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RAZÕES DO CORAÇÃO
EXERCÍCIOS DE CIDADANIA

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RAZÕES DO CORAÇÃO
EXERCÍCIOS DE CIDADANIA

Victor Ausina Mota

Tender Edições

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Título: Razões do Coração:Exercícios de Cidadania
Autor: Victor Ausina Mota
Capa: Cefilo (www.cefilo.info)
1ª Edição, Abril 2010
Revisão: Carlos Leite (clpanzer@sapo.pt)
Impressão e Acabamento: Tender Edições
geral@tender.com.pt
www.tender.com.pt
ISBN:978-989-8112-09-5
Depósito Legal: 282355/08

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Ao Rafael, que um dia compreenderá

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1ª Parte

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Uma praia de gente

O carro parou junto de uma praia. Saímos. A chuva começava a cair miudinha.
Olhava-mos para as raparigas e fazíamos comentários que todo e qualquer homem faz
para outro homem sobre mulheres. Eu tinha uma vida complicada, embora não tivesse
emprego. Vivia de rendas numa casa comprada pelo meu pai quando (não porque)
acabei o meu curso universitário. Pela primeira vez, depois de tanto insistir, estava
convencido de que não pertencia a este mundo. Um pouco como Cristo. Isso tornava
complicada a relação com as mulheres. Mas eu também não queria uma mulher
qualquer.
Fomos a banhos. A água estava surpreendentemente boa e eu fiquei por lá, com a
água pelas coxas, levando água ao rosto, baixando-me para que a água me cobrisse o
corpo em forma de onda.
Os meus pensamentos intrusivos faziam questão de me estragar o dia. Quando
achava que não tinham importância, fumava um cigarro. E pensava que nada de grave
nos iria acontecer. Os acontecimentos visuais não me tocavam como quando despertei
para a adolescência. Nessa época penso que não tinha consciência dos outros, não os
avaliava tanto. Os nossos diálogos limitavam-se a mulheres e a ver as casas de quem
está bem na vida. Bem demais, para as nossas perspectivas! Tínhamos ideias nesses
dias. No entanto, quem sabia o destino que nos esperava? Éramos aldeões ainda, no
meio da cidade, porque admirávamos os edifícios e as mulheres. Ainda bem que não
éramos de Lisboa. Eu, no meu íntimo, pensava que era algo mais que um lisboeta;
pensava que tinha apenas de lisboeta o cosmopolitismo.
Eram quase seis horas e eu pensava que devia deslocar-me até ao Largo da Feira da
Ladra para me encontrar com simpatizantes do Yoga. Vou, não vou, penso eu. Aliás,
não tenho dinheiro para ir de autocarro. Vou, não vou. Gastei o dinheiro em telefonemas
para casa. Falei com a minha mãe... Mas, como estava dizendo, o carro parou junto da
praia. O sol não aparecia, nem julgávamos que houvesse mais gente na nossa vida.
Vinha de casa. O chá sem açúcar não me soubera bem. Continuava firme no meu
cigarro. O meu computador estava com problemas e eu não conhecia nenhum técnico.
Afinal, tinha de aderir às novas tecnologias e ao multimédia. Até chegar àquela praia
não tinha ganho nada por ser um humanista. Já não era um jovem. As minhas
capacidades de aprendizagem estavam consideravelmente reduzidas. Contudo, tinha de
arranjar forças. É estranho dizê-lo, mas julgava-me uma pessoa jogada à rua, que por
sua própria conta e risco tinha de viver dia após dia. Sentia-me como um sem abrigo.
Sentia-me melhor do que numa sessão de yoga ou em casa. Sentia-me melhor olhando a
praia, cheia de gente...

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Razão e Coração

Juntos estariam a salvo de um mundo infinitesimal. Ali, perto da lareira, poderiam


falar sobre as outras vidas, os movimentos até à capela, ao espaço do jardim, beber à
noite um café e fumar um cigarro. Não havia muitos clichés no labirinto das suas
mentes, nem sequer tinham medo que o vento soprasse nesse labirinto e o tornasse com
imensos e largos caminhos, mas que pareciam opticamente estreitos, e saídas, muitas
saídas. Labirintos e mais labirintos: palavras, sons, imagens e emoções... Ah! As
emoções! A vida parecia ser injusta porque se procurava algo do passado que pudesse
fazer sorrir no futuro. Não se vivia o futuro desenfreado dos dias de hoje. E os lugares
que nunca veriam, as pessoas com quem nunca falariam. O universo do conhecimento,
acreditavam, era infinito, não no que faziam, mas no que pensavam. A mente era um
sistema ilusório de infinitude que traía o coração. Lá no fundo, um pequeno coração
imensamente vermelho e vivo debatia-se por procurar emoções, numa luta que parecia
não ter fim. As pessoas pareciam não querer as palavras, ou a verdade das palavras, mas
antes o que fazia sentido. E, contudo, haveria um fim...

Um mal estranho

Nos seus retiros havia uma incapacidade para comunicar. Estavam à beira da
modernidade, à beira da sociedade de toda a circulação, como circula o sangue dentro
das veias de um corpo. Depois de irem para os seus quartos ouviam todos os tipos de
música. Mais tarde, a mãe de Bernardo chegou e aprovisionou-se da ementa que ele
havia feito durante a manhã. Era uma fórmula de sopa pessoal, um requisito para passar
nas provas de afecto que a mãe lhe fazia constantemente quando estava na cozinha. A
casa tinha alegria. Desejava-se estar na sala, na casa de banho... Até na dispensa! O
amanhã era incerto para o pai de Cláudia. Um mal estranho de que se queixava por
vezes atrasava as suas provas de doutoramento e o seu corpo abanava de raiva quando
tinha de falar de si. Ia ficando cada vez mais envolvido em relações sociais e a pureza
juvenil perdia-se por entre os desígnios, as vagas de ar nos ventiladores e canalizações.
Fumava o seu cigarro sem ideias, sem corpo para corresponder ao desejo de seus pais, a
um instante de ideia mística comum.
A carta iria seguir para Angola. Seria a última com aquele remetente. Que ficassem
os escritores com a sua literatura! E que dizer dos psicólogos? Iriam morrer para o
mundo vivendo através de outras janelas. Podia-se convencer de que a vida é uma
prisão e que só nos libertamos com a morte ou a pensar que quem cá está no mundo foi
porque quis, porque fez esforço para isso, como lhe disse uma amiga. Como chegaria a
carta a Angola?
Se donde venho não é fácil encontrar um compromisso, onde quero chegar alguém
falará por mim. Falar do seu umbigo dá um resultado de inequívoca solidão. Serei
antropólogo amador? Quero ir longe, mas quem há-de controlar o meu desejo? Um
escritor apenas com pena de ter pena em pluma. O exercício que vamos empreender
será a três tempos. Nas palavras que se projectavam pelo peito fora, Octávia intimidava
o seu companheiro. Ele estava perdido, sozinho, entregue a um mundo em que nem a
tristeza chegava perto dele. Bastavam-lhe cigarros. Numa noite de Agosto, esperava um

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comboio na Estação de Santa Apolónia e as pessoas andavam de um lado para o outro à
sua frente. Um sem abrigo veio pedir-lhe um cigarro. Fumaram os dois., mesmo à fome.
As suas obras não eram lidas por pessoas despreocupadas com obsessões, nem com
ideias disruptivas. Um dia destes alguém haveria de ler as suas palavras e saberia que
não seria preciso esforço para nelas ter esperança ou alegria.

O que faz falta

Na véspera de Ano Novo tudo se preparava para comemorar uma ocasião que, sendo
especial, não tinha o brilho de outros tempos. Contudo, a televisão estava lá e todos os
condimentos de comida e disposição de espírito preparados.
Quando Berbel chegou foi saudado como um dos convivas, acolhido como um
irmão. Dias depois atravessava mais uma fase de depressão e decerto que pensava nos
amigos, nos amigos de sua irmã, que eram também seus amigos, e tinha saudades deles
quase todos os dias (tirando aqueles em que andava entretido em coisas que conseguia
fazer com pouco dinheiro). Alimenta-te bem! -dizia-lhe uma voz consistente. Um dia
poderia ser alguém. Mas não esperava a luz dos palcos nem as audiências dos grandes
espaços. Muita gente já lhe fazia confusão. Aquele mendigo atado a pedir esmola traía-
lhe os pensamentos e o outro, o seu mendigo do costume, lá estava, com a mão
estendida e silencioso. Carlos, um toxicodependente, admirava-se por encontrar uma
pessoa assim. Eu não acredito -dizia ele. Eu não acredito. Pois Lisboa trazia surpresas
nos seus mais humildes e necessitados rostos. Leire e uma amiga alemã estariam a
pensar algum dia visitar Lisboa? Quem sabe se algum dia estaria com alguma delas a
passear, sem ter medo de falar, sem ter medo de estar com uma mulher na rua.
No dia do jantar com Vitorino, numa tasca perto do Técnico, era tudo a despachar.
Comia-se bem, é certo, e Ventura não pensava em desistir dos seus intentos literários.
Agora faltava-lhe a soltura para a prosa, para os enredos, para a estrutura, para a
narrativa. No fim de contas, o cego era ele, sem conhecimentos de bastidores e
capelinhas. A sua escrita era verdadeira até certo ponto, mas deixemos o autor em paz
por uns momentos. Deixemo-lo viver a cidade, o viver psicótico na cidade.
Bianco estava casado com uma estrangeira que tinha um fulgor estranho para o
sexo. Fazia de resto parte de um grupo de viciados em sexo que se reunia na travessa do
cotovelo todas as Quintas -Feiras. Uns iam para arranjar parceiro; outros para contar
problemas sérios que eram até de dor, excesso e dependência. Dia após dia, nada se
cimentava, parecia. O que mais se cimentava era a casa que o pai de Berbel construía lá
na terra, de costas viradas. Como seria o futuro? Valia a pena ser humano, e as suas
ambições estavam justas à sua capacidade. Ler, conhecer, descobrir, ao seu ritmo, um
pouco de cada vez, construir uma árvore cavada com raízes fundas na dor, na
frustração, que eram estrume poderoso contra intempéries. Um dia poderia, no ponto
final, pendurar na árvore, com confiança, um dos seus filhos e vê-lo a baloiçar ao vento,
seguro, instante, espírito sossegado e alentado com a presença de alguém amado.

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O Ralo

Exigia-se uma resposta de Ventura. Uma dádiva, algo que nunca tinha feito antes. A
sua dor em casa era imensa, era necessária a presença de alguém. Não iria repetir o
mesmo erro: tornar-se dependente dos outros. Estava disposto a dar de volta, a
responder por tudo o que a sociedade lhe fizera. Por tudo o que deixara fazer. Cigarro
após cigarro, havia uma luz que se acendia num isqueiro. Atrás dele estavam derrotas e
mais derrotas. Era um homem frustrado por não ter o que todos tinham. Será que todos
tinham e que afinal tinha de preservar a sua existência nesse limiar entre o prazer e a
dor? A sua casa era um lugar de acolhimento das dores e desperdícios de uma vida feita
de rosto de que não conhecia as vidas. Os outros escreviam histórias, os seus escritos
saíam em revistas. Ele nem a esperança do crescer em idade tinha. Estava retido no seu
canto, com os seus pensamentos destrutivos que lhe dilaceravam a mente. O que é certo
é que tinha de recomeçar todos os dias. Não vale a pena dizer como era trágica e sem
merecimento esta vida de Ventura. E ninguém se importava; tinha de continuar sozinho.
Ou talvez as coisas estivessem para mudar um pouco, para alívio da sua mente. Talvez
as coisas lá fora não fossem tão agressivas e houvesse lugar para uma certa forma de
estar que sabia ainda ter escondida no seu coração. Os amanhãs eram diferentes uns dos
outros. As pessoas não podem acreditar o quão difícil é ter de acreditar. O quão difícil
tem sido para Ventura verter lágrimas que dêem força. Minado pela doença, já não
parece um jovem. Agora deixou crescer a barba e tem um ar algo envelhecido. Não, não
quero, os outros não podem ter pena dele, não é esse o caminho, ele não tem pena de si
próprio. Só que há qualquer coisa que fica por explicar na roupa deixada suja e que não
se lava a toda a hora. Um dia ele há-de contar histórias de castelos, há-de voltar a ler
sem parar, com uma curiosidade científica e literária que não se restringe às academias.
Um dia, quando tudo isto passar, há-de chorar com alívio. Ninguém se sentiria como
ele, a pensar indefinidamente numa situação económica precária. Ninguém faria as
coisas ao seu modo. São dez anos de cansaço. Dez anos! Nem uma casa leva tanto
tempo a construir... Mas chorar sobre leite derramado não vale a pena e o ditado sujeita-
se ao caso de Ventura. Cansaço de estar diante de um computador, ou dois, de estar só
quando se teme a presença dos outros. Ninguém sabe, ninguém pode imaginar o
sofrimento que se apossa deste ser que a sociedade tende a não encaixar. Que teima a
não encaixar... Não, ele não quer as miúdas das capas das revistas, não quer aquelas que
por instantes deseja nos autocarros, nas ruas... Quer algo diferente, um estado superior
de satisfação mental, um consumismo alegre e intencionado para as pequenas coisas
que possam cumprir o desígnio de ter uma casa composta. Quer, afinal, ter visitas, saber
que ainda é importante, que não foi em vão todo este sofrimento e que as pessoas que o
conheceram não o estranham. Quer uma emoção teatral quando nem isso pensa
merecer. Não quer atenção, pois já foi tanta a que lhe foi dada e ele não ligou. Quer
apenas uma vida, um mulher para a vida, um tanto de salário honesto, poder trabalhar,
poder realizar-se no trabalho. Não, não é literatura o que o sócio de Ventura escreve,
todos os guiões que manda em seu nome para a editora e que têm um público escasso
mas fiel. São os pensamentos de um homem perturbado mas sobretudo só, há muito
tempo sem confidente, que se revê apenas no espelho que são os seus familiares, a única
coisa que realmente conta neste mundo...

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O Mainstream

Antigamente um gato vinha devagarinho ter consigo e uma cadelinha, resgatada à


estrada, vinha aninhar-se no tapete que fora muitos anos o tapete da sala que ninguém
ousava pisar sem descalçar. Não lhe era exigido um esforço suplementar. Apenas que
fosse normal. Contudo, essa normalidade era o mais difícil de alcançar. Por trás de um
biombo de quatro meses banhava-se um corpo jovem e disposto a encontros. Contudo,
parecia banhar-se uma outra pessoa, afoita a pensamentos que envelheciam o corpo e
retinham dentro de si uma velhice contida, daquelas que nada servem, que apenas se
vivem, que não se transmitem. O corpo saía e os acontecimentos políticos aconteciam.
O futuro, ai o futuro... O que seria da esperança, da raiva que se esquecia facilmente, da
revolta que não se ousava escrever? O que seria de todos aqueles que viviam as suas
vidas nas suas casas, como se a normalidade não existisse, como se uma transcendência
os protegesse e aos seus filhos? Era preciso um conto, uma história, personagens,
diálogos. Tudo isso era preciso para que os outros, o público em geral soubesse que
alguma coisa estava a acontecer com aquele corpo, com aquele invólucro de uma alma
dissidente dos acontecimentos que dão votos.
Ventura nunca seria um homem do mainstream. Quem sabe tenha fugido a isso para
se afirmar. Mas fugira. E agora pagava bem caro os seus actos. Ou a falta deles. Não
importava assim tanto estar entre pessoas tão diferentes. Não havia assim tanta pressa.
Um dia, um dia talvez as coisas mudassem. Ele preocupava-se e pronto. O mérito dele
estava nisso mesmo e um dia haveria de arranjar um emprego, um emprego que fosse
trabalho. E a sua mãe haveria finalmente de ficar satisfeita com ele. Não haveria mais
choros nem perguntas do tipo mãe porque é que estás a chorar? Afinal ninguém se
importava e ele, em certos momentos, reconciliava-se com a sua doença e fazia da
solidão uma dádiva. Não importava o isolamento, não importava que ainda ninguém
tivesse reparado nele. Não importava, mesmo que descessem as lágrimas. É certo que
havia algo nele que merecia atenção médica. Afinal, o seu mérito tinha sido chegar até
aqui, com reconhecimento ou sem ele. Não havia nada a acrescentar e seria bom que
não houvesse. Na sua idade esperavam-se coisas seguras. É verdade que já estava farto
da cidade. Mas em que outro lugar senão na cidade poderia encontrar finalmente o que
procurava, mesmo não sabendo bem o que era? Um dia haveria de vir o fervor sexual e
ele não saberia lidar com isso. Apenas procurava não pensar no passado. Estava calmo.
Estava tudo acabado em relação ao seu curso. Não havia revolta. Apenas algum bem-
estar consigo mesmo. E quando dormisse, poderia continuar o seu caminho...

Literatura é o que na longa duração se faz, se diz. Não tem muito a ver com sexo.
Não sei o que é na realidade a literatura. Todas estas névoas dentro de mim, todas estas
personagens que sou ao longo do dia, a submissão aos outros, tudo o que faço, tudo o
que faz parte de mim ao fim do dia. Tudo isso é passageiro...

Euclides torneava na sua loja e pouca gente o visitava, a não ser dois ou três clientes
dali perto. A mulher fazia o almoço e Bernardo tardava a voltar do supermercado. Ao
sair da sua oficina Euclides deu com um malho em cima de um punho, perto de um
ferro ardente. A mãe teve de deixar o almoço e Bernardo veio a correr pois a cinquenta
metros já se ouviam os berros do pai. Marta não queria mais ser mulher. Estava cansada
da vida tal como ela fora. Acontece, porém, que por vezes não sabemos as voltas que o
mundo dá: dias depois, e sob as instruções de Euclides, lá estava ela, dando no malho,
atiçando a forja que costumava ser o lugar certo de Bernardo que não queria mais ser
criança. Na verdade era adolescente. Nos vizinhos não havia raparigas e até agora

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poucos tinham sido os rostos bonitos que vira e que o levavam a querer crescer e a
desejar o corpo de uma rapariga. Nas férias do Verão as escolas acabavam e era uma
sorte vê-las soltas pela rua principal indo até á missa, até ao supermercado.
Por via das inversões de Euclides e Marta, o jovem tinha de passar mais tempo na
oficina junto da mãe, que a idade do velho não lhe permitia fazer grandes encomendas.
Os clientes apareciam, desapareciam, sempre sós, sempre precisando de um trabalho
para ontem. Mesmo assim, o ritmo naquela pequena aldeia era feito de pequenas pressas
que enervavam o jovem. Mas por que andaria toda a gente a correr? E porque é que as
raparigas andavam de uma forma mais lenta, dando a entender que nada tinham que
fazer a não ser levarem o saco e trazerem as compras, tal como as suas mães e outras
antes delas sempre fizeram?
A biblioteca trazia umas obras interessantes. Sobretudo para quem não tinha
oportunidade de ir à escola. Eram já 15 anos. Naquele Verão Bernardo lia à noite, antes
de dormir. Lia também fora das brincadeiras, ignorando o que os amigos estariam a
pensar, ignorando que o mundo é feito de ligações e que quando não estamos bem é
porque não estamos ligados(e por isso mesmo não estamos a transmitir energia
positiva). A sua vida, afinal vazia de sentido, preenchia-a com os livros que chegavam
da biblioteca itinerante, onde encontrava pessoas. Um arrepio chegava-lhe ao corpo
sempre que ouvia o apito das carrinhas Citroen forradas de livros. Tobias, de 16 anos
dizia que a biblioteca estava desactualizada e o seu conteúdo era pobre. Não importava.
As palavras podiam ser lidas de qualquer direcção, sob qualquer sentido. Às vezes um
só livro podia alterar dias e dias de tormento espiritual. Não importava...

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O sugo da testana
O amargo da pestana
O chupo da fumaça
O inteiro conhecimento que escapa
A cadeira côr de rosa e quente que deixo atrás
A cabeça que dói antes do sono
São existências
A desgraça do drogado que vai buscar palhinhas à casa de comida para se injectar
com elas
Um esforço que se faz mais além na escuridão
Quando não faz muito frio
A raiva que se tem de ter agido de maneira socialmente correcta,
Pois ambiciona-se o mesmo ou mais do que os outros
E isto é uma queda de água que não deixa de existir
Mais um cigarro, o último, em honra dos filósofos
Que viviam de parcos rendimentos e acreditavam nas suas palavras,
Também os escritores e poetas desgraçados com quem compartilho a
dor de existir
O que escrevo no livro preto
O livro que ainda acredito escrever
O quarto que está ao lado de mim por preencher
As quecas que os outros dão com facilidade
O respeito pelas mulheres
Uma vida não dá para fazer síntese,
Por isso existe a transmigração das almas,
Por isso não se pode estar arrependido e ergonómico
Tudo lá fora é um mar de cumplicidade e entendimentos, cunhas,
Preconceitos, locubrações interesseiras
E eu preocupado com as minhas personagens,
Com as minhas inúteis personagens,
Que ainda um público imaginário no futuro irá ler.
Há muito tempo que estou morto para que o que acabo de dizer.

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Subi as escadas e dois anjos pegaram-me num e outro braço. O entendimento da
casa, o espaço mínimo onde movimentava o meu corpo, as razões porque não conseguia
controlar os impulsos cerebrais. Uma companhia que se revelou muito acertada e a
quem não me queria de jeito nenhum prender, mas que queria ter como amizade,
julgava nunca mais acabar o meu dilema mental, inútil, mas o que poderia eu fazer se
estes dias estavam em plena maturidade da perturbação que ocupava os meus dias.
Depois, a música e o desejo de ter um piano em casa.

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A Espiral Imensa

Euclides torneava na sua loja e pouca gente o visitava, a não ser dois ou três clientes
dali perto. A mulher fazia o almoço e Bernardo tardava a voltar do supermercado. Ao
sair da sua oficina Euclides deu com um malho em cima de um punho, perto de um
ferro ardente. A mãe teve de deixar o almoço e Bernardo veio a correr pois a cinquenta
metros já se ouviam os berros do pai. Marta não queria mais ser mulher. Estava cansada
da vida tal como ela fora. Acontece, porém, que por vezes não sabemos as voltas que o
mundo dá: dias depois, e sob as instruções de Euclides, lá estava ela, dando no malho,
atiçando a forja que costumava ser o lugar certo de Bernardo que não queria mais ser
criança. Na verdade era adolescente. Nos vizinhos não havia raparigas e até agora
poucos tinham sido os rostos bonitos que vira e que o levavam a querer crescer e a
desejar o corpo de uma rapariga. Nas férias do Verão as escolas acabavam e era uma
sorte vê-las soltas pela rua principal indo até á missa, até ao supermercado.
Por via das inversões de Euclides e Marta, o jovem tinha de passar mais tempo na
oficina junto da mãe, que a idade do velho não lhe permitia fazer grandes encomendas.
Os clientes apareciam, desapareciam, sempre sós, sempre precisando de um trabalho
para ontem. Mesmo assim, o ritmo naquela pequena aldeia era feito de pequenas pressas
que enervavam o jovem. Mas por que andaria toda a gente a correr? E porque é que as
raparigas andavam de uma forma mais lenta, dando a entender que nada tinham que
fazer a não ser levarem o saco e trazerem as compras, tal como as suas mães e outras
antes delas sempre fizeram?
A biblioteca trazia umas obras interessantes. Sobretudo para quem não tinha
oportunidade de ir à escola. Eram já 15 anos. Naquele Verão Bernardo lia à noite, antes
de dormir. Lia também fora das brincadeiras, ignorando o que os amigos estariam a
pensar, ignorando que o mundo é feito de ligações e que quando não estamos bem é
porque não estamos ligados (e por isso mesmo não estamos a transmitir energia
positiva). A sua vida, afinal vazia de sentido, preenchia-a com os livros que chegavam
da biblioteca itinerante, onde encontrava pessoas. Um arrepio chegava-lhe ao corpo
sempre que ouvia o apito das carrinhas Citroen forradas de livros. Tobias, de 16 anos
dizia que a biblioteca estava desactualizada e o seu conteúdo era pobre. Não importava.
As palavras podiam ser lidas de qualquer direcção, sob qualquer sentido. Às vezes um
só livro podia alterar dias e dias de tormento espiritual. Não importava...

Umas tantas tentativas haviam sido feitas para tentar tirar Bernardo daquele lugar.
Uma rapariga havia passado por lá no Verão passado e rumara para França, onde tinha
os pais e, diz-se, um futuro à sua espera. O jovem prosseguia os seus dias melancólicos,
campestres, não se achando destinado a nenhum destino em especial que envolvesse
multidões, tapando o pano do seu futuro com os seus olhos castanhos, atrás de uma
franja de cabelos escuros. O seu pai um dia morreria, um dia teria que ficar com o
negócio, por isso o que lhe interessava era isso mesmo e mais nada. Mas o que tinha de
especial um jovem ali numa aldeia, longe dos palcos das artes, das políticas, das
ciências? Aparentemente estava só com os seus pensamentos, matutando o seu destino,
os seus gestos, sentindo que nada lhe podia valer, que perdera o seu Deus e a confiança
nos homens. Sentia-se fraco aos 19 anos e tão só que se contrariava a si próprio. Pregara
a fé e a espiritualidade e agora queria outra coisa que fosse completamente contrária. A
sua vida era um dia interminável, os seus escritos repetições de um padrão, como o
Bolero de Ravel. Não sabia se era um exercício de resistência. Não, não deveria ser. O

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ponto da sua atenção estava desfocado, o seu coração palpitava... Ainda havia
reminiscências de uma adolescência de paixão. Ah! Seria possível inverter o tempo?
Não quero dizer para este jovem voltar a trás, mas espartilhar o tempo e tratá-lo como se
de um cozinhado se tratasse. Ilibar-se de todos os falsos crimes que não havia cometido.
Ilibar-se do sentimento de culpa. Um dia poderia olhar para os seus sobrinhos de um
modo diferente? Um dia poderia conduzir sem correr o perigo de derrapar ou levar as
mãos ao volante embriagado? Não! Tão cedo voltaria para casa, para trabalhar o ferro.
Tinha conseguido um aliado de peso para continuar na sua procura fora da aldeia. Por
vezes a morte talvez fosse preferível ao tormento da sua vida. Mas a esperança
continuava viva. Contraditório: como se podia esperar o melhor para o futuro se o
tempo pura e simplesmente passava à sua frente? Como?

Espaço Protegido (Big Brother is You)

De repente deu-me vontade de dizer mal de toda a gente. Principalmente de toda a


gente que via na televisão. Parece que é preciso fazer televisão, fazer teatro, fazer
filmes, para mostrarmos que existimos. O problema está em que não basta fazer parte
que existimos; temos de mostrar aos outros do que somos feitos e partilhar emoções.
Estava sentado no meu carro, com as pernas para fora, apoiadas no chão. Durante
dois dias o meu espaço havia sido o mesmo, os diálogos os mesmos, idas e vindas de lá
para cá. Não descrevia viagens que tivesse feito. Não era alvo de admiração de alguém.
Pouco importa. Estava no meu cantinho, com o meu bicho de estimação de que gosto:
os olhos. Os carros passavam por mim a alta velocidade. As mentes dos que lá iam não
desconfiavam do que se passava na minha (fardo que eu tenho de carregar toda a vida e
que nunca mais me liberta). Sentia que tinha andado em círculos, vindo ter ao mesmo
destino que era um desfiladeiro. Bastava tirar o travão de mão e nunca mais precisava
de contar histórias. Contudo, acreditava nas moléculas, no estigma da frequência
psiquiátrica que nos faz sentir vivos e ser objecto de atenção. Nunca mais teria de ser
actor na vida. Decidi isso. Teria de ser eu próprio. E julgava-me perfeito. De facto era.
No meu espaço protegido, nada existia ao acaso. Nem eu próprio. Talvez vivesse em
função dos meus objectos e poucas vezes os olhava com sobranceria. Mas outras vezes
confundia-me com eles e a minha alma impregnava-se na sua constituição física. Era
assim como uma pequena estátua que desejava pintar há semanas. Tinha-a adquirido
numa loja de bagatelas. Era de barro. Um dia juntei as tintas, seis, sete cores, e decidi
ocupar algum do meu tempo a pintar a estátua. Ela representava um dos milhares de
homens de um exército em descobertos na China. Daí não havia nenhuma ilação a tirar.
Era apenas uma estátua de barro, ainda por cima oca. Se caísse ao chão nem o tapete a
salvaria. Dia após dia fui acrescentando uma cor. Comprei mais estátuas iguais e a moça
da loja não estranhava nem um pouco eu levar três e quatro de cada vez. Comprei até se
esgotarem. Durante meses dediquei-me àquela tarefa terapêutica, àquele hobbie, como
lhe quisermos chamar. E com que ardor e meticulosidade! A primeira estátua, que tinha
seis, sete cores, estava agora numa loja de artigos de decoração. Tinha mais para vender
e era o que faria. O que faria com as dezenas que acumulara em casa? Continuar a
vender. Até à última. No último dia, fumei um cigarro sobre a obra, tal como
supostamente se fuma depois de sexo. O meu espaço protegido estava sendo o meu
inimigo. A última peça, aquela que me deixaria recordações sobre o meu trabalho foi
por mim estilhaçada contra uma parede. Comecei então a destruir vários objectos da
minha sala, fechei a casa de banho à chave e joguei a chave fora. Depois de cansado de
tanto destruir, sentei-me e pensei nas minhas palavras que não saíam, na revolta interior

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que sentia por estar a fracassar como ser humano. E de que me poderei queixar? A cena
voltou atrás -num rewind- e tudo foi reconstituído. Estava pronto para começar de novo.
Se não fosse com estátuas, talvez fosse com mulheres. Talvez um dia me tornasse
implacável e não tivesse mais amor ao meu espaço protegido. O meu ardor, a minha
emoção saía pelos poros e cada vez mais me confundia, tal como um camaleão, com o
ambiente. Era agressivo, mas não feria ninguém. Era espontâneo e não tinha receio das
críticas. Era um homem com nome de gente. Talvez os diálogos surgissem um dia
destes, esperando ou surpreendido. Estava às voltas com o carro, ocupado na
distribuição. Tudo se passara dentro da minha casa, mas o meu carro não respondia e
parecia não ter motor. Fechava-me cada vez mais aos contactos com o exterior e não me
dava conta disso. Mas que podia fazer numa cidade senão revoltar-me e ser eu mesmo?
Decidi arrancar, mesmo sem motor no carro. Fechei a porta e segui por ali abaixo. O
motor surgiu depois... E até as mudanças (que eram automáticas). Num flash estava
longe do meu espaço, noutro espaço, sentindo o vento na minha cara, sem saudades do
que era, mas gostando de mim, perdoando a mim próprio tudo o que havia feito de
ilógico...

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Dois Extremos

Tenho de pensar que sou boa pessoa, tenho de pensar que sou capaz. Já estive mais
longe da vida do que estou actualmente. Tudo isto é razão para contar a história de dois
pássaros exóticos. Um deles pulava de ramo em ramo, o outro permanecia a maior
parte do tempo descendo até ao chão para apanhar insectos da terra, minhocas ou até
mesmo outros bichos que constituíam o manancial de vida daquele bosque. Um era o
oposto do outro. Um hiperactivo, outro inactivo, parecendo estar mais próximo do
estado vegetal. Um dia, o vegetal viu movimento entre as folhas cá em baixo. Um
jovem preparava-se com a sua fisga para lhe atirar. Levou a mão ao bolso e sacou de
um berlinde de vidro, tal era a sua convicção de que ia acertar (se calhar nunca tinha
mandado um berlinde pela fisga). A bola de vidro voou através do ar e o passarinho
inerte viu-a aproximar-se. Desviou-se pouco antes de chegar a ele, no último momento.
A bala prosseguiu o seu caminho e foi acertar no pássaro irrequieto que esvoaçava em
volta do vegetativo provocando-o. Caiu inerte no chão e na mão do jovem, orgulhoso
por ter apanhado um passarito com um berlinde. E inerte para sempre ficou...

