um atroar compassado e longínquo de canhões.
Sofreando o desejo de lambê-la como fazem as cadelas e as gatas com as suas
crias, estaco ante a loja de objetos da década de 20, olho um instante as bonecas, as
embalagens ingênuas, os cartazes (Rom Ste. Croix, Koniak i. Mate 0 AIOY), depois
viro à esquerda e subo à casa dos Weigel. Recostado em travesseiros, o enfermo tenta
respirar pela boca. Molhado de suor. Apesar de tudo, diz, sente frio. Suzanne abana-o
com uma ventarola. Sinto, misturados, o cheiro de suor ardido e de sândalo. Julie,
com uma toalha poída, procura enxugá-lo.
— Liév Nikoláievitch Míchkin... (Fala entrecortado. Sua voz apagada lembra-me uma
corrente cheia de ferrugem, fazendo-se em pedaços sob a terra.) Definitivamente, a
vida é um fardo grande demais para os homens. ViVer, Nikoláievitch Míchkin, não
será um crime? Nada é mais impotente e estático, sim, estático, que o nosso amor.
Nosso amor não salva os outros. Antes... antes... pode condená-los.
— Está vendo as coisas sombrias. Amanhã...
— Não, não. Desde ontem, sinto-me clarividente, Liév Nikoláievitch. Veja essas
duas.
Suzanne aconselha-o: "Não fale. Fica pior quando se exalta". Pergunto:
— Onde está sua mãe? ^
— Foi deitar-se um pouco. Está exausta.
— Veja essas duas. Que pode o meu amor fazer por elas? O amor não tem
instrumentos. Tem os instrumentos do prazer. Nada mais. É um evento em si mesmo.
Às vezes pode-se fazer correrem, para os seres a quem se ama, os rios da alegria e da
fartura. Mas é por acaso. Seu amor, no fundo, não é responsável por isso.
Deixo escapar, sem olhar para as irmãs, mas dirigindo-me a elas, e com
dificuldade, como se também me faltasse o ar a mim:
—Amo. E estou desesperado. Essa mulher, eu me precipito em direção a ela.
Compreendem? Sou lançado, caio no emaranhado de coisas que a formam.
Esbarramos em tantas sombras! Vocês duas, também, eu gostaria de desviar para
vocês os rios. Mas quem pode fazer isto? Quem pode?
O agonizante tem os olhos fechados. Ponho a mão no seu ombro. Sem erguer
as pálpebras, prende-a um instante com força. A palma gélida, suada. Solta-a. Vou
para a sala e tombo no sofá, junto ao abajur. Meus olhos ardem. No braço do móvel,
um pedaço de seda ali deixado por Julie, cheio de exercícios de pontos: ponto de luva,
pesponto, sobrecostura, costura dupla, ponto de bainha.
Suzanne vem e senta-se a meu lado. "Acha que meu pai está morrendo?" "Não
sei, talvez." "Não se preocupe. Você é mais desamparado do que nós." Olho seus
cabelos, presos, como sempre, à altura das orelhas: "Acredito. Mas você não pode
saber disso". "Posso. Eu sei."
Confuso, passo a mão nos seus cabelos, num gesto protetor, um gesto arcaico.
A trepidação distante da cidade parece fazer parte dos móveis, do solo, das paredes. O
velho bandolim jaz de borco sobre uma poltrona.
T 11
O 19
Doze anos, seis meses e dois dias. O tempo, a vida, os acontecimentos — salas
fenestradas. Em todas as paredes, janelas abertas, e as janelas olham para outras salas
rodeadas de janelas através das quais vêem-se as janelas de novas e estranhas salas, e
tão numerosas são as salas que cada uma é o centro das demais. Neste centro móvel,
impreciso, com idades que não são nenhuma idade definida e dois pares de olhos que
escrutam como se fossem um só par ou mesmo um olho, neste centro, sondando,
através de todas as janelas, as janelas próximas, eu, inserida num jogo de espelhos
arbitrário, e onde as interações, por incontáveis, tendem para o esférico, vejo-me, vejo
os demais e também vejo a mim mesma no ato de me ver e de ver os que me cercam.
Vejo-me, vejo os demais e os variados cenários em que nos movemos. Todos. Todos
os cenários. Todos nós. Um par de olhos vê por dentro do outro par: é como se fossem
de outra substância, são olhos mais tenros, mais inocentes que os olhos mais velhos.
Assim, este mundo de janelas abertas sobre inumeráveis segmentos do fluir das coisas
e que, por numerosas, evocam a forma esférica, duplica-se, refratado por meu duplo
olhar. Duas dilatáveis esferas de saiões rodeados de janelas, uns trespassados nos
outros, ressoantes, ressoantes dos meus passos, de vozes perdidas, ressoantes também
dos meus silêncios e não circunscritos a esses doze anos, seis meses e dois dias: toda a
minha existência aí está — e aquele centro móvel, fugidio, que transita de uma sala a
outra, como se fosse o centro de gravidade do tempo, é uma das formas — uma forma
concreta — do presente, do ina-preensível agora. Eu tentando ler meu nome no bater
de um martelo e eu diante de Inês, perplexa, ciente de que os seus modos e palavras
têm algo de novo, mas não sabendo em que consiste o novo e quais seus frutos, eu
apertando o gatilho; na boca um gosto de sangue — tarde de — o gatilho do revólver
— agosto? alameda Franca? eu? uma escolar temerosa o braço erguido sustendo.
Malmequeres desbotados em um velho pedaço: de jornal o céu da madrugada
empalidece (ouço o mar percutindo na amurada) e eu com este homem ( ) nus ( ) os
joelhos no assoalho enquanto ele pergunta: repetindo, as, palavras ouvidas de outra
boca em outra hora cingindo; com tal força meu pulso; que a mão fica dormente o que
será? de nós? e eu respondo e soluço como se na verdade fosse o pranto a única.
Resposta viável. Minha avó com sessenta e oito anos com setenta Olavo Hayano e eu
o enterro da negra com setenta e cinco o incêndio do prédio em construção frente ao
Martinelli. (Eu.) Visitando meus pais o enterro da negra através da cidade Inácio
Gabriel na praça da República um frio entardecer em fins, de junho minha avó,
setenta e nove oitenta, outras idades o sol; das onze horas eu; com Inácio nós eu & ele
olhando os gansos que deslizam no lago não apenas. Com essas várias idades.
Dirigindo-se ao marido a mão direita voltada para mim, não, contra mim, meu avô na
sua escrivaninha amontoada de autos sob a luz, do abajur, ele em seu leito de morte
numa gaveta qualquer a dentadura, um, abajur de metal a menina às suas costas/
ocupa a poltrona de couro e olha os dísticos/ dourados, dos livros, nas estantes e — no
quarto — de Inês mais alta agora que Inês na mão uma tesoura de costura segurando a
tesoura pela ponta ofereço-a a Inês num gesto instigador o rosto duro. Uma? Pedra. A
serpente mordendo-me as costelas. Nesta sala: deitada no tapete, a perna direita
flexionada e a coxa repousando sobre o flanco de Abel: em outra sala, escura, eu
ainda, um ser escuro, olhando para as salas contíguas, umas iluminadas, outras não, eu
— velha?, matura? —, pensando sombras, agindo. Meu ato: uma sombra.
Com o tremor das mãos, devo ter arranhado a outra face do disco, um choque
rítmico e desagradável fere as melodiosas vozes dos cantores. As rodas dos
automóveis, na avenida, deslizam e freiam, as rodas, rente a meus pés; o rumor da
serra numa construção, agudo, atravessa meu corpo; mal vejo minhas mãos, os olhos
turvos. Eu na sala, de pé, curvada sobre o disco em movimento. Um choque rítmico.
O rastejar no tapete e os repetidos beijos em torno dos meus pés, tiros que por pouco
errassem o alvo. Distingo, nas vozes dos cantores, as palavras aeternum, vita e
amicitiae. Abel beija-me os pés.
Meu avô recusa-se a ter rugas como magistrado; ponto de honra, para ele,
estar em dia com as leis e a jurisprudência. Ao mesmo tempo, receia que se altere a
concepção de justiça que possui quando ingressa na magistratura. Este desejo de
coerência, convertido em dogma, transforma numa selva de sofismas sua atividade na
Justiça. Exibe-me os extensos fichários, acumulados em quase três decênios de
serviços prestados. A quem? Sua voz pausada, segura, na qual é possível captar,
afiando o ouvido, um susto: "Ninguém pode surpreender-me numa incongruência.
(Sinto que a incongruência está nos seus calcanhares, dorme com ele e se imiscui nos
seus bolsos.) Desafio seja quem for a encontrar, dentre todos os meus pareceres, um
só que contradiga outro. Um só". Classifica as causas por assuntos. Organizar as suas
fichas consome ainda mais tempo que o destinado a armar os pareceres, mas o
fichário — Arca da Eqüidade e da Justiça — presta o serviço para o qual existe: meu
avô, antes de opinar, e mesmo antes de formar um juízo sobre os processos que
chegam às suas mãos, revê atento os pareceres antigos. "A habilidade consiste em
manejar a jurisprudência. Uma de suas funções é dar solidez aos nossos pressupostos.
Isto porque um magistrado não muda. Um magistrado não tem direito a ter duas
opiniões, nem que viva mil anos. Caso contrário, não merece o cargo." Inconcebível,
para ele, que o tempo ou os acontecimentos possam de algum modo alterar, aos
setenta e três anos, um juízo exarado por volta do seu quadragésimo oitavo
aniversário. Um parecer do avô, ancião exemplar, é um coágulo. Junho de 33: indig-
nado, desenvolve uma rama de argumentos e pede a pena máxima para um carpinteiro
que, ludibriado, assassina o patrão a golpes de martelo; setembro de 56: sugere igual
castigo para um crime idêntico, daí recuando para as suas razões, e das razões
chegando à indignação, por tal modo que tudo se complete e ele durma em sossego.
Um grande homem, ouço muitas vezes, na sala transformada em câmara-ardente,
enquanto transito entre varões de ar oficial e mulheres altaneiras. Um grande homem,
tal como exige um mundo também morto.
Lentamente, levanto o pé esquerdo, Abel toma-o entre as mãos e beija a
planta, beija o calcanhar e o tornozelo, trinta, quarenta vezes me beija os músculos da
perna, vai erguendo-se aos poucos, beija-me os côncavos do jarrete, eu toco
novamente o soalho com o pé que está erguido, ele beija-me o joelho, eu me volto
para ele e o seu rosto sobe entre minhas coxas muito unidas, ouço o ruído abstrato dos
seus beijos, mas ele já não beija a minha pele, beija o espaço entre as coxas, de
joelhos, enquanto com as mãos leves acompanha, por trás, o contorno das pernas, o
redondo das nádegas, modela-me os quadris, com leves mãos.
Talvez haja nascido comigo, e renascido, uma serpente — Ira. Envenena a
imagem do meu pai, da minha mãe (são realmente meus pais?, nós temos pais?),
debate-se contra as paredes forradas de papel marrom, contra as flores encardidas das
paredes entre as quais passo uma infância e inicio outra, contra, morde o mundo.
Trago esta serpente em mim, enroscada nas costelas e não me abalo a escondê-la: suas
escamas, por vezes, despontam em minhas unhas, por vezes seu corpo contrátil me
enche a boca e eu cuspo-o, enrola-se no meu pescoço e espreita serpente por cima de
meus ombros — direito ou esquerdo — os que são dóceis e tudo aceitam sem queixa.
Voa Inês sobre as coisas, voa entre mim e as coisas, e distrai este réptil, adormece-o.
Experimentando, através de nomes sempre substituídos e nunca repetidos, ingressar
no meu ser e conhecê-lo, tece-me nas coisas, no dia-a-dia da casa, na temperatura das
salas e em tudo que esta ilha amena contém e irradia. Uma encantadora de serpentes.
Ainda que, após submeter-me, este mundo farto me recuse, aprendo a vê-lo como
irrecusável. Ira, nédia, cordata, enrosca-se entre minhas vísceras. Adormece. Seu
longo sono exala um odor de jasmins. Perdem-se, à deriva, no espaço ou no tempo, as
peças da imensa máquina noturna. A primeira aceitação é todas? Aceito o quarto, a
casa, o jardim, o portão, aceito a rua, rendo-me, esqueço a máquina (testemunho,
quando vou ao Martinelli, sua lenta deterioração, semelhante a uma esquadra
suspensa que se dispersasse), volto minha espádua à parte negra e desvalida do
mundo. Cada vez minha ida à casa dos meus pais é menos espontânea e cada vez os
corredores à deriva do prédio me parecem mais longos, mais escuros.
Um favo que se rompe, um figo muito doce que se abre — e o mel escorre-me
entre as coxas. Ele beija-me os pêlos. Desperto no silêncio da noite; voz alguma, débil
que seja, escuto no meu corpo, vagando. Alguns beijos, por entre a massa espessa dos
meus pêlos, ferem-me a carne, ferem-me o sexo, abrem-se as veias, parecem muitas e
grossas para o sangue que foge. A desagregação da máquina. As palavras se
extraviam por suas aberturas e vãos. A espaços, a espaços, ainda reencontro em mim
as vozes. Os beijos ferem-me a carne, susto a respiração, prendo entre as mãos sua
cabeça e vejo que não pesa. Aeternum, vita, amicitiae.
Meu pai numa poltrona, as pernas sobre almofadas, ainda não refeito das
incrustações: placas de metal nas tíbias. A corneta de chifre pende do pescoço, ele
evita responder às perguntas que lhe faço. Ambas as orelhas de borracha — o giro das
espadas. No sofá, minha mãe e um casal de crianças. Ela faz-me perguntas invejosas;
não é para que eu seja aceita e ela mesma permaneça excluída que me leva à missa
fúnebre da irmã. As crianças cortam em pedacinhos, com tesouras, uma velha camisa
de meu pai. Parecem-se comigo e têm o olhar maligno. Com aversão, com ódio, logo
com horror, ouço-as conversarem e trocarem sorrisos cheios de malícia. A serpente
agita a língua em algum ponto secreto do meu corpo. São estes, estes, este menino e
sua irmã, são estes que me salgam os olhos e me furam com alfinetes nos dias em que
vou de um quarto a outro interrogando-me sobre o meu próprio nome e flutuando num
mundo inconsistente. São estes? Então cabe-me a vez de torturá-los.
P 2
O 20
Que me atormentam? são estas crianças? as duas? Se: devo perguntar à minha
mãe. Descerei os tisnados degraus do Martinelli, cada vez mais gastos, descerei com
vagar esses degraus e no meio da escada voltarei. Para fazer-lhe a pergunta. Ficarei
ante a porta, hesitante, ficarei ante a porta, sem ousar premir a campainha, ouvirei
risos na sala e — de súbito — a voz, a voz de um deles, uma voz infantil e depravada
como a de alguém no último grau da vileza: "Aquela é o Hernidom?". Aviltante e
ofensivo perceber, na voz, semelhanças com a minha. Dou meia-volta, afasto-me,
desisto de chegar a um esclarecimento. Dias e dias, intrigada, repetindo esta frase
inexplicável: "Aquela é o Hernidom?". Indagando sobre quem ou o que será o
Hernidom. Hernidom, afinal, será o mesmo que Ira?
Ele beija meu sexo e sustenta-me os peitos, o crocodilo passeia junto ao bule
de prata tombado no tapete, ramos de ñores nascidos do tapete quase ocultam as
paredes e enredam-se nos lustres, se enredam, pendem para fora através da janela, as
leoas passam pelos nossos corpos, as leoas, o coelho, cabras de pêlo branco e cadelas
de cabeça humana passam pelos nossos corpos, andam na sala, sobem nas poltronas.
Ele roça com os dedos as pontas dos meus peitos, sua postura é a de um homem a
quem apontam uma arma, os braços para o alto, nos meus peitos florescem
margaridas brilhantes, rebentam violetas dentro do meu ventre e o crocodilo — roxo,
vermelho e verde —, o crocodilo desliza junto ao bule de prata
Inácio Gabriel, tens quantos anos, Inácio? Para dezesseis, sério demais; muito
franzino para vinte. Um adolescente de ossatura frágil, um efêmero anunciador, eis
tudo. Praça Antônio Prado, frio entardecer em fins de maio. Cinzento o céu, úmidas as
ruas e as calçadas. Ressoam no silêncio meus passos infantis, eu seguindo pela mão
do meu pai, sobre essas mesmas pedras, em desoladas tardes de domingo. Não chove
mais e os altos de alguns edifícios fulgem ensolarados contra o céu de chumbo, sem
que se veja, do chão, de onde vem o sol. Assusta, nos olhos de Inácio, a ausência de
ambição e de brilho. Nele, tudo faz lembrar uma aquarela pálida, uma paisagem
entrevista sob a névoa: as sobrancelhas leves, o sorriso discreto, a voz velada e
mesmo o jeito de andar: os passos inaudíveis, cautos. Veio há menos de um ano do
Recife e o terno bem passado, mas de qualidade inferior, abriga-o mal contra o frio.
Se, ao menos, pusesse um suéter! O grosso livro negro — trabalha no 11a Ofício de
Notas — parece muito pesado para os seus braços. Veículos salpicados de chuva e
pessoas apressadas passam, muitas
de olhar ansioso.
— Ainda não tinha visto em São Paulo uma tarde como esta. Tudo tão leve! Preste
atenção ao cheiro da cidade. Diferente, quando o ar está lavado.
— Como é seu nome?
— Inácio Gabriel.
Olho-o de face, no fundo dos olhos, olho-o, de face, leio em alguma parte dos
seus olhos as ameaças que o cercam e vejo-o em sua verdade, cândido, desamparado,
atento às variações dos odores, com seu andar inaudível e as mãos inquietas, vejo-o
chegando de tão longe através de muitas transversais, becos, desvios, para encontrar-
me nesta pequena praça brutal, sem silêncio e sem árvores, desnorteado no mundo,
com a morte sorrindo de maneira solerte dentro dos seus olhos, vejo-o destruído e
compreendo que este encontro casual é o prenúncio de outros, e algo nunca pressen-
tido se desata em mim e eu olho o fugitivo sol nas paredes distantes, certa de que só
nós o vemos — tomo a sua mão e decido que algo devo dar-lhe, que algo lhe darei
com urgência, pois ele decerto não está nas ruas para receber, não tem mãos de
agarrar, transita em silêncio entre clamores e gritos de ambição, é raro e será reduzido
a pó, de nada o salvarei (quem pode salvar?), mas durante alguns passos ele terá
companhia.
As duas, eu e eu, as duas, contemplando as coisas e a própria metamorfose.
Inês, conquanto feita para transitar entre as pessoas sem ser pressentida, despende o
seu fascínio. Não escolhe motivos para rir com prazer, embora com uma ponta de
melancolia (os incisivos superiores sempre aparecem entre os lábios curtos), e sua ter-
nura desmedida, expressa nos sufixos do grau diminutivo, abrange as plantas, móveis,
seres inexistentes, parte do seu corpo, seus pertences: "Onde está minha blusinha?";
"Tome um docinho"; "Guardei no meu bolsim"; "Machucou seu pezinho?"; "Estou
com os olhinhos tão cansados!"; "Que caminha quente"; "Que saudade, meu bem, do
Passarinho Voou!". Sopra-me adulações e hipocorísticos: "Luisinha, você foi feita
para sedas. Olhe os seus dedinhos como são macios. Que pele, meu Deus. Você é que
tem sorte, Vanju". Nutre a idéia, já vigorosa em mim, de que seria um desastre perder
meus privilégios, eu, com estes dedos macios, com esta pele tenra, feita para os velu-
dos, os damascos. Eis-me então servil ante bedéis e mestras, eis-me conduzindo
buquês de fanados malmequeres, passados numa folha de jornal, o braço erguido, as
flores mais altas que a minha cabeça. "Prestou atenção ao seu avô? Fala a você com
um carinho! Ele trabalha com as leis. É um homem importante, Naná. Coração de
pomba." Concordo e logo me orgulho desse homem calvo, ponderado, elásticos nas
mangas da camisa, viseira na testa, redigindo com zelo pareceres que são reflexos
alterados de outros. Sentada numa poltrona de couro, olho os títulos das
encadernações nas estantes. Ouço o rascar da pena no papel. Meu avô se levanta para
interrogar os seus fichários. Inês, entreabrindo a porta, dilata os olhos, sorrindo, em
direção a ele e se retira em silêncio. Seus gestos acentuam a distinção, a minha, de
estar ali, fazendo parte da sombra que rodeia o avô e a sua escrivaninha, enquanto
grandes questões tomam a direção que ele sugere com a sua coerência.
Erguemo-nos do solo. O gamo, sentado junto ao grande relógio de caixa, cujo
pêndulo oscila devagar, nos olha. Rolamos no ar, entre as folhagens, os ramos, os
bichos, rolamos no ar, abraçados com força, pousamos no tapete. Rumor de multidão,
alguns gritos, um riso, um chamado. Serão as minhas vozes que ressoam em mim?
Plantas e animais tornam aos nossos corpos.
Minha avó e sua vida murada, uma rede de ciclos intercomunicáveis e restrita,
de modo que seus atos e palavras tendem a repetir-se com variações quase
imperceptíveis, ou imperceptíveis, acu-mulando-se — atos e palavras — uns sobre os
outros, obsessivamente. Seu rosto muda sob a pintura, a linha da coluna encurva-se
um pouco à medida que seu queixo, tentando uma compensação, alteia-se, as palavras
são ditas no ritmo de sempre, mas algumas sílabas, em número crescente, perdem-se
na língua, o rápido e perscrutador lance do olhar torna-se menos eficaz e os cabelos
mais negros, dado que carrega nas tinturas à medida que progride o encanecimento.
Quase não se altera, apesar de tudo, o repertório de censuras, ordens, refeições e
passeios, esse ritual descabido e que não converge para um fim preciso. Palavras
muitas vezes repetidas: "Como pôde você enganar-se desse modo? Um homem tão
vivido e habituado com os inimigos da sociedade! Ela é irrecuperável. Foge entre as
nossas mãos. De que lhe serviram os milhares de pareceres e a Revista dos Tribunais?
Enfim...". Não elucida uma só vez o que esconde esse advérbio solto, enigmático,
deixado em suspenso.
