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Fonoaudiologia e Psicanálise:

Interlocuções Clínicas - Limites e Possibilidades

Christian Ingo Lenz Dunker

1. A Formação da Clínica Fonoaudiológica

Fonoaudiologia e psicanálise são duas atividades que se definem pela clínica. Ela é
portanto o solo propício para interlocuções. Como tenho acompanhado nos últimos anos, a
própria clínica fonoaudiológica está em formação. Até onde pude verificar, é relativamente
recente a realização, entre os pesquisadores da área, de que a clínica fonoaudiológica está
em fase de autonomização. Ela está formando uma base semiológica, uma forma de
raciocínio diagnóstico, bem como refletindo sobre os fundamentos da eficácia de suas
intervenções. Em outras palavras tornou-se claro que a base descritiva e diagnóstica
oferecida pelas ciências médicas é simplesmente inadequada para abordar a especificidade
do sofrimento do sujeito diante da linguagem quando esta manca. Fica cada vez mais
evidente, por outro lado, que os procedimentos técnicos, praticados a muito na área,
construíram uma saber. Saber insuficientemente formalizado e dificilmente transmissível,
mas não obstante um saber, um saber fazer. Tornou-se visível, em terceiro lugar, que as
tradicionais teorias sobre a linguagem, de extração lingüística ou psicológica, são
inespecíficas diante da natureza dos problemas enfrentados.
A consciência interligada destes três problemas parece ter produzido um momento
crítico de separação. Isso se revela em três movimentos substanciais. Em primeiro lugar há
um esforço de teorização sobre a linguagem de modo a entendê-la como campo
intersubjetivo de constituição do sentido. Os trabalhos de De Vito e Lemos tem avançado
fortemente rumo a uma concepção de aquisição de linguagem tradutível e compatível com
a prática do fonoaudiólogo. Os trabalhos de Regina Freire, por outro lado, tem examinado
criticamente as entidades clínicas, os procedimentos diagnósticos e as formas de
intervenção de modo a mostrar que o tratamento fonoaudiológico precisa ser reiventado.
Finalmente alguns estudiosos na área da voz tem mostrado como a separação histórica entre
voz e linguagem não se sustenta à luz de uma exame mais apurado do objeto da
fonoaudiologia. Voz e linguagem são ambos figuras do campo do sentido e sua separação é
exterior a uma clínica fonoaudiológica definida pelo sujeito e pela escuta.
Redefinição do objeto, crítica dos seus modos de apreensão e fundamentação de
seus princípios, eis o exercício que vejo se realizando. Vejo de uma posição privilegiada –
algo exterior ao problema. Ora, este exercício tem um nome: a formação de um método.

2. A Clínica como Método

Isso nos traz novamente para a clínica. Clínica é o nome de uma experiência mas é
também o nome de um método. Veja-se, por exemplo, o método clínico de Piaget, baseado
em seqüencias organizadas de perguntas e escolhas diferenciais que organizam o fazer
investigativo. Ou seja, a clínica é um método, no sentido de uma ordem de escolhas e
decisões. Mas também pode ser o conjunto em que o produto e o efeito destes
desenvolvimentos fazem parte e transformam a própria experiência que sobre ele recai.
Quando a clínica introduz o sujeito ela se torna uma Dartstellung, ou seja, um percurso ou
uma apresentação onde o que se fala e representa sobre o processo faz parte e transforma o
próprio processo. É assim em psicanálise e é assim em uma parte da fonoaudiologia.

A força a ligação entre método e clínica aparece ainda na própria definição que
Freud fazia da psicanálise:
(a) o nome de um método de investigação de fenômenos psíquicos inacessíveis de outra
forma
(b) um método para o tratamento da neurose
(c) uma doutrina ou teoria que reúne e sistematiza os conhecimentos obtidos desta forma.
Ou seja das três definições de psicanálise duas referem-se ao método e a terceira o
pressupõe. Quero destacar que na invenção da psicanálise Freud levou em conta o que mais
tarde ficaria conhecido como uma das mais fortes exigências do método estrutural.
Segundo Golschmidt, que se dedicou a formalizar este método na filosofia, o método
estrutural implica em jamais dissociar as teses dos movimentos que lhe deram origem. Ou
seja, jamais dissociar o método de investigação, que produz teses sobre o funcionamento do
falante e da linguagem, do método de tratamento, que produz uma certa modificação da
posição do sujeito em relação à sua fala redundando em uma abreviação de seu sofrimento.

Ora, isso nos oferece uma primeira interlocução entre psicanálise e fonoaudiologia.
Entre ambas pode haver um elemento comum, mas externo, em tese, a ambas, ou seja o
método estrutural. Logo, não são todas as fonoaudiologias, nem todas as psicanálises, que
se encontram nesta articulação e nem se deveria esperar que assim fosse. Nada mais
distante da formação de uma clínica do que imaginar que ela se realiza pela unificação
eclética de todos os pressupostos e procedimentos vigentes na área.