Tudo Começou Pela Torneira

Fechei as torneiras a meio da noite. Entrei no quarto de uma pessoa. Mais tarde
lembrar-me-ia disso como de uma pesada memória que nos persegue e incomoda. Entrei
mais tarde num centro comercial e comecei a ver caras novas. Pareciam-me inócuas,
sem sentido. As pessoas parecem-me sem interesse. Poucas são as pessoas que conheço
verdadeiramente, razoavelmente. No meu canto recôndito imaginei amizades com
pessoas cujos nick consultava online. Lá longe havia vida à minha espera e um dia podia
visitar essa vida. Estariam certamente mais pessoas como eu, à espera de um contacto
que mudasse as suas vidas num instante. Afinal a vida parecia resumir-se a isso mesmo.
O mundo cibernético espalhava-se pelos neurónios do meu cérebro e eu deixava. Ouvia
um som desconhecido numa loja de música. Bebia um descafeinado e julgava-me fora
do mundo, isolado na cidade, muito diferente de quando tinha os anos do despertar para
a vida e o conhecimento. As minhas pálpebras pesavam pela primeira vez. Desejava o
trabalho como um sedento no deserto. O que me parava estava apenas dentro de mim,
mas não podia explorar isso em demasia, pois isso já havia sido demasiado explorado.
A minha vida estava como que exposta, para o bem e para o mal. A carreira 42
conduzia-me, como sempre, a casa e eu não suportava o cheiro a bedum da parte de trás
do autocarro. Um dia havia estado em Espanha e fiquei com o gosto na boca. Perdi os
lábios de uma espanhola na "Casa Verde". O que estaria por lá acontecer era motivo de
imaginação. Um dia havia lá estado, sei que sim. Um dia estaria noutro lugar, bem
longe de casa mas nunca completamente liberto. Apenas momentos. Os meus
pensamentos direccionavam-se para o chão. Apanhei um maço quase vazio do chão da
paragem do autocarro onde haviam cuspido há dias as pessoas que por eles esperavam.
As coisas eram uma existência e a minha mente tinha de acreditar nesses dados. Tudo
existe no seu lugar, não é preciso que desapareça. Online conheci Vision, uma advogada
que ficou com o meu telemóvel e que dizia que eu estava retraído na conversa e era
frouxo. Poderia estar um dia inteiro online, mas não suportava deixar de ir à rua e
conhecer alguém à moda antiga. Nunca abdicaria disso.

19
I'm Gona Líve Forever

Nos primórdios tudo se ensaiava. A vida era um palco e Francisca acreditava nisso.
Era curioso como parecia ter jeitos de mulher, dizendo os amigos que era uma maria-
rapaz. Subia às árvores para ver o estado da nidificação. Pisava as uvas do pai com uma
força e jeito parecido aos velhos conhecedores da arte. Contudo, a sua vida rural de
criança em descoberta de novos mundos numa geografia próxima da casa onde a mãe
lavava a roupa enganara o seu destino, que foi entrar numa escola de artes dramáticas.
Ali aprendeu que o excesso tem de ser controlado para se chegar à fama. Nem todos
ambicionam a fama. A fama é questão de paciência e muita, muita psicologia. Não,
Francisca não consultava médicos psiquiatras. Ela conhecia os outros. Tirava-lhes o
retrato, depois de algum tempo de exposição aos seus olhos. A verdade é que o seu
colega Jaime era diferente. A verdade não lhe interessava. Dançava como que
enfeitiçado sob os temas mais comerciais. Fazia vibrar os tímidos e todos os outros.
Sentado uma tarde de Sábado em frente ao sofá, indiferente aos seus amigos que
jogavam à bola no ringue da escola primária, Jaime estava de bem consigo próprio.
Afinal que mal havia em ver televisão? Que mal havia em sonhar o que não queria ser, o
que queria mas veio mais tarde a descobrir ser difícil porque talvez não fosse o seu
destino ter fama. Na escola de arte, a sua mente particularizava-se no domínio do
cómico. Sabia que havia muito lixo que se iria rir das suas piadas e o homem que ela
amava estaria ao fim da noite com o jantar aquecido à sua espera lendo um bom livro.
Um professor dizia que só se fazem duas, três coisas interessantes da vida. A meio do
curso ela começava a ver que essa verdade deveria estar contida num livro sagrado.

Lugar Cativo

Os nervos tinham sido o problema de Bunel. Agora, uma tarde de Verão,estava


sentado e perguntava-se o que estariam todos os outros a fazer. A ideia do Big Brother.
A televisão. Depois, estava numa paragem de autocarro. Mais tarde, sentado numa
poltrona que alguém tinha posto fora de portas naquele dia. Nada do que fizéssemos
naquele dia poderia mudar o destino de Bunel. Ele estava ali, arrumado a um canto da
estação de Santa Apolónia, esperando um bilhete para um pensamento positivo, um
naco de comida dos voluntários da noite. O seu pensamento fixava-se num pormenor
de uma pedra do chão, numa brecha da parede. Talvez a sua alma fosse demasiado livre
para se perder em pormenores. Talvez o pormenor até nem importasse. Não tinha
frequentado nenhuma escola, nem sequer a escola da vida. Estava ali, como se
recusasse a ajuda da família, mesmo sabendo que sempre estava alguém à sua espera.
Os seus lugares não eram fixos. Mas com alguma frequência instalava-se nas arcadas
de um prédio que estava em construção, numa área isolada que em breve iria ser uma
área residencial da elite lisboeta. Por vezes pensava que era simples sair dali vivo,
comunicar, entrar numa dinâmica qualquer com as pessoas. Ainda assim, sentia-se
vítima de alguma coisa, ofendido. Era alguém a quem tinham tirado a voz, a
capacidade de se dar a mostrar. E isso é coisa que tem valor. Seja como for, não
conhecia o calor de alguém há muito tempo. Vivia embrenhado em memórias que não
passavam disso mesmo: memórias. Talvez isso o fizesse saltar de lugar em lugar e
esperar alento para se desfazer da barba, vestir roupa nova, arranjar um trabalho. Seja

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como for, as pessoas que iria conhecer de hoje em diante não seriam as mesmas que
conhecera no passado. A não ser que um terramoto ocorresse nos corações do que era
simplesmente uma rede de sentimentos, o seu incluído. Quem se acercava dele sentia
que havia algo diferente consigo. A sua alma estava abandonada, a sua vida não tinha
sentimentos ou emoções. Afinal de contas, fora o pensamento que o traíra e trazia
assim pelas ruas. Os dias eram uma repetição, estava dentro de um Triângulo das
Bermudas, os outros tentando ajudar e ele alheio a tudo.
Havia envelhecido. Suspeitava que no final dos seus dias ele próprio seria capaz de
tomar a sua vida nas mãos. Mas não seria tarde demais? Entretanto estava aqui e ali,
tentando viver da melhor maneira. Um dia, não prestando atenção ao calendário, nem
sequer ao calendário dos jogos desportivos, lançou-se para o centro de acolhimento do
bairro. Ali deram-lhe algumas roupas limpas. Pôde tomar banho e fazer a barba.
Colocou um pouco de gel, guardou os óculos no bolso. A noite esperava por ele. Os
sons da noite ouviam-se através das portas entreabertas dos clubes nocturnos. Entrou
num e começou a dançar. Tinha-se visto ao espelho e achava-se confiante. As luzes da
pista de dança cortavam o seu corpo. Mirou uma rapariga que estava ali talvez como
ele. Ainda sobrevivia. Mais, sentia-se vivo entre os jogos de espelhos que eram a sua
vida. A jovem aproximou-se instintivamente dele e as suas almas encantaram-se. A
partir daqui, viveram uns dias juntos. Ele aprendeu uma forma de amar que
desconhecia. Para ela talvez ele fosse apenas um jovem bonito com um corpo bonito. O
que importava o que cada um tinha na cabeça? Puderam finalmente ser esquecidos pelo
mundo para serem lembrados mais tarde. Na mesma cama, em casa dela, sonharam
uma porção de eternidade. Ele estava velho por dentro. As poucas pessoas que
conhecera até então tinham-lhe ensinado muito da vida. Não era como pessoas que
conhecem muitas pessoas. Ela, depois disto, não se preocupou com o passado dele.
Estavam finalmente a conhecer e a chegar ao futuro através do presente...

Uma Tarde e um Livro

As páginas estavam juntas. Ela pegou no livro e sentou-se, começando a folhear. Há


tempos que não lia um livro, numa tarde descansada. Agora estava a sentir um stress
verdadeiramente depressivo, mas sabia que tinha de continuar. Não podia desiludir-se
com as primeiras contrariedades. Não estava junto dos seus amigos. Nem sabia que
tinha amigos. Por vezes uma conversa com alguém desconhecido dizia-lhe que sempre
conhecera aquela pessoa. Anabela começava a compreender que não há uma lógica nas
relações humanas. A lógica do coração é coisa a que se deve estar atento. Não
demasiado atento. Essa tarde descansada, de falares sinceros e bonitos viria um destes
dias. Tinha a certeza. Em Lisboa ou noutra cidade. Ou mesmo numa aldeia portuguesa.
As mesmas aldeias de que estava já cansada podiam ainda acolher a sua alma e cortejá-
la com gestos humanos, sinais e signos de novo conteúdo. Era questão de esperar, com
calma, esse dia. Sabia que uma nova juventude estava para começar: a juventude das
ideias. Depois das vozes desconexas que lhe chegavam aos ouvidos, dos gestos numa
sala onde corpos se cruzavam intentando uma performance, ela parecia estar noutro
lugar. Contudo, fazia tudo para agarrar a alma com as duas mãos. Desde pequena que o
fazia. E mesmo que tivesse dificuldade em transmitir as suas emoções, continuava,
convicta de si própria. Um dia essa tarde viria. Bastava ter livros para abrir.

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Deixar de Fumar

Lavei as mãos do pecado. Sartre está muito perto, mas demasiado longe para o
poder compreender. Todos os pensamentos se podem eclipsar de um momento para o
outro num lugar, estupidamente. Não me digam que há vida para além da morte.
Quando tentamos por todos os meios viver a vida, sentir que Deus existe, que Deus
existe nos outros. Não me digam estupidamente que Deus existe. Digam-me que tudo é
válido para compreender a vida nos termos de uma filosofia. Queimamos os neurónios e
queremos saber mais, fazer ligações. Por um lado envelhecemos, mas o nosso
pensamento rejuvenesce como se estivesse cada vez mais perto do elixir da juventude.
Eu sei lá que contas e que difícil está a minha vida! Mas não me queixo, como Cristo
pregado na cruz. Não quero, no entanto, pagar pelos pecados dos outros como o
salvador. Não quero ser sério, mas divertido. Adormecer como o boneco que me orienta
no computador, acordar para um mundo feminino. Queimo o dinheiro e a vida a pouco e
pouco. Invento histórias, mas esqueço-me da minha: poucas vezes me vejo realmente ao
espelho. Gostaria de dizer bom dia com o sentido do dever cumprido, sem ter lido
livros, como quem experimenta mergulhando na vida, no mar de tréguas de que o
mundo precisa. Parar e recomeçar, a sensação de estar por fora. O infinito está nas
ligações que fazemos com o mundo. Honestidade. Pobreza, castidade, obediência.

"Je te Veux"
Erik Satie- João Paulo Santos ao Piano

Tentou começar por subir a escada. Dois passos adiante, um passo atrás. A
mente revertia para o andar em cima, no que estava na casa. Veio alguém para
ajudar, um jovem desenrascado de nome Tiago. No alto da escada uma jovem
esperava por ele. Amarga a recordação dos momentos que haviam passado juntos.
Voltou para descer a escada. Afinal era o jovem que se iria encontrar com a moça.
Precisava de se despachar: a hora do emprego estava perto, ali perto. A moral, a
ética não estavam presentes. Contudo, ele tinha por hábito frequentar um grupo de
jovens católicos da paróquia. O dia de amanhã preocupava-o, quando nada o devia
preocupar. Na sua mente neurótica havia sofrimento que não se espelhava, um
sofrimento que não se pode contar, porque a alegria é sempre bem-vinda. Diante
das pessoas com quem lidava no quotidiano não expressava os sentimentos de
forma sincera. Pensava sozinho sobre essas pessoas; antecipava o que deveria dizer.
Na sua mente as coisas desciam e desfilavam lenta e vagarosamente. Não valia a
pena reagir. Podia estar noutro lugar, longe, vivendo uma vida completamente
diferente. Mas não valia a pena pensar assim. Do sexo com a miúda passou a
intelectualizações, a esperanças de fazer uma viagem até longe. Tinha saudades de
estar sozinho na casa dos pais, naquela tarde de Outono. Na companhia do seu
animal de estimação continuava pensativo, sobretudo na forma de arranjar artifícios
e contar histórias de personagens como Júlio Verne no seu pequeno espaço de
imaginação. Estava perto de conseguir um estado de alma em que a serenidade
invadisse a sua mente. Um telefone alertou-o para o estado em que estava. Esse
estado. As janelas estavam sujas e Rosie brincava lá fora. Pensava em preparar uma
página de internet que versasse o tema da antropologia para entrar em contacto com
pessoas. Pessoas. Às vezes, como naquela tarde, o mundo era banal. Sempre as
mesmas pessoas que não conhecia, sempre os mesmos ritos. Sentia-se aprisionado
num mundo que não se modificaria tão cedo. Contudo, havia uma pequena

22
felicidade em gestos, em pensamentos, em coisas que surgiam dentro do lar. Dir-se-
ia que era um monge sem comunidade. Mas ele de monge nada tinha, sobretudo os
pensamentos. Havia qualquer coisa como uma calma religiosa que havia perdido. A
música de Erik Satie era o ecrã de fundo de alguma melancolia, enquanto o seu
companheiro de casa trabalhava ainda, pensando na hipótese de mudar de casa.
João Paulo Santos, o pianista, estava ali presente, pretendendo ter mais calma que o
ouvinte. Ninguém invejava a vida daquele ser, totalmente dependente de si próprio
para fazer da sua vida algo útil.
Os vídeos pornográficos estavam na prateleira na loja de vídeo. Mas estavam à
espera de alguém mais perturbado. Para Tiago, que deixara expedir o seu sexo na
noite anterior, pouca coisa interessava e as suas investigações já não eram o mais
importante. Já tinha sido um actor cheio de conflitos interiores. Importava agora
não repetir erros do passado. Erros, e a sua vida caminhava atrás das costas como
um fardo, cada vez menos como um fardo. Nada acontecia por acaso. Na verdade,
pouca coisa acontecia. Era tempo de esperar.
Cada momento era importante. Não queria mais ser dona de casa, nem falar
como as velhotas do bairro que têm uma atitude horizontal nas suas palavras, nem
como um actor que olha sempre em frente. Era tempo de ser ele próprio em cada
momento, em cada pensamento. Tardava a visita de alguém importante a sua casa.
Talvez ainda estivesse, no fundo, preocupado. Ou à superfície apenas, não se sabe.
Naquele Sábado, as folhas voavam perto do chão do pátio. Como seria o mundo lá
fora? E o que era feito do infinito que pressentira há dias? Voltaria a ter essa
sensação nos próximos dias?

Tristeza

Três dias fechado em casa. Tudo pode acontecer. Aqui não se trata do Big Brother.
Não há outras pessoas. Há um medo, pensamentos vários, uma companhia irrequieta em
forma de cadela. O amanhã é incerto. O menino é de ouro, não façam caso, é
pequenino. Quantos sonhos aqui se fazem e desfazem! Esperamos pacientemente que a
mente mude de cor, para um azul de paz ou um vermelho de actividade, ou para um
amarelo de alegria. Longe de tudo e de todos, apesar de tudo, ouvem-se as notícias e o
mundo continua com as suas guerras, com política e acontecimentos desportivos.
Esperamos que a mente procure motivações mais fundo. Esperamos por algo que nunca
chega. As coisas simplesmente acontecem e não adianta criar um cenário divino para
cair do céu abaixo para as profundezas da terra. Gostaríamos de ter esperança para aqui
a relatar em forma de história. Porém, uma só história há hoje. E é dramática: são os
passos de um ser humano pelas ruas, inquieto, com o cérebro dividido em vários
interesses, que se julga insensível e não aceita a solidão, que se julga vulgar e sem
conteúdo para dar aos outros só porque tem uma fraqueza humana que noutras
circunstâncias seria permitida e perdoada a qualquer jovem. A vida foge-lhe por entre os
dedos e digo-lhe isto com voz serena não para que espere uma ressurreição, uma
reabilitação miraculosa. Não. Os dias são difíceis. Sobretudo porque não se joga este
jogo com o coração, mas com a mente. E a mente mente. Estaria hoje em diferentes
situações este jovem a que chamamos Ventura. Mas está numa situação distinta, talvez
de novo pronto para começar, já que não consegue vislumbrar em fio contínuo as suas
acções e pensamentos. Depois, uma fé que o não anima, mas que o abate e confunde.
Talvez tenha compreendido mal a mensagem. Por isso em pequeno fazia o que lhe
apetecia e quando obedecia aos pais era contrariado. Não concordava. Tão livre quis ser
que acabou aprisionado em si mesmo. E assim vive, ensimesmado, contando que só a

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sua situação lhe interessa quando não se trata de situação nenhuma, quando não há
problema nenhum. Claro que não há uma mulher na vida deste homem. Nem haverá!
Nem que modifique o seu comportamento. Não há também um filho ou descendência
nas mãos deste homem. E não lhe digo isto, de novo em voz serena, para que faça sentir
pena aos outros. A pena nunca deu de comer a ninguém. O certo é que Ventura preteriu
desejos e interesses e alimenta-se hoje de um palavreado íntimo que ninguém ouve.
Mesmo que ouvisse, seria dado como tão dissonante do que é hoje o mundo que ainda
se sentiria mais deslocado. E não adiantaria inventar desculpas para os próximos dias. A
sua saga seria compreendida um dia por alguém completamente diferente. Que não
tivesse pena. Alguém que apenas visse as suas palavras como uma música que nos ajuda
a nos reconciliarmos connosco, com os seres e as formas que assumimos, numa história
de melodia baixa e bela. A sua imagética e os seus valores debatiam-se dentro do seu
ser, numa guerra que parecia interminável. Conseguiria viver alheado da religião, da
político, dos ismos que pareciam conduzir a massa amorfa humana por aí adiante?

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Ela, Deusa

Dantes não costumava ser assim. Ela forçava a entrada e consegui chegar a algum
lugar. Nesses dias, a maçaneta nem sequer rodava. Havia um hiato na sua memória.
Mas a memória pouco interessava no caminho que tinha de percorrer, nas alas que
tinha de perfazer. A sua cabeça continuava vacilante. A surpresa da chegada a um
mundo novo mas sempre conhecido, trouxera-lhe alguma alegria ao rosto. Contudo, os
dias passaram e tinha de saber conviver com os altos e baixos dos dias. Tinha muitas
disposições de espírito durante o dia. A música ajudava. O drum’n base por vezes
ajudava. Tinha medo por vezes de olhar directamente para o objecto das suas
obsessões. Um dia, um momento, poderia olhar despreocupadamente sem que tivesse o
desejo de lá regressar. Tinha, a pouco e pouco, consciência de que todos os momentos
eram importantes e de que afinal estava vivendo a vida. Era Verão e a mente era uma
pequena diferença na vida das pessoas. Tinha chegado a compreender o que estava a
perder. Por isso não iria deixar-se ir abaixo novamente, mesmo que tivesse um hiato na
mente. Ela era um ser imaginado, com muitas palavras, sem cessar, dia após dia, em
que se renovavam as esperanças de ter, numa palavra, uma melhor qualidade de vida.
Em breve teria que ir ao médico e alguma coisa teria de lhe dizer.
Em casa dos pais tudo era difícil, principalmente o diálogo. Há anos que andava
nisto, como se estivesse a escrever um grande romance. Há anos que não saía disto. A
diversidade do mundo não lhe dava importância. Elsa era livre. Ele não a conhecera
mas sabia que ela se tinha suicidado. Ficara com essa suicida na cabeça; as suas
relações sociais eram diminutas. Mas que importa. Numa grande cidade é assim. Um
dia destes haveria de ver a limpidez das águas escorregando sobre as mãos e molharia o
rosto como alguém cansado de trabalhar. Talvez um dia destes se encontra-se noutro
ponto da cidade, fugindo às pessoas que tinha na cabeça, fingindo-se ser livre, porque
ninguém o é. Os seus registos escritos eram diferentes de todo o resto. Ele estava numa
posição difícil e achava a literatura uma chatice, que não se dava importância ao que
importava.
Um filósofo raramente é entrevistado. Tende-se a dizer que a nossa infância foi
difícil e com isso afligimos os jovens de hoje. Tende-se, por outro lado, a dizer que a
infância foi feliz e que todas as crianças são felizes, que não têm personalidade
formada e que por isso não merecem tanta atenção os casos de delinquência. A vida
tem momentos bons e momentos menos bons. Que posso eu dizer da vida? O que é que
a vida me tem oferecido senão dificuldades e uma doença que teimo em vencer? Ela
era diferente. Os pormenores não importavam. Passava pela vida como uma gazela,
olhava só ao mais importante. Não conhecia doenças; conhecia obstáculos que
ultrapassava sem ser pela cura do sono. Era fácil para ela criar amizades e a sua vida
não tinha parado num determinado ponto em que se vira confusa para poder recomeçar.
Mas nem sempre foi assim. Em criança desejava ser adulta; agora desejava ser criança.
Não podemos ter tudo. Ela tinha continuidade nas coisas que fazia. Começava e as
coisas tinham um meio e um fim. Não vivia com medo da realidade, com medo das
pessoas. Não se escondia quando vinham visitas para os seus pais. No entanto, vivia
entre seres humanos e não deuses. Mesmo eu não a consideraria uma deusa. Eu queria,
apesar da minha personalidade, fazer parte do mundo. Tal como ela fazia parte do
mundo. Uma pequena concha misturava-se com a areia sobre a qual estava deitada.
Não conseguia imaginar outros mundos.
Em breve teria de ser obrigada a mudar. Ir para outra cidade, ter uma outra atitude
que tardava. Sabia que era livre, mas que a sua mente a aprisionava. O coração,
pequeno demais, não tinha apelos. Não aguentava mais o sofrimento. Tinha de mudar,

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equacionar novas formas de viver a vida. A própria escrita era demasiado depressiva.
Os sinais da mudança poderiam estar perto. Era necessário estar atento, tentar sempre
mais e ir a novos lugares. A questão não era insistir ou desistir. Era mais simples até do
que imaginava. Ela, a deusa, era um ser imaginado com base em acontecimentos
verídicos. Podia ser a minha irmã ou a mulher por que sempre esperei e desesperei.
Andei todo este tempo tentando pintar um quadro enorme que mostre a vida, a
transcendência do ser, mesmo o que está para além da vida. Sim, por vezes ela faz-me
sentir assim, como se não fizesse parte do mundo. O tempo que já passei num outro
mundo! Por um lado custou-me engolir que não era uma pessoa normal. Por outro lado
não custou, porque eu já suspeitava disso. Por isso vou de bom grado a consultas
psiquiátricas. Falo normalmente da vida que poderia ter e não tenho. E aqui estou,
resistindo às armadilhas da mente, como um guerreiro. Sim, algum mérito devo ter ao
fim de tanto tempo. Não enlouqueci porque não conheço pessoas. Tornei-me num ser
estranho, esquisito, que se esquiva das pessoas, que diz que não precisa das pessoas,
que quer viver sozinho um destino de escrita. Nada de mais enganador. Mas não é fácil
nesta cidade. Quando estamos bem dispostos com a vida, olhando para o ponto cardeal
certo, aí encontramos a direcção e sabemos por onde ir. Ela, a deusa, será sempre a
mulher que procuro e que nunca encontrarei. Encontrarei outra coisa diferente, melhor,
melhor do que a escrita, do que a interminável história da minha aventura existencial,
chata, repetitiva, aborrecida, sem histórias de verdadeira gente e histórias que toquem o
coração dos outros. Quando defendo a escrita como ritual é porque estou a pensar em
rituais (normalmente de lavagem e que não me saem da cabeça). A escrita é como um
saco onde despejamos para esquecer, como dizia um professor. Talvez precisemos de
esquecer todos os dias para aguentar todos os dias, para que a nossa mente se
tranquilize e acreditemos que estamos de passagem, que não vale a pena fumar e outras
coisas, porque só vale a pena o bem que fazemos aos outros. Neste aspecto, ela poderá
dizer-me que tenho sido egoísta. Naquele tempo dormia muitas horas e quando estava
acordado as intenções eram fugazes. Podia facilmente dizer que era falta de motivação,
mas o certo é que continuava lerdo e prisioneiro nos movimentos. Será que tinha de
mudar de casa? Queria continuar os estudos, queria trabalhar, mas nem uma nem outra
coisa via que poderia fazer. Restava-me viver um dia de cada vez, fazendo o máximo
possível. Mas não iria mudar-me para já. Tinha uma viagem agendada para dali a
algum tempo e podia ser que melhorasse o meu humor. Tinha de continuar a ter
esperança, apesar de estar frágil. Há cerca de dois anos que não fazia nada porque
simplesmente tinha falhado anteriormente nas coisas que tinha tentando fazer. Por isso,
o que estava fazendo agora era alguma coisa. Continuava a tentar, tinha de continuar.
Podia ficar condenado o resto da vida por nunca procurar trabalhar. O certo é que uma
convicção o acompanhava: um peso no corpo, como se quisesse justificar toda a sua
existência à custa da existência dos outros.
Era ainda aquele dia de Verão. Saiu de casa para beber um café com um amigo. A
televisão passava o mesmo assunto: concursos, o rescaldo de uma derrota no futebol. E
eu, que até jogava bem à bola, aprendi a não ser fanático. Aprendi a não gostar de
outras coisas que a maior parte da sociedade gostava. Seria preciso fazer uma
investigação, que até nem precisava de ser apurada, para descobrir quem tinha gostos
diferentes. Há seis anos, há seis anos na mesma casa, na mesma cidade. Aguentar era
difícil, e ele até se julgava herói de alguma coisa. Quanto a ela era diferente. Não tinha
nada de obsessivo. Libertava-se das coisas e dos pensamentos como uma ave grácil e
majestosa. Tinha-lhe inveja. Desejava conhecê-la de verdade. E se tivesse uma mulher
um dia, desejava que fosse como ela.

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Espíritos

Dentro da cidade habitavam espíritos errantes, daqueles que não têm consciência do
seu lugar no mundo. Em casa havia alguma paz, havia música exclusiva numa cassete.
Continuavam os habitantes a fumar cigarros, mal viravam as costas à psicoterapia. Eram
poucos os habitantes desta cidade. A maior parte tinha uma rotina diária e não uma
história pessoal. Mas toda a gente tem uma história pessoal (embora nem todos tenham
consciência disso). Na casa faltava sabão e papel higiénico. Aquele espaço estava gasto
mas não havia alternativa. Havia que continuar a habitar aquela casa. Sair todos os dias,
ver pessoas, ver o que teriam no seu interior. A perspectiva que eu tinha dessas pessoas
não era terapêutica, não era a de uma psicóloga ou psicoterapeuta. Tudo era um dado
adquirido. Tudo fazia parte de uma caminhada.
Numa livraria alternativa, folheei um volume em francês sobre o cérebro. Procurei
Obssessions et Compulsions e lá dizia que se tratava de uma doença. Já podia justificar
os meus dias. Isso não me impedia que voltasse a ver a cidade todos os dias. Procurar
lugares onde me sentisse bem sem ser em casa, antes de dormir. O que aconteceria se os
espíritos se soltassem e voassem errantes pelas ruas da cidade? Esperava por esse dia,
em que o corpo não encarcerasse mais a alma. Esperava, não o desejava. Não desejava a
morte. Mas tinha de travar uma luta constante para não ir morrendo. A psicóloga
interessava-se pela morte e pelo "morrer". Talvez em breve marcasse consulta. Era
preferível do que ver o meu médico quando sabia que os sintomas estavam
estacionários. Eu sabia o que era. Precisava de evoluir, ter perspectivas de uma cura.
Ninguém se interessava realmente a não ser a minha irmã e a minha mãe. Ninguém se
interessava porque não me interpelavam na rua, não me diziam se era bonito ou feito. E
todos os que tinha conhecido enquanto estudante haviam desaparecido da minha vista.
Era obrigado a viver numa cidade que não me fascinava. Resistir, aguentar, procurar
novas vias para o espírito: essa seria a minha tarefa desse dia em diante. Acreditava que
um dia podia voltar a ser jovem. Tratava-se de uma questão de espírito, mas também de
uma questão de coração, do meu coração adormecido há anos e anos. Posso dizer que
tinha de viver uma vida e procurava lentamente começar a viver outra, a ter uma visão
diferente dos outros, a classificar e seleccionar as pessoas sem contudo as discriminar.
Tinha a certeza de que a minha aura era pequena e pouco positiva, mas estava lá
qualquer coisa, como a minha individualidade ainda. Estava lá uma semente que era a
garantia de que, de uma maneira ou de outra, eu sobreviveria para o futuro. Ia acreditar
que esse futuro fosse mais risonho, mesmo tendo consciência do meu TOC. Um dia
seria capaz de contar histórias de pessoas, contar aos outros qualquer coisa que
revelasse a pessoa que sou na verdade, não a pessoa que sou dia após dia.

