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SEÇÃO BIOÉTICA

BIOÉTICA COMPLEXA: UMA ABORDAGEM ABRANGENTE... Goldim SEÇÃO BIOÉTICA

Bioética complexa: uma abordagem abrangente JOSÉ ROBERTO GOLDIM – Doutor.


Professor Adjunto na PUCRS e Biólogo do
HCPA.
para o processo de tomada de decisão
Hospital de Clínicas de Porto Alegre e Fa-
culdade de Medicina da PUCRS.
Complex bioethics: a comprehensive approach  Endereço para correspondência:
to decision making process José Roberto Goldim
Ramiro Barcelos 2350
90035-903 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 2101-7615
RESUMO  jrgoldim@gmail.com

Bioética complexa é uma abordagem abrangente na resolução de problemas que


envolvem a vida e o viver. Este modelo explicativo utiliza os diferentes referenciais teóricos,
princípios, direitos, virtudes e alteridade, de forma integradora. A inclusão dos sistemas
de crenças e da afetividade permite avaliar de forma mais ampla o processo de tomada de
decisão. cussão ética, que acabou sendo deno-
minada de bioética.
UNITERMOS: Ética, Bioética, Resolução de Problemas.

ABSTRACT U M POUCO DE HISTÓRIA DA


BIOÉTICA
Complex bioethics is a comprehensive approach in problem solving. This explanatory
model uses different theoretical frameworks, as principles, rights, virtues and alterity, in A rigor a ética sempre se preocu-
an integrated way. Belief systems and affectivity, included in this model, enlarge the decision
making process perspective. pou com o tema da vida. Os grandes
filósofos de todos os tempos refletiram
KEYWORDS: Ethics, Bioethics, Problem Solving. sobre questões envolvendo vida, sui-
cídio, morte, nascimento, entre outros
temas. No século XX, alguns autores
propuseram questionamentos sobre o
I NTRODUÇÃO ação dos conhecimentos científicos e papel do ser humano, da vida, do lugar
o impacto da sua transposição tecno- do ser humano na natureza.
A ética surge na história da huma- lógica geraram a necessidade de ava- Albert Schweitzer, médico, teólo-
nidade como uma estratégia de orga- liar até onde podemos ir (3). Às dis- go e humanista, em uma palestra pro-
nizar o pensamento sobre a adequação cussões sobre o bem-viver foram acres- ferida em 1923, mas publicada apenas
do viver humano. A capacidade de cidos os questionamentos sobre a vida em 1936, introduziu a discussão da
questionar a sua própria existência é em si, sobre o que é estar vivo. A iden- sacralidade da vida em todas as suas
uma das características que permite tificação de que o ser humano é parte dimensões (5).
identificar a pessoa humana como tal. da natureza, que é um ser que tem in- Fritz Jahr, pastor luterano, que pos-
A ética, de forma sistematizada e críti- terações ativas com seu meio, reconhe- sivelmente foi o primeiro a utilizar a
ca, reflete sobre as intuições morais, cendo que pode alterar o seu próprio palavra bioética, propôs a ampliação
buscando as justificativas que servem destino e de toda a natureza, introdu- da noção dos deveres dos seres huma-
de embasamento para as escolhas mo- ziu uma nova pauta de questionamen- nos para com outros seres humanos,
rais que as pessoas fazem (1). Foram tos. Repensar o início e o final da vida, também para com os animais e as plan-
reflexões deste tipo que permitiram produzir embriões, congelá-los, ressig- tas (6). Assim, bioética foi utilizada no
avaliar o que era estar no mundo, de nificar os papéis familiares e o próprio sentido de ampliar a discussão da éti-
como as pessoas se relacionam entre conceito e critérios de morte foram ca para o conjunto de todos os seres
si, das suas preocupações e da busca itens determinantes (4). Saber reconhe- vivos.
de realização que todos almejam (2). cer os limites da pesquisa, identifican- Aldo Leopold, engenheiro florestal,
Estes questionamentos e reflexões vêm do a sua adequação ética e metodoló- e Hans Jonas, filósofo, em ambientes,
sendo feitos desde o período da Filo- gica, a existência de grupos e pessoas situações e épocas distintas, décadas
sofia Clássica. vulneráveis, foram outros temas fun- de 1930 e 1960, respectivamente, am-
Com o avanço da ciência, novos damentais. Tudo isso levou à necessi- pliaram a abrangência temporal dos
desafios foram introduzidos. A ampli- dade de propor uma ampliação da dis- deveres dos seres humanos uns para

