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CorreioArtes

FUNDADO POR ÉDSON RÉGIS


EM 27 DE MARÇO DE 1949

das
Maio 2017 – ANO LXVIII Nº 3

O
Testamento
Publicação da obra completa
de Ariano Suassuna começa em
junho com, a nova edição do
Romance d’A Pedra do Reino
6 editorial

Cartas de Dom Pantero


Atenção, nobres senhores e Já o Romance de Dom Pan-
belas damas, a partir de junho O Romance de Dom tero (autobiografia musical,
deste ano, mês em que o autor, dançarina, poética, teatral e
se vivo fosse, estaria comple-
Pantero no palco vídeo-cinematográfica) será
tando 90 anos de idade, terá dos pecadores será lançado no dia 9 de outubro,
início a publicação de obras data que assinala os 87 anos
do escritor, dramaturgo e ar- lançado no dia 9 do assassinato do ex-presi-
tista plástico Ariano Suassu- dente da Paraíba, João Suas-
na, pela casa editorial carioca
de outubro, data suna, pai de Ariano, “vítima
Nova Fronteira, começando que assinala os 87 das cruentas lutas e persegui-
pela nova edição do Romance ções de origem política de-
d’A Pedra do Reino e do Príncipe anos do assassinato sencadeadas no contexto da
do Sangue do Vai-e-Volta (1971). chamada ‘Revolução de 30’”.
A Pedra do Reino, como o ro-
do ex-presidente Dom Pantero é considerado
mance armorial-popular bra- da Paraíba, João uma espécie de testamento
sileiro tornou-se conhecido, literário de Ariano, que, se-
contempla agora as revisões Suassuna, pai de gundo Carlos Newton, pro-
feitas pelo autor, a partir da cura integrar, na narrativa,
5ª edição, inclusive as altera-
Ariano. elementos do seu teatro, da
ções realizadas no sentido de sua poesia, da sua prosa de
transformá-lo na introdução ficção e do seu ensaio. Divi-
do Romance de Dom Pantero dido em duas partes – “O ju-
no palco dos pecadores, no qual mento sedutor” e “O palhaço
Ariano vinha trabalhando Dantas Suassuna, filho do tetrafônico” -, Dom Pantero
desde os anos de 1980, até fa- autor, com a participação do é composto por cartas assi-
lecer em julho de 2014. professor, poeta e ensaísta nadas por Antero Savedra
O projeto gráfico-editorial Carlos Newton Júnior e do sob o pseudônimo de ‘Dom
de reedição da obra de Aria- designer Ricardo Gouveia de Pantero’, publicadas em um
no, tanto a inédita como a Melo. A ideia é que o conjun- suplemento de jornal.
já publicada, é coordenado to da obra tenha as caracte-
pelo artista plástico Manuel rísticas de uma coleção. O Editor

6 índice

, 4 @ 15 2 28 D 41
especial memória cinema Crônica
A Nova Fronteira começa O professor José Mário da O crítico de cinema João O professor Carlos Newton
a publicar, em junho Silva e o escritor Marcos Batista de Brito convoca Júnior entoa um belo canto
deste ano, o conjunto da Lucchesi comentam a dezesseis cinéfilos para de saudade em memória
obra de Ariano Suassuna, perda que significou, comporem a lista de de seus amigos poetas
cujo destaque é o novo para o Brasil, a morte de seus dez westerns mais Ariano Suassuna e Foed
romance do autor. Eduardo Portella. amados. Castro Chamma.

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editor.correiodasartes@gmail.com Murillo Padilha Paulo Sérgio de
http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Azevedo
6 especial

A Ilumiara
aflora na
Ilha Brasil
LANÇAMENTO DA NOVA EDIÇÃO
DO ROMANCE D’A PEDRA DO
REINO, EM JUNHO, DÁ INÍCIO ÀS
HOMENAGENS ALUSIVAS AOS
90 ANOS DE NASCIMENTO DE
ARIANO SUASSUNA. O PONTO
ALTO DOS TRIBUTOS ACONTECE
EM OUTUBRO, COM A PUBLICAÇÃO
DO ROMANCE DE DOM PANTERO
NO PALCO DOS PECADORES,
UMA ESPÉCIE DE TESTAMENTO
LITERÁRIO OU “LIVRO DA VIDA” DO
AUTOR PARAIBANO

William Costa
Editor do Correio das Artes

N
o dia 16 de junho deste ano, se Ariano é considerado uma das
vivo fosse, o professor, romancista, pedras basilares do teatro e da
poeta, dramaturgo e artista plásti- literatura do nosso País – a sua
co Ariano Vilar Suassuna estaria poesia ainda carece de reconhe-
completando 90 anos de idade. O cimento nacional -, além de um
“Cavaleiro da Alegre Figura”, “Se- respeitado pensador do Brasil, no-
nhor do Castelo”, “Rei do Sertão” tadamente no campo da Cultura.
e “Imperador da Pedra do Reino” O professor, poeta e ensaísta per-
– títulos que, entre outros, recebeu nambucano Carlos Newton Júnior,
do povo e de artistas que o admi- que foi amigo íntimo do artista e
ravam - nasceu na cidade de Nossa é um dos mais conceituados estu-
Senhora das Neves, Paraíba, em diosos de sua obra, concorda com
1927, e faleceu no Recife (PE), a 23 os qualificativos. Em entrevista
de julho de 2014, aos 87 anos. Além exclusiva ao Correio das Artes, ele
de sonhos, esperanças e reflexões afirma que Ariano foi certamente
sobre a Cultura brasileira, legou à um dos grandes escritores da nos-
posteridade um grande e variado sa literatura, “com uma obra muito
acervo artístico, de incalculável uniforme, em termos qualitativos,
valor, de ascendência Universal, e muito variada, pelo fato de ter Capa da nova edição do
formado por romances, ensaios, se dedicado a diversos gêneros li- Romance da Pedra do
Reino e o Príncipe do
peças teatrais, poesias, desenhos terários – da poesia ao romance, Sangue do Vai-e-Volta,
e pinturas, entre outras formas de passando pelo teatro, pelo crônica, com ilustração de
manifestação da Beleza. pelo ensaio crítico etc.”. Ariano Suassuna

4 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto:Gustavo Moura

Antes de seu encantamento, Ariano


adaptou A Pedra do Reino para se
caracterizar como obra introdutória
ao inédito Romance de Dom Pantero
no palco dos pecadores

Para Carlos Newton, a importância de da boa preguiça, O santo e a porca oceano da Beleza”, agora em ju-
Ariano é enorme, e o tempo cuidará de etc.), Ariano deixou um grande nho, com a publicação, pela Nova
ratificá-la em toda a sua dimensão. “Pes- número de obras inéditas, em Fronteira, da nova edição d’A Pe-
soalmente – continua -, foi, para mim, um diversos gêneros, o que o torna, dra do Reino, com o título geral de
grande amigo, um verdadeiro mestre, podemos dizer assim, um artista A Ilumiara – Romance d’A Pedra do
com quem aprendi a ver o Brasil em toda apenas parcialmente conhecido, Reino – Introdução ao romance de
a sua complexidade e que muito influen- seja pelo público, seja pela críti- Dom Pantero no palco dos pecadores.
ciou na minha formação literária e na mi- ca, haja vista que só a análise crí- No dia 9 de outubro, data que
nha visão de mundo”. Homem declarada- tica minuciosa deste conjunto de assinala os 87 anos do assassina-
mente urbano, de formação urbana, que bens simbólicos irá possibilitar to do pai de Ariano - o ex-presi-
sempre viveu em cidade grande, confessa um dimensionamento valorativo dente da Paraíba, João Suassuna,
que foi Ariano quem lhe revelou um Bra- mais realista do autor. “vítima das cruentas lutas e per-
sil que ele desconhecia, e que passou a co- Há mais de trinta anos, preci- seguições de origem política de-
nhecer através da sua obra. “Não apenas samente desde 1981, Ariano vi- sencadeadas no contexto da cha-
literariamente, mas fisicamente, geografi- nha se dedicando a escrever um mada ‘Revolução de 30’”, como
camente, pois lendo a obra me interessei romance inédito, que conside- registra Carlos Newton, será lan-
em conhecer o sertão verdadeiro, que lhe rava uma súmula de toda a sua çado o romance epistolar inédito
serviu para a construção do seu universo obra, conjunto por ele denomi- do autor, Romance de Dom Pantero
poético”, completa. nado de A Ilumiara. Nele, o autor no palco dos pecadores – Autobiogra-
O Auto da Compadecida (1955) e A pena pretendeu agregar o que fez de fia musical, dançarina, poética, tea-
e a lei (1959), por exemplo, são entendidas essencial na poesia, no roman- tral e vídeo-cinematográfica (a obra
como obras seminais do moderno teatro ce, no teatro e nas artes plásti- sairá acompanhada de um DVD,
brasileiro, assim como o Romance d’A Pe- cas, ou seja, tencionou, talvez, a com uma das aulas-espetáculo
dra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai- concretização máxima do Armo- de Ariano), dividido em duas
-e-Volta (1971) é visto como um marco rial, movimento de valorização partes: “O jumento sedutor” e
literário do nosso País. No entanto, além da Cultura brasileira, idealizado “O palhaço tetrafônico”. Assim
dos romances, peças teatrais e ensaios já e liderado por ele. A primeira como A Pedra do Reino, do qual é
publicados (A história do amor de Fernando parte desse monólito angular e a continuação, Dom Pantero tam-
e Isaura, Uma mulher vestida de sol, Farsa luminoso emergirá do “imenso bém foi ilustrado por Ariano. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 5