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Ensaio de mecânica dos sentidos

Numa folha pequena de Outono sobreviveu um desejo de a amar, um desejo de ser


um herói de todos os dias, um herói na cidade, preferindo a força, o dever, a
masculinidade, à possibilidade da sua mente ser um labirinto que se movia e que não se
iludia mesmo nas viagens. Como das outras vezes, há tempos, há meses, que não
pegava nessa folha de Outono. Ela tinha ficado num frasco, num frasco fechado para se
manter tal como a colhera até um dia, um dia não muito glorioso, mas um dia, mesmo
assim, onde as palavras se pensavam devagar, com saltos altos. Uma perturbação
continuava na sua mente, como se machadadas insistentes lhe pudessem tirar o
pensamento. Antes a tirasse, que o coração poderia falar! Mas não, era necessário, com
todos os riscos, que permanecesse uma faculdade e um loco de sentimentos.
Este anti-herói continuava sozinho. Sabia que havia coisas lá fora, pessoas. Talvez
lhes tivesse dado demasiado valor e a um dado momento exagerado no valor da vida.
Talvez por isso tivesse descido uma escada íngreme aos tropeções. Mas sairia à rua,
mesmo estando quase cego e cego no sentido de comunicar. Acho que este indivíduo
poderia passar o resto da sua vida contando a sua história. Era a única forma de se sentir
vivo, em substituição da conversa com alguém. Que importa que os outros fossem
aborrecidamente normais. Que importa, que importa senão viver o dia a dia, ter uma
surpresa, se se vive para sofrer. Seria preciso sair de uma determinada condição, aceitar
o passado, o recente e todo aquele que lhe roubou uma vida social, já não digo mais.
E aos anos que via passivamente televisão... Era o seu anestésico. Tinha de se livrar
de certos hábitos mentais e um deles era sem dúvida ver televisão até tarde. Pensara
aquele personagem que se tinha afastado do seu lugar e afinal todas as coisas têm um
lugar volátil, solúvel. Tinha o seu fardo para carregar, e ameaçado o seu espaço,
eliminava as possibilidades de ir em voga conhecer o mundo, vários lugares que elegera
como possíveis de o acolher conforme a sua disposição de espírito. Aquele pensamento,
agora sobre coisas humanamente pensáveis que os psiquiatras não sabiam pensar, não
lhe saía da mente, só porque tinha dito a um amigo que iria deixar Lisboa, que iria para
sul, definitivamente, e que não estaria para aguentar a náusea de viver... Mais do que a
náusea, um sofrimento como o holocausto que se quer esquecer mas não se pode
esquecer. Decerto que na escrita nunca se entregara a facilitismos...E não seria agora
que o iria fazer. Faltava um pouco de cola e não lhe faltava estilo. Mas não se rendia aos
dias de hoje, embora quisesse, numa situação lectiva, aprender com os mais novos. Um
pouco de cola para o prender à vida. E ela, a sua irmã, com quem tinha discussões e
pensamentos contraditórios, por quem evitara ter certos pensamentos que pensava que a
atingiam ou colocavam em causa a imagem que dela construíra em puro, tinha-lhe dito
que enquanto fosse viva o ajudaria.
Lágrimas desenharam-se, poucas e densas, nos seus olhos. E caíram pelo seu rosto,
uma indo até ao canto da boca onde provou o sal que afinal lhe comunicava vida. O
amanhã era incerto. Talvez as mulheres gostassem de um homem com um certo
charme... Que me importa que a literatura seja feita de descrições do Outro? Há muitas
formas de fazer Antropologia e disso os seus professores não se aperceberam. Seja
como for, naquela noite iria dormir bem, depois de queimar dois cigarros. Talvez um
dia destes partisse mesmo à aventura, quem sabe para França, e por lá tentasse
nacionalizar-se e expressar-se daí em diante em francês (já que só tinha mal a dizer do
seu país). O seu pensamento era embutido; ninguém tinha ainda reparado nele. De certo
que não era o único do género. Há pessoas que não estão satisfeitas com o seu tempo e

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simplesmente escrevem para fazer sentir a vida a gerações posteriores. Podia ser assim
com este personagem. Podia deixar de ser. Afinal de contas tinha mais de um quarto de
século de vida e isso trouxera-lhe uma outra maneira de ver as coisas. Adiante
falaremos dessas outras coisas, como as pequenas descobertas de um par de olhos ainda
atentos ao que se passa, lutando por não serem vulgares e que ainda entram nos centros
comerciais com a ideia de irem a uma livraria encontrar um bom título, como um lugar
onde alguém estivesse à minha espera. As pessoas querem fazer coisas cada vez mais
ousadas mas esquecem-se das coisas simples e fundamentais. Essas ainda estão dentro
de mim. Dão voltas e voltas para chegar a um lugar simples e honesto: um homem que
tentava ser alguém num espaço reduzido, como um velho percorrendo todos os dias as
mesmas ruas. Ou as viagens que poderia fazer. Ninguém o podia condenar de não ter
tentado. Ir, para África, para a América, para Espanha. Encontrava-se cansado de tentar,
mas voltaria a tentar, talvez sendo mais persistente, perseverante, detentor de mais auto-
estima. Um dia tudo o que tinha, e que desde pequeno guardava e cultivava, o poria cá
para fora. Não era negativo que assim fosse. Só que parece que hoje em dia não basta
ser-se interessante, ter vida interior melhor. Via possibilidades que lhe escapavam por
entre os dedos. E sentia-se como objecto de atenção dos intelectuais, o que não era nada
confortável. Não dava garantias de sobrevivência económica. Acima de tudo era
homem, mais homem do que aqueles que tinham partido em procura de prestígio e elã.
Na sua cama descansava uma mente, que mais se pode dizer? Ah! O coração. O
coração... As teorias faziam parte do dia a dia de um sujeito indiferenciado, empregado
fabril, sujeito à pressão dos patrões e continha ainda dentro do coração uma certa
admiração por um estilo de vida em que se procurava encaixar, para se defender. Por
vezes tinha receio de estar com os amigos mesmo que sentissem entusiasmo, mas
receava os efeitos que o sexo desregrado podia provocar em si. Em si estaria
determinada uma felicidade qualquer... Não sei porque digo isto. Não, era a sua própria
felicidade, e estaria só nos momentos, em mais momentos, numa mecânica lenta, que
recomeça bem devagar. A única coisa de que se arrependia era de ver televisão durante
tantas noites. Afinal não tinha a criatividade que pensava ter, não se dedicara ao teatro, à
música, a uma profissão artística. Nos tempos do seminário chamavam-lhe caixinha a
jogar à bola. Este entretenimento consigo próprio tinha qualquer coisa de místico que
não se relacionava bem com as suas crenças individuais. A pouco e pouco aprendia a
não levar tudo para o campo da psiquiatria, até porque desconhecia em profundidade as
teorias psicanalíticas, bem como achava que para se expressar melhor teria de ser à
distância dos seus problemas íntimos, a sua forma esquizóide de lidar consigo próprio.
Atenção que este constructo aqui exposto não visa criar um monstro, mas tão facilmente
ser uma linha, um horizonte de criatividade onde às palavras se sucedem as palavras e
não mais do que as palavras. Portanto, o seu horizonte, o seu projecto, era preciso,
delimitado, não como na arte ou na pornografia, em que tudo é permitido desde que
chegue ao lugar onde se fabricam os sonhos de um certo conjunto de sonhos, aquilo a
que podemos chamar de admiração estética. O cristianismo esvaía-se, mas reaparecia,
por vezes, em termos de comportamento. Repito, não estamos a falar de uma pessoa,
mas de muitas ao mesmo tempo: não só aquelas que conheceram esta pessoa, mas,
provavelmente, de toda uma cultura portuguesa. A felicidade da descoberta intelectual
não está no facto de se acumular saber, mas na forma como nos desviamos para
caminhos imprevisíveis que revelam a alma de uma pessoa. E se cada pessoa souber
pensar por palavras, em breve aprenderá que a vida lhe tem muito para lhe reservar.
Sobretudo essas viragens, tal como surpresas que o parceiro faz no acto sexual, e que
nos levam a acreditar que tudo pode ser relativizado.

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Ora o peso do cristianismo não se irá apagar tão cedo. Afinal de contas, o
cristianismo é uma boa teoria. A religião que é hoje em dia o sexo é assunto que tem
bastante linha para desfiar. A noite preparava-lhe as surpresas que sabia ensaiar na sua
mente. Era esquecer tudo o que poderia ser e não foi (ou não podia, dentro em breve,
ser). O elemento psiquiátrico dava um tom de emergência à sua vida. Afinal o inferno
católico não existia. O inferno podia estar na nossa mente em certos dias. Logo, os dias
não podiam ser lineares. O segredo da vida na terra estava numa espécie de vinho
preparado para agradar ao paladar. O segredo da vida estava nas coisas que ainda não
tinha provado e que, au delá do que não vale a pena justificar, permanecia, perto da sua
mão.
Tinha resistido, desistido, feito todas as imagens de si próprio. Ventura era assim?
Não; estas coisas tinham passado por ele. Tudo em si criticava. Porém apenas uma
tímida e certa coisa iria ele fazer: ser como a toupeira, ir de mansinho através dos dias,
respirando aos poucos, vendo com óculos especiais (daqueles que se vendem a meio
preço) o fundo da piscina e os corpos que se encontravam na água. O mundo era deus, o
mundo era infinito e cada vez mais se esmiuçavam as suas qualidades, au delá das
comunicações de dados e da robotização da vida humana. E ali permanecia sozinho,
frequentando um hospital psiquiátrico que lhe causava estigma. Não importa como as
pessoas são conhecidas; o que importa é uma espécie de simplicidade que se obtém de
certos momentos. Estudavam o cérebro humano e ele, na sua solidão, encontrava uma
parte do cérebro feliz. As regras do romance já as esquecera, se é que alguma vez as
tinha lembrado. Havia um vale que teria de percorrer nos próximos dias para chegar à
planície onde se vê a condição da vida dos outros. Afinal faltava-lhe o mais simples: um
trabalho, uma vida social. É o que se obtém por educação. Mas ele nunca ligou à
educação que os pais lhe deram. Pretendera ir sozinho tão cedo e agora tinha de arcar
com as consequências de ter negado tudo. Não falemos da sua experiência religiosa, de
um passado que bate insistentemente. Um dia destes a sua alma, depois de purgatórios
imensos, de lugares e travessias, iria finalmente chegar ao karma. Por enquanto, haveria
de ter uma vida longa e intensa.
Lavrando a vinha, o conjunto de homens e mulheres não fazia mais do que o
previsto pelos seus pais e avós. Noutros lugares, alguns desatentos levavam uma vida
independente e sacrificavam o ideal da transmissão de um saber profissional ligado à
terra. Justino comprou nesse ano de 99 uma quinta no Alentejo, um monte. Tinha uma
pequena casinha, desabitada há doze anos. Era construí-la de novo, arranjar o seu
interior, habitá-la. Passava um pequeno riacho que os pequenos certamente haveriam de
gostar. Na cidade as coisas evoluíam: os negócios faziam-se e a pouco e pouco havia
uma consciência dentro de Justino que o levava a percorrer os seus caminhos diários
com outro sentido. As caras eram e seriam sempre diferentes. Claro que havia entraves
aos seus projectos como pessoa, e um dos seus intentos primordiais seria dignificar a
sua maneira de viver, mesmo au-delá dos povos que um dia jurou visitar para
compreender. Vivia por isso num clima de paz doméstica. Contudo, os erros repetiam-
se... Mas tinha consciência, a cada momento, de que não podia alterar o passado, por
mais recente que fosse. Apenas podia modificar a sua imagem, preparar-se de manhã
para um dia em que tinha de apresentar o seu rosto. Havia tempo que não dava esmola.
O pouco dinheiro que ganhava lá na escola era para o sustento das suas crias. A sua
mulher decerto ajudava fortemente com o seu salário de agente de viagens. Por último,
dentro em breve haveria de estar a viver no monte.
As pessoas... O que procurava nelas é o que as faz a todas iguais,
independentemente do tempo, da condição social. Entrava numa idade em que podia
compreender muita coisa e isso era um ponto, um trunfo a seu favor. Mais próximo de

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si não podia ter estado naqueles dias que se tornavam infernais. Viver sozinho podia ser
muito aliciante para qualquer pessoa. Agora, que tinha tudo isso, parecia faltar-lhe o
fundamental...
Era para não escrever nada acerca de Justino, este personagem dono de uma
geografia relativa e comovente. O que o pouco espaço faz às pessoas! Não há aqui
lugares, personagens, nada. Nada habita no meu espaço a não ser a minha mente e a
música. Uma música rompe os tempos e Justino sente-se um pouco recomposto. Há
tempos, nos primeiros tempos em que a sua alma quebrantava, era fácil sentir esse apelo
da música a viver, a continuar a alimentar esperanças... Mas esperanças de quê? Há uma
pedra na minha mão (ainda bem que não é no sapato). Sofro por este personagem que
fuma no escuro e rumina, do qual não se aproximam mulheres há anos e que não sabe o
sabor da conquista. Tenho pena deste ser que escolhi não ser vulgar, que não reage
primariamente às solicitações do mundo. Mas bom, sempre podemos eliminar essas
duas formas de agir, de reagir. Na sua terra de infância, as coisas são simples. Poderia
um dia voltar a jogar um pouco de futebol, fazer exercício, sentir-se activo... Mas não,
recusa tudo isso. Recusa o pouco que tem, recusa água num deserto. Foi longe demais
nos seus desejos. Esse foi o seu grande busílis na relação com o mundo. Que dizer mais
quando as músicas são sempre as mesmas e não conhece ninguém na Voxx? Talvez
essas músicas repetitivas o façam viver. Reviver fazem certamente. Existe tempo, um
tempo imenso para quem é jovem e não compra roupa nova. A que tem, relativa a
algum modismo, foi-lhe oferecida pela mãe e pela irmã. Não somos nós que escolhemos
o nosso destino. Um dia deparamos no que já foi andado e não quisemos ser assim,
como são os outros. Como serão os outros? Masoquismo, é disto que se trata...

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O tempo perdido, tempo ganho

Quase todos os dias levavam moedas no bolso para a escola para jogar aquele jogo.
Moedas de vinte e cinco tostões, de um escudo, que não existem já nesta era do euro.
Jonas sentia o frio da manhã no rosto à medida que se aproximava da estação de
comboios. Quando chegavam à escola, antes das oito e meia, faziam uma jogatana e
depois aproveitavam a hora do almoço para lançar as moedas. Outras vezes, juntavam
um baralho de cartas e jogavam à copa, com castigos e torturas sobre a mão daquele que
mais apanhava copas. Jogavam ao salta-carneiro, o que chegava a ser violento para as
raparigas. Ainda era cedo para prestar atenção às aulas. Círio era o único que não
alinhava totalmente nas brincadeiras daquele grupo que se juntava na escola para jogos
mais ou menos perversos, como apalpar as raparigas que passavam por eles no corredor.
Hoje em dia, Jonas lembra-se ainda dessas brincadeiras quando conversa com Fátima.
Agora os sonhos não lhe deixam ser essa criança que cresceu assexuada até aos dezoito
anos. E cansa-se de ter pouco futuro à sua frente, de habitar um espaço que já não é feito
à sua medida. Cresceu e casou, como todos os seus colegas. Mas o desejo de
permanecer criança atormenta-o todos os dias. Talvez seja porque não encontra os seus
amigos de infância com frequência. Talvez porque qualquer coisa tenha ficado para trás
nesses dias de férias grandes em que brincava pelos campos despreocupados.

Se pudesse agarrar o tempo tinha-o feito. Tinha permanecido adolescente. Agora


não tem dúvidas, interrogações a que responder. Tudo bate demasiado certo. O seu
primeiro filho está para vir ao mundo. No seu emprego tudo é rotineiro e só tem de
cumprir o horário todos os dias. Fátima fá-lo sentir menos só. De resto, o local onde
vive nada tem de literário, romântico ou poético. Ele é que é assim, insatisfeito, exigente
e depois cansa-se da realidade, ficando a pensar como seria se o tempo tivesse parado.
A sua vida está sem objectivos firmes. Olha demasiado para o seu umbigo e perde
tempo para a vida prática. Se pudesse mostrar o seu interior, talvez os outros
compreendessem a sua falta de motivação, o abandono, a falta de objectivos. Cada um
tem aquilo que merece, diz-se. Ele não tem conseguido nada de prático, de duradouro
para si. Fátima abandonou-o ao fim de dois anos. A sua conduta irresponsável e pouco
social contribuiu em muito. Jonas vivia um ciclo vicioso. Não havia diálogo nos seus
dias. Apenas frases soltas que não davam sentido ao que procurava. Era um tempo de
desencanto. Não tinha ideais, perspectivas do que fazer com o resto da sua existência e
estava fraco, física e mentalmente. Não há diálogos na sua vida; apenas conversas de
circunstância. Não conhece verdadeiramente ninguém e está longe, longe da vida
normal dos outros. Há muito tempo que as coisas chegaram a um fim, a um limite em
que só podia recomeçar. Mas nem isso consegue. Agora não sai de casa senão para
comprar tabaco. Talvez nunca tenha estado tão perto de desejar não existir. Contudo,
continuará até que tenha sorte, até que a vida lhe sorria.

Era sem dúvida uma pessoa limitada neste momento da sua vida. Limitada
fisicamente e nos seus pensamentos. Simplesmente não acreditava que podia ir mais
longe se se reconciliasse consigo próprio. Contudo tentava. Muitas pessoas só se
reconciliam com o seu passado depois de muitos anos de andar por aí desesperados. Ele
estava perto e conhecera momentos em que se compreendia a si próprio. Porém esta
introspecção estava a dar cabo dele. Tinha de mudar, mudar tudo. Como dizer o que se
passava na cabeça? Chegava à frente da máquina de escrever e tudo o que deitava para
fora era diferente do que sentia. Mesmo no acompanhamento psicológico que estava a
ter revela-se outra pessoa, um pouco mais optimista...

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No entanto, quando saía do consultório ia-se abaixo. As tentativas para mudar de
vida não tinham resultado e pouco mais sobrava para mudar. E porquê mudar? Talvez
as razões da sua situação tivessem a ver com outra coisa bem mais simples. Talvez ele
tivesse complicado demasiado a sua situação. Talvez a solução fosse não haver solução,
fazer de conta que nada tinha acontecido, que nada de mal podia acontecer. Talvez nem
precisasse de amor para continuar erguido. Talvez a solução fosse algo que estivesse
ainda para aparecer e ele nem suspeitasse. E porquê refugiar-se na cama, dormindo mais
de catorze horas por dia? De certeza que tinha medo de encarar o mundo nas oito horas
que estava acordado. Talvez tivesse um excesso de sonho e ficção dentro de si que seria
preciso iluminar com o foco do real.

Mais uma noite de sono e sonhos. Basta que à noite a mente se distraia com
mulheres, imagens indiciadas pela televisão, que a mente se activa num domínio em que
é justo todo o tipo de adoração ao falo. O corpo acorda exausto, a mente é direccionada
para lugares onde Jonas é mais fraco. O dia está feito sentenciado. As imagens dos
sonhos são fantásticas de início: está num convento, com a sua mãe, e vê desfilarem
perante si mulheres que ele tenta seduzir sendo selectivo. Consegue sair desse convento
e debate-se com uma forma geométrica que muda constantemente, à medida que a tenta
aprisionar nas mãos. Cá fora, antes de entrar para uma vida de reclusão, beija uma
mulher com ardor. Mais tarde, está com um amigo numa estação de comboios onde
muita gente espera. Os comboios passam e chega a hora do comboio para a cidade mais
próxima, que o sinal sonoro da passagem de nível assinala. Entra no comboio e encontra
todo o tipo de gente. A estação onde sai é a mesma onde aguardava. Encontra um
homem e uma mulher com quem se envolve. Fuma os primeiros cigarros. Come um
iogurte e toma os seus medicamentos. Reconhece que não tem forças para sair deste
ciclo. Será que isto só acabará quando acabar com ele? Resiste, espera onde não há nada
que esperar. Espera que haja algo de diferente e importante fora deste ciclo, deste
mundo que se instalou na sua mente.

As águas rebentam a Fátima durante uma visita que Jonas lhe faz, numa Quarta-
Feira. Ele pega no carro de Fátima e leva-a para o hospital distrital. Na sala de espera
pensa se o filho irá sair forte como os do seu irmão Josué. Chamam-no para assistir,
para dar força à ex-mulher. Jonas deseja um menino; Fátima uma menina. Andou ele
todo este tempo a desperdiçar a sua vida em nome de uma doença e agora não quer, de
algum modo, que os seus sentimentos e aspirações se projectem no bébé que há-de
nascer. Nasceu. É uma menina. De agora em diante passará a ser motivo de
reconciliação entre os pais, mas quando crescer vai saber o que é a vida de pais
separados.

A pequena filha tem agora treze anos. Jonas distanciou-se da sua educação, pois
estava preparado para um menino. Contrariamente ao que dizem os manuais de
psicologia em certo ponto, Jonas não criou uma relação especial com a sua filha. Estava
a maior parte do tempo ausente. Quando ela fez vinte anos, ele veio ao aniversário mas
pouco falou com ela. Sem querer, Jonas foi-se afastando cada vez mais e mais da filha,
que lhe dava descomposturas quando ele a visitava. A pouco e pouco, a acção do tempo
fez-se sentir. Jonas estava já velho, na sua cama de morte, quando Nirvana o visitou. Ela
desculpou-se quando era ele que devia ter pedido desculpas, quando não era necessário
pedir desculpas se ele tivesse sido um pai dedicado. A pouco e pouco Jonas recuperou e
deixou a cama. Os últimos dias foram passados na companhia da sua filha, ainda
virgem, pronta para a vida de adulta. Foram dias inesquecíveis para Jonas. Finalmente

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estava com quem gostava sem ser um ser estranho. Era como se Jonas estivesse com um
ser que fosse mais do que sua filha; que fosse como sua irmã, que tivesse saído do seio
materno como ele, esse ser que descansava ao fim de mais um dia de preocupações.
Jonas dava trabalho porque não se virava sozinho. Tinha de mudar de fralda
frequentemente. Voltara a ser um bebé: resmungão, teimoso e por vezes maldoso até.

Um dia dei uma caminhada até ao jardim. Estava um dia especialmente bonito,
daqueles pelos quais nos podemos orgulhar de estar neste território. Nirvana estava na
cozinha a prepara o almoço. Deixava de dar atenção a si própria a voltara-se para o pai.
Mas aquilo não ía durar muito mais. Jonas não dava sinais de autonomia e era preciso
chamar uma enfermeira. "Não, uma enfermeira não. Alguém da familia" -pensou
Nirvana. Foi assim que telefonou para a irmã de Jonas, Cassandra. Esta morava no norte
do país, a cinco horas de viagem. Indo até à sala de estar, Nirvana só deu com o som da
televisão. O pai saíra. Foi até ao jardim e encontrou o velho homem no chão, encostado
a uma velha árvore, sem vida. Trouxe-o para casa e telefonou de novo a Cassandra,
desta vez para lhe dizer que tinha mesmo de vir, que o seu pai tinha morrido.

Nesse verão a árvore floresceu luminosamente sob o céu de Florena. E nasceu


finalmente um varão, resultado da união de Cassandra com Tiago. Não parecia haver
obstáculos de aprendizagem para o pequeno, que aos dois anos já falava perfeitamente.
Cassandra dizia que era tal e qual o avô em pequeno. Pelo menos em alguns
pormenores. Porque os segredos de Jonas tinham sido enterrados com ele. A sua alma
fora aprisionada num caixote de madeira que conhecera as entranhas da terra e depois
subiu aos céus para descer sob a forma da Primavera e banhar de eternidade o jovem
Zacarias na altura do seu baptismo. A igreja estava fria e a fé ainda aquecia a sala onde
todos iriam contemplar o pequeno. A mesma sala onde há anos tinham contemplado o
rosto morto de Jonas.

34
2ª Parte

35
1.

Andou de um lado para o outro na praia, procurando o lugar ideal para se deitar.
Levava um livro de Jack Kerouac. Ainda mantinha essa referência de um amigo, Zappa
Performer Dada. Sabia que Kerouac era bom e não engeitou em comprar a preço de
saldo uma versão trazida à luz por uma editora pouco nobre. Deitou a toalha e pegou no
protector Nivea nível 12. Começou com naturalidade a espalha-lo pelo corpo. Estava um
pouco nervoso depois de ter almoçado no MacDonaids e ter comido demasiado gelado
com M&M triturados. Havia fumado um cigarro e sentira uma leve indisposição de
estômago. Depois de espalhado o creme deitou-se de costas e começou a ler o livro: “ a
dor faz-nos ter medo”. Tremia por ter tanta gente à sua volta. Olhava para os rostos e os
corpos que passavam diante dos seus olhos. A tarde estava calma para se poder
recomeçar a vida, de pois de dois dias de tumulto de espírito fechado em casa.
Se tinha medo era por timidez. A sua intimidade estava demasiado reservada.
Pensava: -“O meu desejo sexual é tão grande que me causa dor. Olho para todas as
mulheres e aprecio-as como animais de sexo Sim, porque não tenho jeito para esperar,
para conversar antes da atracção física. Não é que eu seja grande modelo, que não
sou. Mas o meu espírito é insaciável.E o que procuro é o que todos procuram e que
acabam por ter. Por isso sou vulgar. Não tenho as dores dos intelectuais, as suas
preocupações”.
Parecia que esperava, no meio da multidão, um rosto a quem pudesse falar em
revelação. Ou esperava por alguém que se interessasse por ele. Isso sim, seria
interessante. Seria meio caminho andado para uma relação fiel e verdadeira. “Depois,
só preciso de amor”, pensava, quando dois negros se sentavam no banco da paragem do
autocarro. Tinha inveja só de saber que os negros tinham o pénis maior. “Se o meu
desejo não fosse contido, como é traço do meu carácter, certamente cairia nas malhas
de uma doença com certa facilidade”.
Estranhamente, era o sofrimento que o preservava ingénuo e renovava sempre o seu
desejo, contribuindo para uma libido constantemente insatisfeita. Aproximava-se a
realização de um campo de férias onde seria o mais velho. Iria realizar-se perto da terra
de seus pais. Não sabia se ousaria voltar lá. “Só de passagem”, admitia em
pensamentos. Num Sábado foi até ao Colombo. Decidiu montar um dos carros de
karting . A primeira vez foi à experiência. A direcção era muito justa, de modo que foi
ultrapassado duas vezes. À segunda tentativa já não foi assim. Ultrapassou uma vez,
guardando a sua posição. Era uma emoção pública que não partilhava com ninguém.
Sabia que era capaz de certas tarefas audazes quando se encontrava sozinho. Sabia
desenrascar-se. Era isso que os seus familiares precisavam de sentir? Talvez ele próprio
tivesse que o sentir mais do que ninguém.Por detrás da sua habitual imagem de
personagem pensativo, morava também alguém responsável, um homem de acção.
Esse Sábado estava a chegar ao fim e não se previa que acabasse em casa. Um dos
seus sonhos era ser um day sleeper, um homem da noite. Acreditava e confiava que
tinha um ritmo diferente dos outros, como os homens do lixo, como os tipógrafos, como
os guardas noctumos, como os donos de casas da noite. De resto, faltava ter um trabalho
que condissesse com tal aspiração e constatação. De resto, falatava saber se havia de
ficar nesta cidade, se haveria de transitar para outra, para um lugar onde pudesse
trabalhar.
O calor era-lhe estranho. Mas tinha receio das pessoas do norte. Afinal ia apenas
experimentar ser emigrante. Podia ser que pegasse. Podia ser que se transformasse numa
espécie de embaixador da alegria e paixão mediterrânicas lá no norte da Europa. A
viagem que estivera para fazer um dia à Dinamarca poderia concretizar-se em breve. Se

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lhe dessem condições, que se danasse o campo de férias perto de casa. As hipóteses
eram agora maiores que dantes. Estava lúcido e sabia que que o queria era emoção de
viver, aquela mesma que todos procuram e com que muitos são prendados. Procurava o
diálogo. Alguém. Não precisaria de ter passado por tanto sofrimento. Não era
necessário. Será que issso lhe iria fazer descobrir o maravilhoso da vida? Os dias
seguintes poderiam ser a mesma coisa: um conjunto de ciclos de que se teria
inteminavelmente de libertar. Ele sabia que a plena libertação só com a morte,
contraditoriamente, seria conseguida. Podia o seu futuro ser algo de diferente, como a
revelação do maravilhoso da vida que ele esperava e pelo qual se esforçava por
descobrir nos outros? Era de certeza um masoquista. Um masoquista consumista. Mas
agora estava, mais do que nunca, por sua conta e risco e poderia bem ter a solução para
cada passo. Bastava procurar. Alguém.

37
2.

Naquela noite a amizade não surgiu num telefonema nem foi pensada
antecipadamente. Nem sequer foi preciso tomar banho. A limpeza do indivíduo surge
depois, ou antes, da loucura - veio dizer o actor na peça representada ao ar livre naquela
noite. Escrevo estas coisa com pouco distanciamento, eu sei. Mas é o que disponho, é a
verdade de que disponho.
O protagonista desta história veio a conhecer algumas mulheres na sua vida. Veio a
reconhecer que lhe era legítimo na sociedade procurar o seu lugar sem que isso
significasse a anulação da sua personalidade múltipla e complexa. Afinal, era também
um homem simples, mas só com a cabeça confusa. Depois era tímido e por isso em
certas ocasiões excedia-se. E não se contendo, ria disparatadamente. O protagonista
deveria estar a dormir, procurando no sono (e no sonho) a duplicação dos seus desejos e
anseios. Mas era tarde para dormir e cedo para estar ao lado de um escritor de emoções.
Por falar em livros, as pessoas que mais amei não me importa voltar a página atrás e ver
como estão. O sofrimento tudo justifica. Tarde ou cedo, o protagonista irá viajar para
um país longe, ser antropólogo sem escrever no campo, sem seguir um método clássico.
Uma ou outra porta se há-de abrir mais tarde.
Uma personagem feminina fazia falta ao protagonista. A falta, o desejo... Devemos,
nós, sociedade e cultura, nós país, servir-mo-nos o melhor que pudermos das
ferramentas de que dispomos e criar, criar até ao infinito? É na criação que ainda se
deve acreditar. Estar atento, mas não deslumbrado. Lívido, nunca boçal, com genica e
dinamismo. Este é o novo ser deste novo personagem que se irá revelar, ao longo de
semanas, ao leitor: o protagonista e os seus encontros e desencontros com a sociedade e
com os outros. A procura do diálogo será um fuga para a frente, desesperada, ansiosa e
batalhadora. Como um filho que custa a nascer e que finalmente, depois da dor, já
alegria a e maravilha a jovem mãe.

38
3.

Não reparei demasiado no seu corpo. Ela surgiu por entre a multidão com umas
vestes compridas. Também não reparei demasiado no seu rosto. Preferia que fosse o de
uma indiana. Falava pausadamente num jardim onde se ouviam alguns regatos. As
pessoas passavam; cada um de nós tinha em sua companhia um livro. Enquanto
conversavamos não os liamos. Não. Apenas estavam ali como uma espécie de Bíblias
nos templos.
Não interessava o passado dela. Ou se trabalhava ou não. Estavamos naquela fase
que se designa de conversa romântica. Passeamos até sua casa. Encontramo-la
desocupada, completamente livre. Finalmente podiamos estar ali, naquela tarde fria. É
claro que fizemos sexo. Nem de outra maneira podia ser. Ou se calhar até podia,
conforme vim a perceber mais tarde...
Deixou-me entrar no seu complexo e estender-me prolongadamente no desejo. Não
foi meu objecto, como algumas mulheres que já conheci (e às quais fiz essa referência).
Houve diálogo, diálogo esse que não consigo reproduzir porque a minha imaginação
não o permite. A dor justifica e impede que isso aconteca. A dor de estar agora longe
dela. Deixei que a esperança de a rever me habitasse e percorresse numa emoção, num
tremor, todo o meu corpo, todo o meu constituinte físico.
De certeza que não era uma mulher portuguesa. Não me estava a fazer de esquisito,
só que nestas coisas de amor existem certas exigências que não têm nada a ver com o
acto sexual, mas sim com a personalidade. Que me importa se não trabalha uma vez que
vive de uma renda e de um subsídio de desemprego? Dali em diante podia ser feliz com
ela e dizer, perante todos, que era a minha amada. Decerto que isso a deixaria
embaraçada... Mas também ninguém diz isso assim na rua. E apetecia-me tanto gritá-lo
a toda a gente, ao mesmo tempo que esperava uma boa recepção da parte de todos. A
acontecer isso já não precisavamos de viver sob o fantasma de ter de ir à Televisão para
viver o nosso amor. E eu jamais poderia perdoar a uma mulher que me exigisse riqueza
e fama. Jamais poderia aceitar que não conhecesse a dignidade, o afecto e o diálogo.
Felicidade tinha mais ou menos a minha idade. Longe ía o fantasma de saber se iría
encontrar uma mulher muito mais nova a quem teria de orientar e dar conselhos. Uma
mulher muito mais velha não era bem vinda por preconceitos familiares, preconceitos
esses que afinal também eu tinha herdado e contra os quais nada podia fazer.
Lutamos, até um certo ponto das nossas forças, numa direcção oposta às nossas
heranças culturais. Até um certo ponto. Depois veio a dor...

39
4.