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com os outros, incluindo também as poração da bioética como a área de dis- zada entre 1971 e 1978, procurou com-
gerações futuras (7, 8). Até esta pro- cussão sobre temas emergentes e rele- pendiar os temas mais relevantes e as
posição, as discussões da ética se res- vantes para a vida, combinando ciên- bases teóricas necessárias para a refle-
tringiam ao plano contemporâneo, nos cia e filosofia. xão bioética então emergente (17).
deveres que os indivíduos têm para André Hellegers, médico ginecolo- Publicou ainda outra edição, em 1995,
com seus semelhantes próximos, tan- gista, de forma independente e quase desta mesma enciclopédia, ampliada
to no sentido geográfico quanto tem- simultânea, propôs, em 1970, a redis- para cinco volumes (18).
poral. Estes dois autores propuseram cussão do foco da ética médica. A pers- A partir desta série de autores e ins-
que todos os seres vivos, mesmo os pectiva tradicional baseada predomi- tituições que deram os primeiros pas-
ainda não existentes, são merecedores nantemente na atuação do médico de- sos da bioética, inúmeros outros se su-
de consideração. veria ser ampliada para uma reflexão cederam. A reflexão bioética sobre te-
A Associação Médica Mundial, em mais ampla sobre temas da área da saú- mas das áreas da saúde e do ambiente
1964, propôs a Declaração de Helsinki de, incluindo os aspectos sociais a eles se ampliou e aprofundou em diferen-
visando a provocar uma reflexão sobre associados. Por sugestão de R. Sargent tes locais do mundo. Na Europa surgi-
os aspectos éticos envolvidos na pes- Shriver, então responsável pela Fun- ram diferentes perspectivas de aborda-
quisa em seres humanos. Esta Decla- dação Kennedy, que propiciou os fun- gem de questões na área da saúde. Na
ração reforçou os termos do Código de dos necessários para a realização des- Austrália, a discussão de temas envol-
Nuremberg (9), que, devido a sua ori- sas pesquisas, a denominação bioética vendo o uso de animais em pesquisa e
gem como parte da sentença do segun- foi incorporada ao nome da nova ins- até mesmo em alimentação, ganhou
do Tribunal de Nuremberg, em 1947, tituição Joseph and Rose Kennedy Ins- grande repercussão. Na América Lati-
havia tido uma repercussão prática li- titute for the Study of Human Repro- na, as discussões sobre acesso a siste-
mitada. A Declaração de Helsinki ini- duction and Bioethics, por sintetizar a mas de saúde, sobre pobreza e preser-
ciou uma discussão de abrangência união de temas biológicos e éticos (14). vação ambiental, se associaram aos
mundial sobre a adequação das formas Posteriormente, esta denominação foi grandes temas de discussão mundial,
de utilização de seres humanos em pes- alterada apenas para Kennedy Institu- como privacidade, transplantes, repro-
quisas (10) . te of Ethics, refletindo a sua posição dução assistida, eutanásia e suicídio
Daniel Callahan, filósofo, e Willard de entender a bioética como uma ética assistido.