Foto:Gustavo Moura

Ariano e Carlos Newton Júnior,


amigo íntimo e um dos mais
importes estudiosos da vida e
obra do autor

Ex-aluno de Ariano Suassuna foi adquirido pela Ediouro) as-


c PLANO DE na Universidade Federal de Per- sinou contrato com os herdeiros
nambuco (UFPE), Carlos New- para editar as obras de Ariano ao
EDIÇÃO ton trabalhou diretamente com longo de uma década. Segundo
o escritor durante muitos anos. Carlos Newton, A ideia é publi-
NEGOCIADO Chegou, inclusive, a organizar car os livros com a mesma iden-
alguns dos seus livros e a digitar tidade visual, como se o conjunto
PELOS originais do Romance de Dom Pan- formasse uma coleção. “Os pri-
tero. “Após a sua morte, a pedido meiros livros a serem lançados,
HERDEIROS da família, elaborei um plano de no campo do romance – indica -
edição que incluiu as obras já edi- serão A Pedra do Reino e o Romance
DE ARIANO tadas e também as obras inédi-
tas”, ressalta. Considera-se, mais,
de Dom Pantero no palco dos pecado-
res, o último romance que Ariano
um consultor, uma espécie de escreveu, deixado inédito”.
COM A NOVA curador da obra. “A coordenação A condução das negociações
editorial, tecnicamente falando, com as editoras interessadas foi
FRONTEIRA ficará a cargo da equipe da Nova feita pela Agência Riff, do Rio
Fronteira”, detalha. Já pela famí- de Janeiro, a mesma que já tra-
INCLUI OBRAS lia e pelo aspecto gráfico do pro- balhava com a obra de Ariano.
jeto editorial responde o artista Carlos Newton destaca as duas
JÁ EDITADAS E plástico Manuel Dantas Suassu- condições básicas para a decisão
na, um dos filhos de Ariano, em por parte dos herdeiros: o inte-
TAMBÉM textos parceria com o designer Ricardo resse da editora pelo conjunto da
Gouveia de Melo. obra, incluindo, aí, obras menos
INÉDIToS DO Ariano vinha publicando suas
obras, entre outras casas, pela
atraentes do ponto de vista do
mercado, mas importantíssimas
Agir (do grupo Ediouro) e, prin- para a compreensão do universo
AUTOR cipalmente, pela José Olympio (do de Ariano (a exemplo de peças de
grupo Record). Após a sua morte, teatro anteriores ao Auto da Com-
foram realizadas negociações que padecida), e o compromisso com
envolveram pelo menos quatro a qualidade editorial, a partir de
editoras, até que a Nova Fronteira um projeto gráfico que ressaltasse
(cujo controle acionário também a unidade do conjunto, sobretudo c

6 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c a partir das ilustrações de Ariano José Cândido de Carvalho. Veja obra em sua totalidade, pode-se
e também de Zélia Suassuna, que o que aconteceu com a obra de fruir melhor o texto e as ilustra-
ilustrou várias peças de teatro do José Cândido. Ele não conseguiu, ções que o complementam, todas
seu marido. depois de escrever aquela obra elas de autoria do próprio Ariano.
A Pedra do Reino terá o sabor de gênio que é O coronel e o lobi- Mesmo levando-se em conta as
de uma obra inédita, tanto para somem, se desvencilhar da voz de especificidades do mercado edi-
neófitos como para iniciados na Ponciano de Azeredo Furtado. torial nacional, como também das
obra de Ariano. Isto porque, de Isso fica muito claro, por exem- novas gerações de leitores brasi-
acordo com Carlos Newton, a plo, quando você lê as histórias leiros, bastante identificadas com
partir da 5ª edição, Ariano foi in- de Porque Lulu Bergantim não atra- as chamadas mídias digitais, Car-
troduzindo pequenas alterações vessou o Rubicon”, exemplifica. los Newton diz que a expectativa
no romance para caracterizá-lo Especula-se que Ariano não em relação ao novo romance é a
como uma introdução ao Roman- queria colocar o ponto final no seu melhor possível, em se tratando
ce de Dom Pantero. “A nova edição novo romance porque tinha a su- dos leitores de Ariano, sobretudo
do romance, a 16ª e a primeira perstição de que se assim o fizes- aqueles que já leram e gostaram
com o selo Nova Fronteira, tra- se morreria em seguida. Alguns de A Pedra do Reino.
rá o texto, pela primeira vez, em familiares e amigos do autor, in- “Não é um romance para ini-
sua versão definitiva, uma vez clusive, ratificam essa história. Na ciantes, e sim para iniciados”,
que introduzimos as últimas al- opinião de Carlos Newton, o Ro- sublinha Carlos Newton. E justi-
terações que ele deixou anotadas mance de Dom Pantero foi concluí- fica essa opinião afirmando que
em manuscrito, num exemplar do, sim. “Ariano colocou o ponto Dom Pantero requer um leitor
de uso pessoal”, salienta. No final quando começou a apresen- maduro, como ocorre com tantas
prefácio, Carlos Newton aclara tar problemas de saúde. Mas é outras grandes obras da literatu-
as alterações realizadas ao longo um romance formado por ‘cartas’ ra brasileira, a exemplo do Gran-
do tempo e o sentido que Ariano que o narrador publica num su- de Sertão: Veredas, de Guimarães
queria dar ao conjunto de toda a plemento literário. A partir dessa Rosa. “Costumo dizer – prosse-
sua obra, para o qual o autor deu estrutura epistolar, novas cartas gue - que o universo de Ariano é
o nome de A Ilumiara. poderiam ser interpoladas a qual- muito rico e possui diversas por-
Ariano começou a trabalhar quer tempo no corpo do romance. tas de entrada. Para um leitor ini-
em seu novo romance no iní- O que quero dizer, com isso, é que ciante, as portas de entrada são
cio dos anos de 1980 e, antes do se Ariano tivesse vivido mais cin- romances como A história do amor
seu falecimento, em 2014, houve co, dez anos, o romance certamen- de Fernando e Isaura e o inédito O
muita especulação em torno da te cresceria”, informa. sedutor do sertão, além das comé-
publicação da obra, inclusive de- Carlos Newton considera o Ro- dias, todas elas bastante acessí-
clarações contraditórias do pró- mance de Dom Pantero como uma veis”. O sedutor do sertão (1966),
prio autor, ensejadas, talvez, pela espécie de testamento literário de por sinal, será uma das obras iné-
curiosidade dos jornalistas, vez Ariano, que procura integrar, na ditas a serem editadas, no campo
que, em se tratando de uma obra narrativa, elementos do seu tea- do romance, além de As infâncias
aberta, as mudanças de percur- tro, da sua poesia, da sua prosa de Quaderna (a segunda parte de
so são naturais. Carlos Newton de ficção e do seu ensaio. “Com- O rei degolado).
aponta três motivos, para ele, os posto por cartas assinadas por Já na área do teatro, serão edi-
mais significativos, que contri- Antero Savedra sob o pseudôni- tadas peças como Auto de João da
buíram para esse dilatado tempo mo de ‘Dom Pantero’, publicadas Cruz (1950), O desertor de Prince-
de escritura. Em primeiro lugar, em um suplemento de jornal, sa (1958) e As conchambranças de
o perfeccionismo de Ariano. Em como eu já disse, o romance con- Quaderna (1987). No campo da
segundo, o envolvimento pessoal ta a trajetória de um misto de es- poesia, O pasto incendiado (obra
do autor em projetos os mais di- critor, ator, encenador, professor poética completa) e poemas sele-
versos. “Inclusive, neste último e palhaço que dedica a sua vida cionados (melhores poemas, so-
caso, assumindo cargos públicos, à realização de uma grande obra, netos etc.). Carlos Newton admite
o que é sempre um tormento para intitulada A Ilumiara e escrita a que há ainda a possibilidade de
um escritor, pois ninguém escre- partir das obras dos seus irmãos, recolhas de crônicas, de ensaios
ve sem ter sossego”, destaca. o romancista Auro Schabino, o críticos etc., a partir de coleções
A última causa Carlos Newton dramaturgo Adriel Soares e o já existentes na editora, a exem-
considera a mais determinante poeta Altino Sotero – como se vê, plo da coleção ‘O melhor de’ (O
dentre as três razões indicadas: pelas iniciais dos nomes, todos melhor de Rubem Fonseca, O me-
a procura de um estilo próprio eles heterônimos de Ariano Suas- lhor de Caio Fernando Abreu etc.).
para o novo narrador, Dom Pan- suna”, deslinda. “Outros projetos ainda poderão
tero, que não poderia, conforme Cimentado na sua condição ser pensados (cartas, diários),
desejo do autor, ser contaminado de leitor e estudioso da literatura até porque, como você mesmo
pelo estilo régio de Quaderna, e de discípulo de Ariano, Carlos afirmou, trata-se de um espólio
protagonista-narrador de A Pe- Newton não titubeia ao afirmar bastante significativo”, aquilata.
dra do Reino. “Acho que essa era que considera Dom Pantero um Resta agora ao caro leitor ir se or-
a grande preocupação de Aria- romance extraordinário, até por- ganizando para adentrar no rico
no. Ariano foi muito amigo de que, acrescenta, conhecendo a universo suassuniano. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 7