No final daquele Verão Tiago Gomes sabia o que havia de fazer. Haveria de
inscrever-se num novo curso universitário, tirar uma nova licenciatura. Os aspectos a
favor pesavam mais do que o adiamento da sua insersão profissional e social que podia
facilmente ser conseguida através de um emprego fixo. Era tempo de voltar à
Faculdade, rever os corações jovens pulsando pelo saber, trocar experiências, retomar o
contacto com os livros.
Na tarde de 10 de Setembro de 1999, Segunda -Feira, estava pronto para ser
praxado, embora tivesse entrado, cauteloso, somente da parte da tarde. Deixou que lhe
pintassem o rosto, já não borbulhento do acne da juventude, mas cicatrizado, com
buracos à Brian Adams. Passou uns minutos no bar, sorvendo o seu descafeinado
seguido do seu Mariboro. O Camel havia sido uma opção de anos e deixara-a para trás.
Tal como o Peter Stuyvesant, que o iniciou no prazer-dor do tabagismo, desgaste de
energias necessário à actividade intelectual (será que?...). As jovens olhavam os seus
olhos por detrás dos óculos.
-Olá, tudo bem?, disse-lhe um casal que estava para ser atendido junto à caixa
registadora.
-Tudo bem. Estou aver que o pessoal daqui era bem animado. Vocês são de que
curso?- perguntou tentando vencer o seu autismo nevrótico.
-Ela é de Química, eu sou de Filosofia. E tu? -disse a morena.
-Psicologia -disse com um ar ponderado de quem sabia do que que falava. -Isso é
interessante ... e prático. Tem saídas profissionais.
-Pois, a ideia de ter um consultório é cativante. É como se tivesse um supermercado
ou uma empresa; tens a porta aberta a toda a gente.
-Boa e má.- observou a loira.
-Boa e má?
-Sim. Há pesssoas que fazem do psicólogo uma necessidade, quando têm de facto
outras pessoas com quem deveriam conversar.
-Pois .... vamo-nos sentar?
-Sim, não temos muito tempo... Mas a conversa pode ser interessante, não achas
Matilde?
(É claro que não fiz sexo com nenhuma delas. Mas fiquei com o contacto destas duas
novas. Podia começar a pensar que estava a fazer as pazes, depois de muito tempo, com
as mulheres. O espírito humano sempre era generoso e não escolhia idades. Mais tarde
explicarei melhor esta minha observação.)

-Sabes -dizia eu com ar de quem vai ser psicólogo-, o mais importante é conversar.
É como as linhas telefónicas, sejam elas 0641 ou linhas de apoio a problemas
específicos. Falar faz bem, alivia o problema.
-Olha que ele sabe!...
Nisto elas são tiradas da minha presença por um grupo misto que andava a caçar os
novatos. A fazer iniciações, digo eu.
Tudo isto que estou a escrever é resultado de uma amizade periclitante que
mantenho. Das poucas que tenho. Pelo menos é frutífera, como o leitor pode constatar
ao comprar este livro. O pior é que eu não pensei em ganhar nada com tal compra. Nem
ganhei realmente, diga-se em abono da compensação dos três tempos. O dinheiro não
era muito e eu preparava-me para ter um part-time ou então frequentar de noite as aulas.
Ou então, na pior das hipóteses, fazer umas cadeiritas por exame.

40
Diriji-me à biblioteca.
-Interessa-lhe alguma coisa em especial?-diz-me a empregada.
Via-se logo que era estudante. Veio-me logo a eminência de poder dormir com elas um
destes dias. Mas como poderia superar a formalidade de eu ser cliente e ela empregada?
Mas bom, isto são pensamentos que tenho agora. Mais tarde não os terei, por força da
idade. Isto se conseguir resistir a este tabaco Ducados, 100% natural...
-Não, estou à procura de alguns autores... De facto não me lembrava de ninguém
para além de Jung e Freud (se tivesse dinheiro comprava a obra completa, se tivesse
tempo e mulher lia a obra completa) e ... Wittgenstein!
-Pois esta não é a biblioteca mais indicada para Filosofia. Terá de ir até à Arco-lris,
aqui perto, na Faculdade de Letras. (Isto é que é uma antropologia da memória, uma
etnogafia da memória. Como o meu espírito tem andado parado!).
Certo. Estava orientado. Fui até à Biblioteca Nacional para fumar um cigarro no
páteo e ver gente a andar de um lado para o outro por causa de livros e não de tijolos,
como me ensinou o meu pai. Como vêm, não vos conto nenhum amor em particular,
nem o estado resultante desse amor. Apenas factos. Factos etnográficos e circunstâncias
para quem lê de outra cultura.
E com isto fechei os olhos aos livros nessa noite...

41
5.

É difícil encontrar algo para fazer quando a casa nos prende, gordurosa, quente e
poeirenta. Apenas a limpeza do corpo preocupa Tiago nestes momentos. Espera, lê um
pouco, ouve a Rádio Lights e decide mudar de vida devido ao tabaco. Então, depois de
quase ter entrado no café de sua conveniência, decide mudar-se e comprar tabaco para o
dia seguinte. Resolve sair. A cidade não oferece nada de novo aos seus olhos. Não vê as
pessoas por dentro nem tem pretensão de tal. Vê corpos, alguns de desejo.O seu desejo
está vivo. Basta um pensamento para o levar a uma cavalgada perversa, deturpar três
dos seus dias antes e três depois. Basta um pensamento mais forte para levar à ruína seis
dias. O consumismo é uma distracção a que não se furta, embora o montante a
dispender por mês seja escasso, limitado. Depois da folia, vem a normalidade e alguma
imobilidade do corpo. Imagina como será quando começar a trabalhar. Todos os dias,
todos os dias para o mesmo local. Acredito que não será por muito tempo. Desde que
justifique as suas acções pelo pensamento. Não precisa de dialogar. Assim mata os dias.
Tiago escreveu "Fluidos" e enviou o manuscrito a uma amiga de confiança, ligada
por família a um importante jornal de província. Passaram-se meses sem resposta.
Agora espera até lhe aparecer o desejo de lhe pedir o manuscrito que a amiga desprezou.
Ou será que a carga viral das suas palavras foi tão intensa que resolveu ignorá-lo, não
sendo motivo para esboçar uma resposta? Às tantas...
Cada dia pior do que o outro. Depois dos primeiros dias de entusiasmo, Tiago já não
conseguia viver os dias normalmente. Era demasiado tímido ainda e fechava-se em casa
como um condenado. Assim aconteceu no dia seguinte à recepção na Faculdade. Sabia
que não era fácil ter equilíbrio e que tal anseio só se concretizaria junto de outra pessoa.
Mas o facto de saber demais esta realidade fazia-o olhar cegamente o sexo feminino,
não vendo qualidades e defeitos, não avançando sequer. Era uma situação difícil. Como
poderia ir? Só amanhã. Não havia forças para avançar. Tinha de esperar que o seu corpo
de recomposesse. Depois, tinha também vergonha da sua intimidade distorcida. E um
falsa ideia de si próprio, uma ideia que não era assim tão falsa, mas sobretudo negativa.
Um equilíbrio difícil de conseguir. Em alturas da sua vida o diálogo, a conversa, haviam
sido intensos. Depois perdera tudo das mãos.
Num fim de tarde escrevia umas notas para o seu diário. O pessimismo não sabia do
seu humor. Era a dor de novo. Havia que esperar. A sua vida não regularizara , não
tinha uma vida social. Aparecia às vezes num bar, numa discoteca, entre amigos, mas
logo no dia seguinte se refugiava em casa. Era o contraponto dos bons momentos: os
maus momentos. Mas será que isso não acontece com todos assim?, interrogava-se.
Não. A sua dor era única e exclusiva. E considerar isso é que era o mal. Esta atitude
travava o diálogo. Quando precisava de falar, não o fazia. Não dialogava quando estava
alegre; falava sem ouvir a reacção dos outros. Mas afinal não posso condenar-me assim
tanto! -desabafava no papel. Pois não. Havia que esperar e fazer com que as coisas
mudassem em breve. Se todo o seu passado havia sido a prostração num chão de
espelhos de esquizofrenia, complexidade e egocêntricidade, a sua luta agora era para se
tentar manter de pé. Andar se fosse possível. Correr até. A sua luta seria até ao fim dos
seus dias. Teria de lutar, de se mexer, de reconhecer o sofrimento como parte integrante
da sua vida. Só que tinha de dar uma solução à sua situação física.

42
6.

Quando nos tornamos populares num local onde exercemos uma qualquer profissão,
quando nos revelamos no nosso à vontade, é facil embarcar em probemas. O mundo
mental que vivo anda louco. Nem mesmo os sonhos são os mesmos. A noite passada
tive um em que violava uma jovem e ela se deixava violar, consentindo o acto. Foi a
primeira vez que tive pensamentos deste género. Será que qualquer coisa vai ser
transportado para a realidade? Não creio poder ser assim tão violento. Depois iria ter a
uma prisão maior do que esta onde estou. Pelo menos podia ter algum reconhecimento
social, maior do que tenho nesta situação de desempregado, anónimo do social.
Às vezes a gente não precisa de falar, nem precisa de terapia nenhuma. A gente quer
é sexo, acção, ver gente bonita e bem feita, desejar e ser correspondido. O pior é que é
necessário diálogo para sermos correspondidos, isto na melhor das hipóteses. Todos
podemos concordar que diálogo em vão é pura perda de tempo. Por isso os
interlocutores têm sempre alguma intenção em vista. Se a comida não estiver temperada
não há sabor a cultura; é tudo ao natural. Não há nada como um banho de multidão para
nos confundir e fazer a cabeça funcionar. Não se fala com ninguém; deseja-se por
qualquer motivo falar de alguém. Para que se estabeleça uma relação, o dinheiro é
preciso. Sem esta moeda de troca, nada, mas mesmo nada feito. Se quisermos comprar
palavras, comprar sonhos, aí surge o dinheiro. Mas este elemento do relacionamento
entre as pessoas aparece discreto, disfarçado às vezes em cartões. Enfim. Estou a
esqueçer-me do Tiago Gomes. Ele ainda pensava, coitado, em ser psicólogo e montar
um consultório para assediar as suas doentes mais temperãs. Pensamentos que o
deixaram estar na cama, pensativo, por umas horas. Até que o telefone tocou. Não, era a
campainha. O carteiro tinha uma carta para si que o poderia animar. Era tempo de
decidir se iria para Inglaterra ou para a Suiça. Finalmente, sair deste pais de merda. Só
gente indiferente, insensível, que não compreendia os seus problemas de falta de afecto
e adaptação à socieadade. Era tempo de se desenrascar. O tabaco é que lhe tirava algum
vigor. Mas não haveria de ser nada...

43
7.
Tiago Gomes persistia em pensar que iria montar o seu consultório. Aos 25 anos
andava no terceiro ano do curso e tudo se encaminhava para que tal se concretizasse.
Tinha um part-time na FNAC, uma loja de livros e som que era o ideal para aquilo que
pensava do mundo. Conheceu Marília no seu trabalho. Ela era estudante de Literatura.
Tiago sempre vivera fascinado pela literatura e emocionava-se quando via
representações na tela de romances, adaptações ou biografias, como a de Shakespeare.
Afinal os americanos podiam não ter tudo, mas sabiam aplicar nos seus filmes um
savoir-faire de ficção que escondiam todos os outros senãos.
O seu dia era simples: de manhã ocupava-se dos afazeres da casa e preparava-se
para saír. De tarde ía às aulas, até às seis e meia. Às sete entrava no Colombo e o mundo
era outro. O conjunto de pessoas procurando livros e discos permitia libertá-lo da
“clausura” disciplinar em que se encontrava pela frequência de um curso de Psicologia.
Ainda não sabia qual dos três ramos escolher como opção no final do curso. As coisas
haviam de ser decididas juntamente com Marília. Tinha a Psicologia Clínica, que não o
atraía demasiado, mas que sera o melhor caminho para fazer terapia. O seu espírito,
mesmo depois de uma noite de discussão académica com alguns dos mais interessados
colegas, não o salvava de um dia seguinte algo frouxo, em que o seu espírito andava
engelhado pela casa fora e o seu corpo ansiando pelo amplexo de Marília. Cada dia era
uma odisseia e nos primeiros tempos a adaptação ao part-time não foi fácil. Mas não,
nunca iria precisar de medicamentos ou psicoterapira. Embora fizesse pressão sobre a
personalidade de Marília, esta continuava a ser a sua maior confidente. E embora
confessasse fraquezas, não se sentia condenado por asserções, observações, nem culpa-
própria. Um traço forte do carácter de Marília era, contudo, pouco animador. Não raro
se dava a autocomiserações e frequentemente se via cheia de ansiedade em estudar, em
saber coisas. Por vezes era iluminada por uma fome de saber incontida, seu apetide
intelectual era voraz como o de uma piranha. Procurava a carne e só com a carne e o
substrato de riqueza e utilidade pessoal do saber se satisfazia. A autocomiseração
parecia funcionar como auto-crítica naquele ser.
-Mila, não me digas que estás no curso errado! - dizia-lhe Tiago com mais
frêquência.
Não raro este se armava em terapêuta. Pelo menos era bom para evitar medicação.
Era só um traço de personalidade, um critério de exigência pessoal da jovem que,
compreendido, não podia ser condenado. Como se procurasse uma justificação para
todos os seus actos, uma razão primordial, existencial. Casar podia até ser uma via para
amenizar as fugas de personalidade de ambos. Até que ponto? É o que iremos saber...

44
8.
Enerva e dá raiva não ter ninguém com quem falar. Falo dos meus passos, tímidos
sempre, para me relacionar com os outros. Já que não sou capaz de dar grande
desenvolvimento à minha personagem, entretanho-me a pensar em mim próprio.
Tolhido fisicamente. De ontem para hoje tudo se desmoronou e sinto falta de calor
humano. Eu sei o que foi. Bastou-me olhar no espelho e ver que não estou bonito,
apresentável, cativante. Pode parecer infantil, mas isso desmotivou-me de tal forma que
pensei logo em ir ver filmes porno. É estranho porque tenho agora uma nova
oportunidade de emprego para Lisboa, que até pode bem ser uma alternativa às aulas.
Mas as aulas são sempre mais entusiásticas, além de que se recebe melhor. E mudar de
cenário, mudar de casa por um ano, só me fazia bem. Enfim, não há nada como uma
sesta para retomar a calma. O pior é imaginar o pénis contra o rabo de uma conhecida...

45
9.
Tiago acabara o curso em 1999. Estava um adulto feito, embora sem experiência
nenhuma do mundo do trabalho. Dado o seu pouco à vontade junto dos professores, não
continuou uma carreira de investigação que tinha ao seu alcance. Devido só a esse
factor? Parece que sim, pois estava bem com Marília e planeavam casar dentro de
meses. Partilhavam já uma casa na cidade de Lisboa. Marília conseguira dar aulas no
primeiro ano e os rendimentos eram de certa maneira constantes. Permitiam-lhes
comprar livros sob um critério algo arbitrário, o que dava sempre prazer. Tiago deixou
no final o seu part-time e começou a procurar emprego. A sociedade exigia-lhe agora
uma outra postura, uma dedicação continua, nenhuma distração, pois podia cair num
poço de filosofia intima de que não sairia tão cedo.
O primeiro trabalho chegou. A Casa do Ardina era uma instituição que acolhia
crianças com problemas económicos, falta de formação. Era algo especificamente
português e lisboeta. No primeiro dia apossou-se da sua secretária, posta num gabinete
de uma sala aberta onde se ouviam as vozes das administrativas e outros quadros
superiores. Onde há um psicólogo geralmente há problemas. Mas onde há um psicólogo
também há um sociólogo. Neste caso, uma socióloga. Denise parecia ter o ar empinado
de quem tinha um tipo de saber que questionava a realidade e os outras, mas que nunca
se livrava da sua posição de partida. Além do mais, por estranho que pareça estava há
um ano a cuidar de crianças. A primeira tarefa de Tiago foi entrevistar as crianças, uma
a uma. Só por uma ocsião havia feito entrevistas e não se sentia muito à vontade, de
modo que elaborou um guião. É claro que ficava margem para a linguagem comum.
Não era preciso gravador. Afinal, ele era psicólogo e tinha obrigação de ter boa
memória. E tinha. Encontrou casos muito parecidos. Porém, em todos eles algumas
coisas saltavam à evidência: a violência doméstica estava presente, casos de paternidade
distorcida ou ausente, etc. Alguns eram mesmo filhos de reclusos. Que psicologia fazer?
Ouvir, fazer perguntas, indagar, procurar entrar no mundo daquelas crianças de modo
divertido, à sua maneira. Elas conservavam uma alegria que há pouco Tiago havia
reconquistado, e sentir essa comunhão de espírito foi uma alegria constante nos seus
primeiros dias de trabalho. Os diálogos que mantinha com o staff eram breves, incisivos
e vivos, pelo que não os reproduzimos aqui. Distintos eram os diálogos com as crianças.
Mais demorados, fosse no gabinete fosse no recreio, no intervalo de um jogo de bola ou
no café onde amiúde oferecia sumos aos pequenos.
Porém, o emprego de Marília tinha os seus dias contados. Parecia não se adaptar aos
miúdos da zona oriental de Lisboa. Estes miúdos eram um misto de gaiatos de nivel
social elevado com outros provenientes de bairros de lata, nomeadamente a Curraleira.
Na sua maioria eram cabo-verdianos e angolanos. Havia algo que Marília não conseguia
superar. Era tempo de se virar para a tradução. O terreno era denso e competitivo; uma
pessoa tinha de ser necessariamente boa no que fazia. Ao mesmo tempo, os dois
começam a fazer planos, devido à saúde de Marília e às suas resistências em falar com
miúdos faladores e arrivistas, para se mudarem para o campo. Pelo menos para uma
cidade de província durante alguns anos.
Bom, a vida dos dois correu melhor na província. Ainda não têm filhos, mas
esperam uma situação situação mais favorável para o primeiro rebento.

46
10.
O sexo. O amor. Como poderemos fazer diferir estes dois conceitos? Depois de
perder o desejo, estou a liquidar o resto. Não sei o que o futuro me reserva. Dado o meu
carácter pensativo, diria que não vou muito longe. A vida ideal parece estar muito
longe. Será que ao longo da vida alguma vez conseguimos um período de satisfação tal
que não nos preocupemos com o futuro, esquecendo o passado recalcado de ideias
distorcidas e perturbadoras? A própria escrita é morna, sem entusiasmo, um passatempo
obsessivo. Procuro unir a vida à escrita. A escrita deve desligar-se da vida para realizar
um efeito libertador na própria psique de quem escreve. Quem lê as minhas coisas não
fica senão a saber como eu o que são aqueles dias tranquilos, perturbantes e
tormentosos. Depois, limito-me a ler outros autores para ver como posso melhor
transmitir os meus pensamentos, quando deveria limitar-me a transmiti-los e aceitá-los
como novos. Estou no cerne da vida e não me consigo libertar disso. Não me consigo
libertar do pensamento. Toda a minha vida é composta de elementos que eu junto. De
pensamentos, de impressões, de gestos mínimos, de esboços de afectos, de coisas
inacabadas.
Espero por mais inspiração nos próximos dias. Mesmo que não escreva, espero estar
mais liberto do pensamento, mais simpático e intrometido com os outros. A bem da
minha sobrevivência afectiva...

47
11.
Diga-se em abono da verdade que não escrevo sobre um promontório, de onde
contemplo os meus cidadãos sem conversar com eles, seu aferir as normas do seu
discurso. Falo de uma cave onde, ao invés de ver para baixo, sou visto. Estas minhas
especulações não irão levar a nada se eu não souber, mais do que distanciar-me,
esquecê-las. Sinto que não vivo numa realidade qualquer. Vivo um tormento qualquer.
Coisas, elementos psíquicos, pousaram sobre mim há perto de dez anos e vieram
distorcer e alterar toda a minha vida, ao ponto de me tirarem a vontade de trabalhar.
Acordo todos os dias de manhã de um sonho e sinto o corpo rígido, alheio a
movimentos bruscos. Sinto necessidade de estar mais um pouco para me preparar para
sair. Depois, lavo-me e saio. Enquanto estou em casa não me lavo. A extrema atenção
prestada aos cuidados do corpo, como se fosse a todo o momento ter relações sexuais e
temesse os meus odores, atormenta-me e persegue-me como um leão a sua presa.
Um sentimento de raiva percorre às vezes o meu espírito, como agora. Mas o maior
sentimento é o de frustração, pois se reconheço que tenho algumas capacidades e não
admito ser ajudado (nem posso ser ajudado), a masturbação prostra-me e dá-me um
amargo e desviado sabor da vida. É como se estivessem a doer as estranhas ou a gente
saber que o tabaco ainda faz pior e continuarmos a fumar. Sinto que sou um indivíduo
que se tornou pouco sociável, apesar de no fundo sempre o ter sido. O problema é que
sempre teve poucas oportunidades e muito azar. Falo do passado porque já não sou
jovem e sei muito bem o que já perdi: o fulgor do espírito inquisidor e o da juventude.
Além da frescura de espírito.
É claro que já não penso nas personagens deste romance. Quero fazer um ensaio de
possibilidades, de especulações, de intimidade. A falta de contacto com as pessoas
gerou este ser, pouco afoito à comunicação, reservado, denso, conglituoso, pouco
engraçado. Depois, se penso que estou sozinho é porque estou mesmo sozinho. E nunca
saio deste ciclo vicioso, até me cansar e sair frustrado, não tendo já forças para
caminhar em direcções alternativas. É claro que eu gostaria que as coisas fossem
diferentes: o trabalho, as minhas relações, a minha escrita. Mas não tenho outra solução
a não ser pegar naquilo que tenho e viver.

48
12.
Vou agora contar alguns factos que me perturbam. Um deles é o de não estar a
beneficiar de nada daquilo com que sonhei e estar num mundo de dúvidas, medos e
impressões incertas e inconvenientes. O que estou a escrever está a desvirtuar toda a
quinta essência do que tinha em mente levar por diante, mas a vida é feita destas coisas.
Já passou a fase do romance, da especulação. Agora é o tempo do desabafo. Se eu não
fumasse sentir-me-ia e não chateava ninguém. Agora estou escrevo simplesmente para
me tentar libertar das coisas, sobretudo deste mundo abafado em que vivo há cerca de
dez anos. É um grito de dor e revolta que provalvelmente ninguém vai ouvir. É meu mal
julgar assim. Mas a escrita exerce essa magia de serenar o espírito, como se libertasse o
esperma. Enfim, só espero que alguém leia isto, nem que seja um filho. Já não peço
tanto; um sobrinho. Sobretudo depois de eu estar bem morto e podre.

Tirei a minha licenciatura e pareço não despertar o interesse de ninguém. Pois de


hoje em diante vou ser menos paciente, mesmo com as mulheres! Quando vir uma
preconceituosa, uma púdica, não me furtarei a ofendê-la. Mesmo que seja a minha
mulher. As verdades são para serem ditas. É assim que o mundo pula e avança. Enfim,
coisas concretas. As coisas no domínio da Antropologia continuam a acontecer e eu sem
vida para as a acompanhar. Nem sequer tenho emprego, quanto mais ... Não é tempo de
fazer investigação; correria um risco muito grande. Sei bem que se tal acontecesse,
estaria a debitar as minhas bizarrias psíquicas para o papel em forma pomposa de tese
(?!). Sei que preciso, acima de tudo, viver. Talvez em velho me dedique mais à escrita e
à extroversão dos meus pensamentos. Mas para já preciso de esquecer que existem
certas pessoas, mesmo que isso me custe. Poderei reencontrá-las mais tarde. Falo de
alguns antigos colegas e de alguns professores (além de algumas outras pessoas). Não
vale a pena citar nomes. Mas eu sei bem quem são para o meu coração. Se não tivesse
passado por certas perturbações psicológicas talvez não sentisse tanta raiva do mundo.
Pena é que não consiga direccionar essa raiva a certas pessoas, pois decerto que
ganharia poder com isso. E motivação. Agora ando aqui de um lado para o outro,
pensando que o diálogo se faz por uma chave que se imagina e que eu estou à procura
de uma chave para cada pessoa. E enquanto cada chave não surgir no meu pensamento
não entro em contacto com as pessoas. Mas também estou farto de ligar para os outros.
Digo, por telefone. Já foi tempo... Agora é altura de ser sincero e implacável, exigir dos
outros que tenham tanta preocupação como eu tenho com as coisas. Se sim, sim; se não,
sopas e meia volta. Porque pessoas há muitas e temos de bater a várias portas antes de
descobrir uma névoa interessante em pessoas interessantes.

49
13.
E eu que tinha uma visão sagrada sobre o meu destino e sonhei que haveria de casar
com uma mulher e tê-la para toda a vida. Agora é tarde demais. Que adianta justificar-
me com as prostitutas? Que importa se continuo a sentir um desejo incontrolado por
qualquer mulher? Depois, a atracção sexual ainda funciona da minha parte. É porque
não ligo mesmo nada ao aspecto afectivo ou espiritual das coisa, às coisas da alma!
Procuro, na minha mente, um diálogo por descobrir e não chega nada. Preciso de mais
dados, de conversar com pessoas, de ler dados etnográficos. Os dados psicológicos não
me interessam. Já chegam as minhas derivações psíquicas. Preciso de qualquer coisa
mais sólida. O pior é que preciso de atenção. Mas ao mesmo tempo não consigo sair de
mim mesmo, transcender-me, ultrapassar-me. Bem, também não é necessário tanto.
Basta-me viver o dia-a-dia. Mas eu não quero ser uma pessoa vulgar. E esse é que o
problema. Quero comunicar, transmitir aos outros coisas que vou descobrindo. Por isso
é que queria ser antropólogo. Por isso continuo obcecado pela escrita autobiográfica. É
um meio de me exprimir, como a música ou a pintura, se tivesse tido outra formação.
Sob nenhuma ciência física me poderia exprimir, pois falta-me o interesse. Mas acho
que seria conveniente começar a pensar nisso, a bem do meu bem-estar material. Só falo
em mulheres, em arranjar mulher, e não tenho nenhum projecto sobre a vida. Já passou
a idade dos projectos. Os que tive foram sublimes e irrealizáveis. Não chega já?

50
14.
Eram quatro da manhã e eu não estava a conseguir dormir naquela abafada noite de
Verão. A rádio Vox ainda se fazia sentir baixinho no seu rádio de cabeceira. Lá fora há
já duas horas que tinham passado os homens do lixo. Não os ouvira, mas isso não
importa. Espero um pouco na paragem, a poucos metros da sua porta. Há que tempos
que não comunicava com ninguém.
No centro da cidade grupos de jovens saiam das discotecas. Aparte isso, a cidade
mantinha uma certa vida através de alguns dos seus mais nobres trabalhadores: os
tipógrafos, os deambulantes, os sem-abrigo, os mendigos. Enfim, os homens da noite...
Os deambulantes, por exemplo, eram seres aparentemente pouco interessantes: uma
espécie de filósofos cinzentos da cidade, sem destino certo. Homens (e mulheres) de
poucas relações, a maior parte deles desempregados ou com profissões incertas. No
entanto, eram eles que asseguravam a continuação da noite para o dia e cabia-lhes a
tarefa de acordarem todos aqueles que, bem cedo, tinham de ir para os seus empregos
certos. A Câmara pagava-lhes para isso, a meias com os interessados. Cada pessoa tinha
o seu deambulante com quem conversar logo pela manhã, com quem comentar as
primeiras noticias sob um naco de pão e uns ovos estrelados. Estes seres cinzentos
opunham-se aos seres coloridos até nas roupas. Dormiam quando tinham sono em
albergues estrategicamente localizados na periferia da cidade.
Era assim a vida pós-moderna em Speranza. Guido DeSilva sofria de anomalias
mentais inexplicáveis. Tinha o cabelo alto, aloirado e uns olhos azuis grandes, de
infinito. No dia 16 de Julho de 1999 dirigia-se, pelas sete da manhã, para uns pólos
residenciais, uma espécie de urbanização de nivel médio-superior composta, na sua
maioria, por artistas e profissionais liberais: médicos, advogados, psicólogos,
sociólogos, etc. Naquela manhã a sua função era acordar Jaime Tinoco, um músico de
alguma fama no país.
-Então o que temos hoje de interessante?
-Casos de crimes sem solução... A matéria cultural é ínfima, como sempre.
-Come qualquer coisa, Guido. Como tens passado estes dias? Pergunto isso porque
afinal de contas só falamos dos outros...
-Tenho feito umas coisas aqui e acolá... Uns recados. Nem sei em que é que estou a
contribuir para o meu futuro... Não vejo grandes alternativas a não ser continuar no
mesmo.
-Pois... Para voçês é dificil encontrar emprego na “Sociedade Normalizada”. Nem
eu posso fazer grande coisa por ti.
-Pensei em mudar de aspecto e, já agora, de cidade também. Pode ser que noutro
lugar me dêem mais hipóteses...
-Pensa bem.
-Pensar... É o que nós fazemos melhor. E nem sequer somos violentos. Porque é que
o presidente da Câmara não toma medidas e encara o nosso problema de frente?
-Sabes, quem não se insere, quem não trabalha “normalizado”, tem sempre poucas
hipóteses de aspirar a certas coisas. Sobretudo a bens materiais.
-É melhor mexeres-te...
-Pois, adiante. Hoje tens de Ir a Window Park apresentar-te na segunda parte de
James Spader.
-Pois é! Tenho de falar com ele antes... Procura-me o telefone.
E assim ficaram a conversar até às oito. Jaime deixou Guido com os seus livros
durante a manhã.
-Quandor saíres é só puxar. a porta. Até amanhã.

51
-Tchau.

As tardes de Guido, eram dedicadas a tarefas individuais. Um contrasenso, quando o


que eles precisavam era de tarefas comunitárias.
Dois anos depois, Guido havia já experimentado a sensação de estar fora do país,
receber finalmente outros ares, falar outras línguas, conhecer outras pessoas. Nesse
tempo o seu estatuto subiu consideravelmente. Começou a ser convidado para participar
em debates sobre a vida dos deambulantes, que entretanto se haviam tornado numa
curiosidade antropológica e histórica em Speranza. Aceitou um lugar como professor
numa universidade privada e viu-se na disposição de poder comprar um carro.
Finalmente um carro! Depois de ter conhecido a cidade de lés a lés pelo seu pé, podia
agora ir aos sitios de automóvel. Porém, a sua vida não tinha mudado interiormente. Era
ainda o velho e psicologicamente instável Guido -o que combatia com sexo frequente e
fácil-, dono de uma inteligência vivida. Não aspirava entrar numa vida muito
movimentada, pelo que começou a declinar convites importantes, começando a mandar
a maior parte da gente à merda. Tinha alcançado um estado de coisas e não queria ser
vítima de tal estado, ficar dependente dos outros. A civilização técnica havia progredido
em Speranza, mas tal não o incomodava demasiado. Interessava-lhe mais a pesquisa
subjectiva e especulativa. As suas fugazes idas à televisão permitiram-lhe gozar com o
poder da telecomunicação, e agora por vezes já aparecia mais bem humorado e mais
descontraído, como se estivesse a falar consigo próprio. Mas por vezes surgiam as
saudades dos primeiros tempos. E sabia que não podia voltar atrás. Vivia os seus 35
anos com cada vez mais perguntas. Precisamente porue havia renunciado à “Sociedade
Normalizada”. Uma dúvida que frequentemente o assaltava era o facto de saber se havia
procedido bem do ponto de vista exterior. O que foi feito estava feito. Pelo menos dava
as suas aulas e já estava num patamar de bem-estar que nem os seus pais e os seus avós
haviam sequer sonhado...

52
15.
A tarde é calma e espero os meus amigos. Há uma vontade de nada fazer, um desejo
de que todos os limites impostos ao espírito sejam desfeitos por revelações ulteriores.
Oiço canções antigas de Black (1991) para serenar. Folheio o Le Monde Diplomatique
em edição portuguesa e constato como estou afastado do mundo. Há conflitos que
outros jovens como eu sentem na pele. Haverá jovens como eu por esse mundo fora?
Estamos a chegar ao próximo mílénio. É apenas mais uma data importante, mais uma
passagem de ano.
Estou a chegar à idade de Cristo. Depois dos trinta e três será só gozar. A obra
escrita não se pode dispersar. Tem de se ter ter respeito pelo que se cria e acarinhar isso
como se fossem verdadeiros filhos. Dei exemplares da minha obra a pessoas que
cometem erros todos os dias e que não sabem o que representa um livro. Em vão, agora
sei. Enviei para a Rádio Vox um texto que vou pedir, exigindo justiça. Outro, o
“Fluidos”, enviei para a Alexandra, essa minha amiga de longa data. Foi uma obra que
me custou imensas horas de sono. Trata-se de um conjunto de obras, que incluem
escritos diversos, que quero juntar num volume de “Pensamentos”. É claro que a minha
produção não é grande coisa. Admito isso. Mas dadas as minhas condições não se pode
fazer muito melhor. Aliás, o que eu mais explico são as condições de produção da
escrita. Estou ansioso por sair daqui. Já chega de apartamento! Alguns dias de aldeia,
depois o campo de férias, depois o trabalho e por fim o regresso às aulas (a ver se junto
algum dinheiro que dê para um carrito em 2ª mão). Ah! E também tenho de tratar dos
óculos e dos dentes. Bom, estou a ver que hoje já não debito mais nada. Até à vista.