Gayling, psiquiatra, criaram, em 1969, aplicada. Esta instituição foi a respon-
o primeiro centro de pesquisa sobre as- sável pela formação inicial de muitos
pectos éticos e sociais envolvidos nas profissionais que estavam interessados B IOÉTICA COMPLEXA:
ciências da vida – Institute of Society, em atuar em bioética. UMA ABORDAGEM
Ethics and the Life Sciences. Posterior- O Belmont Report, publicado em CONTEMPORÂNEA
mente, esta instituição passou a ser de- 1978, estabeleceu as bases da utiliza-
nominada de Hastings Center, sendo ção de princípios na reflexão bioética. Atualmente, a bioética pode ser
reconhecida internacionalmente como Ao utilizar a beneficência, o respeito entendida como sendo uma reflexão
um local de excelência na reflexão de às pessoas e à justiça como referenciais complexa, interdisciplinar e comparti-
temas tão relevantes. Em 1970, Robert das diretrizes para a pesquisa em seres lhada sobre a adequação das ações en-
Veatch, farmacêutico, que havia re- humanos nas áreas de saúde e compor- volvendo a vida e o viver (19). A bioé-
cém-terminado o seu doutorado em tamental, este documento oficial do tica é uma reflexão complexa, pois in-
ética médica, foi o primeiro pesquisa- governo norte-americano consolidou a clui os múltiplos aspectos envolvidos
dor contratado para estudar estes temas proposta teórica predominante do Ins- no seu objeto de atenção; é interdisci-
(11). tituto Kennedy de Ética (15). plinar, devido à possibilidade de con-
Van Rensselaer Potter, químico e Tom L. Beauchamp, filósofo, e Ja- tar com conhecimentos oriundos de
farmacologista, no início da década de mes F. Childress, filósofo e teólogo, diferentes áreas do saber; e é compar-
1970, refletiu, de forma integrada, então vinculados ao mesmo Instituto tilhada, por utilizar as diferentes inter-
sobre a abrangência das relações entre Kennedy de Ética, publicaram o seu faces para realizar diálogos mutuamen-
seres vivos e da necessidade de am- livro clássico Princípios de Ética Bio- te enriquecedores.
pliar esta reflexão ao longo do tempo. médica, onde lançaram as bases da Vale lembrar a diferença existente
Potter questionou se a possibilidade de Corrente Principialista de Bioética na língua grega dos significados das
sobrevivência da própria humanidade (16). Atualmente, este livro já se en- palavras relativas à vida: zoe e bios,
(12) não dependeria de uma reflexão contra na sua quinta edição. descritos por Giorgio Aganben (20).
ética interdisciplinar, denominada por Warren Reich, teólogo, empreen- Zoe se refere à vida natural, à vida nua,
ele de bioética, que poderia servir de deu uma importante tarefa ao editar a ao estar vivo, enquanto que bios é a
“ponte para o futuro” (13). Esta con- Enciclopédia de Bioética em 1978. Em vida política, é o bem-viver, é o estar
tribuição foi fundamental para a incor- uma obra de quatro volumes, organi- no mundo. As reflexões bioéticas mais