6 especial

A hora do
encontro
O ENCANTAMENTO DE
ARIANO SUASSUNA
ABRE CAMINHO PARA A
APROXIMAÇÃO DO FILHO
COM A OBRA DO PAI

William Costa
Editor do Correio das Artes

O
artista plástico pernambucano Manuel
Dantas Suassuna, filho de Ariano Suassu-
na, conta que se afastou do pai, deliberada-
mente, para poder desenvolver, com mais
liberdade, a própria personalidade artística.
Mas não se tratava de ausência física, de ne-
gação de valores estéticos, nem de incompa-
tibilidade de gênios. Muito pelo contrário.
Certamente foi apenas a maneira que ele
encontrou de escapar da poderosa força
gravitacional exercida pela obra monumen-
tal erigida pelo pai, até amadurecer sua lin-
guagem pictórica, que, por sinal, segue den-
tro de parâmetros poéticos armoriais.
A aproximação, segundo Dantas, come-
çou mais ou menos uns três ou quatro anos
antes do encantamento de Ariano, quando
este o chamou para uma conversa no seu
gabinete de trabalho, instalado no famoso
casarão da Rua do Chacon, Bairro de Casa
Forte, no Recife (PE), às margens do rio
Capibaribe. “Carlos Newton Júnior estava
lá com ele, no gabinete, conversando, e ele
Manuel Dantas Suassuna, filho de
mandou me chamar. Então, ele disse: ‘olha,
Ariano, afastou-se deliberadamente
o livro (Romance de Dom Pantero no palco dos do pai , para assim poder criar
pecadores) está praticamente terminado, mas com mais liberdade a sua própria
se eu não conseguir terminar, eu queria que personalidade artística
vocês dois terminassem’”.

8 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Dantas reconhece que essa foi do próprio Ariano, que já havia

Foto:joão carlos beltrão


a primeira conversa séria que externado isso com relação aos
teve com o pai, no sentido de se romances d’A Pedra do Reino e o
reaproximarem e adotarem pro- de Dom Pantero. “Seriam obras
vidências para a edição do Ro- interligadas, porque ele queria
mance de Dom Pantero no palco dos unificar, isto é, trazer para o ro-
pecadores, a obra inédita na qual mance de Dom Pantero as obras
Ariano vinha se dedicando des- teatrais dele também, entendeu?
de os anos de 1980. “Então, isso Mas ele não colocou todas as pe-
quer dizer que já estava meio que ças, colocou alguns personagens
previsto essa nossa, essa minha e algumas peças. Acho que está
reaproximação dele, vamos di- lá, também, por exemplo, (o ro-
zer assim”, frisa. Mas aí veio o mance) A história do amor de Fer-
impacto causado pela morte de nando e Isaura”, informa.
Ariano, e Dantas teve que espe- Ao iniciar a discussão sobre a
rar o espírito serenar, para poder melhor maneira de editar a obra
retomar o projeto de edição da de Ariano, Dantas externou a
obra, o que veio a acontecer no sua vontade no sentido de que
final do ano passado. o espólio fosse considerado uma
“Quando ele se foi, apesar herança paterna. Portanto, para
de papai já ter uma certa ida- manter essa chama acesa, reivin-
de (Ariano encantou-se aos 87 dicou que a editoração passasse
anos), o impacto foi grande, e por ele, Carlos Newton Júnior e
então teve um tempo de acata- Ricardo Gouveia de Melo. “Eu
mento, né? De ficar mais sereno, quis que isso ficasse reunido
pra poder me debruçar sobre com a gente, justamente pra dar
o livro. E aí, no final de 2016, a essa unidade que meu pai pre-
gente começou a mexer nisso”, tendia, ou seja, a unidade gráfica,
relembra Dantas. Ele também a partir da obra pictórica dele, os
fez menção à questão do contra- desenhos dele. Então é isso que
to editorial. “A gente queria uni- vai dar essa unidade, eu vou ape-
ficar a obra dele todinha numa nas arrumar de uma forma que
editora só, que era um desejo eu acho que deve ser”, ressalta.
dele também, ele tinha exter- A nova edição d’A Pedra do Rei-
nado isso pra gente. Queria dar no trará as ilustrações originais,
uma unidade na obra dele toda, e feitas por Ariano, no entanto, se-
ao mesmo tempo, com isso, botar gundo Dantas, os desenhos, em
numa editora só”, acrescenta. preto-e-branco, foram diagrama-
O desenho e a pintura de dos de uma maneira diferente,
Ariano tocavam profundamente de modo a realçá-los melhor. A
Dantas, daí o afastamento, para gravura da capa é que é prati-
evitar, talvez, que a sua arte fos- camente inédita, uma vez que
se vista como imitação. Com a Ariano vinha trabalhando nes-
ida de Ariano, Dantas sentiu a se desenho com vistas a inseri-
necessidade de se reaproximar -lo, juntamente com outras ima-
da obra plástica do pai. “Essa gens, no Romance de Dom Pantero.
reaproximação foi fundamental, Aliás, as gravuras d’A Pedra do
como artista e como filho, porque Reino tinham sido comercializa-
a gente tinha uma vida, papai foi das em segredo por Ariano com
quem me ensinou a ser artista, um marchand de Recife, e só re-
entendeu? Então, a gente tinha centemente o acervo foi readqui-
esse diálogo e, ao mesmo tem- rido pela família.
po, tinha esse afastamento. Mas Ao se referir ao novo romance,
isso, de me aproximar da obra Dantas comenta que ele represen-
dele, está sendo extremamente ta uma missão de vida, no caso,
importante pra mim como artis- a de seu pai, que dedicou parte
ta, além de me apaziguar com a considerável da existência a esse
ida dele”, exterioriza. livro. “Ele dizia que era o roman-
Quanto à organização da obra ce da vida dele, então, para mim,
de Ariano e o planejamento de da mesma forma que o livro está
sua edição e reedição, confor- ligado à perda, ao mesmo tempo
me o caso, Dantas esclarece que me aproxima muito da obra dele,
a ideia de unificar a obra do pai coisa que nunca fiz na minha
inteira, como A Ilumiara, partiu vida, por razões pessoais, embo- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 9


c ra a gente conversasse muito e eu
tinha essa liberdade de transitar
pela obra dele, assim como ele ti-
nha na minha, entendeu? Então,
eu espero que o público entenda a
dimensão desse livro”, frisa.
O acervo de artes plásticas de
Ariano Suassuna também será
apresentado ao público a partir
do dia 9 de outubro, por oca-
sião do lançamento do Romance
de Dom Pantero no palco dos pe-
cadores. De acordo com Manuel
Dantas Suassuna, a exposição,
intitulada provisoriamente de
Ilumiara – Ariano Suassuna, irá
reunir desenhos, rascunhos,
estudos, algumas páginas ma-
nuscritas. “A ideia é mostrar
como era o processo de criação
de papai, porque tem algumas
anotações em revistas e livros,
recortes, etc., então eu pretendo
mostrar isso. A exposição será
itinerante, acompanhando a
programação de lançamento do
livro”, completa.
Dantas confirma que as nego-
ciações para a edição das obras
de Ariano envolveram várias
editoras. “Elaborei um projeto
junto com Carlos Newton e Ri- Ariano
cardo Gouveia, conversei com externou para
o filho Dantas
minhas irmãs, os demais herdei- as diretrizes
ros e com mamãe (Zélia Suas- básicas para
suna), explicando o que a gente a publicação
pretendia fazer. Então, com a de seu novo
romance
aprovação de todos, mostramos,
primeiramente, à José Olympio,
que era a editora que tinha os
direitos das maiores edições, do O artista assegura que chegou necessário para que o filho crias-
quantitativo de livros, e depois a hora de fazer isso, ou seja, de se uma espécie de couraça artís-
consultamos outras editoras. A estabelecer um contato mais vis- tica, preservando, assim, a sua
única que se interessou em fazer ceral com o legado artístico do singularidade estética. “Agora eu
tudo o que a gente pretendia foi a pai, sem nenhum tipo de receio sinto como um pertencimento.
Nova Fronteira”, acentua. ligado ao campo estético. “Eu Tudo o que ele produziu é como
Dantas Suassuna declara que tenho um projeto, por exemplo, me pertencesse, artisticamente,
sempre teve a dimensão de tudo uma ideia de fazer uma imersão para eu poder me influenciar. De
que Ariano Suassuna represen- n’A Pedra do Reino, na geogra- poder pegar agora um desenho
tava para Brasil, mas isso a partir fia d’A Pedra do Reino, junto com dele e fazer uma leitura minha,
do momento em que passou a se esse grupo que sempre trabalha expressando o meu sentimento
interessar por arte. “Tanto é, que comigo. Eu tenho vontade de em relação a ele, inclusive, como
eu tenho mais aproximação com o buscar essa geografia dentro d’A pessoa, como pai, vamos dizer
Ariano pensador, o professor, do Pedra do Reino, do Nordeste, não assim”, enfatiza. I
que com a obra dele. Estive mais só a geografia de lugares, mas
interessado em me aproximar a geografia humana, também,
das indicações artísticas que ele entendeu? Então, isso é pratica-
me passou, do que propriamen- mente natural, essa aproximação
te fazer uma leitura da obra dele, minha do meu pai”, ratifica. William Costa é jornalista e
para influenciar no meu trabalho, Dantas reitera que, ao longo escritor. Edita o Correio das Artes,
suplemento literário do jornal A
entendeu? Isso praticamente não dos anos, ele e Ariano tiveram a
União, do qual é também cronista.
ocorreu. Ocorreram coisas espo- preocupação de não permanece- Para tocar tuas mãos - Chronesis
rádicas, mas não um aprofunda- rem muito juntos. Como já foi ex- (Ideia, 2017), é o seu primeiro livro.
mento da obra dele”, confessa. plicado, esse afastamento se fez Mora em João Pessoa (PB).