53
16.
Costuma-se escrever a partir de um ponto escrito no céu, um ponto presente de um
acontecimento (presente ou passado). Começar por um facto que se poderá deslumbrar
no futuro pode ser experimentar viver antes de por a carroça à frente dos bois. Algo. que
nos traumatizou é bom para se escrever: dá linhas, é problemático e faz-nos questionar.
À medida que avanço nos anos cada vez mais me conheço e, resultado da timidez ou do
diálogo com os amigos, reconheço uma forte rigidez de espírito no meu carácter.
Consigo identificar vários defeitos em mim, mas estou longe de ser.capaz de os eliminar
de um dia para o outro. De uma maneira ou de outra, interessa-me ser uma pessoa
completa que enfrenta os desafios da vida, profissional e sentimentalmente. É nestes
dois aspectosque eu me revelo mais fraco. Continuo com grandes oscilações nos meus
dias. Falta-me um certo à vontade. Preciso pensar menos em coisas sem importância.
Tenho de esforçar-me por reter no meu pensamento coisas muito mais importantes e
significativas como o caso de sentimentos de alegria partilhados. O meu pensamento
fica preso com cola a ideias que não são possiveis de transmitir por palavras. Por isso
não têm valor. São fragmentos que muito pouca gente entenderia, e o que eu quero é
chegar a um cada vez maior número de pessoas. É uma opção, e temos de ser fiéis (será
que temos?) aos nossos compromissos.
Depois .de bons momentos retraio-me. Como se a timidez fosse algo de congénito,
como se fosse quase um autista. Às vezes a dor é insuportável e só me apetece gritar ou
chegar ao pé de alguém como um jovem particularmente atraente e desatar a falar
esquizofrenicamente. Mas contenho-me e volto para casa. Mas lá no fundo talvez isto
não seja só uma questão de timidez. Eu sei que existem alguns medos recalcados,
pequenas vergonhas. E um certo receio de as revelar, de me assumir. O que só posso é
que tenho os anos que tenho e ainda não me revelei ao ponto de dizer “Isto sou eu!”
Não sei quanto tempo vou esperar por isso. Talvez não seja bom esperar com muita
força, pois posso vir a ter alguma decepção. É melhor fazer como diz no slogan e não
deixar que nada me perturbe. Dedicar-me apenas às coisas de que gosto, cultivar o meu
interior. Mas esta dualidade interior/exterior é um pouco limitada. Quero ir mais além,
ver as coisas mais esbatidas e difusas, por assim dizer...

54
17.
A música não era a mais adequada para dois pares de namorados na praia. Contudo,
na Costa da Caparica via-se (e permitia-se). Na esplanada, Telma estava um pouco
desanimada com o seu namorado. Cris ria-se das piadas que ele próprio dava segurando
o jornal Record. O artigo das páginas centrais falava do futebolista francês Eric
Cantona. Era impossível alguém ser tão insolente no relvado. A música era brasileira.
será que era a mais adequada? Estava-se numa espécie de satélite do sentimento
brasileiro do “doice fare niente”. Era um estado a que se rendiam alguns europeus que
ali afluiam, certamente descontentes com o estado social das coisas. O Verão .ainda
estava no princípio e estava distante o Inverno desejado secretamente por Cris. Fingia
não ser tímido. Julgar-se tímido era uma forma de explicar os seus pensamentos e o seu
comportamento. Uma espécie de bolsa onde cabia muita coisa indesejável.
Atormentava-o pensamentos inoportunos e indesejáveis. Queria estar mais com os
amigos, mas Selma aprisionava-o num namoro obsessivo. Era tempo de se libertar das
amarras de uma sexualidade pouco saudável. Telma era diferente Sensível e possuidora
de uma inteligência viva e sagaz, não tinha frequentado a universidade mas lia com
frequência obras escolhidas ao critério do seu sentimento e estado de espírito
quotidianos.
Os dois pares deslocavam-se de novo até à praia para apanhar o sol e o banho da
tarde. Debaixo de chapéus de palha alguns pares estavam demasiado juntos e à vontade,
inclusive com alguns topless aqui e acolá. Três amigos olhavam para elas fazendo
comentários malandros. Este tipo de cenário não dá para um conto, mas para uma mera
descrição de costumes que não almejo fazer. Não tenho poder descritivo para tal. A
minha imaginação romântica já há muito que teve os seus dias e agora sobrevive apenas
a um nível existencial, não sobrando para o papel. Vivo ainda dividido entre .a escrita e
a vida, mas recuso-me a acreditar que a minha escrita não reflicta a vida. Além do mais,
não ocupo nenhum lugar que dê continuidade aos meus pensamentos, onde receba por
pensar. Nem me posso arvorar em intelectual oficial nem ter os proveitos materiais ou
aproveites sentimentais de tal posição. Sei que o terreno que piso neste momento é
transitório. É possível que venha a ser um desencantado da vida. Mas não o serei por
não ter meios, pois os meios não são tudo. Procurarei outros lugares, outros estados de
espírito mais próximos dos meus desejos...

55
18.
Aos 25 anos, tendo ganho o seu primeiro ordenado dando aulas e explicações de
matemática, Cris começou a equacionar a possibilidade de mudar de rosto. Fazer uma
operação plástica no rosto de alguém famoso, tornar-se conhecido por esse processo.
Sim, porque nos seus melhores diás considerava-se um artista. Mesmo os mais íntimos
problemas não o abatiam e a timidez parecia desvanecer-se. Ora, não era possível
tecnicamente falando, copiar a cara de alguém existente, pelo que no primeiro
aconselhamento o médico sugeriu-lhe umas alterações ao seu rosto que em muito o
iriam favorecer: aumento do nariz, operação à córnea (para retirar a miopia) tornar a sua
pele um pouco mais suave (sobretudo na zona da testa e das maçãs dos rosto, de modo a
retirar indíçios de rosto perfuradopor uma má gerência do acne nos anos verdes da
juventude).
Passados cinco anos havia junto perto de mil contos, fruto sobretudo de pesado
trabalho em dar explicações. Aos trinta anos estava prestes a modificar o seu rosto para
sempre. Era assim que celebraria a entrada no novo milénio: como outra pessoa. Como
a operação corresse bem, dois meses depois olhava-se no espelho e gostava do que via.
Não tardou a encontrar urna namorada só pelo seu novo aspecto: o rosto tratado e
atraente, o cabelo cuidado com o melhor shampô... E ainda por cima sem óculos! O que
mais queria? Nem era preciso pensar nem falar muito. No seu trabalho, a sedução
parecia substituir a alegria. Aos poucos uma namorada já não era suficiente. O seu
telemóvel era frequentado por três, quatro companhias habituais com quem se envolvia
em quentes relações sexuais. Contudo, no trabalho a indiferença face a
responsabilidades e a colegas ia aumentando. Não tardou que ele próprio se despedisse e
entrasse no subsídio de desemprego. Cris sentia pela primeira vez que estava perdendo a
alma .O novo século, o novo milénio, haviam-lhe trazido satisfação da sua sexualidade,
haviam-no tornando numa pessoa serena e fácil, mas sem raiva e sem arte. Numa
palavra, sem, paixão. No ano de 2005 já não era possível voltar atrás. Havia comprado o
seu novo rosto como um produto inovador e tentador, daqueles que existem à venda nos
hipermercados. Como poderia voltar para o seu interior com um rosto que chamava toda
a gente à atenção e apelava para a socialização?

56
19.
A dor persegue-me como a sombra da própria morte. É momentânea, graças a Deus,
e por isso posso continuar. Descubro um pouco do meu futuro e reconcilio-me com
algumas ideias que representam o que desejo fazer: estudar, trabalhar num local
agradável, escrever. Li algures num livro sobre a timidez que isto tudo são indíçios de
alguém que anseia ser rico. Talvez no meu caso seja a fama aquilo que busco. O desejo
de ser reconhecido. Esta ideia persiste, apesar do meu passado doloroso e introvertido,
apesar do meu presente confuso. Em todo o caso, terei de optar em breve por uma
perspectiva liberta e ligada às artes. Uma perspectiva material e pedagógica. O que está
em causa não é tanto um emprego definitivo, mas uma ocupação que permita lançar o
futuro como eu sempre quis, sem deixar de ter em vista, a médio prazo, a aquisição de
um carro. O objectivo “Viagens” não se pode realizar por si só sem eu ter fundos. Por
isso ficará restringido a uma poupança a efectuar para solver no tempo das férias. É
claro que queria ter mais dinheiro para comprar livros ou música. Mas terei de refrear os
meus instintos. Depois, no plano mental, como conseguirei conciliar o desejo sexual
com as aspirações intelectuais, sendo eu, de algum modo, um tosco? As veredas são
múltiplas e frequentemente tenho de virar à direita ou à esquerda nesta estrada da
descoberta de mim próprio e dos outros. Confesso que estou farto de mim próprio. Mas
o que sou eu senão também um compósito de elementos alheios e internos? Depois, e
no que respeita aos estudos não sei por onde ir: se pela Psicologia (que já não me
fascina por ser tão redutora), se pela Geografia (por uma questão ilusória e auto-
convincente de um dia me tornar professor) ou se pela Filosofia (que me tem escapado
por falta de tempo e de atenção). Pela Literatura é que nunca, pois o que faço e escrevo
não é literatura. O que escrevo são ensaios sobre o comportamento humano. Tanto o
meu como o dos outros. Se resulta do diálogo, indirectamente e por vias que agora não
consigo decifrar, melhor aparecerá no papel. Se resulta de cansaço e de pensamentos
especulativos e subjectivos pior, pois é disso que tenho procurado fugir. Por isso a
minha escrita é, tanto quanto eu desejo, uma fuga de mim próprio. E em direcção ao
futuro, tendo como referência o passado da minha memória subjectiva (que contém
dados objectivos).
Apesar de tudo, pareçe que até me estou a sair bem. O espaço que tenho não advém
do desafogo económico, mas do esforço que faço em manter-me por Lisboa, sempre à
descoberta de novas ideias e a despoletar no meu espírito novas sensações e impressões.
Ao mesmo tempo, continuo sem me especializar, querendo absorver a realidade como
uma totalidade. Estranha-me ter tais desejos intelectuais e ao mesmo tempo ter mãos
para o trabalho manual (como vou experimentar nestes dois meses que se seguem). É
sinal de que continuo, apesar da solidão e dos desafios da razão, fiel à minha
personalidade, aspirando a algo que não tenho a não ser no meu pensamento. E fiel
também às minhas raízes familiares. De certo modo, e dado que já entendo um pouco
melhor o funcionamento da minha faceta psíquica, sei agora como lidar com ela. Já a
caracterizei exaustivamente, embora de um modo ainda um pouco solto e difuso. E
posso resumi-la.
Tenho receios e pruridos de obstáculos psicológicos; uma grande carência afectiva.
Uma necessidade física de contacto sexual e de estabilidade emocional. Quando dou
autonomia à minha libido retraio-me, para logo depois me expandir novamente. Seria
tolo se não fosse assim. Quando esqueço a televisão e os media (isto é, a imagem em
si), perfuro uma dimensão de fantasia e de auto-flagelamento-comiseração-lamentação e
entro na realidade, passando para o campo do inconsciente, sob a forma de sonhos, a
minha actividade psíquica principal. Aí, embora me sinta melhor, não perduro. E é isso

57
que me confunde e me cria uma teia de pensamentos de tal forma enervante e pouco
saudavel que sinto uma espécie de fumo branco, redondo, sob a minha cabeça. haverá
lugar para a timidez em todo este processo? Não sei. Se não fumasse talvez me sentisse
um pouco melhor e conseguisse dar largas à minha afectividade de um modo mais
saudavel. Mas neste ciclo também entra o café. É mais um ritual dotado de carácter
orgânico, típico da actividade criadora da escrita. Não tenho em grande conta o que
escrevo porque isso não é o resultado de nenhuma vivência intensa ou de alguma
paixão. Se assim fosse, trataria logo de mandar queimar todos os manuscritos que
possuo. Ou então mandaria arquivá-los...

58
20.
A necessidade do diálogo ainda. Telma tinha enjôo em ler livros sobre sentimentos.
Procurava diálogos e acção. Não que o português dos diálogos transbordasse para os
diálogos orais. Nem sequer procurava conhecimento. Os livros davam-lhe a satisfação
depois de uma barrigada de horas de tv. Na calma, à noite no seu quarto, penetrava nos
desígnios da leitura com calma, prazer, dando um ar de solenidade à sua alma. Até
adormecer um pouco, ficava ali deitada, as janelas entreabertas deixando passar um
pouco de vento. Há muito que o seu quarto deixara de ser uma espécie de santuário para
passar a ser um lugar de sonho e criatividade, de labor da alma. Passava pouco do seu
dia no quarto e a única actividade que realmente a satisfazia era ler. Depois procurava
estar o máximo de tempo possível lá fora, observando elementos de realidade que
conjugava e comparava com os seus personagens. Absorvia-se no jornal onde
trabalhava, procurando ouvir as histórias dos outros com poucas mas firmes
interrupções e perguntas. Eram poucas as oportunidades de saborear e conhecer a vida
através do jornalismo. Uma ou outra reportagem, uma ou outra entrevista.
Há dias deslocara-se a uma prisão para ouvir uma peça de Kafka representada por
um grupo de presos, os que mais cultivavam um espírito de clausura. O público era
escasso, mas isso não impediu Telma de fazer a sua reportagem. A política, a economia
e a vida social aborreciam-na porque só falavam de extremos materiais. Raramente
abrangiam os extremos morais como a solidão, o sofrimento atroz e o esqueçimento.
Depois, o que os média mostram são continuidades que tentam, de alguma forma, dar
uma explicação e uma contextualização ao mundo. E sempre de uma forma elementar e
repetitiva.
A televisão cegava Teima. Mas todos os dias a ligava. Às vezes para se deixar
distrair; outras para se esquecer de que havia outros mundos que ela pensava
inacessiveis. E esses mundos também continham pessoas, histórias de vida distorcidas,
exageradas, sinuosas e abruptas. No fundo era isso que ela procurava e que não
encontrava no perfil do namorado. Seja como for, uma relação teria de existir e persistir.
Até que viesse uma revelação, por mais pequena que fosse, que a fizesse pensar por si
própria ao ponto de se tornar intelectualmente autónoma.

59
21.
Às vezes é tempo de nos desfazermos de velhos papéis, ficando somente os livros e
alguns documentos mais importantes. Parece que escrevo para explicar cada acto, cada
“tour de force” da minha parte. Há que experimentar libertar-me mais da escrita,
procurando não celebrizar tanto os meus actos.

Há dias em que não nos apetece dizer nada. Somos tão tímidos que nos limitamos a
ouvir, a responder e a fazer algumas perguntas de circunstância. Ficamos espantados
como podemos estar tão longe do mundo.
-Hoje é um daqueles dias em que não me consigo animar.
Depois há uma espécie de quebra física.
As manhãs custam a passar; já não tenho a mesma frescura de outros tempos.
-Faltam-te medicamentos.
-Não. O problema não é a falta de medicamentos. É a falta de motivação e
desprendimento.
-Mas isso aprende-se com o tempo. Há sempre uma iniciação, uma realização. O
que parece é não estares ainda iniciado.
-Pois, tenho desperdiçado algumas oportunidades. Mesmo com algumas mulheres,
as que mais desejo, fico nervoso.
-És tímido.
-Não, não parece ser esse o problema, como já referi. A questão parece ser se a
timidez deriva do foro afectivo... Ou seja, tentar saber se isso é mais mental do que
outra coisa. Por exemplo, não estou totalmente satisfeito com o sítio onde vivo: a janela
onde passo a maior parte do tempo dá para um páteo e um ringue onde todos os dias se
joga futebol. Depois, a viagem que faço de regresso é deprimente: a Morais Soares, o
grande muro do cemitério...
-Mas a casa pelo menos é tua!
-É, mas infelizmente não a posso trocar por outra...
-Tens é a mania de te estares sempre a queixar.
-Não. Tenho é a mania de ser exigente comigo. Comigo e com o que me rodeia,
sejam pessoas, sejam coisas!
-Tens é falta de trabalho.
-Nisso concordo contigo. Pareço uma donzela com falta de homem.
-Podes deixar de te preocupar a partir da altura em que começes a fazer as coisas
principais. Talvez o teu problema seja estares um pouco indeciso e não teres convicção
do que é que realmente queres.
-É. Mas continuo a pensar que haverá por aí algum lugar onde me possa realizar.
Um lugar que esteja guardado só para mim. É como pensarmos “queria para mim as
mulheres desta cidade, ou desta aldeia. Só deste lugar.”
Este livro já acabou. Estou farto de escrever na escura solidão. Não há muita
capacidade para inventar a amizade e a solidariedade, pelo que se devem deixar a
fermentar algumas ideias e mais tarde colher os seus frutos.

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-Mas tens uma aspiração legítima.
-Pois. Uma aspiração de poder.
-A questão do poder é que tens de reconhece-lo e lidar com ele. Controla-lo. O que
não quer dizer que o tenhas de usar, se não quiseres.
-Usar o poder é ser professor, por exemplo. Exerces poder sobre os teus alunos
porque és, supostamente, portador de um conhecimento que deves transmitir.
-Mas eu queimei-me.
-Como?
-A morder-me e a atormentar-me, a maior parte dos dias, por aquilo que não fiz e pelo
que não sou.

A pornografia é um olhar honesto. Mas que ganho eu em ser honesto? Sou antiquado,
obsessivo e platónico. Sou também impulsivo, o que não quer dizer que seja violento. A
violência vai-se perdendo quando se perdem as forças e a confiança. Depois vivo como
se o meu único objectivo na vida fosse conhecer mulheres e fazer sexo com elas, quando
estou certo de que existem coisas bem mais interessantes para se fazer. O pior é que não
surge nada que se cole ao meu pensamento e me apaixone.
Já chega de diário por agora...

61
3ª Parte

62
CONVERSAS COM ANJOS,
ENTRE OS QUAIS SATÃ

Ele chegou perto dela, observando:


- Sabes, falta-me um ideal. Há anos que só vejo televisão, impávido. Esqueci-me
dos dias em que vivia em função de um ideal.
- Só falas de ti próprio. Parece que o ideal és tu mesmo.
- Essa é velha. Sou egocentrista, não é?
- Mais. Pensas somente nas tuas acções. Não pensas nas acções dos outros, nos
sentimentos dos outros.
- Pois... Eu queria sair deste quarto.
- Então vamos. Escusas de tomar banho de manhã. Além do mais, é Inverno e a tua
casa é gélida nestas alturas. Continuas o mesmo: apegado à cama e ao tabaco. Sais a
porta de casa e tranca-la duas vezes. Tens a noção de que tudo ficou fechado.
- Pois, porque no outro dia os ladrões chegaram bem perto de mim. Entre os sonhos
pude manda-los embora. Quando acordei, as minhas calças estavam no pátio e os
documentos da carteira espalhados.
- Não penses no passado. Estás sempre a falar no mesmo e sempre a pensar. A
pensar...
- Ando nisto há anos, como um condenado. Sei exactamente há quanto tempo isto
começou. É em função disso que analiso a realidade.
- Não tens mais nada em que pensar. Tens de agir. Há muito tempo que tens de agir.
Bom, agora já estás fora de casa. É cedo. Podias ter feito uma corrida de manhã. Podias
ter feito imensas coisas ontem... Mas escolheste a pose da avestruz, o sonho. Seja como
for, começas a andar em direcção à paragem do autocarro. E depois?
- Depois continuo preso a casa.
- Continuas preso aos teus medos. Ao teu passado, queres tu dizer.
- Pois, mas sei que ao tomar o autocarro embarco numa viagem sem tempo...
- E porquê?
- Porque lá dentro vão pessoas provavelmente com os mesmos problemas. Ou até
outros. E vão confiadas no poder da turba urbana.
- E isso é bom?
- É fantástico. É como se estivesse já em Nova Iorque e nunca precisasse de lá ter
ido. Esta sensação de variedade aumenta quase infinitamente as minhas possibilidades
de encontrar pessoas.
- Mas também as diminui...
- Claro que sim, mas isso por agora não me interessa.
- Tudo bem. Mas para onde planeaste ir hoje?
- Em primeiro lugar vou folhear os jornais, procurar emprego...
- Muito bem. Já reparaste como há poucos minutos estavas em casa, envolto nas
tuas lucubrações, como aquele amigo do Charlie Brown que anda sempre com o lençol
da cama atrás dele, e agora estás a pensar em coisas... positivas?
- Certo. Mas isso é o mínimo em relação ao que fazia antes.
- Antes?...
- Antes da minha vida se ter tornado uma confusão.
- Pronto! Lá estás tu a pensar no passado! Mas quem é que te vai julgar pelos teus
erros? Não te chega já o mal que sofreste neste mundo?
- Ai é? Porreiro! Afinal ela era um anjo que eu via, que falava.

63
- Pois. Mas agora que vais procurar emprego deves ter em mente que tens de ver
menos televisão. Depois tens de pensar menos na cama quando acordas. Deves levantar-
te logo. E tomar um banho, se isso te ajuda a enfrentar o dia.
- Mas falta-me motivação...
- Pois falta! Falta a ti e a muita gente. E em todos os lugares. Mas as pessoas
continuam.
- As pessoas?
- Sim, as pessoas. Já que tens uma forma binária de pensamento nessa tua cabeça,
resta-te saber de que maneira a deves usar. Nunca te esqueças: és tu e os outros. Tu e os
outros...
- Até agora tudo bem. Já estou fora de casa. Que tipo de trabalho devo arranjar?
- Que tipo de trabalho? O que for de acordo com as tuas ambições e limitações.
- Professor seria bom para mim. Mais tarde talvez investigador numa equipa.
- Numa equipa?
- Sim, como nos jogos de futebol e de andebol de pequeno.
- Bom, isso é lá contigo. Depois de procurares emprego, onde é que ainda tinhas de
ir hoje?
- Bem, eu tinha pensado que sair de casa todos os dias era o ideal para retomar uma
vida normal. Mas há de chegar o dia em que ficarei na cama e deixar-me-ei levar pelo
comodismo... E isso é uma dor de alma e uma falta de motivação...
- Ouve bem o que te vou dizer, porque não tenciono voltar a repeti-lo: a estratégia é
pensar que em cada dia há sempre alguma coisa para fazer. Constrói a tua agenda.
Escreve nela coisas: projectos, ideias, ideais, o que quiseres. Mesmo que não os venhas
a cumprir.
- Mas tu és um anjo e estás a falar-me de estratégias? E outra coisa: devemos
cumprir aquilo com que nos comprometemos.
- Pois... Mas não te esqueças que é como humano que escolhes a tua intimidade ou o
nada, o mecanismo das acções. O mundo lá fora está cheio de perigos. Espreitam-nos de
todos os lados, procurando saber quem somos, o que fazemos, o que vestimos, o que
guardamos...
- Então não estamos na cidade? Pensei que por aqui as coisas fossem diferentes...
- Aprende a fazer a distinção entre Cidade e Campo e poderás ser livre. Livre até
daquilo que na tua intimidade te incomoda. As tuas locubrações, por exemplo.
- Bem pensado, anjo. Estou a ver que cada dia é um recomeço e uma forma de ver,
de estar na vida.
- Sim, mas quando fores maduro há de chegar um tempo em que esta bitola vai
desaparecer. A partir daí caminharás sozinho. Algum tempo depois poderás vir a ser
professor. Ou outra coisa qualquer quer tu queiras. Mas agora tens de tratar de um
assunto extremamente importante. E vai ser hoje, quando chegares a casa. Bom, e onde
mais é que tens de ir?
- Tenho de falar com alguns professores, ir a duas bibliotecas, fazer umas
pesquisas...
- Certo. Mas isso tem de ficar para quando estiveres seguro economicamente. Agora
tens de arranjar trabalho, lembras-te?
- Sim. Tudo bem. Mas porque é que não tratamos daquele assunto agora? Vamos
tomar um café e continuamos esta conversa. Eu pago.
- Bem, já que fazes questão...

Dirigimo-nos ao Avenida. Eu conhecia poucos sítios ideais por ali perto, de modo
que não arranjamos um sítio ideal. Mas não importava. Qualquer que fosse o lugar, eu

64
queria esse assunto. Até porque tinha na cabeça questões secretas que me ocupavam o
espírito. Sentamo-nos numa dessas mesas de um corredor largo e ele retomou a
conversa.

- Eu tomo este café, mas fica sabendo que o café nos faz morrer um bocadinho no
sítio onde estamos...
- E perdemos vida para os sítios onde imaginamos ou sonhamos ir?
- Sim!
- Porra! Desculpa. Diabo! Mas não pode ser assim. Não é justo. E quanto ao tabaco
é o mesmo?
- É a mesma coisa...
- Assim não dá! Que raio de anjo és tu?
- Mas repara que o bom da questão é que tens inúmeras oportunidades para te
regenerares.
- Como é que é isso?
- A divindade é isso mesmo: as ilimitadas oportunidades de que cada ser humano
dispõe.
- Que tipo de anjo és tu?
- Isso depende de ti. Aos teus olhos tanto posso ser Satã, o anjo que se revoltou
contra Deus, como posso ser o teu anjo da guarda. Ou até mesmo um outro qualquer...
- Mas a regeneração não se dá apenas quando morre alguém e nasce uma criança?
Isso é uma questão de lógica: é uma substituição...
- Não. Aos teus olhos eu posso ter uma visão alarmista ou pessimista. Para nós,
anjos, o tempo não é visto da mesma forma que para vóz humanos.
- Estou a ver que estamos aqui numa conversa de chacha, a tentar delinear o que é
um ser humano...
- Não. Estamos aqui para esclarecer o que tu quiseres. Por isso é que tens a
oportunidade de falar comigo.
- Oportunidade? Então parece-me que vou ficar sozinho...
- Não. Tu nunca estiveste sozinho. Repara que já estamos a falar do assunto que
haveríamos de discutir se estivesses em tua casa.
- Então explica-me porque é que tenho esta estranha sensação de que a minha
intimidade se encontra estilhaçada, irrecuperável?
- Já te disse que ninguém te vai julgar pelos teus erros. A tua intimidade está, neste
momento, a ser reconstruída. Tens de deixar a esperança fazer o seu papel.
- A esperança?...
- Sim. Tens de deixar que novas ideias se apossem do teu espírito e te levem a
outras paragens, aquelas com que sempre sonhaste.
- Uau! Essa ideia é mesmo porreira!
- Pois é. Só que isso custa dinheiro. Afinal, tudo custa dinheiro...
- Eu estou a ver que tu és Satã...
- Quanto a isso, já sabes. Para ti, tudo custa dinheiro. Eu já disse isso a muita gente.
- Então tu não és o meu anjo da guarda. Eu logo vi...
- Repara: o meu trabalho não tem só a ver contigo. Porém, neste momento é o que
sucede...

Eu fumava e imaginava-me a escrever no computador esta conversa com este anjo.


Mas não; eu estava ali. Depois de pensar no verde da esperança continuava a olhar para
as outras vestes. Eram cinzentas, uma pura mistura mistura de branco e preto. Cinzentas
mesmo.

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- Tu és a morte perto de mim, não és?
- Talvez. Mas digo-te para leres atentamente, na Bíblia, o Livro de Jó.
- Já li algumas partes. A mensagem é que Deus permitiu que Jó fosse tentado pelo
Diabo, como uma prova de fé. Mas o que é que se passou com aquele anjo? Terá sido a
partir daí que começaram os “satanismos”?
- Isso são perguntas às quais terás de ser tu próprio a descobrir as respostas.
- Pois. Mas terei de ler também o Livro do Apocalipse e eu não me quero dar a esse
trabalho. Não conheço bem os livros sagrados de outros povos. Apenas o Mahabarata.
Falta-me o Corão e a literatura mitológica das antigas civilizações, já para não falar da
literatura mitológica que foi transmitida oralmente pelos povos que não possuíam
escrita. Estás contente com a minha sabedoria anjo?
- Revela algumas ideias interessantes. Porém, serás tu capaz de agir e falar ao
mesmo tempo?
- Como assim? Fazer sexo e falar ao mesmo tempo é um bom exemplo? Há que
tempos que deixei de falar quando sinto prazer...
- Deixaste de partilhar o prazer e as emoções...
- Pois. Isso mesmo...
- Mas voltando ao que estavamos a falar, quero dizer-te que uma pessoa, uma só
pessoa, apenas pode ser uma de duas coisas: ou o dono da palavra, ou o actor da
palavra.
- Não sei se isso será bem assim. Enquanto novo, posso muito bem ser o actor, o
agente da palavra. Quando chegar a uma certa idade, posso ser o dono da palavra.
Sempre assim foi. Percebes o que quero dizer? É um pouco aquela conversa de que
quando somos jovens somos um pouco intempestivos, e que quando chegamos a velhos
já detemos um certo saber.
- Um saber identitário, queres tu dizer?
- Sim. Isso. Mas agora responde-me: porque é que estou a perder o meu tempo
contigo?
- Porque tens um problema, meu amigo.
- Ora! Eu tenho montes de problemas!
- Sim. Mas há um em especial, que é o facto de estares sempre a pensar em algo que
ainda nem sequer aconteceu. Pensas em demasia. Descansa que ninguém te tira o mérito
por isso. Mas ainda tens muito caminho para percorrer. Por isso, deixa que os teus
horizontes falem por si.

Fiquei suspenso com as últimas palavras do anjo. Eram uma espécie de promessa,
de compromisso para o meu futuro.

Tinha mais coisas para fazer naquele dia: entregar e requisitar livros, falar com os
meus professores... Sim, falar com alguém. O mosaico das pessoas que eu conhecia não
fazia qualquer sentido. As peças não se juntavam harmoniosamente entre si. Entrei no
autocarro absorto nos pensamentos binário, ternário e quaternário. Quando teria
oportunidade de tocar a música da minha vida noutros compassos mais criativos? Entre
alarmismo e conformismo, por qual dos dois deveria tomar partido?

Em casa esperava a chegada do meu amigo. Ao mesmo tempo pensava nas palavras
de circunstância que eram sempre culpa minha por falta de coragem em ser imaginativo.
E com isto em mente, acabei por adormecer.

66
Dias depois uma carta chegou, o que me deixou um pouco mais animado.
Finalmente tinha obtido uma bolsa de estudo para uma pesquisa de um ano. Porém,
tinha a ligeira impressão de que nada iria mudar. E não era por causa disso que
continuaria a gostar mais de livros, ou até mesmo a ler mais. Mesmo que conseguisse
arranjar algum trabalho, passado algum tempo acabaria por me fartar dele, que é o que
tem acontecido sempre. Então o que é que me faltava? De que é que eu precisava para
ser como os outros? Seria esse o meu problema? Seria essa a minha deficiência mental?
Faltava-me a capacidade para juntar todas as peças de um puzzle e ver reflectido nele
toda a minha vida. E isto não foi o anjo que mo disse...

67
Uma carta para a América

Escrevo-te esta carta com um sentimento dominante de inveja. Gostaria de estar


fisicamente aí, conhecer mais pessoas, abandonar por momentos, por dias, esta Lisboa
de que estou cansado. Nem a Antropologia me ajudou a gostar mais desta minha
cidade. Nem a ciência, nem a literatura, nem a poesia. Os meus timings são
desastrosos. Reconheço que entre mim e a América que imagino há um fosso enorme.
Pretendo reconhecê-lo nos dias que estão para vir, como se de uma pesquisa se
tratasse. Ao meu tempo, é a segunda vez que vejo um mendigo sem calças em frente da
porta do cemitério. Esta cidade não me mostra coisas vividas. E eu aqui a escrever-te,
cheio de inveja. Mas fica a saber que quando for à América será para ficar. Não vou
adormecer a pensar nisto, nem sonhar com componentes do espírito americano que me
chegam através de filmes. Aliás, até estou a aprender a ser um pouco mais selectivo no
que diz respeito a filmes (chega cá muita porcaria vinda daí).

