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2007+ +Fonoaudiologia+e+Psicanálise
2007+ +Fonoaudiologia+e+Psicanálise
Fonoaudiologia e psicanálise são duas atividades que se definem pela clínica. Ela é
portanto o solo propício para interlocuções. Como tenho acompanhado nos últimos anos, a
própria clínica fonoaudiológica está em formação. Até onde pude verificar, é relativamente
recente a realização, entre os pesquisadores da área, de que a clínica fonoaudiológica está
em fase de autonomização. Ela está formando uma base semiológica, uma forma de
raciocínio diagnóstico, bem como refletindo sobre os fundamentos da eficácia de suas
intervenções. Em outras palavras tornou-se claro que a base descritiva e diagnóstica
oferecida pelas ciências médicas é simplesmente inadequada para abordar a especificidade
do sofrimento do sujeito diante da linguagem quando esta manca. Fica cada vez mais
evidente, por outro lado, que os procedimentos técnicos, praticados a muito na área,
construíram uma saber. Saber insuficientemente formalizado e dificilmente transmissível,
mas não obstante um saber, um saber fazer. Tornou-se visível, em terceiro lugar, que as
tradicionais teorias sobre a linguagem, de extração lingüística ou psicológica, são
inespecíficas diante da natureza dos problemas enfrentados.
A consciência interligada destes três problemas parece ter produzido um momento
crítico de separação. Isso se revela em três movimentos substanciais. Em primeiro lugar há
um esforço de teorização sobre a linguagem de modo a entendê-la como campo
intersubjetivo de constituição do sentido. Os trabalhos de De Vito e Lemos tem avançado
fortemente rumo a uma concepção de aquisição de linguagem tradutível e compatível com
a prática do fonoaudiólogo. Os trabalhos de Regina Freire, por outro lado, tem examinado
criticamente as entidades clínicas, os procedimentos diagnósticos e as formas de
intervenção de modo a mostrar que o tratamento fonoaudiológico precisa ser reiventado.
Finalmente alguns estudiosos na área da voz tem mostrado como a separação histórica entre
voz e linguagem não se sustenta à luz de uma exame mais apurado do objeto da
fonoaudiologia. Voz e linguagem são ambos figuras do campo do sentido e sua separação é
exterior a uma clínica fonoaudiológica definida pelo sujeito e pela escuta.
Redefinição do objeto, crítica dos seus modos de apreensão e fundamentação de
seus princípios, eis o exercício que vejo se realizando. Vejo de uma posição privilegiada –
algo exterior ao problema. Ora, este exercício tem um nome: a formação de um método.
Isso nos traz novamente para a clínica. Clínica é o nome de uma experiência mas é
também o nome de um método. Veja-se, por exemplo, o método clínico de Piaget, baseado
em seqüencias organizadas de perguntas e escolhas diferenciais que organizam o fazer
investigativo. Ou seja, a clínica é um método, no sentido de uma ordem de escolhas e
decisões. Mas também pode ser o conjunto em que o produto e o efeito destes
desenvolvimentos fazem parte e transformam a própria experiência que sobre ele recai.
Quando a clínica introduz o sujeito ela se torna uma Dartstellung, ou seja, um percurso ou
uma apresentação onde o que se fala e representa sobre o processo faz parte e transforma o
próprio processo. É assim em psicanálise e é assim em uma parte da fonoaudiologia.
A força a ligação entre método e clínica aparece ainda na própria definição que
Freud fazia da psicanálise:
(a) o nome de um método de investigação de fenômenos psíquicos inacessíveis de outra
forma
(b) um método para o tratamento da neurose
(c) uma doutrina ou teoria que reúne e sistematiza os conhecimentos obtidos desta forma.
Ou seja das três definições de psicanálise duas referem-se ao método e a terceira o
pressupõe. Quero destacar que na invenção da psicanálise Freud levou em conta o que mais
tarde ficaria conhecido como uma das mais fortes exigências do método estrutural.
Segundo Golschmidt, que se dedicou a formalizar este método na filosofia, o método
estrutural implica em jamais dissociar as teses dos movimentos que lhe deram origem. Ou
seja, jamais dissociar o método de investigação, que produz teses sobre o funcionamento do
falante e da linguagem, do método de tratamento, que produz uma certa modificação da
posição do sujeito em relação à sua fala redundando em uma abreviação de seu sofrimento.