10 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Desenho inédito
de Manuel Dantas
Suassuna, inspirado
n’A Pedra do Reino,
gentilmente cedido
pelo artista, com
exclusividade,
para ilustração do
Correio das Artes

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 11


ilustrações: xilogravuras de marcelo soares

6 artigo

ABC
de cultura
popular
José Maria Tavares de Andrade Judeus, cativos qual ciganos
Especial para o Correio das Artes perdidos de um mundo seu
se esconderam nas serras
fugindo dos europeus;
nativos mostram caminhos

A
nuncio para breve a publicação de ABC
de cultura popular, obra para o grande salvando-se quem não morreu.
público sendo igualmente destinada (Do prefácio de Marcusdiaurelio)
ao ensino, tratando-se de livro didático
e de referência. Trata-se de uma espé-
cie de pequeno dicionário, em sentido
amplo e atual, sem as exigências de logia e da utopia popular brasileira; do saber e saber
padronização especifica de definições. fazer, das artes inclusive da arte de curar (magia, re-
Ficaria contente de contribuir a levar a ligiosidade popular, etnoteologia, etnomedicina, fi-
cultura popular às escolas; a depender toterapia, etnobotânica e até de Etnoimunologia). Os
do editor, uma próxima tiragem pode- termos em negrito no ABC correspondem a artigos,
ria ser destinada ao sistema nacional como sistema ou rede de remissivas ou referências
de distribuição de livros didáticos. cruzadas, o que ajuda na reconstituição de conexões
Distinguimos dois tipos de artigos: entre realidades descritas.
os verbetes propriamente ditos, às ve- Em termos de âmbito geográfico e histórico
zes subdivididos em temas comple- a abrangência da obra é o Nordeste, sobretudo.
mentares; e expressões da cultura po- Identificam-se, entretanto círculos concêntricos
pular que completam os dicionários de em ondas de expansão - como as desenhadas por
termos populares, como alguns glos- uma pedra caída n’água - que partem de um ponto
sários. O livro poderia ser considera- até se dissolveram; em termos de olhar comparati-
do uma Antropologia do popular (ou vo, portanto não se restringe à regionalismo. Cla-
Etnologia, preferem os franceses), ou ro cada cultura popular é de fato bem localizada
Etnociencia, pois trata da linguagem, entre singularidades, sem esquecer a generalidade
etnolinguística e etnoterminologia; da antropológica buscada.
literatura oral e dos folhetos, da mito- A fase de redação do ABC, final de 2016, foi bem c

12 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c

As xilogravuras originais do artista


pernambucano Marcelo Soares que ilustram
c agradável como um tempo de cultura popular. Respondi que
essas páginas pertencem a José Maria Tavares
safra: colhendo em minha bi- na província havia especialistas
bliografia frutos de uma vida consagrados. O editor insistiu
de pesquisa, para resumir 172 dizendo que sabia o que queria:
assuntos, se bem que no índi- “um enfoque mais acadêmico e
ce figuram apenas os 155 temas atualizado de um novo pesqui-
diferentes. Em seguida fui con- sador”. Trabalhei dobrado ten-
vidado pela Prefeitura da vizi- tando uma visão mais histórica
nha cidade Brumath para falar e sistemática deste universo e
de cultura na Semana do Brasil. campo semântico explicitando outras regiões e regionalismos.
Preparei então um resumo do critérios políticos, ideológicos Que este ABC se transforme
ABC e fiz uma pré-publicação de e educativos em torno da pro- em cartilha, em “livro de leitu-
48 páginas - sendo 12 páginas de blemática. Sem saber estava as- ra” até chegar à enciclopédia de
bibliografia. Meu editor francês sim plantando a semente deste referência cultural, como dizia
(L’Harmatann) vendo a beleza da pequeno abecedário. Cf. Estudo Aloísio Magalhães.
xilogravura da capa, obra adqui- da cultura popular, agosto 1970 e A expressão “cultura popu-
rida do artista Marcelo Soares, também: Complexidade: Educação, lar” cobre duas etapas e dois
de João Pessoa, decidiu editar cultura e civilização, Ed. Universi- significados: um francês e ou-
um livrinho ilustrado: CULTU- tária, Recife, 2010; Raízes da cultu- tro brasileiro e antropológico.
RE POPULAIRE AU BRÉSIL. ra popular - em dois volumes (Co- A expressão significou inicial-
Meu ponto de partida é o mu- leção Antropologia Brasileira), mente um movimento cultural,
nicípio de Ferreiros, Mata Nor- Amazon, 2014. Na bibliografia do educativo e político tendo como
te (PE), pois lá comecei a ver o autor apresento outros estudos e objetivo levar ao operário ou ao
mundo, sendo meu “laboratório pesquisas que me favoreceu a povo o que ele não dispunha, e a
antropológico” de vida rural e redação deste ABC, inclusive os partir da democratização do al-
aos poucos confrontada com o dois últimos livros: Plantas me- fabeto e de bens culturais o que
mundo urbano e em viagens de dicinais – do arquivo ao canteiro e é chamado também de cultura
estudo. Como folclorista eu pude Miscelânea – Amazon, 2017. na França - ver Associação “Peu-
documentar inicialmente, ele- Sendo a cultura popular apre- ple et culture”, de 1945.
mentos de práticas mágicas de sentada em um leque de fenô- A expressão francesa veio
Ferreiros e de longe, contando menos, aspectos, manifestações, para a Cidade do Recife na ges-
com a ajuda de colegas do inter- linguagens e representações as tão de Miguel Arraes, pois Ger-
nato, vindos de locais distantes. mais diversas e em suas dinâmi- mano Coelho da França previu
Nos anos 1970, recebi um pe- cas, um trabalho inicial desta na- a aplicação no Brasil desta expe-
dido da Revista de Cultura Vozes, tureza merece de ser continuado riência. Antes, o sentido era de
para escrever um artigo sobre podendo, inclusive, ampliar-se a levar ao povo o que ele não dis- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 13


c punha, mas vai passando aos poucos ao sentido concluir que as diferenças culturais e o
antropológico - manifestações culturais popula- reconhecimento destas mesmas diferen-
res. Na polissemia e ambiguidade do termo cul- ças antropológicas - costumes, modos
tura, encontra-se na França um sentido de bens de vida, linguagem, visão de mundo -
culturais no mercado, de modo a falar-se de “de- encontram-se no nível das elites urbanas
mocratização da cultura” ou “direito à cultura” e eruditas, pois a cultura popular era o
um absurdo antropológico. que já vinha existindo de modo mais ou
O Movimento de Cultura Popular (MCP) foi menos indiferenciado. Nasce assim a di-
criado em 13.05.1960, como instituição sem fins ferença entre o que é popular e o que não
lucrativos, durante a gestão de Miguel Arraes na é mais. Passamos dos enfoques folclóri-
Prefeitura do Recife. Ao MCP aderiram, dentre cos, mais literários a uma Antropologia
outros: Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, complexa, onde um mesmo fenômeno é
Abelardo da Hora, Aloizio Falcão, Francisco compreendido conforme avanços meto-
Brennand, Luís Mendonça, Paulo Rosas e Paulo dológicos e epistemológicos - ver Flores-
Freire (DEC/ UFPB, surgindo ali o Movimento tan Fernandes, Edson Carneiro. Fazen-
de Alfabetização de Adultos). do uma retrospectiva de meu percurso
Antes da ditadura mi- como pesquisador encontro esta mesma
litar o MEC patrocinou mudança de enfoque.
um seminário e criou a No ABC aparecem algumas grandes
Comissão Nacional de figuras da cultura popular como Virgu-
Cultura Popular. Surge lino o Lampião e o Padre Cícero. Quan-
então o Movimento de Educação to ao “meu padrinho” o santo popular
de Base (MEB) também de âmbi- forneço duas versões para uma rica
to nacional e as Escolas Radiofô- confrontação quanto ao seu compareci-
nicas, ambas da Igreja Católica, mento ao Vaticano: uma narrativa mito-
se bem que inspirada no movi- lógica, “Padre Cícero em Roma”; e dados
mento trabalhista francês, visava- do processo de sua condenação – “Padre
-se, entretanto, contrabalançar ou Cícero e o Vaticano”. Diante da reabilita-
competir ideologicamente com os ção de Cícero Romão Batista (1844-1934),
comunistas. O movimento do Sindica- pelo Papa Francisco, os dados que reco-
lismo Rurais, assumido pela Igreja, teve o lhi na Biblioteca do Vaticano demons-
mesmo objetivo: evitar a expansão das Li- tram que este recuo atual da hierarquia
gas Camponesas, fundadas pelo comunis- católica foi enorme. A longa resistência
ta Gregório Bezerra (autor de Memórias e da cultura popular em defesa do líder
reeditado) e tendo como advogado Chi- messiânico finalmente é reconhecida. O
co Julião. Papa Francisco e o líder e santo do Ser-
Um tipo de cultura é definido como tão têm em comum a preferência pelos
sendo popular, mas por oposição a que pobres, sendo ambos inspirados por São
outro tipo de cultura? Nos contextos Francisco de Assis (1181 ou 82 - 1226).
tradicionais de vida dos autóctones Este esforço mais pessoal do ABC me-
ou nações e etnias indígenas não se rece ser continuado com mais entradas
pode falar de cultura popular. No e, sobretudo de outras regiões e para isto
contexto de culturas ágrafas não se conto desde já com a colaboração dos lei-
pode falar de índio analfabeto: é o tores, recebendo de bom grado colabora-
alfabeto que cria a categoria de anal- ções, sugestões e críticas para preparar-
fabeto; é o trabalho formal que cria mos juntos nova edição. I
o termo desempregado; são as elites
que se diferenciam do comum dos
mortais, pelo mundo a fora.
Com o longo processo histórico
de diferenciação de modos de vida
entre cidade e campo, elite e massa, José Maria Tavares de Andrade
é antropólogo da Universidade de
a corte e o povo; e com o surgimento Estrasburgo (França), responsável
de correspondentes instituições de pelo Seminário de Etnomedicina, e
elites políticas, religiosas, militares, autor, entre outros, dos livros Contos
econômicas, literárias, artísticas e tradicionais, Andanças e devaneios:
poemas, teatro e crônicas e Terapia
científicas vão aparecendo as diferen- Panteísta ou Religião da Natureza.
ças de costumes, valores e linguagem. Trabalhou na Universidade Federal
Finalmente, em 1846, surge o termo para da Paraíba (UFPB), atuando no ensino/
designar o costume do povo (“folk-lore”), pesquisa/ extensão. Estudou Filosofia
(PE), Sociologia e Linguística (Bélgica)
significando antiguidades populares ou lite- e fez o doutorado com Roger Bastide
ratura popular. Ficou marcada esta dicoto- e pós-doutorado com Edgar Morim em
mia histórica e antropológica no seio das Epistemologia da complexidade. Mora
culturas nacionais européias. Podemos em Estrasburgo.