Até um dia destes.

- Chego a casa com a sensação de estar a perder a minha juventude. Mas tenho o que
desejei para os outros, quando era pequeno. Eu não queria isto, mas acabei por ser
vítima dos meus próprios pensamentos especulativos de jovem. Sabes, anjo, acho que já
descobri o porquê da minha vida de excessos.
- Ah sim? Então porquê?
- Tinha medo que a vida me escapasse, medo de não me realizar, medo de não
encontrar alguém compatível...
- Mas toda a gente tem alguém compatível.
- Aí é que te enganas. Até agora ainda não me senti realizado. Parece que é
necessário tirar as entranhas cá para fora para compreender o sentido da vida.
- Tens é de ter calma.
- Mas isso é o que eu tenho tido! Eu sei que tenho um problema. Mas não me chega
o facto de eu reconhecer isso para me sentir como a maior parte das pessoas.
- Explica-te um pouco melhor...
- Partilhar um sentimento de comunhão com os outros, sair da minha redoma,
distrair-me, esquecer-me de que existo...
- Pois. E que mais? -disse um outro anjo que entretanto apareceu junto de nós.
- Bolas! Estou farto de mim!
- Muito bem! Agora compreendeste.

Este segundo anjo vestia de verde. Já sabia o porquê das vestes do primeiro anjo.
Agora queria as do segundo, que apareceu com um certo ar de importância.

- Só quando saíres de ti próprio, te superares, é que entras na esfera dos outros. E


isso é algo que nenhum dinheiro pode pagar.
- Na teoria eu já sabia disso, mas nunca pensei que levasse um caminho tão tortuoso
para percebê-lo. Não pensei que fossem necessários tantos cigarros, cafés e chás. Mas
agora diz-me: qual o significado da tua cor?
- Esse mesmo que tu estás a pensar.
- Ou seja, o mesmo que o comum das pessoas pensa?
- Exactamente. O mesmo que a maioria das pessoas pensa.

68
- Bom, e quanto aos rituais que eu tenho para fazer certas coisas? E quanto à
incapacidade que tenho para ter trabalho fixo?
Os dois anjos dialogaram entre si. A questão era complicada, tal como a do solidão.
Depois de algum tempo, o anjo de cinzento resolveu-se a falar.
- Já falamos sobre isso anteriormente, quando estivemos no café. Tudo depende ti,
das escolhas que fazes a cada momento. Das pequenas escolhas, se quiseres.
- No fundo, ainda tenho receio de pecar. É isso?
- De certo modo.
- Pois eu já estou um pouco farto dessa ideia.
- E de que mais coisas estás tu farto? – perguntou o anjo de verde.
- Estou farto de casa. Estou farto desta cidade que não consigo amar como os poetas
dizem ter amado. Estou farto de me expor na rua como se estivesse à procura de uma
mulher bonita e que isso fosse a última coisa que tivesse de fazer na minha vida. Será
muita coisa?
- Não, por sinal não é muito. Nós, anjos, não somos panaceia para os teus
problemas. Se pensas que estás no meio de um filme americano, enganas-te. Estás em
Lisboa, em Portugal, na Europa. E é com isso que tens de lidar.
- Estás a dizer-me que tenho de me conformar, de esquecer, de fumar, de entoxicar-
me, de atrofiar-me? Sim, porque não vou desatar por aí a fazer cenas, duplicando as
coisas que vejo nos filmes americanos.
- Há quanto tempo não pensas em França? Há quanto tempo não vês um filme
europeu, de qualidade? Há quanto tempo não te deixas absorver pela leitura? Todas
estas questões me foram postas pelo anjo de verde.
- Eu digo mais: há quanto tempo não faço jogging? Há quanto tempo não beijo uma
mulher? Há quanto tempo não me sinto realmente bem?
- Tu lá sabes.
- Eu pareço um prisioneiro de grilhões numa cela. Será que tudo depende de mim, ó
anjo?
- Isso é o que tu pensas, ó humano. Pensas que tudo depende de ti. E queres escrever
a história da tua vida e viveres ao mesmo tempo.
- E será que isso não é possível?
- Sim... E muito mais do que aquilo que imaginas...

Adormeci...

Naquela manhã os raios de sol batiam ao longe na barraca da associação, do lado de


fora da minha janela.
- Bom, desta é que é. Vamos lá a levantar.
Era um outro anjo (bolas!), agora de vermelho. Seria sinal de morte ou de vida? Não
me preocupei demasiado com isso; melhor: para mim foi um significado de vida.
Levantei-me cedo. Desde há muito tempo que não o fazia e agora sentia-me uma peça
útil de um puzzle. Sabia que não era um bonitão que anda por aí à solta, mas lá que
podia fazer certas coisas bem, lá isso eu podia. Sentia-me de novo um artista.
- Bem, despacha-te na casa de banho que eu espero por ti lá fora. – disse-me,
desaparecendo entre as paredes.
Fechei a porta de casa com duas voltas na chave. Lá estava ele.
- Vamos à bica da manhã?
- Qual quê! – retorqui repentinamente – Lá mais para a tarde, depois do almoço. Ou
só quando eu quiser.

69
- Bem, tu és mesmo exigente! Afinal eu estou aqui para te ajudar e tu desdenhas dos
meus serviços? Por quem te tomas?
- Sou dono da minha vida e das minhas energias. Não pedi para nascer. Não me
arrependo de ter nascido e dou graças a quem me deu a vida.
- Essa é boa! Quanto mais propósitos de fé, menos acredito na tua prática.
- Pois vai seguindo que eu também.

A conversa seguiu azeda no autocarro. Vi alguns anjos conversando com pessoas


que, como eu, iam para o trabalho. Ou não. Também como eu. Eram poucas as pessoas
que falavam entre si. Dois jovens comentavam sobre a pequena que estava para saír na
próxima paragem. Os idosos diziam o mesmo de sempre que se ouve nos autocarros.
Saí quatro estações depois e entrei no metro. Combinámos um local de encontro depois
do almoço, aí pelas 13: 30.
As outras personagens que encontrei são terrenas. Não são as personagens que
utilizam a minha roupa, que lavo há anos. São personagens retiradas do passado, já que
não sou capaz de inventar personagens do futuro. Este é o desafio que enfrentarei
durante este livro. Lembro-me daquele escritor de guiões cinematográficos. Era brutal a
sua maneira de ver a vida. E sem querer foi nisso que acabei por me tornar. Agora não
dá para voltar atrás. E não estou a dramatizar. A escrita é sinónimo de morte. Vivo a
escrever há já vários anos. Tenho uma vida dupla? Talvez...
Tenho no pensamento a carta para a América. Será que vale a pena mandá-la? Ao
expor-me não tenho nada a perder. Talvez o faça daqui a uns dias. Estava entretido
nestes pensamentos quando um outro anjo me veio tirar o sono. Estava vestido de azul.
Fez-me lembrar o mar. Nem perdi tempo a perguntar-lhe o significado da cor das suas
vestes.
- Venho para te explicar coisas que precisas de saber e das quais tens consciência.
Outras também, das quais não tanto.
- E de que coisas tenho eu consciência?
- Da Sida, por exemplo. Achas que é um mal do fim do milénio, como toda a gente.
Finges que não tens medo, mas preocupas-te. Eu sei que sim.
- Pois. Queria saber mais da vida dessas pessoas. Acho que sou especialista em
casos perdidos.
- Finges tudo. Até gostar dos outros.
- Mas que sabes tu? Por acaso sabes mais de mim próprio do que eu?
- Não sei mais do que tu, mas contaram-me umas coisas que precisas de ouvir, para
o bem da tua “estadia” nesta vida, para o bem daquilo que desejas nos teus sonhos...
- Os meus sonhos... Ainda sonho com mulheres. Perdi a chama da descoberta em
lugares impróprios... Perdi...
- Que importância tem isso agora? Deves é olhar em frente. É o caso da Sida. Faz-
nos parecer a vida mais real. Há sempre um gesto seguinte a fazer.
- Isto é uma roda viva, queres tu dizer. Se não formos nós, alguém fará esse gesto
por nós.
- Mais ou menos. Mas não te quero dizer que vocês, humanos, são governados por
uma inteligência superior.
- Mas essa ideia sempre me agradou.
- Eu sei... Por isso é que nós temos vindo a perder algum tempo contigo.
- Perder tempo? Então que outras coisas assim tão urgentes têm vocês para fazer?
- Há casos piores do que o teu, acredita nisso. Estás longe de chegar a um lugar
confortável. Talvez até mais longe do que nunca. Mas ao mesmo tempo estás perto.
Mal abri a janela para poder respirar, o anjo saiu lançado para o céu.

70
A primeira manhã de trabalho até que nem correu mal. Almocei e esperei que o anjo
de vermelho aparecesse para tomarmos juntos uma bica (o que aconteceu em silêncio.
Ele nem me saudou).
- E quanto à Sida, o que é que pensas?
- O que é que penso como?
- Não achas uma injustiça ter de retomar a vida depois de se estar moralmente, e
cerebralmente, desfeito?
- O espírito humano supera tudo.
- Essa é boa! És americano e vermelho? Só podes ser comunista...
- Não. Nem pouco mais ou menos...
- Porra! Então és americano e Satã??? Vade retro!!!
- Alto aí! Já que me descobriste a careca, isso não é razão para não conversarmos
um pouco. Pelo menos podes pagar a bica. Não tens outro remédio, pois o homem do
balcão nem com uns óculos tridimensionais me veria.
Senti-me incomodado por estar ali, envergonhado, no meio de tanta gente. Ele
acalmou-me e continuou:
- Dessa doença do fim do milénio nem te falo, pois não sou muito dado a falar dos
meus actos. Alguém virá ter contigo para te explicar tudo o que pretenderes. O que te
posso dizer por agora é que represento, de algum modo, a humanidade que se revolta
contra a divindade. E tudo por não ter respostas. Daí os rituais.
- Certo. É preciso experimentar o mal para reconhecer a existência do bem...
- Sim. Porém, essa tarefa está destinada apenas a poucos. A maior parte dos seres
que vês aqui comigo têm rituais comuns. Tu tens um ritmo diferente...
- Diferente?
- Sim. Nunca descansas, tens sede e fome de respostas. Acordas a meio da noite
com uma pergunta e não tens um anjo perto de ti para te responder e sossegar. És uma
florzinha esquisita, um monstrinho. Em suma, uma perversão da natureza...
- Sou isso tudo?
- Acredita que sim. Porque eu, além de satã, também sou bruxo. Além do mais,
estão todos a cagar para o que tu pensas. Não te esqueças que um dia me viste. Adeus.
Regressei ao trabalho para cumprir o meu primeiro dia.

Passaram-se dias de dificuldade. Não é fácil manter-se activo depois de ter estado
moribundo e ter ganho o hábito de dormir toda a manhã. É como estar habituado a sexo
e ter de viver na abstinência durante um certo tempo. Esperava obter informações sobre
o fenómeno da Sida. Mais do que ajudas de anjos, sabia que tinha agora de retomar o
hábito de conversar com pessoas. O certo é que estava sozinho e com vontade de afecto,
vontade de escrever um poema, vontade de que as minhas palavras fossem ouvidas,
vontade de me arrepender... Vontade de tudo. O cigarro ainda arde... Quantos cigarros
mais, quantas horas mais, quanto tempo mais, quanta espera, quantos níveis de
realidade mais? A quais terei acesso? Será que estou a envelhecer? Reconheço que sim.
Espero que um anjo me venha visitar; que eu o procure desesperadamente e o encontre.
E que Deus me seja revelado. Ou Deus ou uma imagem mais límpida de mim próprio...
Salvar-me-ia se saísse e trancasse a porta de uma vez, pois iria fazer jogging, ao mesmo
tempo que procurava um anjo, mesmo sabendo que eles não existem a não ser nos
filmes que os inspiram...

No segundo dia de trabalho encontrou-se com Vitor, um antigo colega de escola.


Folheava um jornal na altura da pausa para o café, depois de almoço.

71
- Sabes, agora estou desempregado. A vida não me tem pregado grandes partidas.
Tenho visto, de cara lavada, o que sempre quis ver. Não muito mais.
- Talvez tenhas perdido outras coisas.
- Sim. Por vezes também sinto isso. Mas tenho 32 anos. Olha, está aqui um anúncio
porreiro.
- Guarda-nocturno de uma escola? Que raio de emprego, pá!
- Bom, depois de Auxiliar de Acção Educativa, é o melhor que se pode arranjar.
Além do mais, até me permite ler uns livros à noite e assim aproveito melhor o tempo.
- Que conversa é essa?
Realmente parecia uma conversa de treta.

Meses depois recebi uma carta de Vitor. Convidou-me para um café num Domingo
à tarde, à beira do Tejo. Era Outono, e o vento soprava leve sob os nossos rostos.
Sentamo-nos na esplanada do Espaço Àgora. A maior parte do tempo era ele que falava,
queixando-se da sua vida anterior, do que fez e deixou de fazer, e quais as
consequências de tudo isso. Era chato. Tinha-se tornado um chato.
- Os pingos da sanita fizeram dele um maníaco-depressivo. Já se esquecera do fundo
da sanita, que estava sujo há meses.
Bom, mas o emprego de Simão sempre era melhor do que ser contínuo. Lavar casas-
de-banho é que não era coisa que fizesse. Nem que fosse obrigado.
- A pior coisa é a solidão, pá...- dizia Vitor.
- Mas não te lembras que foste tu próprio que quiseste esse trabalho?
- Tudo bem, mas não dá. Eu levo um rádio, livros, comida... Até tenho dois dias por
semana em que jogo xadrez com um colega.
- Então que mais queres?
- Quero viver o ritmo das pessoas, pá! Das pessoas normais!
- E qual é a tua definição para pessoa normal?
- Trabalhar durante o dia, dormir à noite...
- Pois... Não acreditas que existam pessoas normais com outro tipo de horários, pois
não?
- Acredito.
- Tu queres é tudo para ti. Mais: queres convocar todo o mundo para uma festa em
que tu és a estrela... E quando surge o momento da verdade, escondes-te!
- Eu, esconder-me? Não! Desculpa, mas isso não é verdade.
- Claro que não!!! Olha, digo-te mais: o que tu queres é no momento mais
importante transformar tudo num bluff.
- Olha, aí é que tu te enganas. O que eu quero mostrar nem é um resultado, ou uma
evidência. O que pretende é um processo; duas coisas em simultâneo.
- E que coisas serão essas?
- Pois bem, aqui vai: Deus e o Homem. Sei que isto pode parecer um pouco
nitshziano, mas...
- Espera lá: estavas a falar de trabalho e agora pões-te a filosofar? Onde é que está
uma ligação entre as coisas?
- Não sei... Nasci para isto. E o pior é que isso me consome e eu vejo a minha vida a
passar bem diante dos meus olhos... E não lhe consigo tocar...
- Não te rales tanto, pá. A partir do que já fizeste, podes sempre começar de novo.
- Como, se já cheguei ao fim dentro da minha cabeça?
- Olha, começa por uma coisa bem simples: arranja uma miúda. Há quanto tempo
não tens sexo?
- Há tempo suficiente para me sentir desolado.

72
- Vês? Então começa por aí.
- Mas isso é uma história complexa. Como é que um guarda-nocturno se consegue
inserir numa sociedade em que é considerado um... Um... Um vampiro, tás a ver?
- Eh pá!!! Ganda noia!!! Tu tás-te a passar, ou quê?
- É como te digo. Foi nisto que me tornei. Se calhar a culpa é da sociedade... Ou se
calhar até é minha....
- O teu problema é que tu nunca tiveste jeito para usar estratégias que te podiam ser
muito úteis socialmente.
- Tiraste-me as palavras da boca.
- Tens de ter calma Vitor. És um indivíduo atinado. Tens de o ser mais vezes.
- Mas eu nunca tenho descanso. Não sei...
- Sabes, a verdade, no sentido filosófico da palavra, é que a vida nunca para.
- Explica-te melhor...
- As coisas nunca param. É uma roda viva. Não existe nenhum objecto que por si só
explique o que é a vida.
- Por exemplo, um pénis não significa vida?
- Um pénis significará aquilo que tu tens na cabeça, nunca a vida. Existem
representações, reflexos, imagens da vida...
- Estás a querer dizer-me que a vida, em si, não existe?
- Sim, meu caro discípulo: a vida, em si, não existe.
- Explica-te melhor, que eu estou a gostar disto...
- Ora bem, o que a vida representa é racional. A vida é representada por uma
relação. Nunca em si mesmo. Por isso é que tens de arranjar uma mulher. Certo?
- Humm... Estou a ver...
- Bom, mas está na hora de regressar. Ainda não sei se vou aceitar este emprego, se
vou mesmo para guarda-nocturno...
- Vê bem o que escolhes...

Dias depois encontrei o anjo vermelho sentado no meio de uma praça. Fui ao seu
encontro.
- Então, por aqui? E se aparece alguém para se sentar no teu lugar? Como é que
fazes?
- Essa é de anjo!!! Senta-te.
- Desta vez não vou ter contigo porque vais ter à tua espera um anjo vestido de
negro. Saberás tão bem quanto eu qual o seu significado.
De facto sabia: um familiar próximo havia falecido há pouco tempo. E eu
preocupava-me com a morte. Nunca pensei ter tanto sangue frio. Nunca pensei viver
tanta solidão, mesmo tendo alguém com quem partilhar a minha casa. Por vezes tinha a
nítida sensação de estar a enlouquecer. Mas tinha de continuar a pensar. O pensamento
nunca poderia parar. Era por ele que o meu coração batia. E no meu pensamento a morte
não tinha nenhuma imagem em especial. Nem caveiras, nem bodes, nem mesmo
Satanás. A morte era algo que simplesmente me podia acontecer de um momento para o
outro. Algo que eu deveria evitar que acontecesse aos outros. Acredito que estou num
ponto em que não poderei mudar muito da minha vida. Para mudar todo o processo,
terei então que mudar a minha estrutura.

Estava a apreciar um jardim quando o anjo negro veio ao meu encontro. Tentou-me,
como já havia feito a Jó e a Cristo. Mas ao mesmo tempo fez-me ver algumas coisas
com uma tal nitidez como eu nunca havia experimentado. E fez-me também ter mais
cautelas, medir distâncias. Em suma, saber lidar com o fogo.

73
Já tinha um bom conhecimento sobre anjos. Depois de ter dado tanta volta à cabeça
e de ter ficado velho e teimoso (tipo coração de pedra), resolvi inverter o rumo das
coisas e virar-me para o mundo normal. Quiçá as pessoas que havia conhecido já
estavam a seguir um caminho de fé. Mas isso não me importava. O que me importava
mesmo era o meu próprio caminho.
Coração pequenino e de pedra: estava desacreditado junto dos outros por causa do
meu comportamento lascivo. Agora tinha-me tornado numa pessoa que nunca pensei vir
a ser. Mas daqui para a frente tinha de admitir e viver com isso.
E aqui estou eu, fazendo da escrita mais transpiração do que propriamente
inspiração. É a minha fuga. Jamais me esquecerei dos que me são queridos, das pessoas
que conheci. Hei-de perseverar, de insistir! O resto é uma questão de fé. Agora penso
em decisões. É isso que mais fazemos durante a nossa vida: tomar decisões. E são elas
que vão modelar o nosso futuro. Ainda não falei com ninguém sobre este tipo de
assunto, mas espero um dia vir a fazê-lo. Aqui na minha casa, longe de tudo, por vezes
ainda me reencontro, ainda existo, ainda planeio o futuro. As minhas decisões não
agradam particularmente ao sexo feminino. Sinto isso porque não tenho mulheres à
minha volta suspirando (como acontecia noutros tempos)...
Há tempos tive uma conversa, não muito interessante, mas ainda assim útil com
Francisca. Ela confessou-me que estava apaixonada por um colega:
- Não sei mais o que fazer para lhe chamar à atenção.
- Olha, faz uma grande borrada e pede-lhe para ele ir lá ver. Podes ter a certeza de
que resulta. Ou então abre-lhe as pernas e vais ver que ele conhece logo o caminho...
- Não pensas noutras coisas? Mas que raio de homem és tu?
- Sou um homem... Diferente. Mas ainda assim homem. Gosto de imaginação.
- Explica-te melhor...
- Vivo na dor. Tornei-me a incarnação da dor, mais do que do mal.
- O medo da impotência perturba-te?
Eu sabia que a resposta era fulcral para ela. É que o tal colega de quem ela gostava
podia ser eu!
- Nah! O que é do homem vem à superfície.
- O esperma, queres tu dizer?
- Bah...
- Mas o esperma é vida e morte ao mesmo tempo. E essa contradição é algo
perturbadora...
- Concordo contigo. Mas vamos lá ver: deve haver outra forma de chamares a
atenção de alguém...
- Como? Diz-me.
- É... Esquece. Esquece-te que existes.
- É assim que me revelo.
- Só assim conseguirás revelar-te aos outros.
- Pois eu estou farta de sofrer para dentro. Mas creio que não existe outro meio de
sofrer. Estou farta de sofrer e pronto! A dor e o sofrimento valem de alguma coisa?
- Não faço ideia. Eu não sofro.
E a verdade é que não sofria mesmo. Nem um bocadinho; nem mesmo pelo seu
desespero. Por vezes era doentia, ao ponto de fazer lembrar o suicídio. O que me
importava era eu, a minha possibilidade de ser eu o eleito. E não era isso bom?
Caminhávamos o máximo que podíamos de modo a não permitir que os nossos
corpos, e os nossos pensamentos, ficassem imóveis como estátuas. Eu, que sempre
iludira os meus medos e a minha coragem, estava a ponto de ser considerado pela
sociedade (e pelos amigos) como um insalubre mental. Alguma coisa eu tinha de ser,

74
mas quanto a isso o problema era que este aspecto da minha personalidade não atraía de
modo nenhum as miúdas. A questão residia no facto de eu não ser nem tímido nem
audaz. Em suma, não era coisa nenhuma. Talvez o meu combate consistisse em
convencer-me, para o resto da minha vida, de que com um pénis pequeno podia fazer o
mesmo, ou melhor, do que os outros.
- Essa é a minha luta, Francisca.
- Vem, meu querido. Já esperaste por mim tempo suficiente. Vem, e dá-me um filho.
- Glup?!- Engoli em seco a ideia: só de pensar num filho ficava sem a capacidade de
o educar. Fiquei sem resposta...
Os meus movimentos antecipativos para com as mulheres foram deitados por terra.
Era como se tivesse acabado uma batalha e eu pudesse regressar à adolescência para
continuar o meu caminho. Por algum tempo, pois que agora já era crescido. Tal e qual
como o Peter Pan.
Estava agora à espera do anjo de túnica branca. Ele podia aparecer quando quisesse
que eu sentia-me pronto. Ao meu lado estava um outro anjo. Fazia-me companhia pelos
perigos da humanidade...

Semanas depois senti que estava a vestir túnica diferente conforme as pessoas que ia
encontrando. Tinha as frases ditas. Às vezes tinha a impressão de ser um arco-íris, não
no céu, mas na mente de cada pessoa. Porém, um dilema que persistia em acompanhar-
me era o de como fazer a escolha mais correcta (sempre o pensamento dialéctico a
manifestar-se...): se pelo bem, se bem pelo mal. Categorias, construções sociais,
estruturas mentais... Quando tudo se afigura cansativo e confuso, abre-se uma brecha, à
semelhança do que aconteceu com Moisés no Mar Vermelho, para poderem passar
ideias e desejos de outras pessoas. E isso é maravilhoso, pois ao mesmo tempo que
damos, também recebemos. Não pensamos em guardar só para nós, para dar um dia
mais tarde. É uma espécie de egoísmo fraterno.

Horas mais tarde descobri que um antropólogo é alguém que vê as pessoas fora da
sua cabeça. Pode vê-las como objecto. Pode vê-las como indivíduos compostos de uma
determinada identidade social... Será que esta identidade é compatível com a individual?
Por outro lado, já realizei os meus sonhos de criança. Por isso posso estar satisfeito. Por
volta dos doze anos nomeei, por exclusão de partes, aquilo que queria ser quando fosse
mais velho. “Intelectual” pareceu-me bem. Mas, e como é que ficava a sexualidade?
Bom, disso hei-de escrever mais tarde. O que importa agora é que o antropólogo se
encaixava bem nesta definição. Agora posso ser adulto.
Por último, uma outra ideia a desenvolver: há pessoas adormecidas e eu sou uma
delas (a maior parte do tempo). Há pessoas que “acordam” muito tarde; outras estão
sempre “acordadas”. Era uma dessas que eu gostaria de conhecer. E de preferência que
fosse mulher. É claro que com o tempo tornei-me um depravado, um perverso. Ora isto
só se cura, por lógica, com uma mulher. Porventura no Brasil. Os Estados Unidos da
América existem para os outros. Depois do meu percurso de vida tenho de voltar à
normalidade (ou seja, ter uma vida normal. Ser normal). E isso representa ter um
emprego, levantar-me cedo todos os dias (com excepção dos fins-de-semana)... Quero
muito; desejo demasiado. Por isso não tenho voz, mas apenas dedos para escrever. Mas
existem duas coisas que quero mais do que quaisquer outras. E tudo farei para as obter:
viver intensamente e morrer velho. Será que as conseguirei obter?
A escrita mata. Tal como o cigarro. Não existem alegrias duradouras e intensas.
Estou no fundo de um lindo oceano, que é a vida, e às vezes subo à superfície apenas
para respirar.

75
Também tenho uma luta contra as ideias fixas, como os seios de uma mulher. Não
preciso de falar com anjos (nem de anjos), mas sim com gente de carne e osso. Preciso
de afecto e de todas as coisas de sempre. À medida que vou escrevendo este livro acabo
por ir parar aos mesmos temas de sempre. Preocupa-me a carta para a América. Parece
que estou desviado dos meus objectivos de vida, que são arranjar uma mulher e ter
filhos. Isso é algo que me é imposto pela sociedade. Nem outra coisa seria de esperar.
Mas no fundo também é o que eu desejo. Não devia ter mandado aquela carta, pois
agora estou com o sentido nela. Reina uma grande confusão na minha cabeça, enfiado
neste quarto a escrever. O que me vale é que tenho o Zé por companhia.
Já me passaram os medos de morrer um pouco em cada cigarro, em cada café. Mas
prometo que vou ter mais cuidado: fazer mais jogging e tentar fumar menos. É deixa-los
pousar. Enfim, de que personagem devo falar agora? Com quem vou falar?
Hoje voltei a sonhar que estava a planar. É contraditório, pois já me sinto a mais
nesta casa. Vou fazer tudo para me mudar daqui a uns tempos. Poucas são as pessoas
que me ligam ou escrevem, o que não deixa de ser estranho. Talvez me julguem mesmo
maluco. E talvez até nem seja por acaso, pois por vezes sinto perder a noção da
realidade durante algum tempo.
Falar do passado? Falamos sempre do passado, directa ou indirectamente. Se não
acontece tal coisa é porque não temos consciência de a ter vivido. Se acontece, já não é
divertido.
A Alice tinha os seios grandes, redondos, bonitos. Enfim, quando dizemos Isto é
complicado ou A vida é complicada, é porque as coisas, os elementos, as unidades de
pensamento, estão, simultaneamente, unidas e separadas.
Deus acolhe uma parte de nós; a maior parte vagueia em busca de respostas,
ansiando por certezas no tempo e aguardando confortos na fé. Quem busca respostas
pode muito bem procura-las em diversos locais (ou mentes distintas). Porém, pode
acabar por não encontra-las, não ficando desse modo saciado. Quem procura é quem
não tem. Quem não procura ou já tem essas respostas, ou pensa que o outro as tem.
Desse modo aguenta-se focando a mente do outro. É, por assim dizer, um objecto. O
que temos de objecto dentro das nossas cabeças devemos assumi-lo. Angustiante é viver
na dúvida, na incerteza de quando acabarão os dias. E mais doloroso ainda é supor que o
fim pode estar próximo. Há momentos em que já não temos nada a perder, pois já
perdemos tudo. Os olhos confortam-se no interior, para o coração do ser. Com muito ou
pouco tempo, a vida pode ser vivida. A longevidade pode ensinar-nos tanto. Mas ao
mesmo tempo também demonstra e assevera verdades, coisas simples. Não será isto
apenas uma demonstração de empenho altruísta em permanecer aberto ao movimento
das coisas deste mundo? Ou então uma maneira de transmitir um determinado
movimento aos outros, aqueles que se pretendem iniciar?
Andamos de centro comercial em centro comercial; vemos cus, mamas, caras
bonitas... Tudo isto nos dá uma pancada que nos obriga a ir para casa. E a mulher é que
acaba sempre por aguentar com tudo no final. Pode parecer um pouco brutal esta minha
afirmação, mas é desesperante ver até que ponto hoje em dia certas coisas unem as
pessoas. E era precisamente sobre isto que falava, há tempos, com Carmina.
- Poucas são as coisas que unem as pessoas hoje em dia: o futebol, os concertos, as
marcas registadas das multinacionais...
- O futebol, sobretudo...
- Pois... A televisão só passa só passa futebol. Estou farto desta injecção de
subcultura. Pouca coisa se aproveita na televisão.
- É assim... cagamos uns peidos e a vida continua.

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- O quê??? Uma mulher a falar de peidos? Eu sabia que na igreja temos de ter
cuidado. Agora diante de uma mulher...
- Pois olha que tens de ter certos cuidados diante de uma mulher. Elas são sensíveis
a tudo. Mas bom, talvez seja melhor mudarmos o rumo da conversa. O que é que fazes
logo à noite?
- Humm... Pensava ficar por casa a ler e a ouvir música.
- Vamos sair. Não a um centro comercial, mas até à beira do rio... Até ao Parque das
Nações.
- Pode ser. Desde que não fiquemos até tarde...

No dia seguinte encontrei a Carmina no seu local de trabalho, a Biblioteca


Municipal. Era lá bibliotecária. Na hora do almoço conversamos sobre o meu
entusiasmo em frequentar um curso de Teatro/Cinema.
- Sabes, o meu objectivo é treinar-me de modo a poder escrever guiões. Realizar já
seria mais complicado. Ou talvez não. Não quero mais vítimas na minha vida por causa
das minhas aventuras intelectuais. O título desse livro seria “Solilóquio numa
Biblioteca” e estaria mesmo apropriado para ti.
- Escolheste a escrita como forma de vida. Acho que deves persistir, continuar.
Poderia ter sido a música, o teatro ou até mesmo o cinema. Mas não. Escolheste a
escrita porque acreditas que podes contar coisas positivas a quem for ler as tuas coisas.
Daquilo que eu já li, acho que tens de amadurecer um pouco mais. Fazer com que a
escrita dê frutos e tenhas a devida correspondência de quem te lê. Só assim te podes
inserir socialmente como escritor. Não é isso que queres?
- Sim. Desde pequeno.
- Então? Estás no bom caminho. Vamos tomar um café?

O meu emprego durou poucas semanas. Foi o suficiente para pagar todas as contas
lá de casa e continuar de cabeça erguida, aventando novas hipóteses para a minha
existência. Agora tinha de procurar outro trabalho. Comprei o jornal e folheei com
cuidado as páginas dos Classificados. Alguém tocou à campainha. Era a Carmina.
Entrou e fizemos um pouco de chá.
- Sabes, tu com a tua formação não te podes sujeitar a um trabalho qualquer.
- Pois... O problema é que não aparece nada. Já me candidatei a uma série de coisas
e até agora nada. Preciso de carregar energias... Sinto-me fraco, sabes? E quase que sou
obrigado a continuar o caminho que defini através da linha do tempo. É como se tivesse
de voltar atrás para procurar uma linha coerente, percebes?
- Sim, percebo. Mas tu já andas nisto há algum tempo...
- É verdade. E ao mesmo tempo o fantasma de uma carreira científica persegue-me.
- Deves ser mais persistente no trabalho; aguentar-te, conter-te mais.
- Certo. Mas a minha cabeça nunca para.
- Para. Sabes bem que sim. O problema é que tens sido um moribundo, um
desgraçado.
- Não precisas de me ofender. Sabes bem que tenho procurado insistentemente,
como tu dizes. Olha, o meu pai foi taxista em Paris durante dez anos. Tenho muito
orgulho nisso, porque os taxistas são donos de uma grande sabedoria, embora de
aparência feita.
- Como assim?
- Eles vêem ruas, pessoas em movimento, ouvem sons, mais nada. Não reflectem no
que as pessoas são. O que quero dizer é que reflectem inconscientemente, quando vão
dormir.