Movo-me, com treze anos civis, estas crianças de nove, aprendendo na escola
as mesmas coisas que elas. Não nos entendemos: sou indiferente aos seus brinquedos
e atenta a numerosas coisas que ainda não percebem. Mais alta do que todas, mais
velha (e simultaneamente mais nova), distingo-me também pela gordura e transito nos
salões e pátio de recreio com uma funda consciência de segregação. Um monstro
anacrônico. Trespassam-se em mim os meus dois nascimentos e as filhas desses
nascimentos, dois corpos num, só um deles visível; o outro, espreitador, apenas se
revela pela voz que se alterna com a do corpo visível, ou pela dentição extemporânea,
ou, ainda, por manifestações menos evidentes. Ao sabor dessas alternâncias, meus
períodos, irregulares e ás vezes lancinantes, sem que ninguém saiba, oscilam. Não é
outro o ritmo da minha aprendizagem. Passam-se meses nos quais a dupla noção que
possuo das coisas é como que regida pelo corpo mais novo e eu não consigo
progredir. Sou suspensa, sou expulsa, sucedem-se as reprovações. As flores que
ofereço são jogadas na cesta de papéis com o jornal que as envolve.
Quantas vezes nos vemos, Inácio Gabriel? Dez? Doze? Talvez menos, talvez
ainda menos. E essas poucas vezes parecem uma só vez, um só encontro realizado
com interrupções. Um encontro pressuroso, como duas pessoas na estação, entre dois
trens. Dão o sinal da partida, os condutores gritam, os retardatários vêm correndo e
jogam a bagagem no estribo. Sabemos que algo essencial não será dito, que o mais
importante, o que deve ser confessado antes de tudo só nos ocorrerá quando
houvermos partido, cada um na sua^ direção. As palavras se atropelam, os gestos se
atropelam e há silêncios, e os silêncios nos afligem, pois sabe cada um que ficarmos
frente a frente é um privilégio fugaz, mas continuamos sem falar. E de repente vemos:
estamos sós. Fizemos tudo? Dissemos tudo? Fugidias tardes de domingo, quase todas
de neblina. Ano de pouco sol, o de 1951. Vibro de alegria, pela primeira vez conheço
o gosto da alegria. Mas esta alegria gera um pássaro ainda preso e inquieto. Olho para
Inácio Gabriel na obscuridade do cinema; com a atenção fixa na tela, ele não sabe que
o observo; seu rosto plácido tem algo de um reflexo, nele se reflete um velho. De
repente me vê, vê que o observo, o velho foge e sua juventude vem à tona. Galerias do
Municipal, intervalo de um concerto; volto do toalete e vejo-o à distância, a mão no
queixo; nada tem do adolescente que pouco antes joga aviões na platéia e nomeia
sorrindo as mulheres esvoaçantes do forro, até a sua cor é diferente; aproximo-me e o
rosto que se ergue para mim é o que eu amo. Nós na Confeitaria Vienense, com-
prando doces que comemos na praça da República, olhando os patos no pequeno lago.
"O que será de nós?" Ignoro que pela sua boca outra voz está falando e não posso
entender este som de ondas quebrando-se em rochedos, distintamente ouvido no
mesmo instante em que ele faz a pergunta. "Nós quem, Inácio?" "Nós, que de um
modo ou de outro não queremos oprimir os demais." Tomo sua mão: está trêmula,
ardente, ele tem febre e deve estar com frio. Leva-me ao ponto do bonde, espera que
eu suba e acena para mim. Alegremente, apesar da febre. Desço e volto, para observá-
lo sem que ele me veja. Vai pela calçada, entre os passantes, devagar, a mão esquerda
no bolso, olhando as árvores. Visível o desenho das omoplatas sob o paletó claro. Tão
frágil és, Gabriel, e quão pouco o meu amor te guarda! A Morte, pronta a lançar sobre
ti a sua rede, segue-te sutil.
T 12
CECÍLIA ENTRE OS LEÕES
Ó agir humano, ó sucessão das coisas, detende-vos se podeis. Tempo,
contraria teu curso, viola teu ritmo, interrompe teu sereno fluxo impassível ou desaba,
sem leito e sem comporta, sobre mim. Cecília está comigo. Seu rosto, visto contra as
pedras da praia e o mar—o mar vermelho e verde nesta hora da tarde —, parece
simultaneamente eterno e fluido, fugindo à minha posse e mesmo à contemplação.
Um rosto flutuante entre contrários. Jazem suas mãos sobre a toalha branca, junto aos
copos de vinho, um pouco inquietas. Homens e mulheres deslizam do seu corpo,
andam entre as cadeiras e as mesas rústicas deste restaurante assentado entre
coqueiros (alguns troncos varam o teto de palha e quando o vento sopra com mais
força ouço o roçar das palmas sobre a coberta), saem, sentam-se nas pedras,
estranhos, suas pegadas cruzam-se na areia. Um deles toca-me o pulso, de leve. Um
homem pálido, a fronte fugidia, o nariz aquilino, o queixo delicado. Brilham os dois
olhos, mas um não vê, o direito: o outro me contempla, afetuoso. Meu pai. Não o pai
carnal e nem sequer um pai imaginário. Um pai de outro gênero. Reconheço-o e sinto
o cheiro do seu corpo. Um cheiro de trabalho constante, mas não árduo. Cecília,
devagar, fala do que faz no emprego. Move-se, desde as primeiras horas da manhã,
entre o Hospital Pedro n e instituições de previdência — dispensários, sindicatos,
centros sociais —, às voltas com funcionários omissos e médicos quase sempre
impassíveis, buscando solucionar problemas enredados. Ordenado exíguo e às vezes
pago com atraso. As coisas de que fala, inserindo-a na vulgaridade da vida e reve-
lando o seu modo de viver, ativo e generoso, impedem — prendo as suas mãos
inquietas —, desde este primeiro encontro prolongado, que eu a veja de um modo
purgador, sem pó nos tornozelos. Intangível? "Nada esperam. O mais difícil de tudo é
evitar que desistam." Cecília, portadora de corpos, romã de populações, não é — ao
contrário de mim — um ser à margem. Suas horas de trabalho, e mesmo, não raro, as
horas da tarde, estão ligadas às atribulações dos que povoam os mangues e os bairros
afastados — Água Fria, Chacon, Vasco da Gama.
A sombra do restaurante avança para o mar e a dourada luminosidade do céu
adere às nuvens raras. Cecília passa a mão entre os cabelos curtos. Rugem leões
verdes nas ondas que golpeiam as pedras.
Seguimos ao longo da praia, entre o fim do dia e o vir da noite, entre a terra
firme e as águas, entre. O mar parece coberto' de moedas de cobre meio oxidadas,
vermelhas e verdes. Cecília descalça os sapatos. Está sem meias e seus pés um pouco
largos nas plantas, habituados a andar, pousam com ritmo na areia úmida. Meu pai e
suas réguas. Com giz de alfaiate, risca um corte de brim. As ondas, sucessivas,
formam-se e desfazem-se, ruidosas: e manchas de óleo, e detritos de cocos e pedaços
de alcatrão despejados por algum navio ao largo. O céu uma cúpula de ouro, com
efígies de cágados. Cecília: figura-delgada, ossos de pássaro, a magia da carne
tornando ainda mais sutis os seus ossos. Plumagem. Nela, não vejo asas. Tão leves,
porém, são na areia clara as marcas dos seus pés e tal encanto existe nos seus ossos,
que me pergunto: "Flutua?".
Seguimos ao longo da praia, sem destino. Em grandes haustos, respiramos
setembro. Os instantes são dias. Cresce, neste passeio em que tardes e noites se
concentram, meu amor por Cecília, a precisão de incorporá-la à minha vida (ou de
incorporar, à sua vida, a minha), crescem a nossa intimidade e o mútuo conhecimento.
Her-menilda ou Hermelinda não mente quando diz que sou homem das letras e dos
livros. Planejo escrever. Para quê? A certa altura do seu governo, tão prolongado,
Vargas preocupa-se com as saúvas. Podia ter inventado, como programa, multiplicar
os pássaros e os tamanduás. Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um
sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir,
de não ir levando ao azar a minha vida. Uma decisão artificial, Cecília. Honesta,
contudo. Invento, ao mesmo tempo que as formigas, pássaros imaginários e
tamanduás com língua de fogo. Jogar umas palavras contra outras, exercer sobre elas
uma espécie de atrito, fustigando-as, até que elas desprendam chispas: até que saltem,
dentre as palavras, demônios inesperados. Numa sociedade como a nossa, da qual,
mais ou menos como os seus clientes do Hospital Pedro n, desconfio e que não me
atrai, é, com atritar as consciências — até que estas, igualmente, façam-se em chamas
e incendeiem o arcabouço velho —, o que resta fazer. Ambas, vê-se bem, atividades
mais ou menos gratuitas, e, em certo sentido, fora da lei. Estou longe de ter as virtudes
exigidas para incendiar as consciências, como faz, na zona canavieira, Francisco
Julião. Falta-me a energia cega dos reformadores; e com a minha tendência, talvez
arcaica, para raciocinar com todos os dados dos problemas, custaria muito a decidir-
me sobre os valores que devem ser incinerados ou substituídos. Nem, ao menos, sei
dizer com segurança se a profissão que você exerce, fraterna e retificadora, é mesmo
adequada à realidade que vivemos. Ela pode dar um sentido à sua vida. Mas, ver-
dadeiramente, tem sentido hoje? Não sou capaz de responder, Cecília. Resta-me,
então, por este modo recusando todas as estúpidas formas oficiais de viver, isto que
suponho ficar em minha alçada — intentar maquinações com as palavras. Projeto
desesperado e enleante.
Um carneiro nascido das areias e das espumas das ondas acompanha-nos,
dócil. De dentro de Cecília, meu pai, entoando uma cantiga dos seus tempos de moço,
olha para mim e põe a mão no meu ombro. Chapéu de feltro, a barba negra raspada,
cicatriz no pescoço, as mangas da camisa arregaçadas. Também dócil, segue devagar
ao lado do carneiro. Seu relógio barato, de pulso, marca mais ou menos cinco horas.
Adolescentes furam as ondas traiçoeiras da vazante. Por vezes, rabeia um
peixe na onda levantada. Meu pai, apreensivo, olha para trás e afasta-me, num gesto
protetor. Nesse momento, ouço o rumor dos guizos. Uma grande roda cor de prata,
alta como um sobrado, vem girando na praia. Uma roda de metal, com oito raios, um
pouco vacilante, avançando sozinha, devagar. Abrimos alas. Vem a roda, exalando
calor, aproxima-se, cheia de guizos e ornada com fitas coloridas. Os raios e o aro,
polidos, refletem o céu de ouro, o sol poente, a superfície acobreada do mar. Avulta,
passa entre nós, a roda, lenta, o doce rumor dos guizos tornando a tarde mais leve,
afasta-se, deixa na areia o sulco da passagem, inflete em direção aos adolescentes que
se banham, o rumo é corrigido, uma roda solene, nova, brilhante, seguindo ao longo
da praia, sem que ninguém dê atenção à sua passagem majestosa e insólita. Desvia-se
para a esquerda, abre sem ser abalada uma onda que se quebra, avança lentamente
mar adentro, lentamente, desaparece ao longe. Grandes aves rápidas e claras surgem
nesse ponto do mar, voam ameaçadoras, cinco ou seis, alteiam-se e em seguida
mergulham, céleres, com as asas fechadas, como se atacassem famintas um cardume.
Antes que mergulhem os pássaros, novo rumor se inicia, este em Cecília:
soalhas de pandeiros. Respondem logo ao rumor, à direita, com um pouco mais de
intensidade, outros tantos pandeiros, tangidos por meninas entre dez e treze anos. Eis-
nos escoltados pelos dois cordões do pastoril, sete figuras de um lado, com longas
saias vermelhas; sete de outro, com longas saias azuis, algumas desbotadas. Entre os
dois cordões e de tal modo que pane do seu corpo trespassa o de Cecília, vai a Diana,
vestida de azul e vermelho, sinal de que pertence às duas alas. No pandeiro redondo,
maior que os das pastoras e que ela faz soar com os braços levantados, também
esvoaçam fitas vermelhas e azuis. Das mesmas cores é o grande laço que prende os
seus cabelos crespos. As pernas da Diana e as de Cecília, dançando as da primeira,
andando as da segunda, trançam-se. Nem todas as meninas trazem pandeiros. Duas
conduzem uma cesta com jambos, laranjas e mangas-rosas; duas sobraçam dálias,
lírios e açucenast A Diana, cessando de tocar, ergue ainda mais os braços, faz-se
silêncio e todos nós paramos. Rugem leões verdes, nas ondas, entre os peixes. As
pastoras, de repente, iniciam uma loa, marcando o compasso da música com os pés e
os pandeiros, estes enfeitados de fitas como a grande roda desaparecida:
Vinde, vinde, moços e velhos,
vinde todos apreciar,
como isto é bom, como isto é belo,
como isto é bom e bani demais.
A noite vem chegando. Entre os dois cordões, um homem já idoso, de barba e
cartola, metido num fraque sovado, grita agitando as mãos: "Sou Modesto Francisco
das Chagas Canabarro. Sou conhecido nestas paragens. Sou Modesto Francisco das
Chagas Canabarro!". Berra o carneiro, Cecília sorri, meu pai nos segue calado.
Digo a Cecília (em redor de nós as vozes infantis, o bater de pés na areia, o
ruído festivo dos pandeiros, o quebrar das ondas, o cheiro da salsugem e do suor de
Modesto Canabarro) que desejaria estar inaugurando o mundo na sua companhia e em
paz com todos os bichos. Cecília, de cabeça baixa, lembra que não mais existe e não
será reencontrada a harmonia do tempo em que a onça lambe as unhas do homem.
Aperta a minha mão e com a outra protege a saia batida pelo vento. Seu corpo
continua povoando a praia. Com as pastorinhas, segue-nos, acompanhando a loa, uma
pequena orquestra: clarinete, pistão, bombardino, bombo e um trombone rouco. No
bombo está escrito DEIXA FALAR, seu portador, desdentado, ri com alegria, dançando
ao compasso da jornada. Os músicos, de cor escura e vestidos pobremente, não têm
sapatos. Tilinta o chocalho do carneiro e o velho barbudo continua: "Sou Modesto
Francisco das Chagas Canabarro!".
A areia, que range sob os meus pés e sempre teve o nome de areia, não é a
mesma. Os nomes e as coisas (a palavra tarde e a tarde, amar e a palavra amar), as
coisas e seus nomes transformaram-se. O mundo, agora que seguimos pela praia,
vivos, reais, de mãos dadas, difere do mundo que precede este encontro. Uma moeda
suja, enterrada há muito tempo e sua nitidez depois de limpa. Vê-se o perfil do rei
(que não se via), vê-se a data da cunhagem, vê-se a divisa, o valor (que não se via) e
vê-se o brilho do metal. A presença de Cecília revela o mundo oculto. Fosse tudo
realmente novo, pacífico — onças lambendo minhas unhas — e nomeado pela
primeira vez!
À noite, a casa de Hermenilda e Hermelinda, sem a cantoria que a luz diurna
aciona nas gargantas dos pássaros, dá a impressão de ser menor. Algum (há pesadelos
de pássaros?) solta um pio aflito e ouve-se por vezes uma surda agitação de asas ou de
rostros. Como se o conjunto de pássaros formasse um corpo — um corpo que nos
contivesse a todos — e o corpo tremesse ou mudasse um pouco de lugar. Hermenilda
transitou para Hermenilda e foi ocupa-da pela irmã. Pode suceder, admito, que apenas
hajam deslizado, de uma para outra, os respectivos nomes. Houve, em todo caso, uma
troca radical: não são as mesmas. Será por isto que ouvem com tanta indiferença, um
pouco sombrias, olhando vagamente para os lados, minha atropelada confissão a
respeito de Cecília?
A vibração do encontro persiste em mim e eu recuso-me a dormir. Quantos
lugares percorro nesta noite? Vou de um ponto a outro do Recife e encaro as pessoas.
Evocam, essas presenças alheias, as suas próprias matrizes, existentes no corpo
encantado de Cecília? Serão, ao contrário, matrizes dos entes concretos que transitam
nesse corpo e o formam? Como saber? Sei apenas que os viajantes frente aos guichês
ignóbeis da estação rodoviária e o velho esquálido que vigia a inútil borboleta
enferrujada; os vendedores de peixe na praça do Mercado; as prostitutas nas sacadas
da rua Bom Jesus mostrando a língua ao ritmo das músicas que as vitrolas tocam alto
nas salas; a população dos mocambos sob a negra ferragem deteriorada na ponte
Velha e o cego no cais de Santa Rita, agitando alguns níqueis, tristemente, numa bacia
de queijo, sem ninguém por perto, o tilintar das moedas tornando o cais mais
desértico, todos podem existir na carne de Cecília — e o meu amor, abrangendo-os,
liga-os a mim com laços cuja natureza me escapa. O Recife (muros cor de chumbo da
Casa de Detenção, São Pedro dos Clérigos com sua esbelta fachada e as pedras do
calçamento cheirando a frutas podres, barcaças de pequena cabotagem, seus mastros
oscilando no cais da Alfândega), a Lua refletindo-se no rio, o Recife, fração do
mundo muitos dos seus habitantes não mais distanciados, não mais estranhos,
integrados no meu ser através deste amor e de Cecília,
sua substância e sua arca.
Escritórios e lojas ainda fechados. O vento matinal agitando nas calçadas
silentes algumas folhas caídas pela madrugada. O dia uma planura clara e virgem à
espera dos homens. Cecília telefona-me. Suas palavras, vindas através do Recife meio
adormecido, parecem-me inaugurar a manhã: pegadas na areia de uma praia sobre a
qual transita, solitária, a primeira banhista.
A 19
ROOS E AS CIDADES
Abro a janela: o luar clareia uma das paredes e todas as luzes estão apagadas.
As persianas abertas, volto a deitar-me. Cães eriçados se mexem sob a cama ou dentro
das gavetas: ouço-os e sinto o cheiro de rabugem- Posso assumir o emprego no Recife
até 15 de julho; mas será difícil, com o dinheiro que me resta, protelar até então o
regresso, mesmo em hotéis como este e comendo mal. Os meus dias aqui, portanto,
terminam breve. Sabe Roos que regressarei, que estou de passagem e não lhe
ocorreria abandonar o homem que morre em Lausanne; cruzar o oceano; confiar a
vida a mim, filho pouco hábil de uma região a seus olhos safara e inculta, embora
fascinante: o fascínio de um animal subterrâneo. Ambígua, é exposta, não obstante o
caráter enigmático do seu corpo, a desva-limentos e receios. Envolver-se com alguém
em trânsito e curtir as conseqüências? Fecha a compreensão ao caráter sempre
efêmero das fruições e encontros humanos. Afasta-se, portanto, como em definitivo,
antes que a série iniciada se ordene e conclua-se, não importa se para desespero ou
júbilo nosso. Entretanto, sua aversão ou não por mim, sua cegueira ou lucidez, tudo se
submete às leis que comandam as nossas relações: este ir e voltar, este diagrama si-
nuoso. Deitado, a janela aberta ante a noite amena de junho enquanto a réstia do luar
se move na parede do pátio, lamento a cena da tarde e a franqueza de Roos, cônscio
de que isto não é ainda o fim (se bem o fim, inexorável, já se delineie) e de que nem
mesmo o lamento é aqui arbitrário ou fortuito. Também Roos sabe, de um modo
qualquer, que o adeus do anoitecer nos conduz a nova seqüência da série. Estes cães
sob a cama e nas gavetas, invisíveis à luz da madrugada que começa a entrar pela
janela, fazem parte da seqüência.
A mudança de quarto — sei — não impede que me sigam os cães. Mudo-me,
porém, para o Hotel Ste. Marie, com janela para a rua Montparnasse. Volto pela
madrugada, depois de bater bulevares e pontes que aos poucos tornam-se desertos, os
pés insensíveis, um vazio no estômago, os músculos da espádua entorpecidos. Os cães
se foram.
Vou à agência postal Rue de Rennes retirar uma carta registrada e reencontro
Roos. Expressões de cortesia, banais e vagas, enquanto soam carimbos e tilintam
moedas. Mostro o cheque, vindo com a carta da Gorda. ("A pessoa que sabemos
apareceu de novo aqui, dando a entender que você meteu-lhe o ferro. Será verdade,
Abel?") Roos prolonga a conversa trivial e dá sinais — discretos, embora — de que
rever-me não a aflige. Aceita um licor? Olha o relógio: uma e pouco. Tomaria um
café.
Eu e ela, sentados nas cadeiras de espaldar como que rendado, protegidas por
um toldo laranja. Ante nós, entre árvores, a estátua de Balzac, sob o céu azul. O
diálogo prossegue com hiatos e, sem que nada importante tenha sido dito ou sugerido,
ela se distancia no seu andar vagaroso, tão pouco parisiense, o andar de uma provin-
ciana habituada a horas que se desdobram lentas, marcadas pelo sino de um velho
campanário, anos e anos, sobre os tetos tranqüilos. Eltville. Por que não combinar um
encontro no qual lhe entregaria o fular que trouxe de Veneza? Saio no rastro de Roos,
rápido. Não a alcanço.
Desconto o cheque, volto para o quarto e me curvo sobre os impressos de
viagem. Estudo a tal ponto o mapa de Londres, que já não vejo apenas seu traçado e
nomes — Kingsway, Oxford St., Green Park, river Thames —, irias a própria cidade,
real e imaginária, construída no quarto, ao longo da tarde, com pedras, fotografias,
gravuras antigas, páginas de romances, clichês, telegramas de jornais. A vã caçada na
Itália e coisas subseqüentes fazem-me crer que não mais existe no mundo, com as
suas três muralhas, incólume, a Cidade vista um dia (perto de mim e como situada à
distancia, pois não é muito maior que um vestido, e, tal um vestido bordado a ouro e
pedras, mergulha na água calma e some) e que portanto acabaram as minhas buscas.
A Cidade que surge instigando-me a encontrá-la e que tenho gravada no espírito, deve
estar inserida, incrustada em ruas novas e novos quarteirões, emaranhada em outra.
Posso cruzá-la e não a reconhecer. Lembro-me também de que muitas obras de arte
existem, desmembradas, como o políptico de Masaccio realizado em Pisa, onde só
chego a figura de são Paulo, a única que resta na cidade, indo encontrar o Calvário —
isolado do conjunto — em Nápoles: santos e fragmentos do friso inferior acham-se
em Berlim; em Londres, a Virgem e o Filho, com anjos músicos em torno. A ansiada
Cidade pode Ser, como este, um políptico disperso e se for eu nunca a encontrarei.
Pelo menos, não a encontrarei de todo.
Assim, se decido fazer um rápida viagem a Londres, não é que espere ver no
Tâmisa o rio da Cidade. Por um lado, desejaria reverenciar nas salas do Museu
Britânico a coleção que ilustra e documenta o evoluir da escrita; por outro, impelem-
me as leis pendulares, fundadas numa espécie de distorção de linhas e que regem
minha aventura sem brilho coin Anneliese Roos, sendo Londres e suas preciosidades
gráficas em pedra, em argila, em metal, uma razão e um pretexto. O verdadeiro
motivo da viagem encontra a sua justificação num inflexível jogo oe alternâncias.