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se referem às questões derivadas da estará presente, e assim o próprio pro- como fazer o bem e evitar o mal, e jus-
palavra bios que de zoe. Muitas vezes, blema poderá ser melhor compreendido. tiça (27). O Relatório Belmont ampliou
porém, as pessoas se confundem e uti- Na busca de soluções para um pro- este referencial para três princípios,
lizam critérios de um para elucidar o blema é fundamental levar em consi- incluindo o respeito às pessoas, além
outro, chegando a conclusões equivo- deração as múltiplas alternativas pos- da beneficência e da justiça (15). Nes-
cadas. Um exemplo disso é buscar um síveis. Habitualmente, as questões éti- te mesmo período final da década de
argumento biológico (zoe) para esta- cas são abordadas sob a forma de dile- 1970, Beauchamp e Childress propu-
belecer o critério de pessoa (bios). Ora mas, restringindo as alternativas a ape- seram um referencial de quatro princí-
o critério serve, ora não, e a confusão nas duas possibilidades de solução pios. Mantiveram a justiça, desdobra-
conceitual se instala. (23). Na área da saúde, as alternativas ram o princípio da beneficência em
A bioética complexa é uma pro- são múltiplas; assim, é melhor utilizar beneficência propriamente dita (fazer
posta de abordagem onde a ética se a denominação problema ético ao in- o bem) e não maleficência (evitar o
insere na realidade e não apenas a ela vés de dilemas éticos, com o objetivo mal), e reduziram o princípio do res-
se aplica. de não restringir a própria reflexão. peito às pessoas à autonomia (16). O
A bioética parte de problemas e Cada alternativa deve ser sempre referencial baseado em princípios é
acaba por refletir sobre situações de cotejada com as suas consequências, uma excelente ferramenta didática,
complexidade sempre crescente. No pois elas constituem a própria ação a mas que demonstrou ter inúmeras di-
processo de reflexão e de tomada de ser realizada. As consequências mani- ficuldades na sua transposição para
decisão, o importante é identificar ade- festam e explicitam a ação em si. As aplicações práticas. Algumas vezes,
quadamente o problema a ser aborda- consequências podem ser associadas às devido a sua utilização como um sen-
do, os fatos e as circunstâncias envol- circunstâncias (24). do um conjunto de deveres, a ética dos
vidos, as alternativas e suas respecti- princípios, ou principialismo, pode ser
vas consequências. Como parte da re- entendida como uma moral, ao pres-
flexão, devem ser incluídos os referen- Os referenciais teóricos crever normas de conduta (28).
ciais teóricos e os casos já ocorridos O referencial dos direitos humanos,
relacionados ao problema. Todos es- A bioética complexa utiliza vários que estabelece garantias individuais,
tes elementos, desde a identificação do referenciais teóricos para buscar justi- coletivas e transpessoais, tem sido uti-
problema até a utilização de experiên- ficativas para a adequação das ações. lizado na elaboração de legislações,
cias e vivências prévias são passíveis Os referenciais utilizados são: os prin- como a Constituição brasileira de 1988
de discussão racional. A bioética com- cípios, os direitos, as virtudes e a alte- (29), e de documentos internacionais
plexa também leva em consideração ridade. na área da bioética, especialmente por
outros dois componentes não racionais: Os modelo baseado em princípios parte da UNESCO, como a Declara-
os sistemas de crenças e valores e a é, possivelmente, o referencial mais ção Universal de Bioética e Direitos
afetividade (19). utilizado na bioética. Os princípios Humanos (30). Os direitos individuais
eram entendidos na ética como reco- incluem a vida, a privacidade, a liber-
mendações, como diretrizes a serem dade e a não-discriminação, entre ou-
Os problemas, os fatos e as seguidas (25). Com a proposta de tros. Os direitos coletivos, de criação
circunstâncias Beauchamp e Childress, em seu livro mais recente, se referem à saúde, à
Princípios de Ética Biomédica (16), os educação e à assistência social, como
O objetivo da bioética complexa ao princípios passaram a ser cada vez mais garantias de todos. Os direitos trans-
buscar solucionar problemas não é utilizados como sendo deveres prima pessoais, últimos a terem sido propos-
identificar uma solução ideal, mas bus- facie. Deveres prima facie são obriga- tos, se referem às questões ambientais
car achar a melhor solução disponível ções que se devem cumprir, a menos e à solidariedade. A utilização do refe-
nas circunstâncias reais (21). É funda- que entrem em conflito, numa situa- rencial dos direitos humanos na bioé-
mental reconhecer que algumas vezes ção particular, com um outro dever de tica surge no mesmo momento em que
as circunstâncias podem ser alteradas, igual ou maior porte. Um dever prima o dos princípios, ou seja, no final da
e em outras não; assim como algumas facie, na perspectiva proposta por Wil- década de 1970, com a obra de Elsie
delas dependem de nós e outras não liam David Ross, é obrigatório, salvo Bandman e Bertran Bandman (31),
(22). quando for sobrepujado por outras porém só mais recentemente tem sido
Os fatos e as circunstâncias devem obrigações morais simultâneas (26). objeto de reflexão por muitos outros
ser adequadamente avaliados para en- Desta forma, os deveres prima facie autores. Muitas vezes o referencial teó-
tender o mais adequadamente possível podem, quando em conflito, ser pon- rico dos direitos humanos tem sido
o problema a ser abordado. Quanto derados ou priorizados. Inicialmente, confundido com a utilização dos mes-
mais informação e de melhor qualida- William Frankena utilizava apenas dois mos como militância política. O refe-
de for coletada, menos ambiguidade princípios: beneficência, entendida rencial teórico auxilia na argumenta-