3. Fala, Transferência e Sintoma

No caso da psicanálise o método se fundamenta em alguns pressupostos


relativamente simples, que eu gostaria de lembrar aqui. Há psicanálise quando há
associação livre do lado do paciente e atenção equiflutuante do lado do analista. Além disso
supõe-se que a relação entre ambos é compreensível à luz da noção de transferência e de
que as intervenções do analista respondem a uma certa concepção de sintoma e de
sofrimento psíquico em geral. Fala, transferência e sintoma: são estes os três
pressupostos do método psicanalítico. Claro que disso se deduz uma quantidade indefinida
de outras pressuposições que nos levam, por exemplo, a condições específicas de apreensão
do sintoma, como sobredeterminado no inconsciente, como prática sexual simbólica, como
compromisso entre desejo e defesa, etc. Também a transferência nos levaria a inúmeros
desdobramentos: a resistência, a projeção, o desejo e a ética do psicanalista, etc. A fala, por
sua vez também não é um elemento de método desprovido de desenvolvimento em
psicanálise. Aliás é por aí que começou historicamente a interlocução entre fonoaudiologia
e psicanálise. Um dos primeiros artigos de Freud é a Interpretação das Afasias (1886), nele
aparece uma interessante descrição clínica da afasia:
“Recordemos que estes casos oferecem a peculiaridade de o falar espontâneo ser a
bsolutamente impossível, ao passo que o repetir, o ler em voz alta, se processam
sem impedimentos” 1

ou ainda

“(...) todas as ligações entre os elementos da linguagem parecem ter, num primeiro
tempo o mesmo direito a funcionar e é a prática ou a estrutura individual que faz deste ou
daquele elemento de linguagem o ponto de conexão, o nó dos outros.” 2

Seleciono estas duas passagens porque elas indicam, no contexto da crítica ao


localizacionismo cerebral das funções da linguagem, que o critério para apreender a
patologia de linguagem não deve ser exterior ao sujeito que fala. O falar espontâneo, o que
isso significa senão a própria apreensão e apropriação do sujeito sobre sua fala. Cabe aqui
uma aproximação com a importância que a noção de estranhamento vem ganhando nos
estudos fonoaudiológicos atuais. Ou seja, o sintoma de linguagem é sintoma porque o
sujeito o apreende como tal. É a estrutura individual em sua atualização na prática da fala
o parâmetro patológico e não a gramática normativa ou qualquer outra abstração sobre o
uso ideal da língua. Ou seja, quando admitimos o sujeito como critério do método, o que
decorre de uma certa compreensão da fala, é possível pensar de uma outra forma a
patologia. Não se trata mais da oposição qualitativa entre fala normal e fala patológica, mas
de uma diferença quantitativa. Mas então se levanta o problema de qual critério usar para
definir a patologia. A resposta aqui é relativamente simples: o próprio sujeito. É ele quem
dirá quando está bom, quando é suficiente. Mas isso implica em primeiro lugar que ele se
aproprie de sua própria fala, que ele se reconheça no estranhamento. Noto que nos
tratamentos com crianças, originados de uma demanda da família, da escola ou do médico
este é um passo crucial. Que a criança se perturbe com sua fala a ponto de querer
transformá-la, esse é um passo de importante valor prognóstico.

Nestes termos é possível introduzir a noção de patologia, como afetação do sujeito


por sua fala, sem que isso signifique objetividade da doença e incorporação de critérios

1
Freud, S. – A Interpretação das Afasias, Edições 70, Lisboa, 1977:37.
2
Ibid:90.
diagnósticos organicistas. Mais ainda, ao respeitar este princípio de método é preciso rever
as provas e exercícios onde a fala do paciente é descontextualizada e é tudo menos
espontânea. Para aqueles que acham que isso seria uma importação ilegítima de um
princípio clínico da psicanálise basta lembrar a própria definição que Benveniste dava da
fala, ou seja “a linguagem na medida em que é assumida pelo sujeito”. Destaco aqui este
gesto: assumir, o que significa isso senão subjetiva a linguagem ?

Portanto vemos aqui como ao aderir à situação de fala espontânea, como critério
clínico fonoaudiológico, fazemos convergir a associação livre para um terreno comum. Mas
sabemos o que acontece quando a fala espontânea é evocada. O que acontece chama-se
transferência. Ou seja, rapidamente os interlocutores começam a se projetar fora de seus
lugares supostos, uma demanda se forma. Aqui encontramos um outro ponto de crescente
investigação na prática fonoaudiológica. Ao falar para o outro, livremente, ou com pequena
diretividade efeitos de transferência são inevitáveis. Não estou dizendo que o
fonoaudiólogo siga a regra fundamental da clínica psicanalítica, mas que ao convidar o
paciente a uma fala onde o que interessa não é a construção demandada de um sentido as
coisas saem do controle. Ocorre que o fonoaudiólogo faz isso sem saber que está fazendo.
Ao se interessar pela articulação fonemática e por outros componentes refratários ao
sentido compartilhado o que aparece do lado do paciente é uma abertura ao falar. É no
quadro da fala sob transferência que o sintoma fonoaudiológico é abordável. Neste
momento ele deixou de ser definido à priori, ele se atualizou na relação intersubjetiva com
o clínico. É nesta reprodução, em ato, do sintoma que a estratégia das intervenções se torna
pensável.