14 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 memória
Mestre

Eduardo
Portella
José Mário da Silva
Especial para o Correio das Artes

Para
Elizabeth
Marinheiro,
com o afeto
no entretexto.

A
cultura brasileira ficou sumamente empobrecida com a repentina mor-
te do pensador Eduardo Portella, um dos mais completos intelectuais
do Brasil, com amplas e significativas ressonâncias internacionais. Já
tendo ultrapassado a quadra cronológica dos oitenta anos de idade,
mostrava-se extraordinariamente produtivo: seja nas magistrais con-
ferências que proferia na Academia Brasileira de Letras, da qual fazia
parte; seja nos luminosos ensaios que escrevia e publicava na Revista
Tempo Brasileiro; seja nos artigos que com regularidade escrevia e pu-
blicava nos grandes jornais do país, a exemplo do belíssimo artigo-en-
saio intitulado “A morte do homem cordial”, último artigo do mestre
da crítica poética brasileira.
Plural, Eduardo Portella atuou em várias frentes, e sempre condu-
zido pela singular competência com que sempre se distinguiu. Polí-
tico, sua passagem pelo ministério da Educação, Cultura e Desportos c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 15


c foi, por qualquer ângulo que se textos a elegância estilística e a mo quando desvinculadas do
queira examinar, revolucioná- percuciência exegética davam-se contexto maior em que estavam
ria. Pugnou pelo que sempre as mãos num conúbio admiravel- inseridas. Eis aqui uma pequena
denominou de a pedagogia da mente perfeito. amostra dessa riqueza estilísti-
qualidade, emblema do seu ser/ Como o mestre Eduardo Por- ca proveniente da Inteligência e
fazer educacional. tella aprendemos que “no jogo sensibilidade de Eduardo Portel-
Com olhar holístico para o da verdade a crítica é criação”, la: “No jogo da verdade a críti-
sistema educacional brasilei- postulado decisivo para a com- ca é criação. Somos um ser para
ro, complexo e desafiador, de- preensão de que, ultrapassando o outro e fora do diálogo o que
fendeu uma atenção redobrada o mero e previsível registro da existe é o precipício. A crônica
para a fase pré-escolar, por en- metalinguagem, a crítica literá- é uma espécie de animal ainda
tender que se o alicerce da casa ria passa a ser encarada como não domesticado. Para além da
for frágil, todo edifício resultará criação, ancorada, libertaria- morte do poema, permanece a
inevitavelmente comprometido. mente, no porto de uma lingua- dimensão poética da existência.
Convivendo com a chamada li- gem que se pretende tão poéti- O ensaio é este olhar. A liberda-
nha dura do regime militar, que ca quanto a linguagem do texto de do olhar, o olhar da liberdade.
já emitia nítidos sinais de enfra- para a qual se volta. Aqui, o dog- A concordância é preguiçosa, a
quecimento, Eduardo Portella, matismo judicativo cede lugar discordância é provocadora. O
com invulgar coragem, encarnou a uma hermenêutica aberta, re- caminho é o caminhar”.
a emblemática figura do paradig- criativa, sábia em atentar para a Multiplicaríamos os exemplos
mático defensor da democracia e integridade estilística do texto e, e, em todos eles, constataríamos
das liberdades individuais, o que ao mesmo tempo, para a sua in- a mesma invariante básica, qual
desagradou a muitos, fazendo serção nos tecidos nevrálgicos da seja a de que Eduardo Portella,
com que a sua travessia, aqui/ história, tudo sedimentado com no manuseio da linguagem, foi,
acolá, fosse marcada por cho- o indispensável apoio da filoso- acima de tudo, um esteta refina-
ques e conflitos inevitáveis. fia. Filosofia, com a qual Eduardo do e consumado. Dimensões I, II,
Nesse particular, registre-se Portella conviveu mais aprofun- III e IV, Brasil à Vista, Teoria da Co-
a posição que Eduardo Portel- dadamente, sobretudo durante o municação Literária, dentre outros
la tomou, ficando solidário aos período em que verticalizou os títulos, dão bem a medida do ta-
professores universitários que seus estudos em Madri. lento criador do mestre Eduardo
estavam em greve. “Não sou Empreendedor arrojado, Portella, cuja morte, ainda pran-
ministro, estou ministro”, eis Eduardo Portella fundou, na teada, impregna de silêncio e luto
a sentença que, proferida em companhia do seu irmão Fran- da república das letras nacionais.
dado momento do exercício do co Portella, as Edições Tempo No entanto, como acentuou
mandato ministerial, ganhou Brasileiro, pauta aberta para certa feita a mestra Elizabeth Ma-
vida própria, sinalizando, no li- se pensar o Brasil de maneira rinheiro: “o homem se eterniza
mite, o desapego ao cargo, a to- vertical e abrangente, nas suas pelo que escreve”. Já Emerson, em
dos os cargos que ocupou; aos contradições e possibilidades de seus admiráveis ensaios, afirmou
quais imprimiu o solene signo superação; nos seus abismos te- que “o homem é apenas metade
da dignidade. merários e nas suas necessárias de si mesmo, a outra metade é a
“Sou professor”, eis a senha a utopias. Não somente o Brasil, sua expressão”. Os dois postula-
conferir as marcas e os marcos mas o mundo em suas vastas dos ajustam-se à maravilha à fi-
da identidade profunda do ho- e incontornáveis dimensões. gura de Eduardo Portella, mortal
mem público Eduardo Portella, Transdisciplinar, a Revista Tem- em sua ontológica condição hu-
professor emérito da Universi- po Brasileiro, sem nenhuma es- mana, mas imortal e eterno pelo
dade Federal do Rio de Janeiro, treiteza epistemológica, acolheu que escreveu. Mortal, pela cota de
na qual criou, na companhia de a filosofia, a literatura, a política, finitude inerente a todos os seres
Afrânio Coutinho e de outros a religião, a estética, enfim, todos humanos, mas imortal e eterno
colaboradores igualmente quali- os saberes constitutivos da terri- pela força de um pensamento
ficados, toda a estrutura da pós- torialidade humana, fazendo-o crítico criativo, plural, democrá-
-graduação da aludida institui- com espírito crítico e generoso. tico, poético e sumamente origi-
ção de ensino superior. Mestre incomparável na fasci- nal. Conforme afirmou Elizabeth
Como professor, além do nante arte de escrever, Eduardo Marinheiro no belo ensaio “Os
congênito brilhantismo das au- Portella foi um brilhante produ- Eduardos de Eduardo”, Eduardo
las que ministrava, nas quais tor de linguagem, expressão com Portella é “um Nome, um emble-
a reflexão, livre, era a tônica, e a qual ele categorizava os verda- ma. Do ser e do tempo.I
a discordância, estimulada, a deiros artistas da palavra. Pro-
conduta mais compatível com o dutor de linguagem, sobretudo José Mário da Silva é professor da
livre pensar, Eduardo Portella na formulação de sentenças que, Universidade Federal de Campina
notabilizou-se, sobretudo, como poéticas em seu indesviável cer- Grande (UFCG) e membro da
Academia Paraibana de Letras (APL).
ensaísta primoroso, em cujos ne, ganharam vida própria, mes- Mora em Campina Grande (PB).