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ção para justificar uma dada ação, a teger as pessoas vulneráveis, se asso- tato que auxiliam no processo de re-
militância, por sua vez, assume os di- cia ao direito transpessoal de solida- flexão.
reitos humanos como sendo a própria riedade. Utilizar as decisões passadas para
justificação das suas ações políticas. As virtudes, por sua vez, são a base orientar o processo de decisão no pre-
A ética das virtudes vem sendo uti- de conduta para a realização destes di- sente exige coerência, que não deve ser
lizada desde a Grécia. Platão (32) e, reitos e princípios. A temperança, ao entendida como rigidez, mas sim rigor
especialmente, Aristóteles já utiliza- usar os recursos na medida da necessi- metodológico. Mesmo em casos seme-
vam este referencial (33). As virtudes, dade, a coragem, entendida como a ca- lhantes, as decisões podem mudar se
devem ser entendidas como a busca da racterística de fazer o que deve ser fei- as circunstâncias mudaram.
excelência das ações humanas, como to, a sabedoria, como o uso do conhe- A experiência remete para o passa-
a busca do autoaprimoramento. Uma cimento de forma adequada, e a justi- do, sempre atual e atualizado, pois a
definição muito utilizada diz que vir- ça, aqui entendida como virtude, no memória opera desde o presente. A
tude é um traço adequado do caráter sentido de tratar as diferentes pessoas experiência é um conhecimento mobi-
de uma pessoa (33). Devido à perspec- de forma não desigual, são virtudes lizável (37).
tiva ideal e individual das virtudes, básicas. O amor, a maior de todas as Os casos ilustram e iluminam a re-
pouco a pouco ela foi sendo deixada virtudes, pode-se dizer, engloba todas flexão de um novo problema devido a
de lado como elemento de justificação as demais, servindo de base e justifi- sua total novidade. Nestes casos, nem
e argumentação. Em período mais re- cativa para todas as condutas adequa- sempre é possível ter casos semelhan-
cente, este referencial tem sido reto- das do indivíduo. tes, mas relacionáveis sim.
mado na perspectiva de rediscutir a A alteridade é o referencial que
busca do autoaprimoramento e da ex- pode dar unidade às diferentes pers-
celência nas atividades profissionais da pectivas apresentadas pelos princí- Os sistemas de crenças: as
área da saúde. pios, virtudes e direitos. Ao reincluir tradições e os interesses
Por fim, a alteridade, mais recente- o outro na relação, ao perceber que o
mente, é considerada um referencial olhar do outro é que nos torna não- Os sistemas de crenças incluem os
fundamental e fundante para a bioéti- indiferentes, a alteridade reconhece valores, as tradições e os interesses
ca. Reconhecer que o olhar do outro é a existência desta co-presença ética envolvidos no problema em questão.
que legitima a pessoa, a ressignifica e da co-responsabilidade nesta inte- As crenças são julgamentos subje-
enquanto existente, é a marca da alte- ração. tivos da pessoa, referentes a alguns
ridade (34). Entender que esta efetiva aspectos discrimináveis do seu mun-
interação nos torna pessoas co-respon- do, que dizem respeito à compreen-
sáveis, estabelecendo uma co-presen- Os casos relacionáveis são que esta pessoa tem de si e de
ça ética, onde não há lugar para a neu- seu meio (38). De cinco a nove cren-
tralidade (35), é compreender o signi- Utilizar casos relacionáveis ao pro- ças determinam as atitudes das pes-
ficado e a importância da alteridade blema em questão é permitir integrar a soas (39).
para a bioética. A alteridade ressigni- história e a vivência ao novo desafio Os valores são crenças duradouras
fica o entendimento da relação profis- no presente. A memória de situações em um modelo específico de conduta
sional-paciente, pesquisador-partici- semelhantes deve basear-se em um re- ou estado de existência, que pode ser
pante da pesquisa, profissionais de saú- pertório de situações reais, visando a adotado de forma pessoal ou social, e
de entre si, profissional-família, a par- compreender a relevância dos casos e se baseia em conduta anteriormente
tir da noção de co-responsabilidade. buscando a coerência nas decisões existente (40).
A bioética complexa estabelece inú- (36). A tradição é um passado presente,
meros pontos de contato e complemen- Devem ser utilizados apenas casos é uma referência do passado que atua
taridades entre os diferentes referen- reais para ilustrar problemas também no presente. A tradição é uma memó-
ciais teóricos. O princípio da justiça, reais. Os casos reais apresentam as li- ria individual ou coletiva: individual
por exemplo, estabelece o dever de não mitações da própria ação sobre a reali- porque dá identidade ao indivíduo, e
discriminar qualquer pessoa, podendo dade, como já descrito nas circunstân- coletiva porque dá sentido de partilha
ser associado ao direito individual de cias. Os casos hipotéticos podem mu- efetiva, de pertencimento (37).
cada pessoa em particular, de não ser dar, flutuar, sem o compromisso com Os interesses são uma satisfação
discriminada. A privacidade, outro di- a realidade. vinculada à representação da existên-
reito individual, tem como contrapar- A compreensão da relevância dos cia de um determinado objeto (41). Em
te a confidencialidade, que é um dever casos passados pode permitir analogias outras palavras, os interesses geram
decorrente do princípio do respeito às com os atuais de forma não-linear. Al- envolvimento, despertam atenção,
pessoas. O princípio da justiça, ao es- gumas vezes casos aparentemente não geram curiosidade. De forma geral,
tabelecer, dentre outros, o dever de pro- relacionados podem ter pontos de con- os interesses reduzem as alternativas