Ora, isso nos oferece uma primeira interlocução entre psicanálise e fonoaudiologia.
Entre ambas pode haver um elemento comum, mas externo, em tese, a ambas, ou seja o
método estrutural. Logo, não são todas as fonoaudiologias, nem todas as psicanálises, que
se encontram nesta articulação e nem se deveria esperar que assim fosse. Nada mais
distante da formação de uma clínica do que imaginar que ela se realiza pela unificação
eclética de todos os pressupostos e procedimentos vigentes na área.
ou ainda
“(...) todas as ligações entre os elementos da linguagem parecem ter, num primeiro
tempo o mesmo direito a funcionar e é a prática ou a estrutura individual que faz deste ou
daquele elemento de linguagem o ponto de conexão, o nó dos outros.” 2
1
Freud, S. – A Interpretação das Afasias, Edições 70, Lisboa, 1977:37.
2
Ibid:90.
diagnósticos organicistas. Mais ainda, ao respeitar este princípio de método é preciso rever
as provas e exercícios onde a fala do paciente é descontextualizada e é tudo menos
espontânea. Para aqueles que acham que isso seria uma importação ilegítima de um
princípio clínico da psicanálise basta lembrar a própria definição que Benveniste dava da
fala, ou seja “a linguagem na medida em que é assumida pelo sujeito”. Destaco aqui este
gesto: assumir, o que significa isso senão subjetiva a linguagem ?
Portanto vemos aqui como ao aderir à situação de fala espontânea, como critério
clínico fonoaudiológico, fazemos convergir a associação livre para um terreno comum. Mas
sabemos o que acontece quando a fala espontânea é evocada. O que acontece chama-se
transferência. Ou seja, rapidamente os interlocutores começam a se projetar fora de seus
lugares supostos, uma demanda se forma. Aqui encontramos um outro ponto de crescente
investigação na prática fonoaudiológica. Ao falar para o outro, livremente, ou com pequena
diretividade efeitos de transferência são inevitáveis. Não estou dizendo que o
fonoaudiólogo siga a regra fundamental da clínica psicanalítica, mas que ao convidar o
paciente a uma fala onde o que interessa não é a construção demandada de um sentido as
coisas saem do controle. Ocorre que o fonoaudiólogo faz isso sem saber que está fazendo.
Ao se interessar pela articulação fonemática e por outros componentes refratários ao
sentido compartilhado o que aparece do lado do paciente é uma abertura ao falar. É no
quadro da fala sob transferência que o sintoma fonoaudiológico é abordável. Neste
momento ele deixou de ser definido à priori, ele se atualizou na relação intersubjetiva com
o clínico. É nesta reprodução, em ato, do sintoma que a estratégia das intervenções se torna
pensável.
Neste breve passeio vimos como fala, transferência e sintoma facilmente se anelam
no exercício do método. No entanto as coisas parecem caminhar mais da psicanálise para a
fonoaudiologia do que o contrário. De fato creio que há muitas especificidades na escuta da
fala, na caracterização do sintoma e no manejo da transferência quando estamos na clínica
fonoaudiológica.
Ora, quem aborda este momento, segundo critérios compatíveis com o método
clínico psicanalítico não é nem a lingüística, nem a psicologia, nem a filosofia da
linguagem. Quem faz, ou deveria fazer isso é a fonoaudiologia. O que estou dizendo é que
não nos serve uma concepção de entrada na linguagem que parte do sujeito ideal ou normal.
Importa-nos sobretudo o sujeito que manca nesta passagem. Não foi pelo estudo dos
neurônios normais que Freud descobriu o inconsciente, foi pelo estudo da histeria. O
processo vai do patológico para o modelo, não do modelo para o patológico. Isso quem
pode fazer é só a fonoaudiologia.
A ordem exata de como isso acontece, o papel das oclusivas, a formação das
diferenças fonológicas elementares, as posições discursivas da criança, tudo isso é de
interesse capital para a psicanálise. As deformações holofrásicas e o enigma da gagueira,
são questões que passam por uma experiência que raramente chega ao analista.