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Foto: reprodução internet

6 memória

Adeus,
Eduardo
Marco Lucchesi Portella optou por um percurso
Especial para o Correio das Artes intensivo mais que extensivo,
denso, rarefeito. A qualidade do
pensamento não se mede por lé-

N
ão direi de minha amiza-
guas de sesmaria ou latifúndio,
de por Eduardo Portella.
sua métrica não se quantifica por
Não encontro forças, aba-
testadas, mas de acordo com a
lado pela sua partida. Direi ape-
potência qualitativa de expansão
nas do crítico, do pensador, que
conceitual, no conteúdo crescente
vivo permanece, como um dos
de Popper, ou na leitura de Hei-
maiores poetas do ensaio em lín-
degger sobre Hölderlin.
gua portuguesa.
Eduardo Portella sente a de-
Eduardo Portella poderia figu-
manda do sistema que elabora em
rar nas páginas de Walter Benja-
horizonte fértil. Como quem par- fluxo e a permanência operam,
min como um anjo em meio às
te de uma norma fractal. Como cada qual a seu modo, como ins-
ruínas, levado pelos ventos da
quem reclama a vastidão da parte trumentos de abordagem do real.
História, quando começa a reunir
sobre o todo, assim como da sín- Portella segue um processo livre
as partes de um todo disperso.
tese sob suspeita, como desejo de e vigoroso, ao mesmo tempo fic-
Poderia flanar igualmente nos
futuro, sem veleidades sintáticas, cionista e poeta, elemento-chave
versos de Baudelaire no limes de
alquimista que não se limita à de sua obra esse hibridismo,
uma cidade infinita, um Wande-
busca da pedra, uma enciclopé- como quem flutua, com Claudio
rer na espessura da superfície.
dia que indaga as malhas de um Magris, sobre um Danúbio de
Portella fez de sua condição pe-
verbete inacabado, onde lateja conceitos convergentes da políti-
regrina uma autêntica forma men-
uma sinergia multidirecional. ca e da poética, que se nutre de
tis, congenial ao tempo que nos
Nesse drama da parte com o uma terceira margem. Portella é
desafia, para lidar com a astúcia
todo, movem-se as máquinas do um nômade do pensamento sem
da incerteza, na genealogia do
ensaio de Portella, que coinci- endereço fixo para não se apri-
fragmento. Sua leitura passa de
de com o círculo hermenêutico, sionar dentro de uma província.
um regime vertical para um trâ-
sem um deus ex machina. Sob a É inquilino da complexidade de
mite radial, como um saber que
estética do risco, o ensaio patro- Morin e do pensamento fractal de
se move a contrapelo das formas
cina uma fratura, um elemento Mandelbrot, contradança da par-
transitivas. Não aceita horizonte
descontínuo. Portella não admite te com o todo.
prévio, como a euclidiana geo-
as tautologias, os determinismos Nos últimos anos, o baricen-
metria de Kant, mas segue uma
sublimados e escondidos. Imerso tro de Eduardo Portella migrou
perene reinvenção dos sistemas,
nos desafios da “baixa moderni- da crítica para a metacrítica e a
como queria Sloterdijk, cuja trilo-
dade”, Portella optou nos últimos novos pontos de fuga. Suas pági-
gia mais de uma vez discutimos,
anos pela dissonância, distan- nas se tornaram espantosamente
à sombra das estantes da Biblio-
ciando-se da síntese hegeliana, híbridas e abertas, como um her-
teca Nacional, levando à cena o
acolhendo a paralaxe de Žižek. meneuta da suspeita, de quem
jogo da Parte e do Todo, dramatis
Falamos do céu astronômico, de realiza uma biografia indireta,
personae do repertório ocidental.
quanto meu corajoso telescópio a partir de sua intensa noosfera.
Portella desistiu de escrever
captura nas noites de Itacoatiara. Uma memória futura, bem enten-
uma história de para exorcizar uma
A partir daí o sentido e a re- dido, atravessada por um tempo
rima conceitual que considerou
gra, a demanda e o percurso, o que não fecha.I
perigosa, de um todo totalitário,
mais inclinado, muito embora,
Marco Lucchesi é poeta, romancista, ensaísta, tradutor e professor titular de
a um todo totalizável, no corte
Literatura Comparada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
do fragmento, como Wittgens- Janeiro (UFRJ). É membro, entre outras instituições, da Academia Brasileira de
tein, para atingir uma história em. Letras e da Accademia Lucchese di Scienze, Lettere e Arti. Mora em Niterói (RJ).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 17


6 festas semióticas
Amador Ribeiro Neto
amador.ribeiro@uol.com.br

Palavras e
números – a sublime poesia de
Marco Lucchesi

M
arco Lucchesi (Rio de Janeiro, 1963) é professor da UFRJ, poe-
ta, romancista, ensaísta, tradutor, crítico literário, memorialista,
missivista, roteirista, organizador de antologias, organizador de
obras, editor de revistas literárias, membro da ABL. Foi contem-
plado com vários prêmios nacionais e internacionais. Tem livros
Foto: divulgação

traduzidos para o árabe, romeno, persa, russo, turco, polonês,


híndi, sueco, húngaro, urdu, bangla e, claro, inglês, francês, ale-
mão, espanhol e italiano. Publicou os seguintes livros de poesia:
Bizâncio (1997), De passione (2000), Alma Vênus (2000),
Poemas reunidos (2001), Sphera (2003), Meridiano celeste
& bestiário (2006) e Clio (2014). Hinos matemáticos (Rio de
Janeiro: Dragão, 2015) é sua mais recente publicação.
A poesia de Marco Lucchesi é de um lirismo arrebatador. Pou-
cos conseguem, como ele, aliar erudição e leveza, ciência e senti-
mento, matemática e amor. Assim é, e não poderia ser diferente,
em se tratando do poeta que é, Hinos matemáticos, um livro
que desafia o leitor com fórmulas matemáticas poucamente escla-
recedoras. Mas com formas poéticas abundantemente tocantes.
Uma poesia que nos rememora a velha lição valéryana: poesia
e matemática são duas abas do mesmo chapéu. Mas Lucchesi vai
além da simples equação aritmética. Interessa-lhe a musicalidade
contida na matemática. Aquela mesma música a que toda poesia
aspira ser. O “espólio inabordável entre 0 e 1”, como enuncia o
poema “Busca do ouro”.
As imagens sucedem-se numa espiral que toca os mesmos pon-
tos. E neste apoio conhecido, impulsionam-se pra novos volteios.

E as formas que não cessam


de crescer

Delírios fugazes
Líquidos lampejos

dizem os versos finais de “Solilóquio fractal”. O espaço em


Marco Lucchesi é um dos mais versáteis aberto. Expandindo-se. E isomórfico a ele, a poesia. Formas, delí-
escritores brasileiros. Hinos matemáticos é sua
mais recente publicação em poesia rios, lampejos: o leitor percorre galáxias em movimentos e banha- c

18 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 festas semióticas
c -se num erotismo riscado a arpejos de livro: Hinos matemáticos.
luz e gozo. O poema “Primeira prova” orquestra a
O poema que abre o livro incandes- busca desta música precisa:
ce caminhos do devir. Cito “Cantei-
ros”, na íntegra: Orquídeas
resplandecem
Um fósforo desata momentâneo no quintal
os fios de uma noite sem estrelas A geometria
de fogo
No céu azul de Samos de suas pétalas
voam ímpares. e a forma
E os pares sobrenadam do silêncio
nas águas do Ilissos em que se apoiam
Trago
O jardim o coração perdido
o conjunto de canteiros e os olhos tersos
E a floresta sombria e ilimitada da breve epifania
Toda flor
Como domar a astúcia do infinito? desponta
no seio do silêncio
O fósforo não acende, não ilumina: e ao seio
desata os fios de uma noite escura. Os do silêncio
raios do fósforo são os fios que, ao in- acorre e se dissolve
vés de clarear, ampliam a dimensão do Lembro
escuro. Entre estes versos e os finais de Hardy
há a ilha grega de Samos, seu rio Ilis- indo ao
sos, os canteiros do jardim, a floresta fundo
“sombria e ilimitada”. A ilha: locus de silêncio
suspensão da vida. O rio antigo, hoje dos gregos
canalizado e subterrâneo: a dimensão Teoremas
cheios
espacial do lado de lá. Para além dos
do frescor da beleza
olhos. No entanto, tão próxima aos pés.
de quando foram descobertos
Depois do poeta construir a ima-
Dois mil anos
gem sideral na progressão de “jardim”,
e sequer
“conjunto de canteiros” e, por fim, “a
uma ruga
floresta”. Como se não bastasse a vas-
em seu puro semblante
tidão em si, é uma floresta “sombria e
(Euclides
ilimitada”. Quer seja: o desconhecido
e a infinidade
dentro do desconhecido dentro do des-
dos números primos
conhecido.
Pitágoras
Por fim, o verso que encerra o poema
e a raiz quadrada
projeta este espaço como indomável em irracional de dois)
seus ardis, argúcia e sagacidade. Os desenhos
Estamos diante de um poeta que do matemático
soma a matemática à vastidão do es- e do poeta devem
paço – e configura-a na mais delicada ser belos
poesia. Em filigranas do sublime. Flores
Esse é o movimento presente em to- teoremas
dos os poemas. Próximos e distantes. desmaiam
Perto e desconhecidos. A matemática em súbitos
e a palavra. Duas fontes de força bru- jardins
ta. O homem busca entendê-las para sob crepúsculos
cantá-las. O poeta mergulha na esté- fugazes
tica da matemática para, nela, situar A beleza é a primeira prova
e localizar sua poesia. Daí o título do da matemática c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 19