O sol da manhã, refletindo-se nos vidros fronteiros, entra pela janela do
quarto, filtrado na cortina de renda. Vou à estação do Norte e compro, via Calais, um
bilhete para Londres. Por que no noturno de domingo? Não sei. Sábado à tarde, o
telefone chama e suponho então ter a resposta. Roos me pergunta se não quero,
domingo, ir com ela a Vincennes, aproveitar o bom tempo. Podemos antes almoçar na
Aliança. Estarei de acordo? "Por que não ir a Chartres, Roos? Gostaria de rever os
vitrais e examinar o relógio ao lado da Catedral. Almoçamos lá, voltamos ao
entardecer. Chegarei a tempo de pegar o trem." "Que trem?" "O noturno para
Londres." Breve silêncio. "Ainda não conheço Chartres. Quando você regressar,
podemos ir." "E hoje, Roos?" Novo silêncio e a resposta. Ficará no seu quarto, tem
cartas a escrever. Amanhã, às doze, encontramo-nos no hall do restaurante?'
Blusa negra de seda e saia musgo, de linho. Mangas compridas, presas com
abotoaduras verdes, imitando trevos, idênticas aos brincos. Claros os calçados e a
bolsa de alça longa. Um pulôver cinza à mão. Os cabelos sedosos, a pele repousada,
as unhas polidas. Leve pintura, leve odor de loção: fragrância de violetas. "Então vai
mesmo a Londres?" "Sim, hoje à noite. Via Calais." Ao sairmos para o sol põe o
chapéu de palha, um chapéu de abas flexíveis ornado com uma fita da mesma cor da
saia. Para que o pulôver, quando faz calor e o ar está azul? Tomamos o metrô em
Saint-Placide, rumo à estação do nosso destino, com seu nome augurai: Porte Dorée.
Calados, vamos pelo parque. O rosto pontilhado de sol, ela sorri por nada, sob
o chapéu. Porta Dourada. Nós, dois animais terrestres, macho e fêmea, lado a lado
entre árvores e aves, sob o céu que pende como um grande seio, um seio azul e
branco, onde bebemos nossa ração de júbilo. Nós, nesta tarde de domingo, pausa ou
arrefecimento das cobiças e atribulações, libertos de tudo que nos sobrecarrega o
peito, flutuando sobre a relva como se nos dias precedentes, não nos seis, mas nos
cinqüenta e seis, houvéssemos gerado, em canseiras e ânsias, o instante que vivemos.
O sol faz-se lâminas entre as folhas. Re — nos milhões de folhas — flete-se.
A luz, sobre o lago e as margens, espraia-se ondulante e não quero saber onde ficam
seus limites. Peixes, vamos bebendo-a com a boca e os olhos, com as narinas e a pele,
talvez com os sexos. Homens e mulheres, deitados na grama ao sol ou sob as árvores,
remando ou deixando-se levar pelos barcos, andando ou parados nos caminhos, nos
fazem companhia. Embala-os as mesmas certezas que a mim? Nós perto do lago;
reclinados. O som de uma pequena orquestra encrespa a superfície da água. Homens
nus da cintura para cima, alguns com chapéus ou com tatuagens, meio deitados, de
frente para o lago. As águas crepitam, com um rumor de folhas secas pisadas ou
revolvidas sem cessar pela brisa. Dou a Roos o fular trazido de Veneza: um grifo
cercado de borboletas e feito de seres estranhos. Cada uma das patas é um leque de
pássaros; as unhas, seus bicos. Os pássaros das patas dianteiras saem do ânus de um
símio; e os das patas traseiras das bocas de animais sem corpo. Lobos, cavalos, leoas,
aves, pequenos monstros e a cara de um velho semelhante a Esopo, entrelaçados,
muitos com a cabeça dentro da boca de outro. A cauda de um lobo é também a do
grifo. No extremo da cauda, incrustados num penacho, dois personagens idênticos,
mulher e homem. Conversam? Toda essa zoologia como que não cabe no corpo da
besta fabulosa e assim é que se vêem no ar as patas traseiras de mais dois animais, as
cabeças plantadas como flechas a meia altura da sua espinha: o provido de cauda
(entre cão e gazela) cobre o outro (cão com cabeça de iguana). A cauda da gazela-cão
(ou cão-gazela-flecha?), felpuda, termina em cabeça, com língua de víbora. O grifo
tem chifres à feição de asas ou de barbatanas. Seu bico e olhos são aquilinos, bico e
olhos agudos. O original, armênio, remonta ao ciclo das Grandes Descobertas e talvez
lhes seja anterior. Roos, sorrindo, agradece e põe com gestos lentos o lenço no
pescoço. Entre a pele e a blusa negra, movem-se as cores da besta e das borboletas.
Irá a Veneza, um dia. Lá, é tão belo como no cinema? Ruas de água, avenidas
aquáticas, todas ladeadas de palácios... Respondo que a Biblioteca Marciana também
é fascinante. Sai-se da praça cheia de pombos e entra-se nas salas povoadas de
incunábulos e códices.
Alguns desses livros são misteriosos. Não escolhi ao acaso o seu fular. O
desenho central lembra um poema. Um poema bem estranho. Requisitei uma Odisséia
aldina e um manuscrito egípcio, em grego. Não sei grego. Queria vê-lo, apenas. Veio
o livro de Aldo Manucci. No lugar do outro, por engano, trouxeram-me a versão
grega de um poema místico. A apresentação em italiano dá as características do texto.
Seu fundo é a espiral. Um dos temas, a busca do Nome. O autor consagra a obra ao
Unicórnio.
Roos retira o fular do pescoço, olha-o com expressão indecifrável e depois
estende-o sobre os ombros. Descalça as meias de náilon, ergue a saia, expõe as coxas
ao sol. Vejo o azul brando das veias — rios — sob a pele. Ponho-me a cantar,
extasiado, em face das cidades fluviais, dispersas nos seus pés, joelhos, coxas, engas-
tadas na carne, feitas carne, como que irradiadas, de dentro, dos ossos, por prismas
entrecruzados.
R 14
A 20
ROOS E AS CIDADES
Minha cabeça nos rios azuis de Roos. Sorvo a tepidez das suas coxas, vejo o
sol no alto e o seu belo rosto entre ramagens, fito-a, sinto-a, ouço-a, e com fruir estes
favores me movo desdobrado em rios numerosos — quais?, o Reno?, o Ródano?, o
Arno?, o Meno?, o Elba?, o Ebro?, o Tejo, o Tigre?, o Guadalquivir? Pousam junto a
nós e esvoaçam, aos pares, pássaros cujo nome, estrangeiro, me escapa. Roos olha-os
de relance: a impenetrável e tensa expressão surpreendida em Amboise. Aparenta-se
aos seres do ar? Afaga-me a testa. Percebo em sua mão um frêmito de asas e o pulsar,
o pulsar, de um coração de pássaro.
Comerciários, estudantes, pajens, tomam refrigerantes nas pequenas mesas de
metal ou dançam. Balões de ar presos por um fio nos cabelos e na alça dos vestidos de
várias dançarinas. Suspensas por esses globos de cor, as leves sombras adejam,
alongadas, no solo e entre as sombras das árvores — e eu, a meu lado um cordeiro
parido pelo vento, vejo-me em Roos, habito sua carne intemporal. Nos arredores desta
nova cidade que descubro, uma das tantas encontráveis em Roos e, como as demais,
deserta, ressoam as músicas que ela e eu dançamos abraçados. Abrasados, diria? Sur-
gem, ao sol, quarteirões de aspecto neutro, salpicados de pavilhões de caça. Tendo o
alvo cordeiro no meu rastro, cruzo um fosso inundável, mas inundado tão-só de
margaridas, e, em seguida, as muralhas, com torreões e ameias sem qualquer
ocupante, dispostos de maneira regular. (O grifo e as flores do fular em torno do
pescoço de Roos rugem e giram.) O caminho, largo, de pedras ovais, leva diretamente
à Porta, em cedro e ferro; nas duas faces, baixos-relevos de bronze, representando
cenas de batalha. É a entrada cerimonial da cidade, que agora descortino. Domina-a,
de um lado, o Palácio, onde a relativa nudez das partes baixas contrasta as enfestas
eriçadas de lucarnas, mirantes, agulhas, colunelas, chaminés e domos; de outro, a
igreja, coberta por hemisférios nitentes, pousados sobre colunas de pórfiro e
serpentina verde. Em torno da igreja, edifícios luxuosos, com o batistério, onde
brilham mosaicos de inspiração bizantina. Não é a imponência das construções o que
mais deslumbra na cidade — ao contrário de outras, não me diz seu nome — e sim a
harmonia. O desenho do hipódromo, as cumeeiras visíveis no horizonte, as casas que
subindo os cômoros chegam até as muralhas, bem como os pomares e espaços verdes
entre os edifícios, tudo parece obedecer a um espírito clarividente e capaz de varia-
ções felizes. (Saímos do baile. A música, a dança, o calor, a luz da tarde, a presença
ingênua e despreocupada do povo entre as árvores e à beira do lago. Acompanha-nos
o anho.) Em muitas casas há um pátio com fonte e diversas abrigam terraços floridos.
Esculturas de heróis dão um ar solene às praças.
Recobrem as paredes da igreja, na parte inferior, placas de mármore de várias
cores; sobre elas, mosaicos em azul e cinza. (Não temos copo e bebemos nosso vinho
na garrafa. "Conhece Dafnis e Cloé?" O cordeiro deitou-se a nosso lado, tilintam seus
guizos.) Outras grandes figuras do mosaico, representando golfinhos, tritões, pavões e
pombos brilham na abside e no forro. Dois tronos, um marchetado de ametistas, outro
de topázios, ladeiam o altar, esculpido em madeira e recoberto de ouro.
Não longe daí, a caminho do Palácio, o edifício do Senado, baixo e de aspecto
digno, tendo à frente duas colunas salomônicas, rematadas por uma estátua eqüestre.
No vestíbulo, um touro de pedra em luta com sete leopardos de pedra. Mobiliário
severo mas delicadamente lavrado, quase sempre com incrustações de nácar. (Canta
uma cigarra? Imagino-a? Se canta, por que não voa, como no romance grego, dos
ramos onde uma ave pode descobri-la e vem esconder-se entre os seios de Roos? Por
que não se põe a cantar nesses verões? Eu a apanharia sob a blusa negra.) No solo,
mármores dispostos em desenhos geométricos e alfombras tecidas com capricho. As
janelas, sem vidros, protegem-nas cortinas de brocado ou delgadas placas de
alabastro.
Forte muralha rodeia o Palácio, o Recinto do Rei, uma cidade dentro da
cidade, com pavilhões e salas, vivendas, banhos, biblioteca e igreja, quartel e oficinas,
um cárcere, uma tecelagem, entre hortas, jardins, pequenos lagos e terraços dispostos
com ciência: neles se pode receber o sol e contemplar o exterior. Além disto, largas
arcadas permitem-me continuar protegido do sol ao passar de uma sala para outra. No
silêncio, as delicadas unhasdo cordeiro soam como pisadas de potro.( Entramos num
parque de diversões.Roos, despenteada, as fontes porejadas de suor, as mangas da
blusa dobradas à altura dos cotolvelos, leves manchas rosadas no rosto e até os
braços.) Na sala central do Palácio vejo o trono, vazio, rodeado de leões dourados e
árvores de prata, com pássaros de pedras preciosas cantando eternamente nos seus
ramos. O cordeiro estremece e afasta-se balindo: numa dessas árvores, há uma
serpente verdadeira.
Seguimos de maõs dadas, Roos cantando em voz baixa e uma romança
do Reno, a fita e as abas do chapéu aflando, as passadas largas. Normalmente, seu
andar é outro, comedido. Giramos na montanha-russa, e , tal um dia, em Chambord,
em meio ao ruído de inúmeros motores de dois tempos, brado o seu nome, brado o seu
nome em círculo e o som das vogais ondula com a ondulação das cadeiras sobre os
trilhos. Subimos na roda-gigante, vemos os telhados, os horizontes, o mundo, com
ambas as mãos ela ergue o fluar, o grifo fantástico e as flores voam sobre nossas
cabeças, encho os pulmões de ar pronuncio Roos, lentamente Roos, o nome forma
agora um círculo na vertical, a roda se engalana com as flâmulas, os nastros e as
guirlandas do R, do O, do S e de súbito, no alto, o chapéu de Roos desprende-se,
regira entre os raios da roda gigante, é ergida pelo vento e levado para longe com
alonga fita verde.
Agora estamos numa brasserie silenciosa, entre o quae aux Fleurs e a rue du
Cloître Notre-( somos, nesta hora,os únicos clientes e o graçom usa sapatos com sola
de borracha). O piso, revestido de pastilhas claras, cheira a cera do assoalho fresca. A
mão esquerda de Roos repousou sobre a toalha vermelha. Tomo-a entre as minhas.
Esvaiu-se o odor de violetas — e a outra Roos, a de vincennes, parece haver fugido,
perdida em quem sabe que invisível naufrágio, com os rumores, e luz, e a ebriez da
tarde, também findos. Como trazê-la de volta?
— Roos... Nunca vimos o quarto nem o país do outro. Conhecemo-nos como
soltos no mundo. Não sei que perfume têm seus vestidos no armário: de que nos
arruma geus esmaltes, suas loções, seus cremes, que cor tem seu roupão de banho e
em que posição ficam as sandálias, quando as descalça na hora de dormir. Muito
menos sei como é o seu pai e em que trabalha. Se o sol, em Eltville, entra na janela do
seu quarto pela manhã ou à tarde; se há, na vizinhança, algum pássaro ou cão que
você ouça; se detesta o cão, se ama o pássaro.
O garçom se aproxima, silente, com a travessa de almôndegas e vinho. Ela
descreve, no seu francês literário, o quarto que ocupa na Aliança, enumera seus discos
e seus livros, fala da paisagem renana e das roupas que usava aos quinze anos.
Através da porta envidraçada, vejo de relance a cúpula'do Panthéon, sob a luz vio-
lácea do entardecer, o jardim atrás de Notre-Dame e uma grande árvore do outro lado
da rua, junto ao Sena. Vasilhas de cobre polido, nas paredes, refletem esse clarão e os
mesmos reflexos arroxeados parecem estriar a voz de Roos:
— Você dizia nada saber do meu quarto. Também não sabe que homem e meu marido
e de que se ocupava. É uma espécie de arqueólogo. Seu campo de ação, os naufrágios
antigos. Quando adoeceu, estava justamente explorando um navio afundado nas
costas da Sicília. Sabe há quantos anos? Mil e trezentos. É incrível o que se pode
estudar em um barco sepultado há mil, há dois mil anos. A arte da construção naval,
as rotas marítimas, o tipo de comércio existente entre um país e outro. Aquele navio
transportava uma carga de capitéis e frisos em mármore do Proconeso. Ia a caminho
de alguma cidade em construção, possivelmente no Norte da África. Vinha de
Constantinopla. O cofre do capitão estava intacto. Nada saberíamos dele e do seu
navio se não fosse aquela tempestade. Era um sírio e tinha duas filhas.
Vai-se a nossa tarde venturosa. Qual a sua duração real? A nau sob o mar, nas
costas da Sicília. As jovens filhas do capitão sírio.
— Roos, estas últimas horas!... Acha que podemos ser felizes ante coisas cujo fim
sabemos próximo?
Seu rosto pensativo, voltado para fora, para o céu que escurece. As cidades nela
transubstanciadas vão e vêm como ondas, todas parecendo noturnas e outonais.
— Sim, talvez. Quem sabe?...
Eu e ela abraçados, pelo quai aux Fleurs. Vamos depressa e isto reacende a sua
exaltação. "Tinha esquecido a viagem. Que pena você ir! Quantos minutos faltam
para o trem?" Barcos já iluminados perlongam o Sena, com excursionistas. Alguns
respondem aos nossos acenos. Grito do cais, junto a não sei que ponte, para o barco
que passa e para a estátua eqüestre, do outro lado do rio, frente ao Hôtel de Ville:
"J'aime cette femme, it is my love, her name is Rose, Rosei'. Faço com os braços
desabrochar uma rosa, grande como a noite que nasce. Toma-me pela mão e incita-
me, rindo, a andar mais depressa. Meio extraviados entre as barracas de flores, não
descobrimos logo as luzes amarelas do metropolitano.
Deixo-a na frente do Dupontparnasse à espera de um táxi, corro para o hotel,
subo de três em três degraus a escada, desço aos saltos, bêbado de vinho e de alegria.
Espera-me no carro. Sem fôlego, sento-me a seu lado, mando tocar para a estação do
Norte. Não retira as mãos das minhas: pressiona-as. Jatos de luz, vindos das vitrinas,
das lâmpadas da rua e de outros automóveis projetam-se pelas janelas do táxi,
cruzam-se sobre o seu rosto, sobre as cem cidades do seu rosto. E se o trem houver
partido? Voltaremos, ela subirá comigo, verá meu quarto do Hotel Ste. Marie, ajudará
a repor nos seus lugares roupa e objetos, animará a cortina, as poltronas, as paredes, o
piso e o teto com a sua presença, e quem sabe o que acontecerá? Não devo ir. Este é o
dia, o momento que tanto ambiciono.
Corremos através dos passageiros, o grifo do fular comendo as flores: ruge, ladra,
brame e canta feito pássaro. Os avisos que antecedem a partida já ecoam por entre
esses ruídos.
— Adeus. Mande um cartão-postal.
— Roos... Fui feliz esta tarde! Sinto-me como se estivesse den-tro de um tambor. Um
tambor ressoante. Como se me cercasse um ritmo. Um rufar. O tambor.
Segura-me os dois braços e, pela primeira vez, pela primeira vez, beija-me no
rosto. Oferece o rosto para que eu retribua. Beijo-a na boca. Parte o trem. Corro. Parte
o trem. Ela acena com o bicho cercado de borboletas.
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O relógio de que nos ocupamos e do qual não existe, que se saiba, réplica no
mundo, é de fabricação alemã. Seu criador, Julius Heckethorn, matemático, cravista e
grande conhecedor de Mozart, descende em linha indireta, segundo informações
acreditadas, daquele Charles William Heckethorn que publica em Londres, ao expirar
o século xrx, um volume in-octavo altamente especializado: The printers of Basle in
the XV and XVI the centuries, their biogra-phies, printed books and devises.
O pai de Julius conhece a jovem Erika, filha mais nova dos Haebler, de
Lübeck, em uma viagem de negócios. Casa-se com ela e se transfere para a
Alemanha, onde abre uma oficina para a confecção de jóias. Supõe-se haver desistido
da cidadania inglesa; de qualquer modo, tudo faz crer que jamais voltasse a atravessar
a Mancha. Julius, nascido em 1908, filho prematuro e único da sua união com Erika
Haebler, é ainda uma criança quando ele realiza o desígnio secreto da sua vida:
adquirir, na Floresta Negra, região conhecida desde o século XVI pela sua evidência
como centro relojoeiro e que o industrial A. Junghans revoluciona após a guerra de
1870 com a instalação de sua fábrica onde a contribuição artesanal é reduzida
praticamente a zero, uma oficina especializada em mecanismos de som para relógios
de qualquer espécie. Assim, os primeiros anos de Julius Heckethorn passam-se entre
carrilhões que soam dia e noite.
Pode-se imaginar que os seus sonhos sejam atravessados por um contínuo
bater de horas.
Com a guerra de 14, dois imprevistos abatem esta criança frágil e propensa à
quietude: uma viagem para a Inglaterra e o silêncio dos dias. Adoece, mas não devido
à ausência dos pais: anseia pela presença dos carrilhões. O avô, buscando compensar
esse desejo, contrata um professor de música. Ignora-se quem sugeriu o cravo,
instrumento no qual Julius, sem chegar a ser um mestre, vem a tornar-se bem mais
que um simples amador.
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Fechada a janela e acesa sobre a cômoda uma vela, evolui o relato de ʘ, mutilado e
nem sempre compreensível, dentro da madrugada, misturado com o som das ondas, o
cantar esparso dos galos, o vôo interminável dos pássaros noturnos e o cheiro dos len-
çóis, que recendem a folhas de canela. Move-se a chama aos movimentos mais vivos
de ʘ e a sombra do seu corpo, agitada, faz rangerem as tábuas. As flores do quimono
sempre aberto recuperam o viço e entre a pele de ʘ e o espaço que a envolve é como
se houvesse um leve pêlo intocável e transparente, matéria sem nome, luz e carne,
uma gradação misteriosa.
Alguém, tudo podendo e não podendo descrever-se, assume um disfarce, o de
emissário de si próprio, visitando-nos e habitando entre nós. Um modo imperfeito e
difícil como todos, de falar; discurso no qual se explica. O emissário, constituído da
mesma substância de quem o molda e manda, é como se unisse, na sua natureza
híbrida, a Lâmpada, a Superfície Polida e o Reflexo. (Como se chamam este
emissário visível e este mandante oculto?
ʘ sentada na cama e eu meio estendido, apoiado sobre os travesseiros: o seu
perfil recortado contra a chama, os lábios meio abertos e silentes. A cor e o brilho
vívido do castiçal, atenuados, ressoam nos cabelos desfeitos. A princípio, suponho
que a lividez do rosto anuncia alguma confissão mais aviltante. Mas o que se esbate
nesse perfil meio inclinado é a opacidade (contra a luz, não poderia ver se
empalidece), perpassa na sua carne e ossos, fugitiva, uma transparência idêntica à das
uvas claras, no âmago das quais entrevemos a sombra das sementes, outro rosto,
gêmeo, olha-me através das suas têmporas e não me fala, todos estamos em silêncio,
mas do silêncio em que está encerrado é como se dissesse: ouve-me. Apaga-se a visão
no instante preciso em que também o rosto não oculto se volta para mim e ágeis sinais
— claros sinais e sombrios sinais — surgem à altura do colo, sinuosos e velozes,
somem na fronte ou entre os seios, enxame exasperado de insetos, negros e brancos,
miúdos. Prende-me o pulso (a temperatura dos anéis) e com a mão direita afaga-me o
rosto. Curva-se, pousa a testa sobre a minha e um peito, insinuando-se entre as flores
do quimono, esmaga-se, peso tépido e fragrante, contra a minha pele, tornada sensível
como se eu fosse de línguas.