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- De alguma forma eles são afectados pelos seus clientes. E existem sempre
conversas de circunstância. O dia de um taxista é feito de pedaços de muita gente,
pedaços esses que ele junta ao final do dia, quando regressa a casa.
- Bom, mas tu já tiveste a coragem de ser guarda-nocturno por umas semanas. Olha
que não é para todos. Sobretudo com a tua idade. Tens mérito. E agora tens-me a mim.
Estou contigo. Sou a peça que te faltava para teres coragem para jogares com os quês e
os porquês do mundo exterior à tua mente, à tua casa.
- Bem sabes como isso para mim é importante. Eu não perdi os rituais psicológicos,
mas sim a noção de rituais sociais.
- Deixa lá isso... Os rituais sociais hão-de chegar a seu tempo. Agora fala-me da
possibilidade de uma carreira académica, nomeadamente na área de Antropologia.
Ainda não te cansaste dessa ideia?
- Ainda não consegui partir para outra. Foi como ter ido para o seminário. As
marcas ficam e há gestos, rituais, que continuamos a cumprir.
- Por acaso alguns deles serão rituais sociais?
- Claro que sim. Bem observado. Mas a minha ideia é ser professor, poder transmitir
saber. Sentir a vibração dos mais jovens com o saber. Toda aquela sensação de
expectativa, de descoberta, de caminhada pelo saber... A curiosidade científica, a
coragem de pensar para além dos limites da lógica e da imaginação...
- Isso é uma tarefa nobre. Tens investido bastante nisso. Tens de continuar a ter
esperança, ser uma pessoa aberta às ideias. Digo isto porque por vezes tenho a
impressão de que és uma pessoa demasiado fechada... Dogmática até. Dás-me um
cigarro?
- Tu fumas bem... E bastante. De que te vale isso?
- Não me venhas com preocupações americanizadas. O tabaco ajuda a viver
intensamente.
- Concordo, embora tenha algum receio. Por vezes receio não ser capaz de vir à
superfície para respirar. Tenho medo de ficar ancorado num canto frio e escuro do mar...
- Podes ter medo. Aliás, tens todo o direito a tê-lo. Mas no final vais acabar por
descobrir a verdade. De que cor será ela?
- Essa é boa!- disse de repente, com fogo nos olhos. Depois peguei calmamente na
minha caixa de tabaco e acendi um cigarro para mim. Ao mesmo tempo, lembrei-me de
um episódio que, estando eu num café, perguntei, a uma moça negra, de que cor era a
verdade. Ela respondeu-me, através dos seus lábios quentes, que era vermelha. Quando
saímos, ela entrou num táxi. Mais tarde arrependi-me de não a ter acompanhado. Faltou-
me qualquer coisa...).
- É uma boa questão, não é?
- É. Mas olha, já aqui estamos há três horas e ainda não fizemos nada. Leste a
inscrição por cima da porta?
Ela olhou e envergonhou-se. Beijei-a na face e depois na testa. Despedimo-nos. Ao
chegar a casa fui tomar um banho quente e retemperador. Quando estava em imersão os
meus pensamentos destilavam devagar, com prazer. Mas de repente lembrei-me de
outros e levantei-me. Esvaziei a banheira e tomei um duche de água gelada. Estava a
sentir-me vivo novamente. Eram seis e meia da tarde. Iria sair? Tinha algum sítio
destinado?

Viajei pela memória, como sempre costumo fazer. Sonhei acordado. Até que me
fartei e fui de encontro à noite da cidade. Num bar sentei-me e pedi ao empregado do
balcão uma água tónica. Estava à espera de encontrar alguém que me fizesse emergir do
fundo do mar em que me encontrava. Podia ser bonito e comovente, mas era algo que

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não me assegurava a sobrevivência. Se não fizesse desporto, jogging, não assegurava a
superação de mim próprio (ou seja, a minha sobrevivência). Estou morto. O que me
resta mais? Alguma coisa chamada vida? Alguma mulher ao meu lado? Não me parece.
Não tenho nenhum filho para educar, coisa que o meu pai não fez bem por mim. A
única coisa de jeito que fez foi dar-me liberdade de escolha...

- Então Satã, como vais?


- Ardendo. Vai uma passa?
- Mudei o logótipo do ícone de apresentação no meu computador flipado.
- E morreu uma pessoa...
- Uma pessoa que admirava. Um modelo. Já não sei mais o que te dizer Satã. Serás
tu a própria morte?
- Há quem me confunda assim. Lembra-te que eu fumo.
- E a razão de ser dos cornos?
- É do bode. Todo um simbolismo...
- Pois... Até aí percebo. Mas porque é que arrastas as pessoas que nos fazem mais
falta?
- Porque a todos chega a sua hora.
- E será esse o grande segredo da vida?
- Touché, meu caro. Não te esqueças de que fui eu quem mais desafiou as forças
divinas.
- E Judas na tua pessoa?
- Pessoa???
- Ok. Monstro.
- Obrigado!!!
- Tenho dado voltas do diabo, pensando que iria para algum lugar, e acabei por ir ter
a lado nenhum.
- Esse lugar é onde eu habito.
- Como?
- Como já te disse, é tudo uma questão de simbolismo. Lembras-te da Odisseia, da
luta entre os homens e os deuses?
- Estás a querer dizer-me que o Paraíso também não existe?
- Nem mais!
- Ah! Então certos lugares não existem? Essa é boa... Muito boa mesmo.

(...)

- Às vezes trazes surpresas inesperadas... Tão inesperadas que mais parecem saídas
de um anjo...
- Mas eu sou um anjo.
- Eu queria dizer vindas do Céu.

(...)

- Ó Satã, confesso-te que tenho andado a dar amor a quem não o merece. Falo de
uma amada em particular.
- Mas ela vive aqui no Hades?
- Não. Tu não acabaste de dizer que certos lugares não existem?

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- É uma forma de expressão.
- Não. Ela vive no planeta.
- E então?
- O que se passa é que tenho dado mais amor a ela do que à minha família.
- Mas a família não é importante.
- Isso também é uma força de expressão do Hades?
- Sim. Diz-me uma coisa, homem dos diabos: não estás farto de estar agarrado a
essa máquina há tantos anos? Isso é que deve ser um inferno!!!
- É a única forma que conheço de comunicar contigo.
- Boa resposta! Acho que me estou a converter...
- A converter?
- Sim. A ganhar asas brancas novamente.

(...)

- Queres tu dizer que a Bíblia pode ser lida de trás para a frente?
- E vice-versa.
- Isso já a gente sabe, mas...
- É uma hipótese...
- Uma hipótese? Então quer dizer que o mundo também pode ser visto de pernas
para o ar? Como fazia Bosh?
- Nem existe outra maneira. Imagina que é como uma ampulheta que, ao esvaziar-se
a areia de um compartimento, tens de a virar para ela encher o outro.
- Bem pensado... Sabes, sempre simpatizei contigo, Satã...

(...)

- Hoje é um dia de cansaço extremo. Tive três ou quatro sonhos que me deixaram
sem forças.
- Isso é uma actividade própria de vocês humanos.
- Então tu nunca sonhas? Nunca sonhaste voltar a ser um anjo normal?
- Não, não sonho. Não tenho esse privilégio. Foi a Divindade que vos deu esse dom,
não foi?
- Sim. E olha que é muito bom. Sobretudo quando acordamos para a realidade. Ou
melhor dizendo, quando estamos a viver uma realidade virtual que sabemos que vai
acabar a qualquer momento. Às vezes até com desfechos imprevisíveis.
- Reconheço que é positivo ter esse dom.
- Mas este cansaço de viver... O que irá ser dos meus restantes dias?
- O que tu quiseres, pá.
- Olha, isso é fácil de dizer. Sabes, tenho pensado em virar-me para o lado dos
maus, para o teu lado.
- Com que intenções?
- Ver o dark side, o wild side...
- Olha que se calhar não te valia a pena...
- Achas que não? É que me sinto muito tentado. Acho que é tempo de deixar esta
casa...
- Bom, tu lá sabes as vezes que tens dado com a cabeça na parede...
- Olha, o suficiente para estar farto! Farto desta casa, farto dos meus pais, farto de
tudo isto. Será que sou corajoso ao ponto de me suicidar um dia?
- Humm... Não te vejo com forças para isso.

80
- Nem eu...

(...)

Satã aproximou-se:
- Então, qual é o assunto de hoje?
- Acabei de receber uma carta de uma Testemunha de Jeová.
- Podias conviver com eles.
- Pois... Se calhar até seria terapêutico.
- Que se dane, homem! Faz qualquer coisa de novo! Olha, por exemplo confessa-te.
- Ora, isso não é nada de novo. Já lá estive muitos dias, lembras-te? Ora, é óbvio que
não te lembras. Não estavas lá.
- Mas estava quando decidiste ir às putas...
- Pois... Essa parte até que soube bem. A emoção, a expectativa, a sensação de se
estar a fazer algo proibido ou reservado a poucos... O pior são as mazelas, ó Satã de
merda. Agora sinto-me sempre sujo. Só penso em cuecas sujas e cús. Por isso é que as
relações anais são satânicas.
- Como satânicas?
- Porque envolvem dor.
- Ora... Isso é só ao princípio. É um rito de passagem.
- Está bem. Mas passar por tudo isto? Para que é que me queres levar para a
prostituição? Para que é que me roubas as ideias? Sabes bem que tenho de arranjar
trabalho, seja numa instituição qualquer ou numa escola... E estou com medo. Tenho
falta de ideias para escrever, para ler...
- Oh pá!!! Sabes que é da minha competência criar surpresas e expectativas,
procurar o fogo onde não existe esperança de ele existir.
- Dizes isso de um modo tão poético...
- É bom... Tal como o sexo também é bom. Tu já o experimentaste, não já?
- Pois. Mas acontece que eu sou demasiado complicado. Eu devia era ter ficado
quietinho onde estava, manter uma profissão. Compliquei tudo; julguei-me jovem e
capaz de tudo. Agora tenho poucas possibilidades.
Surge um outro anjo diante de nós:
- Mas ainda vais a tempo.
- Será que vou? Depois de tanto desconcerto e crises psicológicas? Sabes que esta
tarde andei de um lado para o outro, dentro de casa, à procura de algo para fazer dentro
dos meus estreitos limites. Andei sem parar, sempre a fumar um cigarro de Satã.
- Não ligues à sua poesia. É enganosa como as cobras. Tens é de imaginar os
mundos que ainda não visitaste, estar presente e ausente ao mesmo tempo. Tens de
conseguir a tua independência económica.
- Na prática isso é muito difícil. Sinto-me demasiado vazio... Sem mensagens, sem
palavras para transmitir aos mais pequenos... Sinto-me incapaz de ser pai para os filhos
que ainda não tenho...
- Mas não precisas de exagerar. Não tens necessidade de ser pai antes do tempo.
Mantém-te ocupado. Vais ver que daqui a uns tempos os teus esforços não foram em
vão. A tua sementeira vai acabar por dar frutos. Arrependeste-te como Pedro, que negou
Cristo por três vezes. Fizeste bem. Reconheces-te como cristão porque sabes que tens
limitações.
- E tenho de viver com elas...
- Pois tens.

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- Eu quero poder-me realizar, como toda a gente. Sentir-me alegre.
- Sabes, o que me estás a pedir é difícil. Às tantas tens de pagar a tua sobrevivência
com sofrimento moral.
- Não me digas... Não, não pode ser assim. Eu hei de lutar para que não seja assim.
Hei de procurar incansavelmente até encontrar qualquer coisa, qualquer metal
precioso...
- Talvez se te esforçares acabes por conseguir. É uma questão de procurar: nisso
tens razão. Lembra-te sempre do Santo Graal e dos Cavaleiros da Távola Redonda.
- Porque me hei de lembrar disso?
- Foi uma experiência que tiveste, não te lembras? Na aldeia de Paúl, na Serra da
Estrela.
- Recordo-me vagamente. Lembro-me que senti uma grande emoção ao perseguir
um objectivo comum, isto é, com um grupo de amigos.
- Vês? Nem tudo é negativo. Podes voltar a ter um grupo. Quem sabe um grupo de
trabalho?
- Era bom que assentasse. Era bom que isso acontecesse...

82
Os Sete Vícios

Os sete mares, as sete virtudes, os sete vícios capitais. Ibiza, esplendor do turismo
espanhol, conheceu o maior assalto do ano. Os pormenores do crime são condimentos
próprios que se utilizam nos filmes de Hollywood. A espectacularidade, a surpresa, a
vontade de sucesso. Cerca de um milhão e meio de contos. Os sete. O dinheiro havia
sido depositado em sacos há pouco tempo. De surpresa, sete indivíduos põem em pânico
os seguranças, usando gás lacrimogénio.
Fernando Girão diz numa canção que “mataram cem elefantes na selva/ onde mais
podia ser?” Os animais não são dádiva da natureza, a natureza não é dádiva para os
homens; é parte de si próprio. O caminho do homem é o “caminho do indivíduo”. A
mente humana nem sempre explica os desígnios da razão. A desordem confunde –nos,
mas faz falta. É como a sobremesa que deve sempre acompanhar o prato principal, de
preferência activando os extremos sabores que a língua codifica.
Sentimo-nos roubados, quer pelo dinheiro, quer pelos elefantes que tiveram de
morrer. As leis do mercado contemplam esse desequilíbrio que o carácter residual da
desordem assume na sociedade actual. Confrontam-se também dois mundos, onde de
um lado há pessoas a colocar devotamente as coisas no seu lugar, e do outro surgem
outras a ameaçar o limite das coisas, pensando apenas no sabor de que se alimentam.

83
O diálogo da escola

Começou a escola. Já há manifestações, a malta faz valer os seus direitos. Está tudo
em vias de legalização. As coisas mudam e muda a forma como nós as vemos. Hoje, a
Escola Secundária tem grades à volta. Foram ordens vindas de cima, com justificação
própria. A juventude está “em experiências”, e que melhor laboratório que a própria
escola? É como a comunicação nos dias de hoje, a um nível global. O pior é que as
ondas são tantas que as intersecções acontecem. Com o desenvolvimento das
comunicações, essas ondas vieram a tornar-se cada vez menos visíveis para quem as
utiliza. Só o telefone é eterno, porque a gente continua a ver os fios. Está tudo em
comunicação, no entanto. A escola está aberta à comunidade, tudo como deve de ser,
pela mão da oficialidade própria conferida por intermédio de prémios “ao melhor
aluno”, ao mais trabalhador, ao mais dedicado. Não sei. Esta coisa faz-me confusão à
cabeça. É que dantes não havia prémios desses. E as coisas faziam-se à mesma. A gente
pegava e baldava-se a uma aula e lá íamos para o Fogaça derreter uns trocados nas
maquinetas, estas a luzir impertinentes, ora para o bónus, ora para nós, a pedir mais um
metal. Havia o saudoso Luna, cinzentão como os tipos que o frequentavam. Ali jogava-
se bilhar e snooker do bom. Havia profissionalismo. As coisas tinham menos nome.
Mas seja como for, vai daí, a gente ía também percorrer a linha do comboio, centenas e
centenas de metros em cima dos carris. Sobravam sempre uns parcos trocos, diga-se em
abono do orçamento para tais pueris divertimentos- para pôr uma moedita em cima do
carril. Só para ver o resultado. As velhas moedas de um escudo ficavam uns medalhões
que era obra, e já havíamos preparado o pasquim de corticite para as pôr, lá no quarto,
ao lado do poster dos Duran Duran. Os dias da escola eram diferentes. Hoje, não sei... A
malta é muito alinhadinha e só faz estragos ao erário público. Longe vão os dons da
mocidade que a gente conhecera nas escolas, pelos fardamentos próprios. Havia rigor,
organização regimental, militar ou religiosa. A homogeneização de consciências sem o
propósito primeiro de um regime são, tinha, à cabeça, o mais alto defensor de tais
propósitos...

84
Consumo Imediato

De acordo com o contexto social, a crença dos indivíduos nos ideais de divindade
tem-se revestido das mais variadas formas. Mas porque o homem é um ser social, tal
variedade veio a constituir-se como o traço mais saliente da história das religiões. A
Coca- Cola e os jeans, produtos da sociedade industrial, deram resposta a necessidades
de ordem biológica; assumem-se hoje como mecanismos inteligentes que percorrem o
campo da cultura em direcção ao reverso, saciando a rarefacção do espiritual que o
quotidiano das cidades provoca. A associação feita pelo logótipo Benetton entre as
ideias de necessidade- consumo e o hábito religioso, feriu muitas susceptibilidades.
Abalando a fé ou arrastando uma mudança de atitudes por parte das entidades, a
publicidade oferece aos consumidores, a baixo preço, o cunho possível onde ele dá
liberdade aos anseios de poder sobrenatural. A sociedade industrial, longe de ter
eliminado a necessidade de religião (enquanto ligação do indivíduo ao sobrenatural)
apresenta-a sob novas formas.

85
Greve de Fome

Mais do que vitimizar-me, o que não me traria vantagens materiais, tenho de dar
conta da humanidade que há em mim e da perversidade do conceito de sociedade.
Tenho de me interrogar e de me indignar, porque sou obrigado a ver filmes porno como
um menino que nada conhece do mundo, como alguém que mendiga relações sexuais...
A mendigar no verdadeiro sentido da palavra. Porque é que a sociedade não me deu
autonomia aos 30 anos? Quem será o responsável? Temos de ver quem é que tem de
intervir numa situação destas. Creio que serão mais os políticos, ao contrário dos
especialistas em saúde mental. São os políticos que pressionam e fazem leis para os
economistas e gestores da coisa pública intervirem em termos de ajuda social. Há que
denunciar hipocrisias, mesmo correndo o risco do feitiço se virar contra o feiticeiro. Há
cumplicidades a abater. Há que inverter a ordem da sociedade por uns tempos, para que
a mesma, enquanto soma de indivíduos (ou individualidades), possa ser um negócio
rentável. Por fim, há que dar lugar aos que se ocupam da dignidade humana (no aspecto
moral do termo). Há que saber investir naquilo que é torto, mas que ainda se pode
endireitar.
O sucesso a todo o custo pode conduzir a um mal-estar próximo do suicídio. A
solidão é uma condição do ser humano, não uma necessidade. Porquê a solidão social
de alguém? Porquê a estigmatização? Porquê a condenação da diferença?
O homem sempre se deu mal com a diferença. Pois a minha posição, enquanto
antropólogo, é que a diferença é uma coisa em que vale a pena investir. Quando falo de
diferença falo em termos de diferença psicológica, não de diferença cultural, embora
esta divisão seja um pouco discutível.
O homem tem dificuldade em lidar com situações de instabilidade mental. Precisa
de bens, de ter, ao invés de procurar ser. O ter é o que me traz até aqui para dizer
algumas coisas que as pessoas, por si só, não têm meio de saber. O ser é uma procura; é
algo que, na minha perspectiva, se vai perdendo com a idade (embora por vezes haja
uma certa tendência em querer contrariar isso). Podemos manter, dentro de nós
próprios, esse ser. E se acreditarmos na reencarnação, ele não morrerá connosco.
Finalmente, fascina-nos tudo o que está relacionado com a Psiquiatria.
Pessoalmente, fascina-me a Psicanálise e a exploração do homem (do indivíduo) pela
sociedade moderna. O indivíduo é levado a renovar-se constantemente, e com isso vai
perdendo identidade. Tem de haver um equilíbrio entre a psiquiatria e as necessidades
básicas do ser humano, que são...

86
3ª Parte

87
Uma tarde na Travessa do Fala- Só

Introdução

Às vezes sinto que tenho qualquer coisa para dizer, para escrever, mas falta-me o
diálogo e o enquadramento. Os meus diálogos, quando existentes, são muito
característicos: parece que existem para fazer uma pausa na narrativa e que não
representam o resultado, não se apresentam como uma continuidade no discurso.
Eu devia interiorizar as personagens e vivê-las no meu dia-a-dia como se da minha vida
se tratasse. Há qualquer coisa de ético na ausência de personagens nos meus escritos:
recuso-me a brincar com o destino das pessoas e não aceito que uma personagem seja o
resultado de uma imaginação que, apesar de indirecta, tem as suas raízes na minha
experiência pessoal enquanto autor.
Há cerca de um mês comecei um manuscrito que pretendia ser uma alegoria ao
mundo das descobertas geográficas: eu pretendia dizer, ou defender, a tese de que as
viagens interiores, as viagens fictícias, também são legítimas. Estava então iludido com
a hipótese de fazer estudos de psicanálise. Agora, depois de ter terminado um
manuscrito a que chamei “O Sussurro da mente”, desejo recomeçar algo de novo, algo
que diga alguma coisa que não as minhas impressões acerca da vida e dos dias. Talvez
tenha a necessidade de marcar os períodos do meu pensamento, as etapas da minha
caminhada. Não sei se o que se segue é o corolário desses dois manuscritos, mas espero
que seja algo de distinto e completamente novo. Se servir de alguma coisa, informo que
tomei importantes resoluções quanto ao meu comportamento e atitude perante a vida: é
um conjunto de regras da qual destaco a redução considerável no tabaco e a abstinência
em relação ao álcool, a que se liga a toma de medicação para manter a boa saúde física e
psíquica.
Devo dizer que o autor desta obra ainda não tem qualquer obra publicitada e que
esta representa o resultado de uma relação indirecta com o público. Um livro é tanto
melhor quando é criticado e o seu sucessor está sempre ligado a ele.
Tenho dito.

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Capítulo 1
Nós Mesmos

O dia começa com a manhã, finalmente. O sol entra iluminando os cantos mais
escuros da mente. X sentia que alguma justiça se estava a fazer. A viagem que tinha
adiado era agora possível assim que tivesse a quantia certa que juntara numa conta
propositadamente para esse fim. Tirara o dia para pensar, pois, em que estado deixaria a
casa. Em Madrid esperava-o uma outra casa, que estando arrumada ou frequentada,
seria o seu poiso nocturno nos seus próximos dois meses. Y era uma estudante de pós-
graduação em Biologia com uma tendência para a Psicologia. Trocar Lisboa por Madrid
não iria aparentemente mudar muita coisa no comportamento quase desviante de X. No
entanto, a serenidade do campo, embora fazendo bem à generalidade das pessoas
stressadas, não lhe trazia benefícios especiais. Parecia que a sua vida era uma busca
incessante do melhor ambiente para sobreviver, tal como espécies de aves, que fazem da
sua emigração em busca de um habitat perfeito para se reproduzirem, a característica
essencial do comportamento.
Havia vários meses que X não entrar na casa de alguém. Y deixara tudo como se X
fosse algum inspector de casas. Deixara as coisas tal como X deixaria se alguém o fosse
visitar. Contudo, deixara a casa como se habitasse ainda nela alguém. Parte da sua alma
tinha ficado em Lisboa. (Fazer descrição da casa de Y). Agora estava em Madrid, com
as primeiras impressões da casa de Y. Embora estivesse tudo em ordem, tudo limpo,
havia uma ausência de calor humano. Parece que tudo havia sido preparado para
impressionar. Talvez Y não recebesse visitas há muito tempo e quisera experimentar
como se sentia uma outra pessoa noutra casa. A casa de X era tudo menos fria. No
terceiro dia de estada em terras espanholas, X recebia uma carta: “Espero que tenhas
chegado bem a minha casa. Fiquei satisfeita com a tua. Não te posso dizer ao certo
quanto tempo ficarei aqui por Lisboa. Acho que se sair de casa todos os dias poderei
aprender a gostar da tua cidade. Até breve.” X respondeu-lhe com um postal. Cedo
notava nas cartas de Y uma tendência para actos obsessivos e repetitivos. Quando
acabou o período de tempo em que tinham feito o contrato de ficar em cada uma das
casas durante aquelas férias, X perguntou-lhe frontalmente se teria alguma perturbação
de ordem psiquiátrica, ao que Y lhe respondeu que si: uma neurose ansioso-depressiva.
Qualquer expectativa de vir a estar num lugar público causava-lhe ansiedade e às vezes
nem se conseguia vestir, preparando-se para esses convívios. X convidou Y para ficar
mais uns tempos em Lisboa e resolveram inscreverem-se num programa de terapia
comportamental no Hospital Getúlio Vargas. Começaram a frequentar locais de
interesse particular, como o bar Frágil, de que X tinha saudades. Outros locais se
seguiram, incluindo casas de fado. Nas reuniões semanais de terapia conheceram 1N,
que tinha problemas semelhantes. De uma maneira ou de outra as vidas destes três seres
estava condicionadas. Mas eles não desistiam. Aproveitavam todas as brechas de
lucidez que lhes surgiam para porem sempre, uma vez mais, as suas vidas em ordem e
andamento. Nessas reuniões não havia nenhum médico que explorasse a sua
subjectividade. X preocupava-se particularmente em defender a sua privacidade. Y era
mais descuidado e falava sobre acontecimentos passados. N preocupava-se mais com
acontecimentos futuros, pondo muitas vezes em causa o facto de estarem ali numa
reunião de pessoas com um qualquer distúrbio mental.

89
Capítulo 2
Nós e as Mulheres

Os manuais de psiquiatria diziam claramente que pessoas com tais perturbações


tinham dificuldade em entabular relações íntimas com pessoas do sexo oposto,
especialmente com as mulheres. Talvez o motivo fosse o facto de se criar ansiedade
face a determinados encontros em que se punha tudo em causa. X via os seus amigos
realizarem as suas etapas da vida e ele, justamente por se preocupar demasiado com
isso, estava ficando para trás. Mas pronto, X não pretendia ser representativo de todas as
pessoas com TOC, nem Y pretendia ser representativa de todas as pessoas com TAD. N
estava ainda fora do mundo das aventuras psiquiátricas. Não tinha marcas, estava
imerso na doença, mas ainda não se apercebia disso. O facto de X e Y terem trocado de
morada durante mais de dois meses tinha representado um avanço importante para a
cura. Mas não era isso que mais os preocupava. Estavam numa fase em que tinham já
feito tanto mal a eles próprios que procuravam um no outro apenas o diálogo que lhes
ajudasse a compreender que afinal não estavam sozinhos neste mundo de experiências e
manifestações múltiplas. N preocupava-se com tudo. O seu transtorno, uma forma
pouco comum de esquizofrenia, obrigava-o a amar e odiar a sua casa. Sentia-se
protegido dentro dela, mas como que posto de lado de uma vida normal. X e Y também
sentiam algo idêntico, mas já sabiam que uma vida normal não era possível. Estavam
conformados, e uma outra espécie de vida normal esperava-os lá à frente.
Com as mulheres, N ainda se dava bem. Tinha inclusive uma namorada que, apesar de
estranhar o que se estava passando com o seu "pêssego", esperava que tudo fosse
transitório. A medicação reduzia consideravelmente a excitação em X. Seria preciso
uma Linda Evangelista no seu melhor para ele poder realizar o acto sexual. X era algo
descuidado quanto a relações sexuais. Por vezes interrompia mesmo a medicação para
se sentir mais excitado.
Y voltou para Madrid e arranjou um emprego em part-time numa agência de
viagens. Continuava a amizade com X através de longas cartas que lhe serviam de
continuação à terapia deixada para trás no Getúlio Vargas. N deixara de todo a terapia e
entregara-se de cabeça a fundo na vida de uma pequena cidade do sul. As cartas tiveram
o efeito de aproximar de novo X e Y e casaram-se dois meses depois em Barcelona,
corria o ano de 2002. O primeiro filho nasceu na primavera de 2004. Uma menina de
cabelo aloirado e olhos intensamente verdes. O médico que ainda fazia psicanálise aos
dois preocupou-se em saber até que ponto as doenças dos pais seriam congénitas. Parece
que não. No seio do casal XY, a perturbação instalara-se três anos após o enlace.
Discutiam amiúde, e por vezes até usaram de violência um contra o outro. Nem o facto
de saberem que a doença dos seus filhos não era congénita os tranquilizava e
harmonizava. X insistia em deixar de tomar medicamentos por períodos de tempo que
se alargavam cada vez mais a fim de ter mais desejo sexual. Com o tempo tornou-se
magro e encovado nos olhos. Parecia um arrumador de carros: fraco, barba por fazer,
julgando que o mundo lhe devia infinitamente mais do que ele próprio alguma vez
fizera por si próprio.
Entretanto, N voltara à psicoterapia. Era paralelamente acompanhado por um
médico que o ouvia pouco tempo. Cumpria a rotina de acertar a medicação e pouco
mais. Y contactou N a fim de saber como ia a sua saúde. Afinal de contas tinham-se
conhecido em igualdade de circunstâncias. N, por conselho de Y, fixou-se num médico
particular e resolveu aderia à dançoterapia. Por esta altura já Y e N se haviam separado,

90
pouco tempo após ter nascido o segundo filho. Não se viam senão para X falar com os
seus filhos. Por vezes os filhos passavam uma semana inteira com o pai e Y nunca se
desviara da medicação e da terapia individual. Achava mesmo que já podia dispensar a
terapia. Bastava a medicação.
Corria o ano de 2009 quando os três receberam um postal que os convidava para
uma peça de teatro a realizar na Fundação Gulbenkian. Com a devida antecedência pois
eles iriam figurar como actores numa peça de Tchekov. Foi ocasião para se encontrarem
de novo. A ambos havia sido enviado um original do texto da peça com as suas deixas
assinaladas.
O tema da peça era simples: como nos desviamos da realidade por meio das doenças
psiquiátricas e como nos podemos reconciliar com a realidade através delas.
Intervinham cinco personagens que não falavam entre si, mas que através de cada
solilóquio se compreendia cada trama. Para entrar na pele das personagens havia que
entrar no espírito da época. Pareceu-lhes maçudo terem de ler as duzentas páginas do
romance. Mas cedo compreenderam que por detrás da bonomia das palavras se
escondiam dramas e vivências que se podiam ressuscitar. Para quem não acreditava,
como X, na reencarnação, N, com todo o seu entusiasmo, convenceu-o de que pela
escrita o autor quisera perpetuar-se. E eles iriam ajudar a conseguir essa reencarnação.

91
Capítulo 3
O Reencontro

Corria o ano de 2011. X conhecera uma companhia enquanto Y tratava da educação


dos filhos. Os seus medos concretizaram-se: era um pai distante, que via os filhos
esporadicamente, e nessas alturas tentava-os aliciar com presentes. Os filhos entravam
na adolescência sem grandes problemas. Os genes pareciam estar bem codificados.
Tirando o entusiasmo inicial, a relação de X com Z estava conhecendo dias menos bons.
Z nunca acreditava que os níveis de serotonina fossem importantes para que o seu
marido se sentisse bem humorado. Pensava que Z era mesmo assim e que nunca poderia
ser de outra maneira. O cansaço mental de X aumentava e resolveu escrever à sua antiga
mulher. A resposta demorou, por razões óbvias, mas chegou. “Como já deves saber,
experimentei há pouco tempo uma perda que não sei até que ponto se poderá reparar:
a morte do meu pai. A minha mãe encontra-se doente, internada num sanatório.
Portanto, não me venhas com queixas que eu já tenho muita com me ocupar. Espero,
mesmo assim, que possas visitar os teus filhos no próximo Sábado.” Sábado chegou. X
parecia estar diferente. Não se queixava tanto dos seus problemas. A relação com Z
havia definitivamente terminado. Propôs de novo a Y casamento. Afina11 tinham ainda
dois filhos adolescentes para criar. Essa era a sua maior preocupação, não o
agravamento das suas obsessões e depressões.