6 festas semióticas
c Como consta das Notas que
acompanham o volume, os versos
em itálico são extraídos de Em
defesa de um matemático, de G.
Hardy. No Posfácio intitulado “A
espiral e o sonho dos meninos”,
o poeta explica que “a ideia de
beleza na matemática, que se en-
contra em diversos autores, como
Hardy ou Poincaré, causou em
mim grande impacto. Como se me
deparasse com uma verdade per-
dida, um substrato arqueológico
que me parecia estranhamente fa-
miliar e decisivo”.
Um vetor de leitura possível
para este livro é seguir as orienta-
ções do poeta nas imprescindíveis
Notas e no esclarecedor Posfácio.
Todavia, isto não impede que uma
outra leitura se faça na contramão
destas orientações. É aquela leitu-
ra em que o eu lírico desenreda-se
do estrato matemático dos poemas Perdem-se os primos {venerandos números}
e mergulha nas epifanias das ima- quando num bosque em plena madrugada
gens em alumbramentos de sons sob a lira cintilante de Orfeu
e sentidos. Outros sons. Outras põem-se a bailar mais bravos e dispersos
imagens. Outros sentidos. Para
além da matemática. Para dentro O imaginário
{nuvem bosque pensamento}
da poesia em si.
é o atalho cristalino da matemática
Esta navegação, que se norteia
pelo hino, pelo canto, pela enun-
ciação dos significados por vir, é A poesia vence. Entendemos o poeta quando
a do encantamento que a música diz: “o vínculo entre a beleza e a matemática há
produz nos ouvidos e nas sensi- de trazer novos ventos para as matemáticas no
bilidades. A entrega da beleza em Brasil, rompendo uma cláusula de barreira cul-
estado de graça. Sem preço algum. tural. O direito dos meninos e das meninas de so-
Sem merecimento algum. Entrega nharem nos campos do pensamento matemático”.
da poesia em revelações inusuais. Somos todos meninos e meninas. O sonho da
Revelações de pura entrega e vas- poesia é nosso mundo. Obrigados ao poeta pela
to gozo. sua imensa poesia. Galáxia entre galáxias que
nos leva a imensuráveis espaços – de caos, de
Então, mergulhado nestas ga-
exatidão, do fractal, do geométrico infinito. Es-
láxias de imagens (sonoras, vi-
paço sideral de enternecedor lirismo. E
suais e semânticas), o leitor che-
ga ao cerne da matemática sem
a necessidade dos teoremas e das
teorias. É quando o poema “Len-
Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular do
do Hadamard” ganha as ganas do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou,
leitor tomado pela beleza lírica entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira
contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras
dos poemas de Marco Lucchesi. de Caetano Veloso (crítica) e Barrocidade (poesia). Mora em João
Cito-o na íntegra: Pessoa (PB). Contato: amador.ribeiro17@gmail.com.

20 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros

História
primordialmente, goza do di-
reito à liberdade no exercício
de sua escritura. Essa postura,

de um
certamente, influencia a sua lei-
tura crítica como investigador

deicídio:
vinculado à academia e, assim,
em certa medida, submetido às
suas diretrizes e, nem por isso,
engessado por elas. Além disso,
e observando com cuidado o dis-
curso de Llosa, percebe-se que
a análise-intepretação empreen-
crônica de um estilo anunciado – parte iI dida por ele passa longe de ser
meramente apologética, mesmo
que haja em seu argumento uma
construção ou reivindicação da
Analice Pereira primazia do gênio.
Especial para o Correio das Artes
Vejamos que, nos primeiros
tópicos da segunda parte do en-
saio, ora resenhada, mais espe-
cificamente do tópico I ao VI, o

D
ando continuidade à resenha do ensaio de Mario ensaísta se encarrega de analisar
Vargas Llosa sobre Gabriel García Márquez – García obras anteriores a Cem anos de
Márquez: historia de um deicidio – iniciada na edição solidão, não apenas como um bi-
anterior do Correio das Artes e por ocasião das cele- bliógrafo, mas como um obser-
brações do meio século de Cem anos de solidão, tra- vador atento ao processo criativo
tarei agora da segunda parte do ensaio, na tentativa de um escritor, no sentido de en-
de apresentar, mesmo que resumidamente, as ideias tender de que maneira se dá esse
centrais que o escritor peruano desenvolve acerca da processo, quais as matrizes que
produção do escritor colombiano, desde os seus pri- dão sustentação a um roman-
meiros escritos, chegando a Cem anos de solidão, que ce tão colossal, e que, no caso
é o foco do ensaio, e estendendo-se aos cinco contos de García Márquez, já vinham
posteriores ao romance. sendo anunciadas nas obras
Para além da qualidade desse ensaio, é instigante a anteriores. Não se trata, exata-
leitura, tendo em vista, também, que se trata de uma mente, de verificar elementos e/
circunstância um tanto peculiar: um reconhecido es- ou temas recorrentes; trata-se de
critor latino-americano, Vargas Llosa, analisando a algo maior que é a maneira como
obra de outro reconhecido escritor latino-americano, esses elementos/temas são recor-
García Márquez; tal reconhecimento se confirma, não rentes na estrutura de Cem anos
só pelo alcance de seus nomes e obras, mas, também, de solidão, constituindo, assim,
pelo Nobel concedido a ambos, bem posteriormente um projeto literário que ocupa a
à escritura do romance e do ensaio: ao primeiro em vida inteira de um escritor e não,
2010 e ao segundo em 1982. Trata-se, portanto, de apenas, aquele momento de pro-
uma leitura crítica de um ensaísta e romancista que, dução de uma determinada obra.
Em certo sentido, é o que Llosa
fotos e ilustrações: reprodução internet
chama de “demônios de escritor”
que irão configurar a “vocação
do escritor”.
A segunda parte do ensaio de
Llosa, intitulada La realidad ficti-
cia, é subdividida em oito tópi-
cos, dos quais, seis são direciona-
Gabriel García dos à análise da obra de García
Márquez e a capa
Márquez anterior a Cem anos de
de uma das edições
do “clássico” Cem solidão; um tópico, subdividido
anos de solidão em três subtópicos, direcionado c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 21


c ao romance em questão; e o oi- tratando de estilo de escritor, mente científica, nem se apro-
tavo e último tópico se ocupa de volta-se mais para a construção priando de um aparato teórico
analisar os contos produzidos de uma realidade fictícia por que, às vezes, engessa o texto ana-
pelo escritor colombiano após meio da criação de narradores e lisado, inserindo-o em categorias
o romance Cem anos de solidão. de técnicas narrativas que vão o um tanto controversas. Noutras
Tudo isso em prol da construção distanciando de suas influências palavras, reforço a alegria de ler
de um raciocínio focado neste ro- mais diretas. O tema recorren- um ensaio que goza do direito à
mance em particular, mas discu- te nos dez contos é o da morte. liberdade de pensar, sem cair em
tindo, por meio das análises dos Trata-se de um tema que apare- aforismos, nem numa prestação
procedimentos narrativos ante- cerá ao longo da obra de García de contas a certas teorias, o que
riores e posteriores ao romance, Márquez. constitui grande parte do exercí-
a fim de alcançar a compreensão E sob o título de Realidad to- cio acadêmico na área das Letras.
de uma “hegemonia do imaginá- tal, novela total (“Cien años de so- Uma pergunta, no entanto,
rio”, que se se apresenta na pro- ledad”), Llosa sistematiza sua faz-se necessária: por que Llo-
dução de García Márquez, ora análise-intepretação no sentido sa chama Cem anos de solidão de
analisada por Vargas Llosa. de demonstrar porque o roman- “romance total”, apropriando-se,
Sob o título de La realidad fic- ce de García Márquez é consi- ainda, de termos como “inten-
ticia, Llosa analisa dez contos de derado uma “novela total”. A sua ção totalizante”; “ambição tota-
García Márquez anteriores a Cem investida como crítico ruma no lizante”; “vontade totalizante”;
anos de solidão, separando-os em sentido de verificar, tanto pelos ou, ainda, “índole totalizadora
dois grupos quanto ao estilo do temas primordiais, quanto pelos da vocação”; “vocação totaliza-
escritor. Interessante notar que a seus aspectos estruturais, o que dora”; “ambição totalizadora”;
análise desses dez primeiros con- ele chama, categoricamente, de “ficção totalizadora”; “repre-
tos de García Márquez aponta as “romance total”, sempre fazen- sentação verbal totalizadora”;
influências diretas (demônios do um caminho de vai-e-volta “concepção totalizadora” etc.?
culturais) bem como lacunas e na produção do escritor colom- Em linhas bem gerais, o que leva
avanços. Separa os dez contos biano, e mostrando que determi- Llosa a essa categorização se ba-
em dois grupos de cinco: sendo nados procedimentos já vinham seia em alguns aspectos, dentre
o primeiro menos maduro que o sendo desenvolvidos nos contos os quais se destaca o seguinte:
segundo, no que se refere à lin- anteriores. Isso é o que explica e/ Cem anos de solidão é um roman-
guagem e à construção literária ou justifica o método que Llosa ce total porque, dentre outras
de um modo geral. O segundo realiza em seu texto de natureza razões, Macondo, seu espaço
grupo é considerado mais ma- científica, sem, necessariamente, narrativo único e, portanto, pri-
duro justamente porque, em se priorizar uma linguagem mera- mordial, é uma sociedade total
porque nasce, se desenvolve e
desaparece (para não dizer mor-
re), assim como toda a sua gente,
cuja força motriz são as sete ge-
rações da família Buendía. Assim
como nas terras colonizadas por
ingleses, franceses, portugueses
e espanhóis, Macondo foi, num
tempo passado da narração, ha-
bitada pela família Buendía que
serve de modelo às demais famí-
lias que nessa sociedade se insta-
lam. Como exemplo disso, Llo-
sa aponta um detalhe espacial:
todas as demais casas seguem
a mesma estrutura da casa dos
Buendía. Em sua origem, trata-
-se de uma sociedade patriarcal,
autárquica, onde ninguém tem
mais de 30 anos e ninguém mor-
re. É uma sociedade de igual-
dade social e econômica. É um
lugar idílico, onde há fantasia e
magia. Mas também é uma socie-
dade que se transforma. A chega-
da de imigrantes, as guerras civis
que duram vinte anos, a conver-
são de sociedade independente
por dependente devido à insta-
lação da Companhia Bananeira, c