— Abro as mãos ante os olhos no âmago da noite e não as vejo. Crio um
casulo de trevas. Questiono o meu ofício de escrever em face da opressão. Fico
ouvindo a resposta que se forma no ponto mais protegido e inviolado do meu corpo. A
máquina da opressão alcança-me através das paredes e da carne. Todos os seus
guardas e artífices dormem, todos, rodeados de arames, casamatas e armas, e ela, a
máquina, opera. Máquina ou cão? Não há modo algum de escapar ao seu hálito.
— Poucos tratados médicos ocupam-se do Iólipo. Isto, creio, favorece a
inconsciência dos pais. Quase sempre, só se apercebem de que trouxeram ao mundo
uma singularidade quando a criança chega aos doze ou treze anos. Pormenor
absolutamente inexplicável: não há iólipos do sexo feminino. Todos são machos.
Sua testa sobre a minha, ela no centro do quarto e a sombra na parede, a boca
entreaberta sobre a minha boca, o seu perfil contra a chama e os olhos secretos
fitando-me da têmpora. Eclipse, transparência, trevas. Aos poucos, eis que ressurgem
da ausência, uma e outra, ambas tensas de drásticos contrastes nem sempre discerní-
veis, ambas dúplices, e, mais do que dúplices, acima de medidas e limites, ressurgem
as duas mulheres a quem amo em pontos afastados dos anos e do mundo, que me
atravessam, às quais me confio, que em dado momento concentram e assumem
minhas obsessões, trituro entre os molares os seus nomes e os dois nomes como que
se fundem, o primeiro nome: claridade constante, maré resplendente, Roos, cardume
de fogos, o segundo: Cecília, guarnecida de virilidade, essas a quem amo e ante as
quais, humilde e assombrado, subvejo a face — cheia de vozes e signos — do mundo,
eis que ressurgem. Introduzo as primeiras alusões, difíceis e abafadas, entre as pausas
de ʘ, e a língua se contorce quando falo. Ouve-me? As luzes apagadas no carrossel
imóvel e nas barracas, as ondas se desfazem e as nossas vozes confundem-se, solenes
e inflamadas, boca contra boca, a verdade rangendo em nossos dentes, sem artifícios e
também sem capciosa ênfase.
— Dos doze para os treze anos, o rosto do Iólipo começa a ser visível no
escuro. Qualquer um pode vê-lo nessas condições. Até ele.
— A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos.
Capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as
carcaças podres.
— Nem todos enxergam o Iólipo na escuridão com a mesma nitidez. Alguns
percebem apenas um halo muito leve; outros o distinguem com um relevo de
xilogravura.
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Ouço, ante a janela aberta, o mar nas pedras próximas? Uma criança, em
pranto, cruzou com leves sapatos o mal iluminado corredor do hotel? Respiro o ar
imóvel? Fala a alguém, em algum quarto próximo, turbada pelas ondas, uma voz de
homem? Tem resposta? Minha grinalda pende de um cabide alto. Itanhaém é o nome
da cidade e tudo surge — tudo: paredes, móveis, vestes, movimentos, sons — nas
inumeráveis palavras com que narro, horas e horas, até perder a voz e continuar a
falar dentro de mim, as minhas próprias núpcias e tantos outros eventos, sem perceber
sempre o nexo do meu discurso. De um modo convulso, aos saltos, descrevo o
progresso diário e insensato do meu amor sem amor. Meus sentimentos e atos são os
de quem ama? Contudo este amor é enganoso, um sortilégio. Descrevo-o e descrevo
os ofuscantes dias em que me faço de alheia ante o mecanismo há muito destinado a
mim, descrevo o apartamento da avenida Angélica onde vive Hayano com seus pais,
os tapetes encardidos, as poltronas de damasco alterado pelo uso, a prataria, o relógio
de Julius Heckethorn, toda uma série de elementos cênicos reveladores de vida
abundante em fase de declínio, descrevo os cerimoniosos chás, o pai de Havano, alto,
o queixo de mula, sentando-se em diagonal por causa das dores constantes na coluna e
fechando os olhos para degustar a infusão, Bilia, baixa e compacta, não é tão gorda
ainda quando a vejo atravessar sob a chuva o jardim ao lado do filho em uniforme da
Academia Militar, Bilia, cabelos aparados sobre a nuca vermelha, ingerindo sem
pausa chocolates e doces, pouco à vontade — vê-se — na poltrona (vive sempre
deitada em camas ou sofás), olha vez por outra para o filho através dos olhos
apertados, com uma expressão relutante, mas louvando-o, exaltando-o, ele há de obter
as graduações mais elevadas, todos hão de ver isto, descrevo a sua .voz, rolando na
garganta entre paredes espessas de gordura, seu riso vindo do esôfago sem que um
traço do rosto embotado pela enxúndia se altere, descrevo o ar de realização de
Hayano, a serenidade com que ouve as palavras opressas de Bilia, é evidente a
confiança dele nas promoções com tanta insistência e firmeza anunciadas, afligem-no
apenas o zumbir nos ouvidos e os sonhos de que sempre se queixa, únicos de que se
lembra, onde só os mortos aparecem, raivosos, em mil situações, isto e nada mais
torna-o apreensivo, eu descrevo os zumbidos e os mortos raivosos que se debatem
nesses pesadelos, descrevo Natividade, curtindo o resto da vida num asilo pago por
Olavo Hayano e repetindo a propósito de nada "Eu criei esse menino", descrevo a
cara negra, o olhar perdido, as mãos sem força, o riso que parece derramar-se em
contas pelo colo, descrevo nossas mecânicas visitas certas tardes de sábado ao asilo,
no Jaçanã, descrevo rapidamente as enfermeiras, as serventes, a companheira de
quarto de Natividade, mais avançada em anos que Natividade, olhos de menina,
tornozelos finos, laço na cabeça, vestido de ramagens, de ramagens azuis, sempre
cantando e dançando a tarantela (um modo de evocar alegres e distantes manhãs
napolitanas), descrevo a escultura colorida no jardim do asilo, em tamanho natural,
representando um homem de guarda-chuva aberto, sai água da ponteira e desce pelas
hastes, o guarda-chuva de zinco produz a sua própria chuva, chove sobre esse boneco
enquanto os asilados passeiam no jardim, ao sol, descrevo nossa ida ao asilo antes do
casamento, para que Natividade veja meu vestido e veja Hayano em uniforme de gala,
há um silêncio entre os velhos quando eu chego, de branco, a cauda longa, as flores, a
água cai do guarda-chuva pardo, Natividade abraça-me, sua amiga dança a tarantela,
os velhos seguem-me através do jardim, cruzamos de automóvel esse bairro
poeirento, com suas serrarias, seu tráfego pesado, seus depósitos de cal e suas casas
de paredes sujas, um menino perturba o silêncio da capela na tarde quente e opressiva,
eu descrevo a chuva repentina, ventos inconstantes agitam os dois ciprestes que
ladeiam o portão alto da Marquês de Itu, eis-me despindo o vestido de noiva e
jogando-o sobre esta poltrona em um dos quartos nos quais nunca se entra (as revistas
européias de 1912 e os frascos de perfume que só recendem a passado), descrevo a
viagem de automóvel, e o desalento e a cólera de Hayano quando constata as pre-
cárias condições do hotel em que se vê constrangido a pernoitar, ainda não existem os
alicerces do hotel quando o descrevo, mas tudo corresponde à minha descrição, o
colchão com suas molas frouxas, a lâmpada pendendo de um fio sobre a cama de
espaldar alto, o estuque áspero, as paredes róseas, o abajur de cabeceira com pequenas
flores na cúpula amarela, o toucador com três espelhos ovais, as cortinas cinza com
desenhos em laranja e negro, os descorados tapetes sobre a madeira brilhante do
assoalho, o alto cabide com a grinalda num gancho, uma criança chorando através do
corredor não muito iluminado e eu própria de pé frente à janela aberta, escutando o
mar bater nas pedras próximas e respirando este ar, este ar imóvel como pedra.
Sentada ante os espelhos, no toucador, ponho a grinalda e examino-me. Vinte
e três anos e catorze anos, eu e eu, fundidas no reflexo, serena e aterrada, penteando
os cabelos platinados e ruivos, os cabelos abundantes, soltos sob a grinalda, eu, em
rosto dos espelhos, cabelos, carne e vestes quase não cabendo nos ovais dos vidros,
meus olhos cor de folha seca e com um ar de armadilha olham com força dupla a
imagem antígua (pode-se crer que se move sob a lâmpada o modelo de um postal
anterior à Primeira Grande Guerra, com seus braços carnosos, fronte estreita e claro
rosto sombrio), meus lábios salientes seriam iguais aos de uma negra se demarcados
com menos nitidez e meus peitos bojudos sob as roupas amplas, guarnecidas de
arminho, franjas, passamanes, folhas, rubàs, rendas e laços, exalam um odor fresco de
jasmins — o odor que desprende Ira em repouso — e não sei também se de cartões-
postais roídos pelas traças.
Hayano entra no quarto, aproxima-se de mim e tira-me a grinalda. Eu o desejo,
é um desejo ácido, com gosto de vinagre, ardo de desejo e ardo de pavor: queria fugir,
mas quero ficar, fico (o pacto firmado na noite em que luto e luto no chão, luto, até
que surge a manhã, estabelece: seremos uma e uma, una, para tudo o que vier, somos
uma, sou uma), ele me inclina sobre os lençóis, o abajur ao lado da cama está aceso, a
lâmpada pendente de um fio está acesa e se reflete no espelho oval do centro, com
qualquer coisa de meticuloso nos gestos Hayano despe-me a camisa rendada, cai
sobre mim, frases ditas por um homem ecoam em algum quarto próximo, Hayano
rompe-me o hímen, os himens, o lustre sobre nós, cristais e objetos de prata oxidando-
se aos poucos na penumbra, as palavras do homem ecoam sem resposta, presa entre os
braços de Hayano eu me debato, de prazer e de horror eu me debato, ele conhece-me,
estupra-me, grito de ebriez, choro de medo. Fere-me o sexo de Hayano, duas vezes
me rasga, gélido, e então eu sinto o Avalovara, o pássaro, deixado em mim pela
passagem de Inácio, dobrar-se sobre si, transido, como se a fria glande de Hayano
fosse a vinda de um inverno rigoroso e súbito: a ave perde o bico e a voz, reduz-se a
um esqueleto, gravado em mim como na pedra o esqueleto de um fóssil — sem a voz,
sem a plumagem,
Passa um grupo de bêbados, em alguma rua próxima ao hotel. Cantam,
pastosamente, versos esparsos de carnavais antigos. Que horas serão? Três? Olavo
Hayano acende a lamparina dentro do copo vermelho. O abajur e a lâmpada no fio
continuam acesos, ele observa minha nudez. Com um punho fechado sobre os olhos,
deixo que o faça e não procuro cobrir-me. Senti prazer? Sim, mas ignoro se este é
realmente o que se deve sentir. Ele se debruça e beija-me no rosto. Abro todos os
meus olhos, flores carnívoras, fito-o, olhos abertos. Por que é gélida a extremidade do
seu sexo? Sorrateiro, estende a mão esquerda para o abajur. Com um dos seus gestos
inesperados e rápidos, faz incidir a luz sobre meu rosto. Dou um golpe na lâmpada,
voa a lâmpada e tomba no tapete, Hayano segura-me pelos cabelos e tenta ver o fundo
dos meus olhos. Lutamos sobre a cama. Para quê? Desisto de esquivar-me, de esqui-
var o rosto, os olhos, e afronto-o, as pálpebras abertas, todas, para que ele veja — e
ele vê, e grita que eu tenho quatro olhos nas órbitas, uns por dentro dos outros,
marcha o relógio de Julius Heckethorn, um trovão à direita, outro à esquerda,
explosões distantes e espaçadas, sua voz monótona revela acusação e menosprezo.
Que olhos são estes? Como nunca os viu?
Com lentidão estudada, cerro sob seus olhos as pálpebras mais novas. Quer
ver apenas o olhar que todos trazem, o olhar que o vê sem o relevo e a cor com que
ele deve ser visto? Que o veja. Fita-me ainda um instante, solta-me, apanha no chão o
abajur apagado, apaga a lâmpada do teto e pede-me perdão, deita-se. Fica no quarto
apenas a luz da lamparina.
Ele adormece, mas para mim não vem o sono. Assim é, digo a mim mesma.
Exatamente. À luz da lamparina: estuque, paredes, cortina, seu rosto, o espelho. Terão
os homens, todos, a glande fria? Ele ressona, inquieto. Faz calor.
Levanto-me e abro mais a cortina; falta-me o ar. Hayano mexe-se. Atravesso o
quarto, nua, abro o guarda-roupa, procuro uma camisa sem tantos enfeites. Dou com a
vista num coldre. Vazio? Debruço-me, sopeso-o: contém uma pistola e cheira a
cavalo. Dói-me o baixo-ventre, eu sinto-me estuprada, tiro a arma do estojo e aponto-
a para o vulto debruçado no leito. Existe uma pistola? Então nada falta — constato.
Acrescento que a hora se aproxima. Guardo a arma no coldre e a ponho no lugar, no
mesmo, de onde a retiro. Contudo, não troco de camisa: visto, com movimentos
medidos, a que tenciono substituir. Deito-me, fecho os olhos, ouço-o murmurar. É
quando sopra o vento, tão fresco o vento que eu estremeço e me cubro. Adormeço.
De súbito, abro os olhos: o vento deve ter apagado a lamparina. De costas para
o homem, nada vejo e quero — é um desejo exigente — saber que horas são. A noite
me parece longa, tenho a impressão de haver dormido dias e dias seguidos. Tento
ligar em vão a lâmpada do abajur. Falta luz no hotel? Na cidade inteira? Além do mar
e das ondas quebrando-se nas pedras, nada ouço. No quarto, há um halo remoto —
talvez a luz das estrelas — e a temperatura está mais baixa. Levanto-me para fechar a
persiana e a cortina. Neste momento, a luz de um projetor varre as paredes. Aproveito
para olhar o relógio: são quatro horas e dois minutos. Vêm as luzes de um navio
fundeado ao largo como que extraviado no tempo e é impossível imaginar por que
seus projetores falam à cidade a essa hora da noite. Cruzo os braços por causa da
frieza, volto-me para o homem adormecido. Ele ressona e eu vejo-o de face. As luzes
dos refletores acendem-se e apagam-se, rápidas. Uma mensagem? Para quem?
Mensagem ou não, esse piscar me aturde. Falta alguma coisa em tudo isto, neste
quarto em que respiro com a boca aberta, neste minuto que vivo, um elemento
discordante aqui, isto eu afianço. Digo a mim mesma, apesar de tudo: "É agora". Mas
o que é agora? Não sei.
Contudo, sei. Distingo mal, é certo, na emaranhada rede desta hora, as razões
de tudo, conquanto saiba que ela constitua um resultado, a resposta a um cálculo:
outras horas, inúmeras, encontram-se e ressoam aqui. As cerimônias, previsíveis que
são na sequência e no ritmo, simulam um domínio sobre o futuro (ou do que tem esse
nome de futuro). Meus gestos e as circunstâncias que os cercam lembram um
cerimonial. Como um autômato, volto ao guarda-roupa, abro a porta e curvo-me. Um
cão ladra e responde. As luzes do navio latejam nas paredes, mais rápidas que antes.
Tiro a pistola do coldre, volto a fechar a porta, retrocedo alguns passos, fico no centro
do quarto. Que dizem os projetores?... Entra e sai da penumbra o perfil de Olavo
Hayano. Dou volta à fechadura, cruzo a porta que abre para o corredor. Insegura,
distancio-me. Algo, na cena, reflete um determinado momento da minha vida e eu
tenho clara consciência disto. Bate uma porta, longe. Estouram as ondas contra as
pedras. Volto ao quarto e deixo a porta aberta. A outra, em outro andar, continua a
bater. Sento-me ante os espelhos ovais do toucador. O cão late ainda. Os projetores do
navio não cessam de pulsar. Meu rosto e meu vestido — o busto alto, as rendas, braço
direito, olhos, os cabelos caindo sobre os ombros — surgem e desaparecem,
triplicados. Eu abro o colo, apalpo a carne do peito e volto sobre mim o cano da
pistola. A explosão ressoa como no fundo de uma cisterna.
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O 24
Quatro e cinqüenta e seis. Sorvo a boca de Abel, falo na sua boca, dentro da
sua boca, digo que o amo, com a língua enlaçada em minha língua ele diz que me
ama, rola entre nossos dentes a palavra amor. Feita de nuvens grossas, envolve-nos,
veloz e prematura, a noite de novembro. Desdobra-se, ecoante, um trovão surdo e
móvel: circular. Cerro os olhos. Outra noite, interior e porosa, cerca-me: estou no
campo, em algum ponto da Terra, uma planície. Ouço as árvores, suspensas nas
trevas, suas grandes copas gotejantes, ouço-as como se fossem repuxos, todo meu
corpo escuta-as. Estão cheias de pomos. Há um bater de asas sobre nós e este bater de
asas cria nas trevas o espaço celeste — como um chamado no silêncio cria uma
presença. O céu sobre mim, com o peso dos seus astros. Meu corpo vê os astros. O
céu é negro, os luzeiros são negros, e as aves ligeiras, e as árvores frutíferas, e eu, e a
planície na qual estou deitada. O Avalovara renasce no betume, livre da mudez e da
imobilidade a que está condenado desde a hora em que Olavo Hayano me estupra com
sua glande fria; empluma-se o esqueleto de fóssil incrustado na minha carne (como,
na memória, um nome), desata-se, leve, com seus ossos de ar, fogo de artifício
rompendo as trevas compactas. Abro os olhos: Avalovara, o pássaro do meu con-
tentamento.
Março chuvoso e quente. Deitada no sofá, entre almofadas, ante as cortinas
abertas do apartamento, ouço os veículos que passam na Consolação e acaricio a
cicatriz. Quando não estou reclinada no sofá, ando sem ânimo entre as vistosas
poltronas e as molduras douradas das pinturas de gênero adquiridas por Olavo
Hayano, mudo de lugar os enfeites que detesto — narguilés, bichos de vidro, bonecas
japonesas — e aos quais vêm juntar-se todas as semanas outros semelhantes, deito-me
de través na cama de casal ou fico ante os espelhos, penteando os cabelos.
Experimento, com vagar, meus vestidos leves e floridos. Um dos três quartos do
apartamento é fronteiro à área cimentada sobre a qual os moradores dos andares de
cima jogam cascas de fruta, embalagens usadas, pedaços de papel e folhas de jornal.
Aí, ao cair da tarde, sopra um vento rápido, preso entre as paredes; gira uma hora,
duas, com tal velocidade que as folhas de jornal, de castigadas, fazem-se em pedaços.
Fico ante a janela envidraçada olhando as espirais de detritos e de pó grosso. Sob essa
mesma janela, quando chove, as águas pluviais gorgolejam, sorve-as não sei que
conduto dissimulado nas lajes. Esse rumor e o vento bravo do pátio são na casa as
duas coisas não compradas e impostas pelo dono, as únicas. Aposso-me de ambas e a
elas me prendo.
Pela centésima vez, Hayano rompe o silêncio e me pergunta: "Por quê?". Para
ele, tudo tem causa, por força. Pela centésima vez deixo de responder e o silêncio
instala-se novamente entre nós. Insiste, feita a pausa, sua voz neutra e um pouco
ansiosa: "Qual foi o motivo? Tenho o direito de saber". Esses dias de abril são mesmo
luminosos como os vejo? Vejo-os tão claros por causa da energia que renasce em
mim? À medida que me voltam as forças, acaricio menos a marca da bala e cresce a
insistência com que ele me interroga: "Por que atentou contra a sua vida? Com a
minha própria arma! E se houvesse morrido?". Rejeita, sem explicações, minhas
tentativas de trocar um adorno ou de dispor os móveis a meu gosto. Não consente
sequer que eu determine a respeito de vestidos: acompanha-me às lojas e escolhe-os
por mim. Cerceador, corta-me os passos. Pai e patrono. Adormecida em mim a
serpente pelo sopro de Inês, toda a minha rebeldia consiste em esconder, para que não
sejam examinados, os livros que estou lendo e em despedir as empregadas, cujos
uniformes passam de Antônias a Franciscas, a Ritas, a Edwiges. Também, ante o pátio
cimentado e sujo, fruo o que não é de Hayano. Muitas folhas de jornal, aí, rasga o
vento em agosto, mas poucos são em setembro os que caem na armadilha do pátio e
não chove nesse mês, nem chove em outubro. À noite, ausculto-me e busco os restos
do esporão. No copo vermelho, a lamparina estremece. Aspiro o vazio de Hayano
como quem aspira um odor de ossos.
Ataviado com todas as cores dos pavões, o Avalovara lembra um manuscrito
iluminado. Nele, quase é possível ler. A cauda é longa e curva, com reflexos de cobre.
As asas, seis, de um tom verde-celeste quando repousadas, ostentam na face interna,
quando abertas, círculos de muitas cores, dispostos com simetria sobre fundo
escarlate. Vejo-as adejando e nada ouço. Ele voa, o pássaro, da mesa para o chão e do
chão para cima do relógio, como se fosse oco, um pássaro de ar. Trançadas no seu
peito, faixas e fitas roxas. Da delicada cabeça, parecendo ornada com um diadema de
pequenas flores e encimada por uma espécie de língua, descem longas plumas muito
claras, semelhantes a flâmulas. Rosa-brilhante o resto do corpo. Bico rubro e curto,
olhos oblíquos. Quando esvoaça, aflante, o mover das seis asas desprende um odor de
paina e não parece que voar lhe pese: todo o seu corpo é asas. Cai a chuva, cai no alto
dos prédios, atirada com força pelo vento, cruza os andaimes, emaranha-se nas
árvores, lava as paredes voltadas para o sudoeste.
No Período Triádico, os grandes sáurios passeiam sobre o mundo como se
fossem eternos. Surgem os pequenos mamíferos, de passo leve e discretos. Os sáurios
nem os percebem. Continuam em sossego, movendo os ossos que rangem como as
madeiras de um barco, mas já estão condenados; os sutis intrusos, que não podem
enfrentá-los, furam seus ovos e sugam o conteúdo. Toda arma é boa para sobreviver
ao domínio dos mais fortes e reduzi-los a nada. Eu não caço o amor, nem o júbilo,
nem outras exaltações, nos estranhos com quem em camas estranhas me deito: caço
Olavo Hayano, atinjo-o — este é meu chumbo, minha boca de fogo — abrindo as
pernas a outros. Nem sempre esses outros são torpes nos afagos e às vezes se mostram
hábeis entre lençóis. Meu gozo, quando vem, é mudo, soturno, eu travo os dentes e
clamo: "Inferno!". Corto-me em pedaços, como Inês corta instada por mim seu uni-
forme sujo. Deixo-me ofender e assim ofendo, rasgo. Mas o esporão volta a crescer,
nas coxas, na cara, nos olhos, não sei onde — cresce. Recebo ainda, em mim, a glande
fria de Hayano e continuo estéril. Ele não faz comentários.