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de solução ao restringirem o foco de Da mesma forma que os sistemas 12. Potter VR. Bioethics, the science of sur-
atenção. de crenças, a afetividade também lida vival. Perspectives in biology and medi-
cine. 1970; 14:127-53.
Em suma, os sistemas de crenças no tempo presente com o passado e o 13. Potter VR. Bioethics. Bridge to the futu-
lidam no presente simultaneamente futuro. Os vínculos preservam no pre- re. Englewood Cliffs: Prentice Hall;
com o passado e o futuro. As tradições sente o que foi integrado no passado e 1971.
são um presente histórico, pois ba- o desejo projeta o futuro no presente, 14. Reich WT. The word “bioethics”: the
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Kennedy Inst Ethics J. 1995 Mar;
restauração de crenças e condutas. potência. 5(1):19-34.
Por outro lado, os interesses são uma 15. USGovernment. The Belmont Report:
antecipação do futuro no tempo pre- Ethical Guidelines for the Protection of
sente. C ONSIDERAÇÕES FINAIS Human Subjects Washington: DHEW
Publications (OS) 78-0012; 1978.
16. Beauchamp TL, Childress JF. The Prin-
A reflexão ética sobre problemas é ciples of biomedical ethics. 1 ed. New
A afetividade: os vínculos e os sempre um desafio para todos. Os pro- York: Oxford; 1978.
desejos fissionais de saúde, e especialmente os 17. Reich WT. Encyclopedia of Bioethics. 1
médicos, que na maioria das vezes são ed. New York: The Free Press; 1978.
A afetividade inclui os afetos, as os responsáveis pela tomada de deci- 18. Reich WT. Encyclopedia of Bioethics.
Revised edition. 2 ed. New York: Simon
emoções, os sentimentos, as vontades são, em situações que envolvem a vida & Schuster Macmillan; 1995.
e as não-vontades (42). Dois elemen- e o viver. 19. Goldim JR. Bioética: origens e comple-
tos importantes da afetividade que têm A bioética complexa pode auxiliar xidade. Revista HCPA. 2006; 26:86-92.
forte influência no processo de toma- neste processo, pode servir como um 20. Agamben G. Homo sacer: o poder sobe-
da de decisão são os vínculos e os de- apoio qualificado, na busca de justifi- rano e a vida nua. Belo Horizonte:
UFMG; 2002.
sejos. cativas para a adequação das ações. 21. Morrein EH. Philosophy lessons from the
Os vínculos afetivos têm um impor- A bioética não vai dar respostas, clinical setting: seven sayings that used
tante papel no processo de tomada de não vai tomar decisões. A reflexão to annoy me. Theoretical Medicine.
decisão (34). Os vínculos, especial- bioética vai ser um elemento a mais 1986; 7:47-63.
mente os familiares, atuam no sentido na busca de uma reflexão adequada 22. Épictète. Manuel. Paris: Hatier; 2007
23. Sottomayor-Cardia M. Etica I. Lisboa:
de reduzir o impacto dos custos asso- sobre estes temas. Presença; 1992.
ciados aos benefícios decorrentes de 24. Weber T. Ética e Filosofia Política: He-
uma dada alternativa (43). gel e o Formalismo Kantiano. Porto Ale-
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consequências prejudiciais minimiza- Ética. Psico. 1986; 12(1). 28. Patrão-Neves MdC. A Fundamentação
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