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Capítulo 4
As Vocações

A casa passou a ser uma e não havia tempo para grandes obsessões ou depressões.
Quando um dos filhos acordava sobressaltado por um pesadelo, a X interessava-lhe
saber o que significava, que personagens entravam no sonho. Y preocupava-se em
contar uma história que serenasse o coração sobressaltado do pequeno rebento. Um dos
rebentos revelou desde cedo a sua inclinação para tactear objectos e receber
informações do mundo através desses mesmos objectos. Aos quinze anos ultrapassava o
pai nas lides domésticas, tais como a reparação de uma máquina de lavar ou fazer uma
casota para o Funny, o cão que tinha já seis anos. Quanto à menina, era mais inclinada
para as artes. Aos dez anos o pai ofereceu-lhe um estojo de pintura. Os dois filhos não
eram sobredotados, mas desde cedo revelaram inclinação para campos distintos do
conhecimento do mundo.
Parecia que tudo se encaminhava para não haver continuidade nas doenças
psiquiátricas na família. Contudo, o tempo que X passara fora de casa fizera com que a
menina criasse uma ideia super valorizada do pai. O pai, para ela, seria alguém que
nunca estava por perto e que a mãe dizia que não tinha nenhum defeito para aplacar a
sua ausência. Quando a menina tinha 15 anos o pai surgiu-lhe na vida e ela pode
comprovar por ela mesma que não era nenhum poço de virtudes, e por muito que se
esforçasse, fazia de qualquer acontecimento um problema, vulgo, tempestade num copo
de água. Contudo, com o diálogo, esta ausência nos mais importantes anos de vida da
criança ia sendo compreendida. O pai tinha andado por outros caminhos para se
encontrar a ele próprio com a família e, agora mais do que nunca, esforçava-se para ser
melhor pessoa, a pessoa que nunca tinha sido. Era para ele, de algum modo, uma
segunda infância, e este facto aproximou-o da sua filha. X dava agora aulas numa escola
secundária relativamente longe de casa. Os jovens que encontrava podiam muito bem
ser seus filhos. Tinha alguns problemas em impor a sua autoridade aos alunos, dando-
lhes certa liberdade só pelo facto de serem seus alunos. Contudo, era rígido nas notas e
nos testes. Essa rigidez era apenas aparente, pois o seu objectivo era que todos, com
mais ou menos esforço, passassem de ano. A sua disciplina, Geografia dava a azo a que
se preocupassem com certos problemas sociais. Não dava para entrar na alma do
professor, de modo que cada aula era um desafio à sua capacidade como gestor de
miúdos naturalmente irrequietos. Talvez imaginasse que estes alunos seriam antes do
Ensino Superior, mais comprometidos com o mundo que os envolve, mais
sensibilizados para apreenderem os conhecimentos do professor. Os seus adolescentes
eram ainda assim, mas num estado germinal. A maior parte deles procurava ainda a sua
identidade. Mas como poderia X dar-lhes aquilo que parecia não ter?

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Capítulo 5
As Artes e os Ofícios

X tinha tido em tempos a impressão de que exploravam a sua pessoa, a sua


personalidade. Era como se fosse uma espécie rara aprisionada na gaiola de um jardim
zoológico. A generalidade das pessoas não tinham doenças psiquiátricas, ou se tinham,
lidavam melhor com elas, não fazendo tempestades num copo de água. Parecia ainda
que a vida se tornara mais interessante com o seu TOC. Contudo, estava a ser bem
sucedido como professor. Dentro em breve passaria para um escalão onde a
remuneração aumentaria consideravelmente. Isso dava-lhe espaço para criar os seus
filhos, e embora Y estivesse temporariamente no desemprego, tinha tempo para alguns
luxos, como fumar ou comprar livros. Corria o ano de 2014.
O rapaz mostrava pouco interesse em entrar para a Universidade. Era um sucesso
junto dos seus amigos e via-se claramente que iria dar um bom mecânico de
automóveis. Quem sabe, com sorte e dedicação, poderia mesmo montar o seu negócio.
Por agora, trabalhava já na oficina de Pedro Lontra, a dez quilómetros de casa.
Delegavam-lhe muito trabalho e o patrão tinha-o como seu filho. Era um alívio para X,
que dera tudo quanto pudera ao seu filho, mas que não podia ser confortado com a
dádiva de ele ser como ele queria que fosse. Pelo contrário, Florinda mostrava-se
inclinada a frequentar Belas Artes. O seu espírito criativo não se revia nem em X nem
em Y. Y preocupava-se exclusivamente em curar-se, em controlar a sua doença, pelo
que não tinha tido tempo para arranjar um emprego estável. X continuava na mesma
escola há dez anos e tornara-se, portanto, efectivo. Contudo, conseguira, para além dos
seus vícios, amealhar algum dinheiro que, conjuntamente com as rendas que Y fazia
para vender a uma loja de artigos de decoração, daria para um viagem aos Açores.
Desde cedo os dois rebentos não haviam precisado de brinquedos acabados de fazer. A
avó de Raimundo confeccionava os seus brinquedos de rapaz e terá sido isso uma
grande ajuda nas preferências do rapaz pelos ofícios do concreto. A vocação de Ivette
parecia, pelo contrário, fugir a todas as leis das probabilidades. Uma mãe extremosa e
perfeccionista mas que pouca experiência do mundo exterior tinha; um pai virado para a
intelectualização da informação do mundo, convencido que com os seus alunos
poderiam aplacar a ausência que deixara ou que pensava ter deixado nos seus filhos. Era
como se depois de X e Y terem espremido as suas existências tivesse surgido algo de
verdadeiramente bom na figura de Yvette e do seu irmão.

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Capítulo 6
Duras Realidades

É manhã de um Inverno surpreendentemente primaveril. X prepara as suas aulas de


Segunda-Feira para poder passar um fim-de-semana razoavelmente útil com os seus
filhos e a sua esposa. Não tem sido assim ao longo dos anos. Parece que tem estado fora
do mundo e que seria preciso ser jornalista para sentir as tragédias que lhe passam pelos
olhos na TV. Raimundo levanta-se tarde. Y prepara já o almoço. Florinda ainda dorme.
É estranho andar uma vida a pensar que a nossa vida é importante e merece ser
lembrada, e acordar um belo dia e apercebermo-nos de que não somos senão uma
formiga no meio de tantas outras. Acreditar por um lado, nas notícias do mundo e do
país pode ser uma forma de iludirmos os problemas psicológicos. Esquecer, por outro, o
que dizem os jornais ou a TV pode ser também uma forma de defesa, mas os problemas
psicológicos aumentam consideravelmente. A chamada aldeia global, a possibilidade de
estarmos a ser vistos por milhares de olhos, pode ser uma invasão de privacidade, mas
X gostaria que fosse assim. Uma cadeia de televisão holandesa adiantara-se a esta ideia
de X de que, pelo menos Deus estaria a vigiar todos os seus actos, e criara um show em
directo a ser transmitido pela televisão. Os resultados foram recordes de audiência.
Agora preparava-se a segunda parte, a sequela. Um conjunto de pessoas tinha pago para
viver um certo período de tempo dentro de autocarro equipado com casa-de-banho.
Certamente que a táctica resultaria numa exposição das obsessões de limpeza e outras,
como as sexuais. Uma e outra estarão de certo ligadas, e o ensaio da vida social dentro
de uma casa ou dentro de um autocarro seria benéfico para os TOC’s Assim, o olhar dos
outros substituiria a crença numa divindade ou em santos protectores. Daqui se infere
que a fé é um bem precioso para aqueles que de facto acreditam. Mas não acredito que
depois de cruzados todos os olhares do mundo a presença de Deus fosse dispensável.

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Capitulo 7
O TOC de X

O TOC de X não interessa a ninguém. Interessa a quem segue esta trama somente
relacionado com os outros factos da vida de X. Como uma pessoa com tais distúrbios
consegue, apesar de tudo, fazer com que a sua vida soe como normal, ou como tais
distúrbios afectam a vida de uma pessoa aparentemente normal. Como narrador, cabe-
me dizer que não é nada divertido entrar na mente de X. Trata-se de uma mente com um
labirinto torto e com muitos becos sem saída. Contudo, tem a sua saída, como todos os
labirintos. O que favorece o merecimento e a complacência na mente de X, e é sinal de
que lhe devemos, apesar de tudo, algum respeito sem deixar de rir, é o facto de a sua
mente não ter descanso. Quem estiver interessado nesta manifestação psíquica que siga
mais atentamente o percurso desta personagem.

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Capítulo 8
Os Fregueses

No dia em que fazia 40 anos, X suspendeu a medicação para tomar um pouco de


champanhe. Em má hora, pois aquilo que havia sido construído em meia dúzia de anos
desmoronou-se. Teve de recomeçar tudo de novo. As obsessões voltaram em catadupa.
Os seus pais, ainda vivos, acusavam-nos de brincar com os outros. O certo é que lhe
faltara atenção quando era pequeno e quando entreva pela adolescência dentro. De
qualquer modo, evitava ter com os filhos o mesmo comportamento que os seus pais
tiveram com ele. Conversava amiúde com os seus filhos para notar o que lhes agradava
mais fazer, preparando-lhes o terreno para poderem progredir. Quanto a Raimundo,
começava já aos 26 anos o seu próprio negócio. Florinda era decoradora profissional e
dava aulas de Educação Visual numa escola secundária. X estava quase no topo da
carreira da função pública e antes que isso acontecesse resolver abrir um café com o
qual passar o resto dos seus dias. Yvette permanecia como psicóloga de duas ou três
empresas e abriu inclusive um consultório quando chegou aos 46 anos. Sempre
adiantado, Raimundo preparava-se para casar aos 26 anos de idade. Dir-se-ia que Yvette
tinha já casado com as artes para sempre.
Justino Fabião era um escritor de meia tigela. É certo que dizia algumas verdades.
Mas nunca saíra da cepa torta. Os três ou quatro volumes que escrevera até aquele ano
de 2016 eram ignorados do grande público por factores diversos, entre os quais se
destaca a falta de persistência em convencer algum editor a publicar coisas suas.
Aparecia sempre no café sozinho. Coitado. Era boa pessoa, mas não tinha sentido
prático, o mínimo de sentido prático que é pedido a um escritor com pergaminho. X
conhecia-o desde a infância. Haviam sido colegas, companheiros, compinchas. Ele
sempre fora pessoa de se entusiasmar imenso com as suas ideias, mas ultimamente
estava pior. Dizia ele que “dantes era capaz de andar entusiasmado, com um
entusiasmo moderado, controlado, uma ou mesmo duas semanas”. Agora o seu espírito
recebia pensamentos, “pulsões psíquicas que fazem quebrar o entusiasmo de qualquer
um”. Naquela manhã, Justino pediu um descafeinado, como sempre. E um pastel de
nata. “É o pequeno almoço de um escritor”-dizia. Naquela noite não havia dormido
nada. Pensara numa imensidão de coisas: um Workshop que sonhava faazer
subordinado a temáticas da performance teatral, criar a sua empresa editorial, andar
pianinho e continuar a escrever esperando pelo dia D. Sentia-se que ele andava
demasiado embrenhado nos seus pensamentos, nos seus sentimentos que não pareciam
reais, que eram frios, reflexo indirecto de um coração aflito. Contudo, não andava com o
coração nas mãos. Raramente se atrevia a pedir uma opinião, uma ajuda, um conselho.
Talvez fosse essa a razão do sem êxito adiado, eternamente adiado. Contudo, Fabião era
um bom cliente. Podia bem ser que de tanto matutar, de tanto não ter paz naquela
cabeça, chegaria a algum lado, nem que fosse sozinho, depois de uma aventura daquelas
que não se explicam e se sabem secretamente vitoriosas.
André Gajeiro era um jovem que trabalhava em gesso decorativo. Não tinha mais de
20 anos. Todavia, encontrava-se frequentemente no Califórnia com os seus amigos e,
por vezes também com Justino Fabião. Este admirava-o. Tendo nascido com defeito, era
um produto acabado da força de vontade. A assistente social da cidade tinha zelado para
que ele recebesse apoio e conseguisse o emprego que conservava há dois ou três anos.
Com ele costumava aparecer Carlo. É de perguntar o que fazia um italiano numa
pequena cidade de Portugal. Um sentimento de mediterraneidade trouxera-o para o país

97
do fado, do futebol artístico e da gente serena e melancólica. Dele se notava que tinha
vindo para sentir a saudade do seu país.
Os “penduras” eram aqueles que se debruçavam sobre o balcão e ficavam um tempo
encostados a falar, virados para a televisão, bebendo a sua bebida assim. A maior parte
dos fregueses eram amigos da bola e os dois jornais diários desportivos passavam
duramente de mão em mão, especialmente após o almoço ou depois do jantar. Na
Segunda-Feira discutia-se o futebol nacional da primeira divisão, mas com mais energia
os resultados da distrital. Contavam-se entre eles o Zé Caetano, o Lelo, o George
Michael, o Alturas, o Sumo Man, o Mozart. Este último nunca fora muito chegado a
Justino Fabião. Porém, nos tempos em que estava a tentar entrar na Universidade por
meio do AD Hoc, tiveram interessantes conversas, coisa rara no California.
O café teve em tempos música ao vivo com animação sustentada pela generosidade,
dedicação e interesse de X. Chamavam-se The Band. Assim mesmo. O vocalista era
irmão do Plégas, que fora amigo de infância, casara com uma amiga de infância e estava
emigrado em França. A infância de X mantinha-se ali, naquele cantinho de convivência
quase intacta. Todavia, também esse bocado de felicidade permanente cessou ao fim de
oito anos. O café já não rendia. Trespassa-lo foi bom negócio. X entrava numa fase em
que estava aberto a todas as propostas que surgissem na sua cabeça Guardava, além do
mais, uma boa recordação. Isa, agora mulher do Plégas, quisera nos tempos da escola
secundária tirar uma foto com X antes da sua partida para França. O que seria daquela
foto que X nem sequer chegara a ver? Foi a primeira e provavelmente aúnica vez que se
sentira importante para alguém. E foi ainda na infância -lembrava-se.

O café mudou de gerência. Mudara também de empregados. Mudou para duas


jovens que de certa maneira atraíam os carpinteiros e trabalhadores da construção civil.
No ano 2025, Justino Fabião regressava à escola para ali envelhecer. Alimentava um
desejo secreto de viajar para um país distante como a Nova Zelândia ou as Ilhas
Salomão. Tudo dependia da saúde de Yvette, já que ele sentia esse apelo desde cedo.
Agora, com 46 anos, voltava para a rotina das aulas com uma dose de experiência da
vida que o fazia sentir-se um pai alternativo para muitos dos seus alunos. As turmas
continuavam enormes, 25 a 30 alunos, o que não favorecia a familiariedade com os
jovens. Era um problema antigo que sucessivos governos ainda não haviam resolvido.
Leccionar Geografia, contudo, chegava e ser entusiasmante, sobretudo porque se
viajava sem despesas e a mente sentia-se expansiva como um movimento do Yin para o
Yang.
Já o Califórnia havia sido trespassado quando preparavam a viagem aos Açores.
Sumo Man dera em tempos o telefone a X. Será que ainda seria o mesmo? Resolveu-se
a visitá-lo. Foi encontrá-lo a tratar da horta e das árvores de fruto com um braçado de
pepinos. “Conta-me lá coisas dos Açores”. Sumo Man, de verdadeiro nome Luís
Gaspar, havia leccionado Matemática durante três anos nas ilhas e dera-se bem, ao que
parece.

O avião encontrou alguma turbulência no regresso, mas chegaram sãos e salvos ao


sopé da sua porta de entrada. Um grosso volume destacava-se no correio. Vinha selado
e não tinha remetente. O que seria? Uma armadilha? Sempre segura de si, Yvette tirou o
embrulho das mãos do marido. Nem mais. Justino Fabião, aliás, Jerónimo Lusitano,
acabara um livro. “Todos os anteriores são obras inacabadas. Com este, sei que vou
estar muito tempo sem escrever. Beijos e abraços, Fabião”. O título era no mínimo
apelativo: “O encanto de Afrodite: a sua especialização do Desejo”. Será que Justino

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Fabião conseguira a sua obra-prima, a sua “piece de resistence”, ou sucumbiria, uma
vez mais, à tentação de escrever também o acessório?

99
Capítulo 9
(Des)Ilusões do que fazer com a Vida

Mozart era um pequeno rebelde, hiperactivo, sempre entusiasmado com as coisas


próximas a fazer. Escrevia semanalmente para o jornal da cidade e os seu artigos davam
um certo élan ao jornal. O próprio director o dizia. Até que emigrou para a Suiça.
Esteve por lá dois anos, em trabalhos diversos, procurando ganhar o suficiente para vir a
ter casa própria no seu país. Um tempo depois de ter regressado, a inspiração começava
a nascer de novo. Escreveu ao director do jornal com entusiasmo. Mas em vão. Sabia
que a sua carta não é daquelas que implicam uma resposta. Estava já noutro mundo.
Perdia um mundo que não conseguia apanhar. O melhor talvez fosse não pretender
repetir as coisas boas do passado, mas esperar e fazer com que se realizassem outras no
presente, coisas novas, totalmente novas, que dessem outra dimensão à sua vida.
Também lhe deu um “vaipe” de um dia de concorrer às eleições locais por um pequeno
partido. Chegou a escrever a um jovem notável deputado à Assembleia Nacional
pedindo-lhe meios para uma campanha. Mas era tarde de demais. A sua esquizofrenia
dava para exagerar quando tinha contactos sociais, e quando não tinha enfiava-se na sua
carapaça e hibernava por várias semanas. Não tinha um ponto intermédio que todas as
pessoas que conhecia tinham. Fazia promessas a si mesmo que depois não era capaz de
cumprir. Estava noutra realidade: muito próximo de si mesmo mas ao mesmo tempo
demasiado longe dos outros para vislumbrar quando era conveniente intervir ou ficar em
silêncio.
Certo dia sonhou que estava numa gruta de estalactites e estalagmites e que estava a
tirar o forro à caverna que ele e outras pessoas tinham descoberto. Estava dentro de um
velório e não conseguia sair. Estava a fazer a corte a um jovem frígida e aquilo não
parecia resultar. A jovem era grega. Estava em Atenas e falava pelo telefone com um
amigo de Lisboa. Mas isso era a matéria de que eram feitos os sonhos.
Começando pelas coisas mais simples, o TOC de X tendia para a esquizofrenia.
Ultimamente levantava-se cedo e tendia a esperar coisas importantes do dia que
chegara. Contudo, depois de um descafeinado, tornava-se cansativo poder esperar
alguma coisa daqueles dias. Sabia que tinha um dos indícios de uma neurose, que era o
facto de não trabalhar. Contudo, nem tudo era mau. Nas despedidas todos sentimos o
mesmo tipo de preocupação. Depois, tudo passa com o tempo. Mas sentimos atraiçoar a
nossa descendência quando falamos do que deve ou do que não deve ser feito em prole
de uma qualidade de vida e bem-estar mínimos. Seja como for, a esperança não parava
de jorrar no interior de um ser que vivera muitos meses e anos à espera de algo
transcendente. Por esta ordem de ideias, achamos considerável o dispêndio de energias
em pequenos vícios que não teríamos caso fossemos verdadeiros aprendizes de Yoga.
Quando substituímos o fazer o bem em relação aos outros, estamos a trair a nossa
natureza, que é sermos criança ao dar. Pelo contrário, agimos como se merecêssemos
ser presenteados com coisas, presentes, em variadas ocasiões. Tudo se resume a uma
grande ilusão. Ilusão de estarmos integrados socialmente, ilusão de vivermos um grande
amor nas nossas vidas. Tudo se pode modificar, há que acreditar. Mas também tudo
pode ficar na mesma. É o risco que corremos quando decidimos ser normais.

100
Capítulo 10
Algumas Considerações

A narrativa desta obra pertenceria muito naturalmente à primeira obra que produzi.
Esta obra deverá evoluir ainda durante um certo tempo. Os sentimentos em relação à
minha infância vêm completar uma obra que tem muito de regressivo e de freudiano.
Poderia persistir no tempo sem ser alimentada uma consciência sobre a minha juventude
e infância. Contudo, há coisas que preciso de rever para me conhecer melhor e saber
aquilo que sou de positivo e criativo como pessoa. Podia persistir até uma idade mais
avançada sem ter preocupação neste registo. Talvez fosse o mais sensato. Contudo,
prefiro estar inteiramente consciente de mim próprio do que viver anos a fio alienado.
Tenho diante de mim certos exemplos de como fui criativo em criança, mais do que em
adolescente, já que vivi uma Idade Média na minha biografia. Um exame de psicologia,
um trabalho sobre o ecumenismo da Igreja Católica, a prova geral de acesso à
universidade...
Por vezes esquecemos os nossos pontos fortes e descuramo-los, não suspeitando o
bem que nos pode fazer observarmo-nos no passado. É claro que olhar excessivamente
para o passado também tem as consequências que eu já pude observar. Talvez resida
nesta atitude uma necessidade de aplacar aqueles que connosco passaram os dias da
infância e a adolescência. Comigo não foi sempre assim. Houve fases da minha curta
vida em que só pensava no futuro. Contudo, chego a uma conclusão a que já chegaram
muitas pessoas por si próprias ou com a ajuda de instituições como o Raja Yoga: o
presente é o que mais importa. Quando estamos em paz só aquilo que estamos a fazer
no momento importa. E também acontece estarmos a fazer coisas ligadas com bases no
passado e não nos damos conta disso. Simplesmente, estamos a faze-las.

Os problemas de que falo põem-se primeiramente ao nível pessoal. Todos já


certamente experimentamos estar a descansar num lugar e ter o pensamento noutro que
deixámos, pensando no que de útil poderíamos estar a fazer nesse momento. Não nos
damos conta que viemos para este lugar para descansar. O nosso cérebro está em
situação de stress ou, mais doente ainda, em situação de neurose. Queremos ligar a
nossa fantasia à realidade por todos os meios. Para aquele que está em paz o templo foi
naturalmente, assim como se sucede naturalmente o dia à noite, o calor ao frio. A
atitude que vejo ser defendida por aqueles que praticam Raja Yoga surpreende-me de
início. Parece demasiado passada, pouco assertiva. Entre o Yoga e a Psicanálise Integral
eu escolheria, no entanto, a segunda. É aquela que mais de encontro vai à minha
maneira de ser. Não é explicitamente terapêutica, mas também serve esse fim. Eu espero
aqui na aldeia, sem contactos sociais, dias de maior controle, de maior sensatez.
Imponho a mim próprio alguma paz para não deitar tudo a perder quando regressar à
grande cidade. Amorteço a ideia que se abateu sobre mim de que só a psiquiatria me
poderia ser útil. É preciso recorrer a tudo. Depois de ter riscado o meu disco rígido, há
que arranjar outro registo, outra forma de encarar o mundo. Não sei se o facto de certas
doutrinas ou ensinamentos beneficiam de ter a história do seu lado. Eu acredito que a
história não se repete e que, portanto, os problemas que afligem o homem evoluem do
mais simples ao mais complexo, surgindo novas terapias para novos problemas. Andar
imerso na história pode não parecer assim tão apelativo quanto isso, mas devemos
acreditar que os nossos problemas não são absolutamente únicos. Sob outra forma, já se
manifestaram noutras pessoas e agora acontecem-nos. As terapias de que temos
oportunidade de nos servir, servem também o homem do presente. São armas que
superam a divisão dos tempos e que visam actuar sobre o homem do presente, passado e

101
futuro. Estamos assim ligados a outros seres, mesmo sem termos consciência disso. E o
que acontecerá depois de terminarmos a nossa caminhada terrestre? Não vou aqui dizer
que suspeito da ajuda que nos poderá dar a fé cristã. Quem sou eu para lutar contra
quase mil milhões de seres humanos? Ainda por cima, contra as suas crenças apenas
poderia apresentar a minha caminhada individual, e esta só se poderia comparar a uma
outra com algo em comum. Mas devo dizer que acredito na reencarnação, na ideia de
que, de alguma forma, somos o resultado de uma existência animal ou humana (rejeito
cuidadosamente a existência animal), e que com o uso da nossa vida contribuímos para
o aparecimento de um outro ser. Será que isto não é uma forma de selecção natural?
Será que já nascemos com os genes programados para ser de determinada maneira, e
que isso influencie o nosso comportamento, ou será que é o ambiente que pesa nas
nossas escolhas e decisões? E será que o que nasce torto jamais se endireita?

102
Capítulo 11
Algumas Notas psiquiátricas

Vencer o medo, o inimigo, é também enfrentá-lo. Por vezes torna-se cansativo ter o
mesmo tipo de obsessão. O que não tem por natureza de estar limpo, deve estar limpo. É
como se desejássemos o impossível e não fossemos corajosos para aceitar a realidade
daquilo que é quotidianamente usado. Tentar vencer o inimigo pode implicar nunca ter
descanso da cabeça. Mas pelo menos é melhor do que, como a avestruz, enfiar a cabeça
na areia e esquecer tudo, deixar de ir normalmente aos sítios do costume. Nada de muito
mais há a dizer acerca destas coisas psiquiátricas. O que custa mais é que por causa
disso deixamos de ter uma vida normal e os nossos sentimentos alteram-se. Sentimos
que a realidade foge entre os dedos e perde-se numa qualquer superfície residual. Não
há que enganar: ou queijo ou pão; ou as duas coisas. Há que fazer escolhas e
responsabilizarmo-nos por elas. Há que exigir mais de nós próprio. A vida é mesmo
isto. Dela faz parte tudo o que experimentamos de psiquiátrico. Por isso eu confio que
irei em frente, sempre mais além. Porém, o dia seguinte decepciona-me. Acordo sozinho
numa ilha e tenho de reconstituir o meu instinto de sobrevivência. Sei que o clima não é
inóspito, que eu próprio escolhi este cenário. Há que esperar que a natureza jogue a
nosso favor, o que, deve dizer-se, não acontece muitas vezes. Com um corpo perfeito e
um palmo de cara poderia ir mais longe. Mas o interior ficava atrás de qualquer coisa,
escondido em qualquer coisa, em qualquer desculpa. Assim, qualquer coisa que
aconteça é bem vinda, qualquer coisa deve ser conquistada. E, deve dizer-se, tendo
escolhido este caminho, eu sempre me dei bem com as minhas conquistas. Pode ser
revoltante acordar aos trinta anos de idade e não ter nada senão as coisas que deveria ter
conquistado diluídas em palavras. O melhor é esquecer. Já não vivemos o tempo em que
se recomendava a leitura de algum escritor e ele era avaliado pelos seus escritos. Hoje é
preciso algo mais, mesmo que não se escreva tão bem. Mesmo nos concursos literários
é necessário focar certos temas que deram à literatura o estatuto de meia-ciência que
tem. Talvez eu queira dizer que deveria seleccionar os temas que tenho em mente e ser
um escritor parcial, escrever só sobre coisas que definem a literatura. É que hoje em dia
escreve-se sobre tudo, não sei se sempre se descreveu. O registo das minhas façanhas
diarísticas tornou-se mais importante do que qualquer objectivo social que eu ambicione
chegar a alcançar. Sou uma coisa que se move e regista tudo o que vai acontecendo.
Para quê? Para quê se os meus escritos só poderão valer alguma coisa em função da
vida que levo? Nunca irão ser avaliados por si só, suspeito. Se eu não fizer alguma coisa
de vital e corajoso depressa, atrevo-me a deixar perder o valor das minhas palavras
corajosas e a ficar como curiosidade para os vindouros. E estou eu aqui preocupado com
circunstâncias da escrita quando devia deixar falar os meus personagens! É certo que
não sou fantasista em termos literário. As personagens que apresento são poucas e os
seus actos têm directamente a ver com coisas vividas. Talvez tendo perdido essa
capacidade de sonhar acordado eu me tenha distanciado da literatura que, diga-se de
passagem, nunca conheci bem. É estranho o facto de haver poucos romancistas com
estudos académicos. Pelo menos, esse facto não é apresentado como importante e
decisivo para se ser escritor. Enfim. Há que ser mais assertivo, seleccionar os temas de
interesse, ser exigente, não aceitar todos os dados da realidade passíveis de se
combinarem entre si. Isso eu nunca fui. Fui sim demasiado humanista e isso pode ser
preciso, mas não alimenta ninguém. Ninguém se sente interessado por humanidades.

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Capítulo 12
Substrato Animal

As pessoas só compreendem a linguagem animal. As pessoas. Sim, as pessoas.


Quando usamos falinhas mansas, esquecem. Só compreendem aquilo que é
demonstrado por meio de actos. Não há condições, não há o reconhecimento do direito
de autor, da liberdade e responsabilidade do pensamento. De qualquer maneira, porque
é que há-de alguém perder tempo a ler o que eu escrevo? Porque tenho, afinal de contas,
personagens como Raimundo, de quem vou falar agora.

Estamos no casamento de Raimundo. Uma cerimónia discreta, a pedido da sua


noiva, Laura Sines. Pouco mais de 50 pessoas: os fam1iliares, pouco mais. É frustrante
ser apenas um caso clínico. Pois esta falta de convívio de Raimundo resultava
materialmente na falta de convidados para a sua festa. Os amigos de infância e da
adolescência (sempre isto a persegui-lo!) andavam por aí, nas suas vidas, e não tinham a
obrigação nem o dever alimentar as taras e manias de Raimundo. Por isso não lhe
davam importância. Este homem não era o homem que falava demais ou o homem que
sabia demais, pois o seu conhecimento não podia ser partilhado, era um conhecimento
que se alimentava unicamente da sua experiência subjectiva sem alguém. Mas tinha
uma raiva contida. Os candidatos iriam ser escolhido a dedo. Realmente, ele estava-se a
cagar para o mundo. Mais importante era a sua consciência ser prolongada no tempo.
Isso sim, era mais importante. Mais importante de que ganhar algum prémio com
alguma coisa de social fizesse. Para ter reconhecimento social de alguma coisa era sem
dúvida necessário ter reconhecimento social antes de fazer alguma coisa. Ou pelo
menos durante. Depois viriam os prémios. Nunca em favor do esforço subjectivo,
sempre como prémios do impacto causado.
Num fim-de-semana resolveu fazer tudo de uma vez. Planeou comprar um
computador portátil e assumir a sua dependência em relação ao trabalho. Resolveu-se
finalmente a comprar um carro e deixar a terra maldita dos seus pais, uma aldeia de
meias verdades, onde os velhos paradigmas antropológicos contavam mais do que
nunca, mais do que em outro qualquer lugar na sua cabeça. Mas onde encontrar um
lugar ideal para amar? Lisboa? Bah! Talvez entre estranhos se sentisse melhor. Tinha a
sua mulher para se sentir em todo o lado como em casa.
O pior e que ninguém entendia a sua obsessão por ter sucesso. Precisava de
reconhecimento para alimentar o seu instinto de sobrevivência. Mas isso é assunto que
tem pano para mangas e ainda aqui será debatido. Ou se calhar não o será Ou calhando
será mesmo. Depende do comportamento de Raimundo. Mas se tivermos em conta que
o seu comportamento é previsível, devemos admitir que nada de novo há que esperar
deste personagem. Irá morrer num canto, sem mulher e sem filhos, esquecido, cheio de
parangonas, de estigmas, só humano como nasceu, sem ter cortado o cordão umbilical.

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Obras do mesmo autor:

“Caderno de Encargos” (Tender Edições)

“Estórias do Acaso” (Alterlife Edições))

“Cristo, Cravo e Rosa” (Tender Edições)

“Pensarilho” (Tender Edições)

“Curvas Apertadas” (Íris Editora)

“A Poção do Amor” (Tender Edições)

“Teoria Social.Aspectos”(Alterlife Edições)

“Mundo Imaginado” (ALterlife Edições)

Pedidos a:

geral@tender.com.pt

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