Trovões pesados, baixos — grandes rodas de ferro avançando em salões
assoalhados, sem portas e amplos como a Terra. O Avalovara, assustado, desce do
relógio, sobrevoa um segundo o dorso de Abel e vem pousar no tapete, Duas ou três
penas se desprendem, esvoaçam, retornam ao seu corpo. Descubro: é um ser
composto, feito de pássaros miúdos como abelhas. Pássaro e nuvem de pássaro
Hayano traz um cão para o apartamento, um pequeno cão policial, de hálito
podre e olhos perversos. Sob a pele do peito, oculta no pelame faiscante, há uma
pequena cartilagem, ponto duro, semelhante a uma cabeça de alfinete. As mãos de
Abel afagando meus cabelos, as violetas que nascem em meus cabelos. Morde me.
Morde-me os lábios e a pressão dos seus dentes faz ressoarem cincerros no meu
ventre. Hayano: "Por que o tiro?". Volto a cabeça, reticente. O cão fareja-me e segue-
me, mostrando os dentes. Afeição? Suspeita? O pássaro ergue vôo e se olha ante um
espelho. Cincerros no meu ventre. Eu, feliz? Eis-me feliz. Cresce o cão à medida que
se deita, ou se levanta, ou come, ou rosna. Há agora no seu peito, furando o couro, um
bico. Um bico adunco, como se uma ave de presa, embutida no cão, tentasse dilacerá-
lo, e sair. Nenhum dos meus gestos escapa ao seu olhar canino e como que munido de
presas amoladas. Sai do letargo a serpente, enleia-se nas minhas costelas outra vez,
estende a língua bífida. Sonda o tempo. Envolvo em carne crua as lâminas de barbear
de Hayano e jogo-as para o ar, na direção do cachorro. Ele cresce e engole-as,
sôfrego: continua a olhar-me, crescendo e observando-me. Quer mais? Jogo-lhe a últi-
ma. Ira, a serpente, move cauda e cabeça. Fulgurante explosão, decerto um raio
próximo. O pássaro, ante a janela aberta, bate os três pares de asas. Hayano afaga o
cadáver peludo. Do bico na barriga do cão escorre um fio de sangue. Ouço a pergunta
de Hayano, sua voz surda e remota: "Quem matou?". "Eu." "E o tiro no seu peito?"
Sinto, dois, o sexo de Abel em mim, duplicado, uma forquilha. Eu: duas. Dupla
penetração e alegria. Bater de portas, Hayano acende e apaga as lâmpadas,
nervosamente. Lança-me gritos e queixas. Entro no elevador, subo para o alto do
edifício. Através da neblina, um anúncio luminoso, branco e vermelho, some e
reaparece. A chuva cai mais forte e bate na janela junto à qual eu e Abel nos amamos,
densa, esgarrada pelo vento, entra pela outra janela e molha o chão. Cabras e leoas
voam em nossos corpos, olhando para trás. Do alto do edifício, vejo as luzes da noite.
As peças de tração do elevador rangem e estalam. Em algum ponto uma palavra
ressoa com insistência, um nome, alguém chamando: cessa afinal o silêncio do meu
corpo. Roçam meu peito os pêlos cor de cobre de Abel. Funde-se dentro de mim seu
ramo bipartido, fendas semelhantes às fendas das romãs, as mariposas verdes e
vermelhas escapam pelas rachaduras, adejam no meu corpo, afloram os ombros de
Abel e logo surgem, trançadas, feitas de lã e seda, nos desenhos do tapete, imóveis.
Este grande anúncio luminoso, que aparece e morre, com as suas estrelas, seu escudo,
suas letras, em que braço do tempo se extravia e cruza comigo, à deriva? Uma
explicação insinua-se de modo enigmático, neste acender, neste apagar. Peças
esparsas conjugam-se e eu julgo entrever a razão por que meto uma bala no peito em
minha noite de núpcias. Desvela-se a estrutura até aqui incompleta e inacessível à
parte mais grosseira do meu entendimento. Quatro e cinqüenta e oito? Os objetos
claros e as paredes guardam o fulgor dos relâmpagos. Volto ao apartamento — seus
bichos de vidro, seus narguilés —, apago todas as luzes. O Avalovara (as asas bem
abertas, os pequenos saltos ondulantes) move-se em torno de mim e de Abel. Hayano
agora ressona. Distingo, nitidamente, dentre os murmúrios que transbordam de sua
luta com os mortos furiosos, a interrogação de sempre: "Por quê?". A lamparina
dentro do copo vermelho. Ponho a mão sobre o copo, minha palma arde, a chama
apaga-se. Um alarido parece vir da rua, subir pelo edifício e tomar-me: vozes
instigadoras falam no meu corpo, vão e vêm. Volto-me para o leito, nada altera a
escuridão do quarto, abro quanto posso as oito pálpebras, um rosto inesperado (ou
esperado?) surge da sombra, dotado de uma luz mortiça e enevoada, um rosto
impalpável e como que plasmado em fósforo — e eu vejo a resposta exigida sem
trégua ao longo desses anos, sim, vejo como saltei em minha noite de núpcias,
enquanto giravam no quarto os refletores, por sobre um elemento insólito e perdido no
tempo, um navio (fantasma?), uma ausência-fantasma, vejo-me reatar, voltando
contra mim o cano do revólver, a seqüência descrita nos dias em que estou narrando a
minha vida, vejo o que sei e apesar de tudo preciso ver com os olhos para que seja
pleno tal conhecimento, vejo, Hayano é um iólipo. Levo a mão à cicatriz. Proliferam
as mariposas, minha voz cortada se mistura com os dois bichos que em nossos corpos
fundidos rugem, latem, bramem, balem e berram, dobro os joelhos, estendo-me no
chão, devagar, o rosto contra o chão, a ave nos rodeia, leve, gira na sala, eleva-se um
pouco, pela primeira vez eu sigo o cão de Hayano, o gavião bate as asas no seu tronco
de cão e este me conduz, língua para fora, por um subterrâneo tortuoso, a descida é
árdua, mas descemos, o pássaro de Inácio Gabriel foge pela janela, volta (passa por
vigas e tijolos), eu e o cão saímos afinal da galeria, descortino um vale de cor parda,
seres deitados povoam-no, raios rasgam a tarde escura e iluminam o pássaro, tento
ainda descer mas o último lance da descida é íngreme, desisto, brilha no ar o
Avalovara como se fosse oco e os raios fulgissem dentro dele, sento-me no alto da
falésia, descalça, os pés pendentes, oscila o pêndulo, Abel e sua aura, vindos de
tempos por ele próprio esquecidos, arribam ao centro inflamado do meu ser, sejam
atribuídas pausas longas, de ponto, a estas vírgulas, do outro lado do vale dois
desconhecidos tangem tartarugas e arrastando-se na terra imitam a sua marcha, ganha
altura o Avalovara nos ares agitados, devassa numa espiral que se amplia as estradas
dos trovões, sobre baixadas cobertas de água lamacenta, fábricas, casebres derrubados
pela chuva, crianças afogadas na enxurrada, quatro e cinqüenta e nove (Morde me!),
lagartixas e outros pequenos répteis viscosos saltam do vale e aderem às plantas dos
meus pés, vasto é o círculo traçado entre as nuvens pelo Avalovara, e nós somos o
centro do seu vôo, esfrego os pés para livrar-me dos répteis, quando uns caem outros
pulam e aderem com força à minha pele, tenho-os sempre nos pés durante o tempo em
que perdura a visão (Basia me!), alteia-se ainda o Avalovara entre relâmpagos, e de
súbito percebo que um pássaro igual — o mesmo? —,quase legível e também feito de
pássaros, voa em nossos corpos unidos, leve, entre as ramagens, as mariposas, o
crocodilo, o coelho e os animais de gargantas ruidosas. Voa em nós e canta. Estranho:
canta em duo, com voz humana e repassada de misericórdia.
T 16
Nua e apenas mantendo, no braço, sua pulseira com astros de ouro e moedas,
Cecília aproxima-se da cama. Ajoelha-se, o pênis enristado pousando entre as coxas e
como que suspensos os grandes peitos redondos. À luz que atravessa, na cortina, a lua
e o leão, desvendam-se novas figuras do seu ser cambiante e povoado. Seria este a
memória — a minha e a sua, fundidas? Não. Será, quando muito, uma metáfora
imperfeita e viva da Memória.
Tivessem os habitantes deste corpo o caráter de imagens, de representações,
limitar-se-iam a repetir palavras e ações de outro tempo, submissos a uma realidade
outra, exterior a eles e já ultrapassada. A autonomia de tão surpreendentes criaturas,
ao contrário, é ampla. Assemelham-se aos entes da memória em não estarem, no
corpo de Cecília, sempre visíveis, presentes sempre, como indivíduos encerrados num
salão. Surgem, sucedem-se, apagam-se, obcecam; e o espaço que ocupam, se ocupam,
é imaterial, não um espaço físico.
Supor que Cecília, no espírito e na carne, altera-se quando outros corpos
abandonam a doce curvatura dos seus ombros, dos seus peitos ou dos seus quadris —
e que agem fora desses limites —, seria errôneo. Aos homens nascidos de mulher,
identificam-se tais corpos, opostos às abstratas personagens das recordações, em dois
pontos básicos: agem em função dos seus próprios impulsos e resoluções; ocupam,
em grau variável (entendido que a sua existência é verdadeira, e de modo algum
imaginária), um espaço físico, não imaterial. Quando, contudo, deixam ou invadem os
limites sensíveis do corpo de Cecília, não o diminuem ou acrescentam verdadeira-
mente.
Cecília, na colcha de rendas, joelhos meio afastados, mãos acima da cabeça
segurando as grades de latão, espera. O rosto pálido e tenso, pálpebras cerradas, a
respiração fora de compasso. Homens e mulheres, ociosos ou entregues a afazeres
rústicos, inclusive os lavradores que com ela irrompem no chalé (plantam e capinam
na carne de Cecília, sem que chegue a mim o rumor dessas tarefas), movem-se no seu
corpo.
São, seu corpo e esses corpos, sobre a colcha de rendas e a toalha vermelha, de
uma vez, corpos e espaço circundante, são corpos e também atmosfera — uma
atmosfera aprazível, umbrosa e repassada de odores frutáis. Beijo seus côncavos:
entre peitos, garganta, umbigo, cintura, sobraço. Com a língua (crianças brincam nas
coxas cada vez mais afastadas), sopro seu pênis ereto e nem assim viril, embebido na
feminilidade que a envolve. Chamam-me, na sua boca, duas vozes simultâneas? Duas
vozes, grave uma e outra aguda, gemem: "Vem!". Com extremo cuidado, trespasso-a,
da cabeça aos pés ela estremece, eu estremeço e por três vezes, sentindo no dorso,
insofridas, as unhas de Cecília, sou admitido ao mundo do seu corpo — onde três
vezes, com diverso grau de intensidade, eu a encontro. Que sabe, da queda, um
homem, no instante em que perde o equilíbrio e tomba? Ele sofre o acidente e a sua
experiência é um gênero vertiginoso de conhecimento. Assim minhas passagens no
cerne de Cecília. Perfuro o mundo do qual tantos viventes irrompem e que nada abre,
nada, à introdução do meu corpo. Agora, rompo-o, atravesso-o e tão limitadas estas
admissões, tão velozes em sua nitidez, que ingresso e expulsão parecem simultâneos.
Vejo-me, primeiro, durante o breve momento em que Cecília, cravando os
dentes no meu ombro, ordena rouca: "Mais!". Vejo-me à sua frente, ambos de pé e
nus. Ela, segurando uma orquídea contra o peito raso, ostenta o membro sedoso e
desejável; sinto, eu, com o peso dos seios, o peso de ser fêmea e espero que Cecília
me penetre. Meu pai, alegre, protege-nos com um pálio escarlate e traz no ombro um
garço. Vejo-o com o pálio e a ave, vejo-o através dos meus olhos e também com os
seus nos vejo. Pequenos animais, leves como palavras, voam em torno de mim e de
Cecília ou passeiam em nossos corpos: aranhos, grilas, formigos, efeméridos, vespos,
vagaluzes, cantáridos, escorpiãs, cigarras. Trilam as grilas, noturnas; as cigarras
zunem. Cecília range os dentes e atira a cabeça para trás.
Este movimento corresponde à segunda incursão na sua substância. Ela,
vestido leve e claro, corre à minha frente, feliz, a mão esquerda estendida para mim.
Acompanham-nos (e da sua presença estamos penetrados) homens e mulheres do
povo: estivadores, caixeiros, engraxates, pescadores, marafonas, lavadeiras, artistas de
circo, empregadas domésticas, costureiras, caiadores de paredes, lavadeiras, camelôs,
enfermeiras, vendedores de grampos, de pássaros, de alfinetes, mestras de primeiras
letras, pedreiros, sacristães. Planam, acima de nós, como se fossem alados, bichos do
chão e da água: rãos, lontros, peixes-vacas, emos, búzias, tartarugos, camarás, arraios,
lesmos, calangas, suçuaranos. Sob os nossos pés, fundo, o rumor de muitas vozes
raivosas ou festivas. Ouvindo-as, compreendo: os homens e mulheres que nos cruzam
estão vivos, mas mudos — e o seu clamor ou os seus risos enterrados.
Incorporam-se na minha última visão, ao mundo orgânico, arcos e colunas?
Vejo-os, realmente, enquanto uma voz de menino, às nossas costas, narra o
casamento, imperiosa? A figura do bispo, imponente, erguendo as mãos como se
fosse declarar-nos unidos (rosto de mulher) sugere um espaço solene e amplo.
Existam esses grupos de crianças entregues a seus jogos infantis e esses jarros com
flores. Os braços abertos do bispo realçam os paramentos suntuosos. Cecília e eu,
ajoelhados, somos um. Seus, no corpo que formamos, perna e braço esquerdos; meus
o braço direito, a perna direita; duas as nossas cabeças; subsiste um seio, o esquerdo,
em nosso busto. A mão direita segura a mào esquerda. Voltam-se nossas cabeças,
fronte contra fronte. Nosso corpo, favos rompidos de mel, exala o gozo carnal.
Esplendor? A pele: chama latejante. Gritamos e tombamos. Um hausto, duas
gargantas, grito uno. Ouço o barulho do mar e vejo as grades da cama, as palmas do
coqueiro, o leão rampante. Nuvens sanguíneas e longas, com reverberações de ouro,
iluminam o corpo brilhante de Cecília: braços para o alto, o pênis ainda pulsando.
Sobre a esteira, deitado, o carneiro rumina folhas de canela. Cecília volta-se e abraça-
me outra vez. Tilintam as moedas e astros no seu pulso.
Breve estação de um amor sem perguntas e indiferente a toda espécie de
projetos. Andamos pelos quartos e salas do chalé, sempre nus ou ataviados com os
velhos colares e chapéus que achamos nas gavetas. Cecília, o bandolim de Leonor no
peito, sob as réstias que atravessam as bandeiras coloridas das janelas, a cabeça e o
corpo manchados de vermelho, de azul, de verde, arranca notas soltas do instrumento.
Subsistirá ou não, dentro do mundo, o oposto do mundo? O universo: também um
andrógino? Questões logo esquecidas.
Ecoam, com seus dias cálidos e súbitos crepúsculos, os meses desse verão
inebriante, como teclas de um órgão calcadas sucessivamente e cujos sons se
fundissem. Na carne de Cecília, comparável à memória e à imaginação, espaço
franqueado ao meu testemunho apaixonado e onde se tornasse sensível a operação
daquelas faculdades gêmeas, ocorre um fenômeno novo. Surgem, na sua carne
multiplicável e da qual, na hora em que pela primeira vez nos amamos, e só então,
invado o núcleo (invasões ou admissões que duram o tempo de um disparo), surgem e
desaparecem com a mesma rapidez, em meio aos outros homens e mulheres, seres de
outra espécie, cheios de força e como iluminados de dentro. Não posso vê-los bem,
tão depressa se esbatem. Despidos, vestem-nos apenas os anéis com pedras preciosas
e os chapéus em forma de chavelhos, mas sente-se que estão armados e seu olhar tem
um peso de aço. Trazem, na testa, números negros ou brancos. Com semanas de
intervalo, desperta-me no âmago da noite o impulso de buscar. Buscar? Mas onde? O
quê? Pronuncio, como um esconjuro, o nome de Cecília e outra vez adormeço. A
graça de vê-la e o meu desejo sem fundo tudo absorvem e apagam. Zumbem as coisas
— portas, móveis, piso de mosaico, ar —, golpeadas pela sua presença. Quando, ao
fim da tarde, beija-me no alpendre e parte (e quantas vezes, ao voltar-se no portão,
corre, sobe os degraus, beija-me ainda?), rangem as paredes da casa. O vácuo e o
silêncio atingem cada osso. Acendo dois rojões, que explodem e lançam no céu quase
noturno luzes de estrôncio e magnésio. Minha mãe traduz, na praia: "Pode voltar".
Mas o que escrevo ou pronuncio, com estas explosões e riscos luminosos, lançados
tão alto, é o nome de Cecília. Deito-me na cama em desalinho, impregnada de todas
as suas presenças e das suas palavras amorosas. A Gorda: "Epa. Tomei sol e vento
que já estou ourada. Vocês se acabam. Ela é boa assim de cama, Abel? Conta pra
mim. E eu pensando que ela era meio homem!". Cada vez é mais imperioso ouvir
tombarem os vestidos de Cecília na esteira do quarto, enquanto o vento move os
ramos do flamboyant; e repetir, sob formas sempre novas, vigiados pelo leão
rampante, nosso prazer tríplice. Sugere-me uma tarde, meu rosto no seu ombro e uma
perna sobre a minha: "E se nós nos matássemos, Abel?". O rumor do mar dissipa-se
no quarto. "Seria perfeito, não acha? Ascensão e explosão. Um fim luminoso." Da
porta, observa-me, sob o chapéu descaído, com seu olhar ardente, o homem desquieto
e que inocula nos demais a sua.febre. Levanto-me e procuro o revólver em cima do
guarda-roupa. Vazia a caixa de sapatos: nem sombra da arma e das balas. No corpo de
Cecília, estendida a meu lado, um casal (não os vejo) fala descuidado a respeito da
mesa sobre a qual presumo estarem. Deitados também e de mãos enlaçadas? Hora
tórrida, de estilo. Talvez estejam nus como Cecília e eu, estão sozinhos, ele explica à
mulher o seu amor pela mesa que lhes serve de cama. Ama-a, desde a infância, por ser
assim, longa, pesada, sólida, escanteada nos ângulos e com os pés torneados. Duas
coisas, principalmente, sempre o atraíram nesse móvel: o comprimento, a solidez e a
cor. A mulher corrige-o, rindo: então eram três? Eram três, sim. A cor, mais do que
tudo. Veja, essa cor dourada, mel e vinho tinto. Um lugar fresco, mesmo em dias
como hoje. Vezes e vezes se deitou sobre ela, de borco, sentindo o frescor da madeira
e aspirando o perfume nunca extinto do verniz. Este perfume, palavra alguma pode
transmitir. Não acha? À mulher, também agrada o perfume da mesa. Tão leve! Leve e
constante, precisa o homem. Leve como o cheiro do arroz e fiel, duradouro, indife-
rente às estações e às horas do dia, um perfume que ele sabe poder reencontrar, à sua
espera, esteja onde estiver. A mulher confessa ter desprezo pelos móveis de madeira
leve. Entretanto, aprecia as portas frágeis. No verão, ao meio-dia, costumava deitar-se
em algum ponto da casa, sobre os ladrilhos tíbios. Portas, movidas pela brisa, batiam
com brandura nas ombreiras. Ninguém, na lassidão daquelas horas, tinha ânimo de
erguer-se, fechar as portas de uma vez ou as abrir. Elas batiam: escala breve e frágil
tendendo para o silêncio. Aqueles sons, como as cigarras, eram uma das vozes do
verão. O homem: "As dobradiças rangiam?". Sim, algumas, um pouco. Adverte-me a
Gorda: "Cuidado, homem. Até onde vai isso? Está durando!". Respondo não saber e,
na verdade, não querer saber. Mas ignoro ou sei? Esta cegueira que aceitamos e
intensificamos, Cecília e eu, é mesmo de quem nada sabe? De quem nada sabe é este
ardor desmesurado com que nos consagramos um ao outro, recebendo e doando todos
os bens de que dispõe nossa pródiga indigência de amantes, encerrados na luz e no
calor do fugitivo verão como em uma ilha precária que logo será coberta pelo mar?
Sobre os meus joelhos, nua, na cadeira de balanço, tendo à cabeça um grande
chapéu branco, com plumas, Cecília conta-me a fábula concebida na fome e na
loucura por uma das internadas: "Há, em algum ponto do mundo, um ovo cujas
dimensões é impossível calcular e onde Deus guarda um grão de claridade. Isto para o
caso de todos os fogos do universo vierem a apagar-se. Então, com um grito, Deus
romperá o ovo e dele sairá voando um pássaro feito de chispas, que crescerá
rapidamente, com a velocidade da luz. Mas pode suceder que o mundo recaia ainda
nas trevas. Prevendo isto, traz o pássaro um ovo, onde Deus esconde a claridade".
Tomo-a nos braços e levo-a pelas salas, afirmando que ela é esse pássaro. Esconde os
pés, com receio de bater nos móveis e portais. Cai no chão o chapéu branco e
emplumado. Vejo, então, as criaturas sem nome e de olhar insuportável, com seus
números na fronte.
Última segunda-feira de março, entardecer, nuvens sanguíneas no lado oposto
ao mar. Cecília e eu sentados sobre as pedras, na praia dos Milagres. Vazante. As
carnes da cintura pressionam o cós da saia verde e os mamilos esticam a blusa negra.
Homens do campo, espalhados nos peitos e no ventre, chapéus nas mãos, em mangas
de camisa, puxam uma carreta. No ataúde roxo vai o corpo de uma apanhadeira de
pimenta. O viúvo, desfiando um rosário vermelho, acompanha o enterro. À distância,
um cão persegue as ondas quando fogem e foge quando voltam as ondas. O mar, para
ele, um brinquedo ou um menino. Sem falar, estendo a mão; Cecília toma-a, séria.
— Minha mulher escreveu-me. Promete fazer tudo para que eu tenha o que
mereço.