André Breton, o fundador do surrealismo definia este movimento estético da


seguinte forma: um diálogo onde se diz o que se quer e se escuta o que não se quer.
Psicanálise e fonoaudiologia são versões do diálogo surrealista. Nem por isso desprovido
de lógica.

Tenho a impressão de que isso foi historicamente um motivo para que o


fonoaudiólogo espelhasse sua prática na da pedagogia. Ou seja, ela provê um lugar, similar
ao do professor, no qual estamos acostumados a lidar com a transferência. O senhor e o
escravo, quem manda e quem obedece. Está aí uma forma de estruturar a transferência que
em muitos casos impede a apropriação da fala e sua subjetivação.

Neste breve passeio vimos como fala, transferência e sintoma facilmente se anelam
no exercício do método. No entanto as coisas parecem caminhar mais da psicanálise para a
fonoaudiologia do que o contrário. De fato creio que há muitas especificidades na escuta da
fala, na caracterização do sintoma e no manejo da transferência quando estamos na clínica
fonoaudiológica.

Para começar é importante que se ressalte que assim como o psicanalista o


fonoaudiólogo escuta fatos da fala que a escuta conversacional cotidiana ignora. E escuta
diferenças que recaem sobre a mesma matéria: o significante. Ademais assim como o
psicanalista o fonoaudiólogo intervém, em ato, na fala de seu paciente. Pontua, faz escutar,
pede para repetir, associa e faz ligações entre acontecimentos da fala. Ambos estão em uma
Outra cena, no entanto ela não é a mesma. Porque não pensar que se trata do inconsciente
nos dois casos ? Há um inconsciente das ciências humanas, há um inconsciente na filosofia.
Por que não contar com ele na clínica fonoaudiológica ?

Proponho aqui uma hipótese. O inconsciente no sentido descritivo, tematizado por


Freud inúmeras vezes compreende o pré consciente. É justamente no pré consciente que
para Freud localizam-se as representações-palavra. Isso foi usado indevidamente contra
Lacan, muitas vezes, mas isso não importa aqui. Ora, isso permitiria incluir a subjetividade
sem reduzi-la ao eu consciente, com o qual muitas práticas fonoadiológicas educativas tem
se deparado em sua resistência.

5. O que a Clínica Fonoaudiológica tem a Contribuir para a Psicanálise ?

Disse que o fonoaudiólogo escuta aspectos da linguagem no contexto de um diálogo


de tipo surrealista. Mas ele escuta tais aspectos de uma posição privilegiada, posição que
raramente o psicanalista poderia replicar. Isso porque a escuta do analista é equiflutuante,
como a de um passageiro de trem vendo a paisagem passar ao seu lado. De vez em quando
ele nota algo diferente e se detém sobre isso. De toda forma ele, em geral, não toma notas e
nem faz registros minuciosos. Isso porque ele está interessado em reter as associações
segundo uma forma especial de memória. Uma memória composta pelo próprio
esquecimento.

A escuta do fonoaudiólogo não é equiflutuante. Ela é dirigida. Seus recursos de


compilação e análise são muito mais precisos. Ele pode refazer sua clínica com um grau de
exatidão que o analista jamais conseguirá. Ora, este percurso em torno da aquisição da
linagugem, estudado segundo uma clínica que pressupõe o desvio como constitutivo é de
grande valia tanto para a técnica da escuta quanto para certos problemas metapsicológicos
prementes na psicanálise contemporânea.

Por exemplo, no quadro da discussão sobre a constituição do sujeito muito se tem


debatido uma afirmação de Lacan que diz o seguinte: só há recalque quando o sujeito pode
falar, isto é quando ele adquire a linguagem, apesar de estar imerso nela bem antes disso.
Ou seja o recalque tem por condição este gesto de assunção da linguagem. Por isso a
linguagem é condição do inconsciente e não o inconsciente a condição da linguagem.

Ora, quem aborda este momento, segundo critérios compatíveis com o método
clínico psicanalítico não é nem a lingüística, nem a psicologia, nem a filosofia da
linguagem. Quem faz, ou deveria fazer isso é a fonoaudiologia. O que estou dizendo é que
não nos serve uma concepção de entrada na linguagem que parte do sujeito ideal ou normal.
Importa-nos sobretudo o sujeito que manca nesta passagem. Não foi pelo estudo dos
neurônios normais que Freud descobriu o inconsciente, foi pelo estudo da histeria. O
processo vai do patológico para o modelo, não do modelo para o patológico. Isso quem
pode fazer é só a fonoaudiologia.

A ordem exata de como isso acontece, o papel das oclusivas, a formação das
diferenças fonológicas elementares, as posições discursivas da criança, tudo isso é de
interesse capital para a psicanálise. As deformações holofrásicas e o enigma da gagueira,
são questões que passam por uma experiência que raramente chega ao analista.

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