— Diz o que você merece?
A reverberação do poente, roxa e rubra, incendeia as bordas de outras nuvens,
muito altas e escuras: castanhas. Nuvens de chuva? Seguem depressa, ao contrário das
nuvens do ocaso, quase imóveis. Ao longe, o perfil extenso e indeciso do Recife.
— Não, não diz.
As sandálias claras de Cecília, com leves manchas de uso nas palmilhas.
Nossos dedos se entrelaçam. O calor da sua pele e o sangue martelando o pulso fino,
fazendo vibrarem as argolinhas de prata e as pecinhas de ouro.
— Abel, eu estou grávida.
Olha-me, fixa, ligeiramente pálida, os joelhos a um tempo ossudos e
harmoniosos — e o busto voltado para mim, lançado para mim, rodeado pelo espaço
da tarde, enquanto morre o dia, os lavradores acompanham a carreta mortuária e o cão
brinca agilmente com as ondas cada vez mais afastadas.
— Tenho um filho seu em mim.
Dois estranhos, paletó no braço, vêm lentamente em nossa direção. Arrefecem
o roxo e o rubro do horizonte. Flutua sobre as águas, translúcido, o bairro do Recife.
Um cheiro ativo de óleo mescla-se ao do mar, ao seu aroma de iodo ou de castanhas
verdes, mas o perfume que domina todos os demais é o de Cecília. Colônia, sabonete
e pó, mesclados à fragrância que exalam o ventre e as coxas: de sexo banhado em
muitas águas e agitado, úmido, desperto. Impregnada, decerto, desse múltiplo odor a
saia verde. Os dois desconhecidos passam por nós, afastam-se. Inclino-me e descanso
o rosto no ventre ainda brando de Cecília. Todos os Cheiros invadem-me, intensos.
Ameaças dos irmãos. Exigem, gritando ao telefone, que eu induza ou obrigue
Cecília a arrancar fora o bastardo quanto antes "e assuma tudo". Quer dizer: pague
tudo. Desligo todas as vezes sem nada responder. Mas o sangue turva-se, cada vez
mais negro com a instilação freqüente dessas vozes. Turvação idêntica à que
sobrevem nas discussões e lutas em que me envolvo durante os meses turvos do meu
casamento.
Cecília desaparece: uma semana sem vê-la. Evita-me? Por quê? Teme ouvir de
mim o que os irmãos exigem e determinam que eu diga? Prepara decisões sem
discutir comigo? Ordeno a Cara de Calo que a encontre custe o que custar. Volta sem
dar conta do recado, com alegações confusas sobre a cintura zodiacal, o movimento
direto de Urano e a força do seu Legislador, que o opõe à função de mensageiro. As
linhas quase sempre ocupadas dificultam minhas tentativas de obter ligação, tanto
para a Rosa e Silva como para o Serviço Social. Quando consigo falar, outros
respondem. Deixo recados ou reponho o fone com uma praga surda.
Sentado ante a mesa sem verniz e cuja gaveta cheira sempre a pólvora,
examino o conto quase terminado. Dentro da madeira e das paredes crepitam asas
secas. Insetos de mica, contorcendo-se. São nove da manhã. Abre-se a porta e os dois
irmãos de Cecília invadem o quarto. O mais alto, segurando-me o braço, fala com a
boca junto à minha cara; o outro, mais afastado, aponta-me o cano escuro da
automática. Cheiram couro e alho esmagado.
— Damos vinte e quatro horas para você fazer Cecília decidir-se. (O desastre,
existente na vastidão do tempo, não é algo a suceder. Forma vazia, suga-nos. Cecília e
eu: polpa desse invólucro oco e de força irradiante). Você não vai querer que a gente
mesmo resolva essa parada com um pontapé na barriga. Vai? Damos vinte e quatro
horas.
O rosto de Cecília, embrutecido, sobrenada no deles. Deixam-me, com o seu
cheiro de alho e de curtume, ambos lançando um olhar inclemente onde creio luzir —
estarei enganado? — alguma compaixão. Meto o relógio no pulso. Ao guardar o
manuscrito ouço um ruído no ar, como se um pássaro todo feito de dentes estendesse
as asas — e lembro-me da automática voltada para mim. Quem teria furtado o
revólver do chalé? Rumor de asas no piso. Mil baratas presas sob as tábuas fazem
esforços vãos para voar e roem umas às outras.
A 21
ROOS E AS CIDADES
Carta de Roos, fiel àquele movimento pendular, tão semelhante aos dos
parceiros do trapézio, que jamais oscilam simetricamente, aguarda-me na minha volta
de Londres. Viajou para o Havre a serviço da firma e regressa ainda esta semana, no
dia 21 ou 22. Pede-me, caso eu não tenha outros compromissos, reservar a tarde do
domingo. Há pouco mais de seis anos, em abril de 1951, quando veio a Paris pela
primeira vez, sua mãe levou-a a um parque. Havia tantas flores! Jamais o esqueceu:
"Não é Buttes-Chaumont. Talvez o Pare Monceau, sim, talvez. Quer ir vê-lo
comigo?".
Ladeamos as grades altaneiras, douradas no alto e através das quais vemos os
freqüentadores, as cadeiras amarelas, pombos, os lampiões redondos sobre postes
verdes. O relógio, no elegante pavilhão à entrada, marca quatro menos cinco. O céu
dúbio, porém, pressagia chuva e o sol talvez não volte. Descrevo, sem conseguir
expressar o que pretendo, a breve cena, à altura dos Açores, no navio da Chargeurs
Réunis. Estou no tombadilho e volto o rosto: uma gaivota segue a bombordo, quase ao
alcance da mão. Move um pouco a cabeça e nem parece voar. Durante alguns
minutos, acompanha o cargueiro, à mesma velocidade, como que suspensa, Roos, no
frio ar de fevereiro — e causa-me alegria ver o seu olho direito voltado para mim,
agudo, um bico. Depois, houve um mover de asa. Ela se inclinou e desapareceu.
Roos, desolada e pouco atenta à minha narrativa lacunosa, olha as colunas de
aspecto tristonho, uns poucos cisnes negros, a pérgula com trepadeiras. "Não, não é
este o parque. Perdemos o passeio." "Podemos compensar. Hoje, já é tarde. Mas por
que não vamos esta semana a Chartres? A rigor, eu já devia estar do outro lado da
Terra. Continuo a esperar, sabe? Entre mim e você, algo ainda deve acontecer. Um
fim. Um começo." "Também gostaria de ir." "E então? Sexta-feira? Sábado?
Dormimos lá. Ainda escuro, vamos à catedral ver os vitrais surgirem com o nascer do
sol. Leve a sua máquina. Levarei um filme. Podemos almoçar no campo. À margem
do Eure. Voltaremos ao cair da noite. Uma celebração. O nosso adeus. Em Chartres...
verei seu corpo." Dá alguns passos, lenta. Os roxos, amarelos e rubros das aléias
verdes, sua memória talvez multiplicasse-os nos seis anos decorridos desde 1951.
"Nossos corpos... devem ver-se?" "Sabe que sim. Como se até então fossem cegos."
Pára e olha-me de frente, a estas minhas palavras. Cantam pássaros, discretos,
ocultos nos ramos. O vento agita de leve seus cabelos.
— Quando iremos, Roos? Sábado?
— Sim. Sábado.
As horas que se seguem: uma espera dourada. O roçar das gavetas, ao serem
abertas ou fechadas, refrata-se em perfumes de bosques; cheira a leite e a capim na
madrugada o couro dos meus velhos sapatos; desdobram-se, desprendem-se, da alvura
das folhas de papel, lençóis de linho, nuvens de estio; vejo o nosso encontro não
situado no tempo, mas num ponto aprazível e tenho a impressão de ir, através das
horas, em direção ao onde, ao rio ou à planície em que, de certo modo, Roos me
aguarda.
Na sexta-feira, chama-me ao telefone. Adquiri o filme? Leve-o. Levará a
máquina. Às cinco? Dez minutos antes (confronto meu relógio com o pequeno e
redondo relógio do Palácio, no Luxemburgo), estou à sua espera, entre as brancas
estátuas de Batilde e Matilde, rainhas de França. Ouço o repuxo no centro do jardim e
o rumor dos veículos nas ruas que o circundam. Roos, com um vestido vermelho, vem
ao meu encontro. Pesadas gotas de chuva, prateadas de sol, tombam com um leve
ruído em seu redor.
— Vim despedir-me. Parto amanhã.
Pergunto para onde? Não ouço a resposta. Que diferença faz se, como diz,
viaja para não voltar? Não poderá, sequer, adiar a viagem por dois dias. Houve
problemas, vai gerenciar a sucursal.
— Então, Roos, de repente... Tudo se acaba.
Para confortar-me, lembra mais uma vez o companheiro enfermo: ele acha que
o fim é uma noção enganosa. Não poderíamos, Roos, sair esta noite? Não. Tem de
voltar ainda ao escritório e receber uma série de instruções. Credenciais, documentos.
Viaja a que horas? Pela manhã. Pus o filme na máquina e fotografo-a em silêncio. No
fundo, os troncos das árvores, as pensativas estátuas sobre os pedestais, Berthe ou
Bertrade, santa Batilde, santa Genoveva, outras estátuas distantes, ânforas, as pessoas
no parque, pombos voando, o espaço.
— Não posso acreditar, Roos.
No Coliseu, em Roos, no meio do Coliseu, a ponto de precipitar-me, cair na
parte mais baixa da estrutura, no Coliseu, como no meio de uma ossada fantástica,
uma grande mandíbula, as arcadas simétricas e os contrafortes, muitos dos quais
derruídos, entre uma arcada e outra, e os arcos por trás das arcadas e as janelas e
portas sobre os arcos, os corredores abobadados, os incompreensíveis vãos. Haveria
comunicação entre essas passagens todas? Os fantasmas dos leões transformados em
insaciáveis roedores com jubas, urrando, em Roos, dos fossos para as partes altas e
das arquibancadas para os fossos, roendo as pedras com dentes velhos e gastos.
— Nas águas em redor de Halicarnasso existe um cemitério de navios. Abel:
pense quanto passado está ali.
O diálogo é vão e insensato, nem sei por que voltamos a falar, eu e Roos em
verdade falamos sós, ou isto não é falar, falamos para ninguém, para um morto, de
dentro de nossas mortes, pois nunca mais nos veremos e o sumo da sua presença já
não subsiste, eu sei.
— Sim, Roos, imagino. Todo um passado, à espera.
Vejo-a no visor, diminuta, invertida, difusa, com seu vestido rubro, sorrindo,
olhando-me, uma flor na mão (fui eu que trouxe a flor?), de perfil, a máquina estala
entre meus dedos, clique do obturador, passar do filme, Roos, fugidia e móvel, presa
em flagrantes imóveis, nos quais amanhã, depois, depois, tentarei recuperar — o quê?
Ressurgirá, em alguma das fotografias, tal como a vejo no jardim do castelo onde
repousam as cinzas de Da Vinci? Robs, uma visão, um impossível, a fugidia, a
próxima, a ofuscante, a clara, a quase, a que entrevejo, a que perpassa, o relâmpago, a
irisada, a apenas visitada, a intangível a vinda inconclusa, o perene ir.
Ainda com o filme no bolso, dirijo-me à casa dos Weigel em busca de refugio
e também para levar-lhes minhas despedidas. No outro dia mesmo, logo que Roos
tenha viajado, irei embora. O velho, sustentado pelas três frágeis mulheres, debate-se
no leito. Tenso e curvado, um arco. Todo ele — língua, cabeça, olhos — está voltado
para a sua direita. Da boca, pende um líquido raiado de sangue. Ajudo as mulheres na
última fase do acesso e mal sei quanto dura. Um minuto, dois. Cessado o espasmo, o
doente fecha os olhos, seu corpo amolece, ele desfaz-se, pálido, em suor. Suzanne
pergunta-me se vou embora. "Amanhã. Sinto ter vindo numa hora dessa. Quando ele
despertar, diga que Liév Nikoláievitch esteve aqui." "E... ela?" "Vai também
amanhã." Abraço-a, beijo a fronte de Julie. Aperto as mãos de mme. Weigel: outrora,
bem tratadas, tangiam o bandolim. As moças levam-me à porta. Apoiado ao frio
corrimão, desço a escada. Um soluço, pesado, rola sobre os degraus escuros. Um
seixo. A porta é fechada com violência.
Faço rapidamente as malas. Folhetos de turismo no armário, nas gavetas, em
cima da mesa. Algumas cidades vistas, outras que nunca o serão. Qual o nome da
cidade para onde ruma Roos? Não será, esta, a que eu devia encontrar? Não verei a
cidade, e Roos não reverei, nunca. Pássaros negros e cães mortos se batem sobre a
cama.
Saio para a noite, ando pela cidade e vejo-a esvaziar-se. Deitado, eu, com uma
polaca; abraço-a como se abraçasse um ser feito de arame e de cabelos de mortos.
Ejaculo meu ódio, meus testículos soluçam, choro pelo pênis, ouço-o gemer. Ainda
não me vesti e já essa mulher de quem mal vi a bolsa ou os sapatos se despede. Desce.
Fico no quarto, um quarto de paredes desnudas, sem nada que se possa roubar.
Formigas-brancas cobrem-me as mãos, o sexo e o rosto. Lavo-me na pia, elas voltam
a surgir. Lavo-me outra vez, tremendo, enxugo-me depressa, lanço-me escada abaixo.
Um mendigo segue-me calado. Vez por outra, como o domador ao URSO, dou-
lhe uma moeda. Açúcar para os pôneis amestrados. Ratos grandes como porcos
atravessam os becos e correm ao longo das pontes. Roos. R - O - O - S. Ravena,
Oviedo, Orléans, Salzburgo. Avenidas desertas, cheias de carros estacionados. As
janelas fechadas. Um deserto quase igual ao das cidades de Roos. Reno, Riga, Roma,
Rodes, Rotterdam, Ródano, Ruão, ruam e rebentem todas. Único ser humano: o que
me segue, sombra. Sagres, Salônia, Sena, Salamanca, Samotrácia, Sodoma, Saragoça,
Sèvres, Sídon e Siracusa, sumam. Um vento colérico abala esse nomes, solda-os,
desagrega-os, atira-os contra outros nomes e outros ventos. Dois gatos se cruzam,
ruidosamente, entre os lampiões amarelos da ponte Notre-Dame. O mendigo
masturba-se. Sena, Florença, Nuremberg, Berna, Murcia, Viena, Cartagena, Linz. O
céu empalidece, desapareceu meu seguidor. Salerno, Budapeste, Esparta, Gênova,
Sorrento, Reims. Desabem as paredes, arsenais inteiros voem pelos ares, incêndios se
alastrem, apodreça a água nos reservatórios, rachem-se os esgotos, voem os telhados,
vergastem o ar os cabos telefônicos. Sentado no meio-fio, do lado oposto ao prédio da
Aliança, junto ao quiosque com cartazes dos teatros e de Dubonnet, aguardo a
aparição de Roos. Entre mim e o portão de ferro, junto às árvores ainda envoltas em
bruma e que separam as mãos de direção, pequenos carros com lixo. Roos, o fular
veneziano ao colo, abre o portão. Antecedem-na casais de aves semelhantes a
flamingos, e inquietas. Nápoles Ancona Coblença Nantes Burgos. Vamos costeando o
Luxemburgo na direção da gare d'Austerlitz, atravessamos o Sena (um cão, nas
Tulherias, com dentes fosforescentes, morde a cauda negra) rumo a Saint Lazare.
Bilbao Pamplona Liverpool Lyon Dublin Antuérpia Groningen Monte Carlo brindisi
ulm lübeck. Os bares fechados — boulevard Saint Michel — os cafés fechados —
boulevard Malheserbes — Jardim das Plantas — fechadas as lojas, as agências postais
— Constança brunswick — mas a cidade desperta — pavianancymilão — move-se
aos poucos na névoa da manhã. Que aspecto terá, em hora tão matinal, o Bois de
Vincennes? Cre monacor int oali cante granadapalospor tobor deus, um trem do
metropolitano no elevado à esquerda da gare d'Austeríitz, os números amarelos e os
ponteiros vermelhos do relógio da entrada em Saint Lazare (por que tantos relógios na
estação?), carrocinhas com sacos do correio, messna bruxlas cônia oxd plym gena
ogunc ul onia omnia voem pulverizem-se.
Descemos, descemos, seguimos sob o alto teto da gare d'Austerlitz,
atravessamos, rumo aos mortificantes e estreitos cais, o largo vestíbulo de Saint
Lazare, abraço-a longamente, abraço-a, longamente, ela tenta sorrir, seus olhos estão
úmidos, seus olhos estão úmidos, mas o ar está frio, ela tenta sorrir, mas o ar está frio,
nas águas em, nas águas, redor de em redor de Halicarnasso há um, Halicarnasso,
cemitério de, um cemitério, navios, de navios, no cais ressoa o aviso de partida, no
cais, de partida, o aviso, ressoa, ajudo-a a subir, há no ar um odor de violetas, o trem
começa a afastar-se, ajudo-a a subir, odor de violetas, o trem começa a afastar-se, ela
me acena. Acena-me, dou ainda alguns passos, dou alguns passos ainda, e me vejo
sem nada, mais uma vez sem nada, sem nada, mais uma vez, e cego, e cego, ante a
minha ofuscante solidão, ante a minha ofuscante solidão.
R 16
T 17
E 1
Fim e início. ʘ e eu, frente a frente, lado a lado, dorso contra dorso. O Sol, a Lua, a
Interferência, a Treva, a Convergência, p Percurso, a Cadência, o Equilíbrio. Dorso
contra dorso, lado a lado, face a face, os braços em T. Onde? Surgem, ao tempo de
Carlos Magno, os mapas trocóides e com eles vão ao mar os navegantes, águas,
nesses mapas, são desenhadas como um T sobre um O: um T sobre a Terra. Seremos,
nós, com os braços abertos, T ante, rodeados pelo mundo, um mapa? Que águas
seriam então em nós evocadas com seus peixes?
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O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN
E 2
R 17
E 3
O corpo de ʘ e o meu, tudo o que temos para este encontro. Nossos corpos e o que
ambos trazem. De pé, as suas mãos vibrando entre as minhas como vibra a cidade na
hora ainda tumultuosa da tarde, contemplo-a. Desejaria que soubesse e é possível que
saiba: não vejo à minha frente um animal de presa. Ela responde, com a fúria e a
solidão que ressoam em sua carne, a obscuros vazios que me roem. Percorre-a um
rumor? Suas mãos nas minhas, vibrantes (assim vibra um sino percutido, o chão sob
um galope de cavalos vindo, vindo, vibra assim). As palmas largas e fortes. Bate-me o
sol na cabeça e no canavial, verde e crespa ondulação descendo pelo vale, montando
os flancos dos montes, quase branca à luz do sol que cai de chapa no canavial e em
mim. Extraviei-me do reduzido grupo e há um extenso silêncio, que abrange as
cigarras, os pássaros e o canavial. Vejo entre montes uma chaminé e de longe, de
longe, da margem das distâncias, vem o ganido de um carro de bois. Os anjos
invisíveis e severos que antecedem a vinda da Cidade, que a precedem, parecem haver
expulsado da paisagem todo bicho vivo e qualquer vento. Expressa o rosto de ʘ,
legíveis, símbolos claros e exatos como as letras que vogam entre os altos edifícios?
Segredos numerosos, nele, espreitam-me; e o confronto do meu corpo com o seu
atende a um esforço de perfuração ou rompimento, arrastam-me esse rosto e corpo —
ventre ancas jarretes, vulva peitos ombros, língua braços coxas — com todos os ímãs
e iscas e méis, mas arrasta-me com ainda maior potência o esconso, o que irrevelado
se move em sua carne, 0 ainda escuro e não aqui. Sua beleza estoura nos meus olhos e
trespassa-me, cruza-me, atravessa-me, crava-se fundo em mim.
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Beijo com brandura as pouco numerosas sardas dos seus ombros e espalmo os
peitos que, deitada de costas, pendem, os bicos semelhantes a botões de flor, de um
lado e outro do torso, volumosos. Anunciam-se, nos duros e pontudos bicos, rosas
sem caules? Todo o corpo de ʘ, já inteiramente nu sob o vestido e ainda guarnecido
com os adereços que traz para o encontro, ressalta do tapete. Volumes ondulantes e
compactos. Solto o laço da blusa e desabotoados os punhos, caem as mangas frouxas
quando ela estende os braços e quase nada esconde o busto. Peças dos nossos
vestuários, arrancadas com crescente impudor e uma violência que parece imitar as
vozes da cantata, jazem em vários pontos, sobre móveis ou no piso, algumas nos
limites da sala. Distamos pouco da absoluta nudez e, não sei por quê, a solidão em
que estamos parece esférica, embrião no seu óvulo. Estivéramos, ela e eu, gerando
algum ser afável e gracioso, o júbilo dos homens, a idade da concórdia, a universal
sabedoria! Consciente do corpo, ela, descalça, não se permite assentar as plantas dos
pés quando anda. Deslocai se, os calcanhares suspensos, como se pisasse em ladrilhos
muito frios ou evitasse ser ouvida, ondulam os flancos nédios graças a esse artifício e
as mãos erguidas (um pouco) integram o alado encanto da marcha. Imóvel, firma-se
em um dos pés e alça (um pouco) o outro avançando, mediante flexão calculada com
astúcia, o joelho bem modelado, com o que inclina o tronco e finge uma postura
desatenta. Não negligencia, então, os ombros, lançados para trás — e assim mantém
os seios na altura que deseja, as veludosas aréolas grandes, como pêssegos e nos
mesmos tons de ouro. Esse jogo de espádua dissimulado e preciso, reflete-se nas
costas, cavando a curva acima das nádegas trêmulas e ressaltando, pelo contraste, o
seu modelado. Com isto, a linha do ventre, brando e adiposo, desenha-se tensa;
lembra um arco entesando para o tiro. Pulsam, no pequeno conca vo do umbigo,
origem de uma leve penugem descendente, reflexos, azuis. (Os coros arcaicos e os
versos latinos do long-play, o compasso do relógio, nossas palavras gastas e mesmo
assim verdadeiras, beijos mudos, gritos contidos, tilintar das pulseiras nos seus
braços.) Com a mão esquerda, devagar, exploro as gradações de resistência e calor da
sua pele, quente, acetinada e úmida entre as coxas, áspera e com algo de animal nas
axilas raspadas, cremosa nos jarretes, fresca e seca nos flancos, viva nos mamilos, rija
nos joelhos. Doçura e tepidez do ventre! Cálida, seca, tensa, flácida, úmida, imberbe,
macia, túmida, gélida, em fogo, fresca, tépida, é o mesmo tecido atento e inflamado
que responde aos meus gestos errantes. Tocando-a, os dedos ardem e onde quer que
pousem há um zumbido, um frêmito. Habitam-na enxames de abelhas? Besouros?
Imóvel e sem desejo de mover-me, mãos sobre o estômago, pernas estendidas
(soam, longíquos, motores de ônibus, vozes, passos nas calçadas), sonho jazer no
preciso lugar em que, dormindo, sonho. Interrompe a barra escura da parede, à minha
frente, um retângulo claro, nas dimensões de um lençol e talvez branco. Aguardo que
algo suceda e tudo o que sucede é a dissipação da dúvida a respeito da cor e da
natureza do retângulo: há um lençol alvo, desdobrado, estendido na parede e eu posso
distinguir, inclusive, as leves marcas das dobras. Quem o sustenta?
Cerra os olhos e verga rígida a cabeça quando sigo com a língua o desenho
entre a mandíbula e os botões dos seios. Mordo os seios, zona de textura indefinível
— entre sólido, líquido e fumaça sugo as aréolas, ela ergue uma perna e joga-a sobre
as minhas, soam guizos em torno do tapete, vara a janela um vento súbito e morno,
vibram pingentes dos lustres e sobre nós range uma fronde, o vento agita-a e eu tenho
nas mãos, na boca, os grandes frutos da fronde, seus frutos gêmeos, redondos, únicos,
maduros, impossível colher esses pomos encantados e cuja pele não os fecha ao
mundo, antes encerra na sua polpa o mundo, e, no mundo, outra árvore com novos
frutos gêmeos, fruíveis mas inseparáveis da árvore e nos quais o mundo mais uma vez
— e sempre — se repete. Ouço passos, pés descalços sobre folhas?, volto-me
apreensivo. Visão surpreendente: no tapete, um vulto, mulher nua ou homem, como se
nos espreitasse e fugisse, esgueira-se entre as ramagens umbrosas.
E 20
ʘ E ABEL: ENCONTROS, PERCURSOS, REVELAÇÕES
E 9
Enquadra o tapete, prolongado, nas bordas menos largas, por duas franjas
pálidas, fina moldura sanguínea, cercando duas seqüências florais, ambas com
predomínio do azul, mas baseadas em distintos modelos. Segue-se uma barra bem
mais larga, também florida e onde as flores, ligadas entre si por uma caligrafía de
folhas, salientam-se, douradas e índigo, sobre fundo vermelho, evidentemente
estilizadas e repetindo-se, rítmicas, com variações quase imperceptíveis. Repetem-se,
então, as duas seqüências das bordas, agora na ordem inversa. Esta quíntupla
demarcação isola no espaço o verdadeiro motivo da tapeçaria, o festivo retângulo
onde avançamos talvez para o conhecimento. Nele viceja uma vegetação nascida de
meditações felizes, estranhas à idéia de Mal — nem o mínimo vestígio de destruição,
de violência, de morte — e sem que esta recusa (como saber, com segurança, se
desconhecimento ou recusa?) redunde na invenção de um mundo sem força de
verdade. Estamos abraçados sobre um quadro fantástico e engendrado na Beatitude,
mas permanecem os liames que o associam ao mundo perecível e sem os quais
corresponderiam apenas a frágeis idealizações esta vegetação imaginosa e a fauna que
a povoa. Troncos retorcidos e curtos, obviamente sem raízes e apoiando-se em um dos
lados do retângulo, procuram identificar esse lado com uma superfície sólida,
convenção negada pela existência de outras árvores cujos troncos levitam,
acrescentando ao espaço do jardim uma qualidade arbitrária e vagamente celeste.
Abrem-se como sargaços os ramos desses troncos, pouco providos de folhas e
animados, em compensação, por uma explosão de flores vermelhas e azuis, de forma
variada e nítidas pétalas abertas. Os ramos não se curvam ao peso dessa floração
opulenta. Lebres e aves que tanto podem ser garças ou íbis como pássaros estranhos
para nós mas familiares ao tapeceiro, ou, também, pássaros extintos e sobrevivos
apenas em algumas imaginações, aparecem em várias atitudes sobre o fundo entre
laranja e tijolo, quase sempre ocupando — um tanto florais, também elas, na
plumagem e na quietude — os belos ramos floridos. Por que, seja qual for seu nome e
mesmo pousadas nas árvores, pertencerão, sem engano possível, a alguma espécie
aquática, essas aves de pescoço elástico? Para tornar presentes, com tal artifício, os
peixes ausentes. Assim, sem que se altere a unidade do quadro, o espaço, terreno e
aéreo (levitação das árvores, existência de seres alados), completa-se: eis, invisível,
um lago.
Eu estaria errado se entendesse que apenas o lago participa (e os rios oriundos
do lago), por uma espécie de reflexo, deste mundo que ʘ e eu rondamos. As
representações são sempre enigmáticas, alusivas, fracionárias e quase nunca
contempladas na sua totalidade. Como introduzir com ordem, num espaço
forçosamente limitado, tudo que pretendemos? Estas árvores e flores que se alastram
em toda a área do tapete não são de modo algum estas árvores, estas flores: resumem
em si uma vegetação de inconcebível variedade. Peixes, animais do chão (não os
animais aborrecidos) e toda uma população ornitológica transparecem nas pernaltas e
nas lebres — e se figuram no tapete, precisamente, lebres e aves ribeirinhas, será,
dentre várias outras intenções secretas e não alcançadas, devido ao seu exterior
pacífico: denotam o reverso da violência.
Mas, se no tapete eu visse o Todo, também veria além dos limites, e, então,
nada mais veria. Tenho aqui o mundo, sim, porém ainda inviolado e por isso não
existe, nas flores abertas, nas aves despreocupadas, nas lebres alheias a eventuais
perseguidores, a mínima sombra de destruição ou de qualquer gênero de horror. Paira
em tudo um ar de imunidade e mesmo o olhar distraído bem depressa adivinha, não
sem nostalgia, que os seres aqui tecidos são imortais. O tapete é o Paraíso e, com os
sons da cidade, em torno da muralha constituída pela quíntupla barra de motivos
vegetais, ruge a morte.
Ocorre que, nesta versão do Paraíso, as árvores, todas carregadas de flores, não
frutificam: falta a portadora da maçã a ser colhida e que transmitirá, a quem a colha,
conhecimento e castigos. Ausente, ainda, o casal humano. Contudo, um casal meio
despido se ama na manhã eterna do tapete e na hora fugaz da tarde, o homem tendo
nas mãos os seios da companheira e sorvendo-os em êxtase. Situa-se, o casal, aquém
ou além dos limites floridos? Até que ponto completariam a representação e através
de que fios a ela se unem? Pertencem à multidão dos seres expostos às vicissitudes
terrenas ou habitam, felizes, o mesmo espaço inexpugnável onde os contemplam as
aves imóveis? Podem adquirir, ingressando no recinto arborizado e protegido do mal,
a perenidade que o inunda; e, também, invadindo-o com a sua substância perecível,
tornar os muros inúteis. Mas antes preferiam não participar do jardim e preservá-lo,
que, fruindo-o, nele introduzir a morte que circula em torno desses muros.
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E 10
Minha fome e sede, de modo algum saciadas, sugam e mordem, presa a mão
esquerda entre as suas coxas, sugam os solenes frutos gêmeos, cuja consistência entre
aérea, líquida e firme, lembra o espaço contido no tapete, celeste, aquático e tenestre
simultaneamente. (A árvore não nomeada que me cobre e da qual, frutais, pendem os
seios sobre que me inclino, abre-se em flores tão vivas quanto as do Paraíso.) Retiro a
mão de entre as coxas cenadas e que se afastam de leve, descubro mais o seu ombro,
afago o peito e de súbito percebo uma cicatriz sob a pele. Ela estremece e com um
gesto fora do seu ritmo prende-me ágil o pulso. Haverei tocado uma ferida viva. A
mão larga, um laço em torno do meu pulso, um laço rígido, seu corpo rígido. Os
cabelos espalhados sobre os desenhos de lâ. Vêm à tona os seus olhos secretos.
Sobrenadam ainda, quando o ser a que pertencem incha, como um prisioneiro
amarrado e amordaçado. As narinas palpitam, e o seu ritmo é o do sangue na aorta.
Ela orienta hesitante (que gesto e noite aqui ecoam?) os meus dedos para a marca
ferida. Os olhos tornam ao fundo de onde emergem.
Pouco sofre no lugar do golpe o acetinado da pele: tecido cerzido. A
verdadeira cicatriz, rastro de aço ou de chumbo, esconde-se como o estrago de um
verme sob a casca.
— Que é isto?
Na pressa com que me responde há um certo desafio:
— Furo de bala. Um tiro.
A voz, desgovernada, soa com estridência, um grito insultuoso. Sinto a
dilaceração e talvez a mágoa da carne, as fibras estouradas e saradas em nódulos, um
vácuo. Deixo cair o rosto sobre a marca.
— Casual?
Ante a sua resposta negativa, quero saber quem dispara contra ela.
— Eu mesma. Eu mesma.
Ficamos lado a lado, apenas de mãos dadas, em silêncio, fixando o estuque, as
respirações agitadas. Posso ouvir, através das vozes da cantata e da grande bateria
associada às vozes, a marcha do relógio, a serra elétrica e murros numa porta,
descontínuos.
Sua pele, sensível embora ao calor, tende a conservar a brandura, sendo
esbatidas e quase inexistentes as demarcações de matizes do seu corpo, mesmo nos
meses propícios a estações marítimas, quando (nas ausências freqüentes do marido,
ou, confessa, em sua companhia) busca o litoral e aí se expõe ao sol praiano — nunca,
é certo, nas horas mais calmosas, preferido o entardecer ou a primeira parte da manhã.
Nádegas e seios são talvez mais claros que braços e cintura, mas a diferença —
decorrendo, em parte, do modo como as superfícies bojudas e não apenas curvas
refletem a luz — é a que existe, nas paredes das salas com pintura clara, entre um
ponto mais próximo e outro mais distante da janela, aberta para um dia nublado.
Gradação idêntica observo entre as coxas e as pernas, entre os braços e os ombros. A
cor da região axilar e na qual, através da suave almofada de gordura, apenas adivinho
vagos desenhos de veias, é igual à dos jarretes. A cabeleira, com os seus reflexos entre
argênteos e dourados, solta sobre as espáduas, disfarça ainda mais tão leves diferenças
e, desde os pés, toda a epiderme desse corpo transbordante de formas parece de um só
tom. Sobressaem-se na branda e uniforme alvura, que deleita igualmente as mãos e a
vista, os pêssegos dos seios, o umbigo e o tufo do púbis, crespo, negro, frondoso.
Seu corpo, refratário às queimaduras de sol, é, em compensação, suscetível às
gradações da luz, fenômeno mais claramente observável em ambientes fechados e em
certas horas do dia. Leves ou espessas sejam as nuvens entre o Sol e a Terra, a cortina
da sala ondule, passem ante a janela alguns pombos, ou, simplesmente, mude a sua
posição ou a minha — e a pele amadurece, ou freme, ou pulsa, ou simula uma patina.
A fartura de carnes contribui para tantas e tão surpreendentes mutações.
Quando se desloca, os calcanhares suspensos, empenhando em cada passo toda a
ciência que possui do próprio corpo e dos seus movimentos, as banhas luxuosas —
detestáveis em outras pela ausência de lucidez e que, no seu caso, fazem evocar as
estivais figuras femininas de Tintoretto ou de Tiziano Vecellio, mulheres nas quais o
esplendor das formas é também um modo de exprimir a opulência e a fartura de
Veneza em sua fase áurea — ondulam ao longo das coxas e em torno dos quadris com
uma espécie de líquida fluência. Tenho presentes, vendo-a mover-se, caudas
numerosas de peixes e superfícies de açudes.
Concorrem ainda para as irisações de sua alvura os pêlos cambiantes. Quando
ergue os cabelos, vemos como desce da nuca e acompanha a coluna vertebral uma
penugem: torna-se mais palpável à altura do sacro e então se abre em tridente, um dos
quais se perde na junção das nádegas e os outros sombreiam, leves e em volutas, a
zona superior dessas undosas saliências, cercando as covas que aí surgem sempre que
firma no solo as pontas dos pés.
Tão lisa, a face interna dos braços, quanto as coxas e as pernas depiladas com
cuidado, enquanto (estranho e evocador vestígio de virilidade) uma camada de pêlos
mais ou menos densa e que ela talvez descore com loções, corre entre cotovelos e
punhos. Um traço vertical meio apagado desce do umbigo e emaranha-se no triângulo,
nos seus frisados e anéis.
R 21
Flui, no primitivo leito de um rio banido do seu curso pelos formadores de São
Paulo, o vale do Anhangabaú. Sobre esse vale asfaltado e inundado pelo tráfego,
vibram, da manhã à noite, percutidos por milhões de pés e abalados pelo curso dos
veículos, os grandes viadutos, pontes unindo as margens de torrentes-fantasmas. Eis
um W, vegetal e zoológico (gaviões nas escamas das serpentes, bodes nas penas dos
gaviões e girassóis nos chifres dos bodes), um W oscilante, os duplos vértices da base
emaranhados entre os ferros do viaduto Santa Efigênia. Os dois arcos sobre os quais
se apóia o viaduto parecem abrir-se com o peso do arcabouço e dos ônibus lotados.
Rasgando-se nos rebites que estouram como botões numa túnica estreita, ergue-se o
W, desprende-se e tomba, estandarte sem . mastro, sobre as fuliginosas árvores da
praça e nas copas sem viço floresce uma primavera breve e inesperada. Vejo o
Assomo Anônimo por trás dos reflexos: intraduzido e, exceto, de costas para a
esquerda, as mãos coincidentes, com o aspecto de quem passa ao largo.
Desaparece a língua de chamas. Voassem as aves cósmicas de Humboldt, ou,
aterrados, monstros da alta atmosfera, em bandos e compactos cerrados, a um só ir,
zás, do oval de sombra, levando a sombra nos pelos e nas penas das caudas, atrás,
como o pó e o vento dos galopes? Verga-se, nos seus pesos e forças, o mecanismo
vultoso e delicado do eclipse? Fulge ainda na Lua um espelho mínimo, mas,
contrariando previsões e cálculos, o disco negro traga-o: eis a caligem absoluta. Que
nome tem esse grito que estruge de uma vez no acampamento, grosso e animal,
lançado até pelos mudos? Clamor dos dentes? Trovoada negra? O mundo vindo
abaixo?
Agitam-se cor de chumbo os perfis das bandeiras, um fulgor acende-as, abre
no cenário clareiras e vazios, borrões de betume, parte o quinto foguete da seqüência
de quinze.
Um vento move nas trevas os ramos da árvore na praça, inquietando os
pássaros, rítmico. Abano de plumas, rítmico, a cabeleira de ʘ pulsa ao sopro
compassado. Ouço um ruído áspero e vindo de grande altura, como se todas as portas
da cidade, arrancadas, boiassem no ar e se abrissem de um só golpe, rhroêirh. A vasta
nuvem escura, compacta e adejante só evoca em mim e ʘ a idéia de pássaro no
momento em que nos sobrevoa com o seu cantar informe. As asas, tão largas que,
abertas, apagam muitas estrelas e a brilhante coroa em torno do disco betuminoso da
Lua, tornando ainda mais negra a breve noite meridiana, sacodem os tetos das casas
quando batem, encurvam os galhos da árvore, levantam o pó das pedras e atiram
mariposas contra nós, contra o chão, contra as casas. Curvamo-nos, as mãos à altura
dos olhos, fazendo o possível, apesar dos ciscos e das asas nas pestanas, para não
perdê-lo de vista (sua plumagem de ébano) e rimos, sufocados, do seu grasnido
lastimável, um aleijão: larinje de chifres e de botinas velhas? Sua passagem é rápida,
um vôo reto, embora dificultoso (as asas, longe de erguê-lo como as dos pássaros
diários, arrastam-no, cabeça e asas, vivas, levando um corpo morto, um fardo) na
direção sudeste— noroeste, parecendo evoluir de um lugar ensolarado para o centro
da escuridão, cruza os céus, grotesco e estúpido, desaparece. ʘ está nos meus braços,
a respiração descompassada, mariposas debatem-se nas pedras e algumas folhas voam
ainda. O volume, a vibração, a consistência, o peso, o calor e o perfume, sob o
eclipse, do seu corpo desejável e ainda secreto, Sol e Lua apagados sobre nossas
cabeças juntas (a face aveludada e febril), as ocultas estrelas diurnas reveladas. Sua
boca, tépido fruto sugador, sabe nesta escuridão a vinho e a pão fresco.
E 11
Nossas mãos, enlaçadas, não se pressionam entre si e apesar disto seria falso
dizer que apenas se tocam: une-as uma corrente sem sinais exteriores.
— Eu própria disparei. Faltava dizer isto. Não me despreze. Golpes de punho
abalam não sei onde uma porta. A irada insistência com que batem significa alguém
do mundo exterior ameaçando os que a chave protege. A porta é arrombada com um
estrondo longíquo, nós estremecemos e cingimos com força a mão do outro. Ela
pousa no meu peito a cabeça. Aperto-a ainda mais contra mim, afago os seus cabelos.
— Abel... Não me faça perguntas. Não quero que faça. Odeio perguntas: já
ouvi muitas.
Ouço bater de asas e mergulhos sucessivos de pedras ou rãs. Sorrateiro e frio
como répteis, perpassa entre nós um odor de folhas mortas e úmidas. As aves, nos
ramos do tapete e sempre incólumes, rodeiam-nos, inscientes da morte e de toda
espécie de mal. Talvez levemos em nós o gérmen destinado a matá-las e a corromper
o bosque onde cantam em silêncio. ʘ, com a marca da bala no seu corpo, será a um
só tempo a mulher do jardim e a árvore mortal da sabedoria.
Que segredos esconde o lençol e quem o mantém suspenso contra a parede?
Adormecido e podendo vagar no estado não nomeado em que ingressa um homem
enquanto dorme e não sonha; podendo sonhar com lugares e pessoas distantes ou
mesmo inexistentes — podendo respirar, portanto, entre espantado e nostálgico,
algum entardecer da infância ou rever os meus mortos — vejo-me, no sonho, deitado
numa cama igual a esta em que durmo, luzes apagadas e fechadas as cortinas musgo,
o que não impede — na vigília e neste sonho sem disfarces — que a claridade da
iluminação pública, reforçada pela infiltração, sob a alta porta envernizada, da
lâmpada acesa a noite inteira no corredor do hotel, revele as formas do móveis
antiquados, o globo apagado no teto de madeira envernizada e, à minha frente, a
parede vazia, clara na parte superior e pintada a óleo até a altura de um homem. A cor
e os desenhos da pintura, volutas desenhadas com um pincel grosso e meio seco sobre
a tinta castanha ainda fresca, não são muito nítidos: toda a parte inferior da parede, à
escassa luz do sonho, parece-me compacta e trevosa. Acordado, não a veria mais clara
e real do que vejo. Do breve e imprudente encontro no parque Ibirapuera (as mãos
largas sobre o volante ou atirando para trás os cabelos que o poente incendeia), trago
o seu fular com desenhos de lagartas. O perfume de que está embebido e que torna a
ausência menos drástica (ela está distante: não este lenço e este perfume, vestígios do
curto passeio) também penetra o sonho. Que se oculta no exíguo espaço entre o lençol
suspenso e a parede? Nada?
Curvada sobre mim, assume certo ar celeste e chuvoso: cobre-me com doçura
e eu me entrego a isto, enleado. O rosto concentrado é o de quem tenta desenredar
barbantes, enquanto ela executa lentos meneios sinuosos, tocando-me com as mamas
e os cabelos. Os cabelos pendem e sua fronte brilha tênue entre eles, mas a partir dos
supercflios uma atmosfera noturna esbate os traços da face. Postos para fora, os ubres
soltos balançam, cheios, rolam pelo meu torso. Tocam-me ainda as contas do colar e
as pulseiras tilintam nos seus punhos. As vozes dos cantores alçam-se com ardor, um
carneiro, recendendo a jasmins, atravessa o tapete e cruza a sala, que dádiva oferecem
os peitos?, sou um homem cheio de secura e minha piedade se existe é acre, unguento
cáustico, nadam estilhaços de ossos no meu sangue e em mim o ato criador se
confunde com obstinação, transito afável e calado entre as pessoas, morto de cólera e
amolando os dentes em segredo para morder, despedaçar e cuspir o que me cerca,
como quem morde, despedaça e cospe o nó de couro ou de corda apertado nos pulsos.
Mas, cobrindo-me como um dossel, o colo furado de bala — e a cicatriz, nessa postu-
ra incomum, os peitos farejando-me, mostra-se mais funda —, ela me renasce ou me
transforma em outro ou faz com que eu retorne a alguma hora festiva. Risca meu torso
e rosto com os pêssegos dos peitos, leva-me ambos à boca sucessivamente (parecem
respirar) e algo da invulnerável harmonia do tapete faz-se em mim, solene, faz-se em
mim. Não sou, porém, inocente e o desacordo participa da minha natureza: existo
dentro e fora dos muros. Os guizos do carneiro ressoam em vários pontos. Anda na
sala ou ingressa no tapete. Armistício algum, aqui, com as iniquidades que o meu olho
constantemente acusa. Insubmisso e colérico, sem que a cólera me envenene ou
deprede. Sim, intactas a cólera e a insubmissão, embora avulte em mim um estado
próximo à serenidade. O que se reduz não são as marcas em mim deixadas pelos bens
que por obra dos homens me são arrancadas ou que nem sequer logro alcançar — e
sim as que devo a mãos como as da morte. Se, despojado, privo-me de tantos gestos
francos, de tantas palavras de amor e de tantos impulsos ardorosos, tudo isto
convertido, dentro de mim, em coisas sem serventia, vejo-me sob os seus ombros e: o
que está calcinado, o emperrado, o silente, o seco, o sombrio, verdeja, move-se, res-
ponde, jorra, esplende, sem o frescor — é certo — das coisas novas e ainda não
ofendidas, compensada porém esta carência por um traço de maturação ou mesmo de
sabedoria, de modo que uma confissão de amor, arrebatada e ao mesmo tempo lúcida,
será também marcada pelos meus enganos e desastres. Abraço-a, os seios pluviais
achatam-se contra o meu peito, abraço-a, à luz da tarde, com ímpeto e franqueza, o
carneiro pisa no tapete, o seu claro perfume de jasmins, exclamo convicto que a amo,
amo, amo-a, eis que te amo, solto e desatado grito, minha amada, amo-a, falo com três
bocas, três são as minhas vozes e se dirigem às mulheres a quem amo. Todas me
ouvem: ela me ouve. Alguém me chama de longe, eu, talvez, dentre as ramagens do
tapete.
Contínuo e firme, roda ou rio aéreo, o vento alto tange em direção a mim,
sobre o canavial imóvel, as enfunadas nuvens.
P 10
E 12
Amada: quando incontáveis seres conhece e cruza o homem sem que seu
próprio ser se amplie, avance e alcance, tu me conduzes (para onde, para onde?) e não
casualmente rondamos nós os limites deste bosque no qual perpassam aparições.
Afluentes e afluentes, muitos desde sempre e para todo o sempre insuspeitados,
formam o nosso encontro. Desnudamo-nos, imersos em mútua ebriez lúcida. Ah,
fosse o vestíbulo do nosso prazer, também, o da unificação e do conhecimento!
Reinas através desta hora como um astro. Teus numerosos beijos roçam a pele
dos meus ombros como se temesses magoá-los, intensificas a pressão do lábios
(desejas aspirar a minha substância, a ti incorporando-a?), a seguir beijas-me de leve e
outra vez com força, mas, brandos ou incontinentes, cada um desses beijos vai fundo
em minha carne e planta vozes em mim: eu mais e mais habitado. Volto-me e fico de
bruços no tapete para que me cinjas com teus beijos incansáveis, tu me cinges, várias
bocas me marcam — na espádua, à altura dos rins e ao longo das costelas — e tua
mão afaga-me e também os teus cabelos, soltos. Clamam as vozes em mim, algumas
desconexas e todas exaltadas, clamam e não silenciam — eu deitado de costas, eu
com o peito no tapete, quente e agitada tua língua em meus ouvidos, eu debruçado
sobre mim, tu e eu, com ânimo exuberante, rolando entre os quatro muros floridos do
Jardim, tua mão cheia de anéis no meu ventre —, múltiplas clamam as vozes, através
da minha boca ou autônomas, no corpo onde vais semeando-as. Clamam. Querida!
Arca o homem que encontras, na sua maturidade, com o peso de algumas nódoas
senis: tolhe-me, certos dias, um velho e seus gravames. Tu, certamente, me impões
não 'sei que violentas leis e eu recupero, sob o teu influxo, uma plenitude que me
ultrapassa e que o sexo alteado reflete. Chegarei porém, a decifrar, eu, por que te
amo? Transitas entre os viventes carregando o peso de uma formosura copiosa e cuja
avaliação veio a tornar-se difícil. Contudo, que expressivo o teu corpo em sua vi-
gilante desmesura! Não dilatam os homens, opondo, com tal artifício, à diminuição e
ao olvido — estes roedores implacáveis — o que decidem conservar como exemplo?
És, de certo modo, a tua própria ampliação. Tentassem meu amor e meu desejo
magnificar-te: inventariam uma mulher aquém de ti e que seria, se tanto, o teu reflexo
esmaecido. Precisarei dizer, enquanto apertas voraz a minha língua entre os dentes,
que me fere a beleza manifesta na carne? Aflige-me, pelo que abrigam de transitório,
o esplendor do teu rosto, o do teu corpo. O efêmero, entretanto — ainda não é tempo
de que eu saiba como —, funde-se, em ti, à permanência: ungida de perenidade, outra
presença me espreita no espaço do teu corpo. Também te amo por isto e ainda pelos
vultos femininos que integram, vívidos, a tua substância, a ela acrescentando uma
qualidade plural. Tu: estuário. Amando as convergências, o que de convergente há no
teu ser havia de atrair-me. Isto, amor, é tudo? Não e não saberei, com clareza, por que
te amo e não poderei alcançar todos os motivos e sentidos deste encontro, numerosos
e talvez até contraditórios. A decifração, afinal, seria a prova de que tudo — nós e
nossos passos e esta hora — dispensavam existir.
O lugar que prefiro para desenvolver as minhas incompletas meditações
juvenis é a cisterna, de onde ouço o trabalho ruidoso das ondas nas pedras dos
Milagres e os rumores vindos do chalé, cantos, risos ansiosos, instrumentos de
música. Aproxima-se a noite prematura de julho e o terral retardatário, que sopra forte
e constante, joga folhas mortas na coberta de zinco. Resta do dia alguma luz, a areia
na praia ainda brilha e sobre a extensão marítima paira uma reverberação prateada.
Aqui, já não se enxerga o fundo da cisterna e a água levemente encrespada começa a
exalar seu verde odor noturno, misto de azinhavre e iodo. O costume de lançar aos
poucos peixes a rede e que tanto me ajuda, durante certa época, a indagar sobre o que
busco, não mais é necessário: deitado no cimento, deixo-me vogar inutilmente ao
encontro das revelações. Assim estou, quando, sem voltar-me, com olhos raros e
como deslocados, soltos acima da minha cabeça, vejo um movimento no centro da
cisterna. Antes que eu identifique no corpo que flutua, aí, à luz difusa, uma cidade
miniatural e transparente, abate-se o mar contra as pedras duas ou três vezes.
ʘ afasta-se de mim. Assentada sobre as pernas, os pés de tal modo dobrados
que os calcanhares perdem a cor, leva as mãos à nuca e as largas mangas pendem
frouxas, descobrindo os braços. (Vêm do tapete, das jóias ou do meu desejo os
reflexos que neles surgem e apagam-se?) Olha-me de dentro, olhos de fome e de
febre, fundos: animais de presa a ponto de saltarem — elásticos, alegres, na sombra
— sobre a caça. Respira fundo e rápido, descomposta, os peitos livres acentuando a
agitação com que sorve o ar pelas narinas e também pela boca. A testa inclinada, tira
o colar e prende-o entre os dentes, os olhos quase ocultos por trás dos cabelos despen-
teados. Sempre com as pérolas na boca e sem afastar de mim o olhar, cuja flama não
arrefece, desfaz-se um a um dos anéis. Apesar da cantata, do passar dos veículos e da
serra mecânica novamente ativa, ouço-a arfar e tilintarem as pulseiras nos alvos
braços carnosos. Livre dos anéis, junta-os ao colar e os depõe no chão, ao lado do
tapete. As olheiras que só então descubro e que a cada instante parecem mais roxas
ampliam as suas pupilas.
— Abel, eu te amo.
Estendo a mão e acaricio o seu joelho. Ela prende-a entre os dedos nus — pela
primeira vez os vejo sem anéis —, ergue-a devagar e beija-a. Pousa-a depois sobre o
tapete e, soerguendo-se um pouco (avulta dentre as coxas o negro e abundante tosão),
despe o vestido, joga-o no meio da sala e atira os cabelos para trás com um
movimento de cabeça. Sinto, como se abrisse ou se rompesse o frasco, o perfume
lancinante que usa e vejo à plena luz do dia a magnitude do seu corpo, de si apenas
ornado e dos reflexos que o embebem. Restam as argolas de prata nos pulsos, também
delas se desfaz subitamente concentrada, solta-as ao acaso, as argolas giram em várias
direções, antes que se imobilizem eu arranco as roupas que ainda me cobrem, ela se
precipita sobre mim — o voar dos seus cabelos nesse gesto — e tal é o ímpeto do
nosso abraço que o meu peito se abate contra o seu e ambos lançamos, juntos, um
grito sufocado. Bocas e gritos se confundem. Rumor de água corrente sob nós e um
estrondo de trovão, surdo.
R 22
Filtram-se, através do Filho, Ele {quem?) e o seu Tempo. Tudo Ele pode e não
pode descrever-se. Tentasse e a descrição tudo romperia, transcenderia tudo, tudo
esmagaria e a duração dos reinos não comportaria o seu discurso, chamas
estourando e mordendo-se, rolando sobre as coisas, nós um reflexo atravessado e
apagado por velozes pássaros vermelhos, reflexo no muro, voam reflexo e muro e
curvo o casco urdido rãorrerrão o verbo contorcido hic cede a sintaxe velho barril
aros quebrados.
Sob o mesmo relâmpago vertiginoso que descarna o muro celeste, num olhar
tão unificador que ela e o espaço transtornado pelos círculos concêntricos e ondeantes
parecem-me idênticos, faces de uma só verdade ou realidade encobertas, surpreendo a
substância de ʘ. Desnuda-a a efêmera transparência que tudo subverte e dois seres
superpostos fitam-me, plenos de complacência ou de amor, ela e ela, coincidentes,
uma incrustada na outra, entranhada na outra, rodeadas de mariposas imóveis, a
mesma pessoa e no entanto pessoas diferentes, uma exterior e uma oculta, nascida e
ainda embrionária esta, silenciosa dentro da mulher que fala, os lábios meio abertos
como os da mulher que fala, órbitas dentro das órbitas de quem sempre a encobre, os
peitos menores, as cabeleiras confundidas e o mesmo rosto, talvez mais radioso.
Menos insciente e tão modificado, no curso desse rápido instante, como o firmamento
e a cidade, antes imersos na atmosfera noturna e agora embebidos numa espécie de
aurora lívida, ouço mover-se um pássaro entre os ramos da árvore: defronto, ouvindo-
o, a mulher e o céu de sempre, cândidos, novamente acobertando, sob aparências reais
e assirn mesmo truncadas, suas identidades secretas. Canários ainda imprecisos novas
réstias cruzam o ar ladra o chão matinal o Sol multiplicado um galo refletindo-se nas
casas canta sob pedras um cachorro breve muitas estrelas ressurgem chão e casas
perdem a intensidade esvai-se com o retorno do Sol árvore da noite novas réstias
curvas — o Sol multiplicado — refletem-se nas pedras sob a árvore, canários cruzam
o ar, um galo canta matinal, ladra um cachorro e chão e casas, ainda imprecisos,
ressurgem da noite breve, muitas estrelas perdem a intensidade, esvai-se com o
retorno do Sol, crescente ainda fino, o núcleo central da mancha escura ao longo da
divisa, na coxilha povoada de rebanhos, de carneiros e de bois atordoados, as garças
afastam as asas, ouço vozes indistintas de adultos e meninos vindas das ruas próximas
ou dos corpos de ʘ, mariposas feridas pela passagem da pesada ave do eclipse e pela
volta do Sol debatem-se no calçamento e no ar em redor dos corpos de ʘ, do corpo
tangível e do corpo que, oculto como o céu das profusas imagens, números, letras e
riscos, contempla-me de dentro de si mesma.
Ornado com leões vermelhos e discos violáceos, pousa um K sobre o viaduto
do Chá, as pernas laterais voltadas para baixo, formando um ângulo que abrange em
toda a extensão — do Othon Palace Hotel aos escritórios da Light — a larga e bruta
passagem de concreto. A barra vertical da letra, deitada, equilibra-se no vértice do
ângulo como sobre uma pirâmide de vidro, com seus discos móveis e leões hirtos. Os
pedestres que atravessam em todos os sentidos — aterrados como se varassem um
campo sob disparos cruzados — o nó urbano formado pelo encontro da avenida São
João com o vale do Anhangabaú, evitando os que vêm em direção contrária, afastando
os que lhes embaraçam a corrida, saltando entre os carros que buzinam e aceleram
agressivos os motores, gente do Norte e de outros pontos do mundo, todos com
espigões na cara, nos ombros, nos joelhos e no dorso das mãos, não parecem notar o
Ó que se abre, flor ou explosão, luminoso, frente ao pardo edifício dos Correios e
Telégrafos, refletindo-se nos pequenos vidros quadrados das janelas, um Ó circular e
talvez mesmo esférico. Os seus ornatos são as outras letras do alfabeto, soltas ou
agrupadas em nomes, uns familiares e outros não, e o que deslumbra nessa vogal são
as cores, variadas e vivas. Afasta-se, aos poucos, da fachada dos Correios, rola em
direção ao vale do Anhangabaú, suas cores projetam-se no ar empoeirado e acendem
o asfalto. Precedendo o alvo cordeiro que atravessa o viaduto de ferro, a passo lento,
visível através dos ornatos curvos e delgados do balaústre, segue-o a figura foi, conse-
qüência das causas, avançando para dentro, o olho sorrelfo, nem isto nem aquilo,
sentença lida no espelho, personagem soslaio e trom. O rumor emaranhado de sinetas
e chocalhos corta o violento ruído dos ônibus, dos táxis, dos gritos, dos passos, dos
silvos, dos golpes, como se bois, éguas de carga e cabritos soltos galopassem no O
que vai girando, roda sem raios, ao longo do Anhangabaú e no qual também leio (é
tempo de ir afinal ao seu encontro) o nome de ʘ, escrito com punho firme.
E 13
E 14
N 1
ʘ E ABEL: O PARAÍSO
Nas omoplatas, nos rins, forma-se o prazer-, este, no âmago dos olhos, é o
prazer que surge, clarão; os músculos das nádegas, cerrados como um nó, amarram o
prazer; os ouvidos surdos a vozes e ruídos insignificantes ouvem apenas o prazer
crescendo; entre um ventre e outro, insinua-se o prazer; as bocas chamam o prazer e
tudo que escandem entre as cerradas maxilas são nomes do prazer; as pontas das
unhas — dos pés, das mãos —, a espessura do sangue, a medula dos ossos; desce a
flor do prazer ao longo da coluna e se abre nas ilhargas: papoula.
E 15
E 16
Curvo-me e beijo os dedos arredondados dos pés, o peito arqueado dos pés
com suas veias sutis, dois cordeiros nos ladeiam, elai amplia dócil a distância entre os
joelhos e começa a falar, os braços soltos, a cabeça sem sossego, cruzam-se vozes
discordantes e tumultuosas, um clamor impaciente, àbrem-se as coxas e revela-se o
acesso, a entrada, a via, o esconderijo, o N, o centro, emergindo entre alvuras e
negrume, o bico rubro e as múltiplas dobras violáceas, satura o ar um cheiro forte de
vinho, de rosas frescas e de chifre queimando, a fenda espumosa perde-sé na sombra,
um torso masculino esgueira-se entre as árvores do tapete, mais uma vez grita o
pássaro, minha língua pesa, avanço, as noções de abertura, de ingresso e de
conhecimento fundem-se no ato de avançar e descer lentamente sobre ela, os braços
luminosos se estendem para mim, uma voz dentre as vozes implora com deleite e
autoridade "Vem! Vem!", um grito, os cordeiros soltam um berro de boi no
matadouro, o rosto esplende entre os cabelos com uma beleza inumana e violenta, ela
enfia as unhas no meu flanco, ergue sôfrega a bacia, ergue-a, crava-me fundo em si.
Faço-me ao seu corpo, penetrando, mais e mais fundo, voz potente dos
cantores, gesto do Portador o cinto na alça do coldre, vultos translúcidos de sérpia
respiram fora das molduras, o pássaro e o grito (’’Raah!’’), o relógio o ritmo, a
Cidade vôo luz do meio-dia, fundo e mais fundo o mergulho, cego? não. Revelações.
As peças voadoras progridem sobre o vale, mais brilhantes à medida que
progridem e de repente eu posso ver quanto diferem das formas — naturais ou
mecânicas — destinadas ao trânsito no ar. Voam em silêncio e sem asas e nada têm de
orgânico nem de máquinas, lembram um circo em pedaços, arrancado com os mastros
e as lonas, tudo — tapetes rubros, roupas brilhantes de acrobatas, partes da
arquibancada, elefantes — trazido por um vento que a calmaria antecede. Leve para
longe de mim esses entes informes o vento que os traz! Mudam de rumo e parecem
desviar-se para o Sul. Constato, nessa hora, mais os desejar que temer. Corrige-se a
curvatura e há na formação uma aparência de desordem, um desequilíbrio logo
superado. Abrem-se em ventarola os grandes pássaros irregulares, crescem em
quantidade, em rapidez, em brilho, o Sol no zénite e o espaço ofuscante — como
atravessado por partículas de ferro: limalha —, mas inflama-se o ar e outro dia, enso-
larado, infiltra-se na luz do meio-dia e cega-me.
Ela e ela, tu, o acesso, ó corpo mágico, ó glória e privilégio desta travessia, em
quantas superfícies cruzadas reflexas opostas afundam falo e Abel, espaço de vozes e
vozes e vozes e vozes, múltiplas bocas múltiplas, nossas línguas um laço, o ar que
expira e seu odor ácido e quente, jasmins abertos Sol meio-dia, outro sexo oculto no
seu sexo mastiga a glande atônita, exaure-se a cantata e cresce, entre súplicas e gritos,
o compasso do relógio, Julius os engenhos conjugados de som, uma criança e um cão
caberiam na caixa de madeira, Heckethorn, ventos ligeiros tapete bosque canto festivo
de aves, meu nome se enuncia em algum ponto, dos corpos? meu nome um centro?, o
Portador e o curto relâmpago sobre os edifícios, ela grita o meu nome prende o meu
rosto, arrebatada e enérgica, o nariz mais nítido e os lábios inchados e lépida chama
rubra a língua e os quatro olhos abertos, cruza-me e rega-me, Abel, vê como te recebo
e como te festeja a minha carne, ai, não mais o vilipêndio não mais a ofensa não mais
o corpo solitário não mais, vem e cruza-me em triunfo com a tua vara florida,
pertenço-te sem normas e sem exigências e abro ao.teu ingresso tudo que sou e hei,
amo-te-amo-te-amo-te-amo, os cordeiros e seus guizos, os insuportáveis gumes do teu
rosto, contemplo-o e beijo as aréolas, maiores os pêssegos e mais escuros, doces,
tenros, maduros, curva a minha cabeça contra os peitos, a sucção, os beijos, a pele
machucada entre os lábios e os rápidos signos esquivos que assomam nos bicos
retesados, rápida multiplicação como se lanternas nascidas no seu corpo, mágicas,
iluminando-a, reflexos?, emblemas?, insetos?, contas de vidro?, débeis lâmpadas
veladas dentro do seu corpo, o grito acidulo do pássaro, afloram os signos e
fermentam, vivos, os signos, outro corpo no seu corpo, lutam e devoram-se, nada
amenos ou plácidos ou domesticáveis, enxame cambiante e rosnador, com sua força
de dentes e seu fogo de pederneiras feridas com aço, indisciplinado combate, ela em si
oculta, ela e ela, o vento e seu alto do báculo, alto, alegrando o centro do meu ser o
cotovelo esquerdo para cima e a mão à altura do rim afago a planta sedosa do seu pé,
seu calcanhar polido, ela alteia mais a perna em direção ao lustre, trança os pés nas
minhas costas e nosso mútuo olhar, afetuoso, é também grave e atento, cada rosto
uma inscrição, o destino ou o azo do outro, a chave, o veredicto, a alternativa, a carta
de baralho, a estrela, a sorte.
O mal das coisas espantosas é que nos subjugam, arrastando-nos para as suas
leis e natureza — e assim o nosso espanto, em face de um fenômeno novo, nunca
ultrapassa os limites usuais: mágicas e monstros, afinal, pertencem ao nosso mundo e
só o que nele não ingressa é realmente assombroso. Ofuscado e sentindo vacilar o
chão sob os pés, levo as mãos à cara e por três vezes tento ver e a vista se desanuvia.
Corpos desmesurados e leves como nuvens, velozes como pássaros, compactos,
deslizam entre si e se aproximam do vale, sem ruído de nenhuma espécie e sem que se
movam o cajueiro e as canas; o mundo estático. As sombras dançam na paisagem —
grandes como pastos, açudes, boiadas — e os primeiros corpos descem ou abatem-se,
torres e jardins, escadarias, esculturas, pórticos, uma cidade, a Cidade um dia
anunciada, buscada, cujo encontro obseda-me e por fim se revela, se ordena, simula,
violando espaço e tempo, uma forma particular de existência e alivia-me o fim da
busca: à luz do meio-dia, descortino-a.
O temporal armado a janela aberta sombreando a sala passar dos carros ganido
das buzinas teus cabelos enlaçados nos ramos do tapete parecem haver crescido o
Portador comprime as orelhas com as mãos abre a porta desce pela escada o vazio em
torno dele os dois carneiros sobem no sofá a marcha dos ponteiros quatro e cinqüenta
e quatro a marcha do mecanismo de som o raio a explosão outra explosão outra
explosão pausa breve o estrondo e ainda outra explosão vibram as folhas de vidro nos
caixilhos tua beleza um rugido no teu rosto a serra mecânica descargas hidráulicas
bater de porta as exclamações os beijos a vertigem o rumor no teu sexo de laranjas
sugadas ou espremidas abre-se a porta do Chrysler os vultos dos retratos interpostos
entre nós e as paredes seu odor naftalina madressilva pó vagos borrões amarelos nos
chapéus ano 1910 nos véus nas rendas nas botinas um clarão na sala seus espectros
lívidos vem a chuva grossa respingos soprados pelo vento, molham o chão ela alteia
as ancas bate no meu dorso implora morde-me a boca.
O livor dos relâmpagos movimentos das paredes e das sombras os rostos
espantados das figuras que povoam a sala vivas as mesmas das fotografias o
movimento triturante expande-se e amplia-se o ventre contraído ondear das ilhargas e
das nádegas mais alto no meu sexo o anel o outro sexo o sexo escondido solerte e
constritor escavo força e poder da minha insígnia escavo fundo firme e fundo quanto
posso busco um centro um alvo um portão sou esta insígnia e busco seus cabelos
agitados no meu braço direito e minha mão esquerda firme sobre o punho uma
travessa arrastando-a para mim acunhando-a um golpe sua cabeça a de um ser
torturado e rumores de asas de vôos próximos na cabeleira revolta trançada cheia de
nó sibila a sua língua como um rabo de lagarto (a língua sibilante móvel dupla
insaciável, a língua sopradora veludosa quente ágil cheiro de verniz sabor de
amêndoas cheiro de manhãs sabor de cuspe cheiro de barricas sabor de pão cheiro de
pano queimado sabor de leite a língua: dança na minha boca) escavo em busca do
centro "Raah!" o Portador a chuva o odor de cavalo calçadas invadidas água cor de
barro e na sala as crianças dos retratos golas marujo sépia os vestidos rendados laços
de seda à altura dos quadris tu portagem tu pórtico tu porto eis que finda a travessia e
as palavras me invadem a princípio em tumulto irrompem em mim horda ríspida e
silente irrompem em mim e minha carne conhece-as conhece e sofre a presença
desses insetos de mica lâmina veloz do relâmpago correm entre nós as palavras e com
elas o caos a balbúrdia a barafunda os carneiros mochos fitas rubras guizos os
carneiros entre os viçosos girassóis que pendem pétalas ouro a chuva estronda pesada.
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N 2
ʘ E ABEL: O PARAÍSO