22 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


para o real objetivo (um homem
nível da estrutura quanto da invisível dá a notícia da morte
escritura é um dos longos fôle- de Melquíades a José Arcádio),
gos de Llosa nesse ensaio. sendo o mais importante a pró-
pria notícia, deixando o sucesso
Adentrando na estrutura mágico – o mensageiro invisível
da obra, inclusive para expli- –praticamente perdido no episó-
car como se dá a formalização dio. Unidades narrativas como
estrutural das questões temá- essa se repetem exaustivamente
ticas em destaque no roman- no romance, num movimento
ce, Llosa discorre sobre três circular que é o que o define o ro-
elementos narrativos e como mance como “obra total”, sendo,
cada um deles é estruturado também, o que define a leitura de
Mario Vargas ficcionalmente, ou seja, tecni- Llosa.
Llosa, autor do
camente. São eles: o ponto de Para fechar a leitura de Cem
ensaio sobre
Gabriel García vista espacial (e seus focos nar- anos de solidão, rumo à reiteração
Márques rativos); o ponto de vista tem- de suas ideias em defesa de que
se trata de um “romance total”,
Llosa assinala um aspecto impor-
c tudo isso vai mudando o estilo poral (o tempo circular); o ponto tante e que, ao fim e ao cabo, é
de vida dos macondinos. Até que de vista de nível de realidade o que explica a formalização es-
o lugar desaparece, junto com (contraponto entre o real objetivo tética desenvolvida pelo escritor
as famílias que ali se desenvol- e o real imaginário). Neste tópi- colombiano. Llosa chama esse
veram. Isso é o que caracteriza co, Llosa trata a questão da for- aspecto de “elemento añadido”. O
o livro como “romance total”. ma como sendo capaz de realizar termo añadido pode ter algumas
Estes aspectos destacados por essa ambição totalizadora in- significações, inclusive quan-
Llosa, e aqui apresentados de vestida por García Márquez em do traduzido para o português
forma sumária, é o que faz com seu romance. Para tanto, analisa (agregado, ampliado, somado,
que o ensaísta, dentro do que ele interpretativamente os planos adicionado, aglutinado, associa-
define como “romance total”, em que se situam o narrador e o do etc.) sendo várias delas ca-
denomina de lo real objetivo. So- narrado, levantando uma ques- bíveis no que Llosa caracteriza
mado ao “real objetivo”, Llosa tão crucial para o entendimento como movimento estrutural cir-
aponta para outro aspecto da mais amplo da obra e do que se cular da narrativa. Esse “elemento
obra de García Márquez: Lo real define como “ambição totaliza- añadido” é o que contribui para
imaginario. O ensaísta alerta para dora”: ¿Qué ocurre en «Cien años a estratégia desenvolvida por
o fato de essa divisão ser apenas de soledad»! ¿Coinciden o divergen García Márquez, que inclui três
esquemática e merecer cautela, los planos del narrador y de lo narra- procedimentos: la exageración, la
pois, no trato da matéria, os dois do? (p. 639). O que há, portanto, enumeración, la repetición. Esses
aspectos se confundem e, ao que é um movimento de mão dupla procedimentos narrativos “son
tudo parece, um não é superior entre os planos do narrador e do también ‘las leyes’ que gobiernan a
ao outro. Pelo contrário, ambos narrado, de forma a contribuir esta realidad fictícia” (p. 654), aos
contribuem para o caráter totali- para a estrutura circular e a ideia quais acresce, ainda, o que cha-
zador do romance, cada um com de totalidade da obra. Afinal, ma de “las propiedades trastocadas
sua soberania, e tanto na verti- nada representa melhor a totali- del objeto”. A meu ver, a configu-
calidade quanto na horizontali- dade do que a figura da circunfe- ração desse elemento añadido, em
dade. Vários são os exemplos ao rência. Sendo assim, Llosa apre- certa medida, permite a cons-
longo do romance que reiteram senta como “unidade narrativa” trução dessa realidade fictícia,
a ideia de que o ponto de vista o que García Márquez desenha responsável, assim, pelo que
do nível de realidade é um con- na forma circular, em que todos possibilita compreender o escri-
traponto entre o real objetivo e o os elementos narrativos transi- tor colombiano (e que se estende
real imaginário, ou seja, o narra- tam de um plano a outro, circu- para outros autores da América
dor tanto se vale do real objeti- lando-se e mudando de planos Latina) dentro do que comumen-
vo para narrar o real imaginário bem como mudando os planos. te se categoriza por “realismo
como o contrário. E explicando Por exemplo, o episódio do gelo mágico” ou “realismo fantástico”
ainda melhor sua leitura, Llosa quando apresentado a José Arcá- ou “realismo maravilhoso”.
discorre sobre os quatro planos dio e seus dois filhos (descoberto E encerrando seu ensaio, Llo-
que compõem o imaginário no pelo gigante): o fato é ordinário, sa ainda analisa cinco contos de
romance e que contribuem para não há nada de milagroso nem García Márquez, posteriores a
a totalidade da obra. São eles: lo de mágico, mas o narrador se co- Cem anos de solidão, verifican-
mágico, lo mítico-legendario, lo loca no plano do real imaginário do que há uma hegemonia do
milagroso y lo fantástico. Esmiuçar para narrar o real objetivo. Na imaginário, já amplamente de-
cada um desses planos, apresen- mesma unidade narrativa, um senvolvida no romance. Quatro
tando exemplos extraídos do ro- pouco antes, há o contrário – o dos cinco textos utilizam proce-
mance, e explicando-os tanto no narrador salta do real imaginário dimentos e estilo que marcam c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 23


c o romance. A grande novidade
está em El último viaje del buque
fantasma e é uma novidade de es-
critura. Mas a característica mais
comum e presente em todos eles
é a predominância do imaginário
sobre o real, pois, em cada relato
“prevalece una forma particular de
lo imaginario: lo mítico-legendario,
lo milagroso, lo mágico, lo fantásti-
co” (p. 712).
Nas palavras de Llosa,
“[...]«Cien años de soledad» es
Para Gabo,
una novela total sobre todo porque
escrever é uma
pone en práctica el utópico designio vocação exclusiva;
de todo suplantador de Dios: descri- tudo o mais é
bir una realidad total, enfrentar a la secundário
realidad real una imagen que es su
expresión y negación. Esta noción de
totalidad, tan escurridiza y comple- medio, se venden casi medio millón modestos en que nos podemos mover
ja, pero tan inseparable de la voca- de ejemplares, en tanto que las re- los escritores, siempre escribirá mejor.
ción del novelista, no sólo define la -ediciones de los libros anteriores de No es cierto que las malas situaciones
grandeza de «Cien años de soledad»: García Márquez alcanzan también económicas ayuden, porque el escri-
da también su clave. Se trata de una tiradas insólitas en el mundo de tor no quiere hacer sino escribir y lo
novela total por su materia, en la habla española. La crítica, práctica- mejor para escribir es tener todo esto
medida en que describe un mundo mente sin excepción, delira de entu- resuelto”. (p. 234/235)
cerrado, desde su nacimiento hasta siasmo y la fama del libro trasciende
su muerte y en todos los órdenes pronto las fronteras del idioma y lle- A partir de certos depoimentos
que lo componen —el individual y ga a oído de editores extranjeros, que do Gabo, é possível compreen-
el colectivo, el legendario y el his- comienzan a disputárselo”. (p. 80). der que o método de análise em-
tórico, el cotidiano y el mítico—, y preendido por Llosa, que inclui,
por su forma, ya que la escritura y Finalizo essa resenha com as dentre outros aspectos, aqueles
la estructura tienen, como la materia palavras do próprio Gabo sobre relacionados à vida de García
que cuaja en ellas, una naturaleza seu exercício literário e em defesa Márquez, foi extremamente ade-
exclusiva, irrepetible y autosuficien- da profissionalização do escritor, quado ao seu ensaio. Mas é im-
te.” (p. 540). outro aspecto que merece desta- portante lembrar que nem sem-
Interessante verificar, tam- que na sua posição de intelectual pre é assim. Não é qualquer obra
bém, um pouco do processo de latino-americano: que permite uma análise adequa-
criação de Cem anos de solidão, da a partir de aspectos da vida de
fato que Llosa traz para o seu en- “[...] lo cierto es que el hecho de seu autor, pois nem sempre o que
saio como elemento importante escribir obedece a una vocación apre- o escritor cria como representa-
para se compreender a obra. Em miante, que el que tiene la vocación ção ficcional parte do que ele vi-
1965, praticamente por um mi- de escritor tiene que escribir pues veu; pode partir, também, do que
lagre, García Márquez retoma, sólo así logra quitarse sus dolores de observou, do que leu, do que ou-
após quatro anos de silêncio li- cabeza y su mala digestión [...] Se viu falar etc. As circunstâncias de
terário, a vontade de escrever e aprende [a escrever] leyendo, traba- produção são várias; a liberdade
fica recluso por dezoito meses jando, sobre todo sabiendo una cosa: de que pode se valer o escritor na
em seu escritório – La cueva de que escribir es una vocación exclu- criação de romances é irrestrita e,
la mafia – tempo que levou para yente, que todo lo demás es secun- necessariamente, não tem de ter
produzir o livro. Vejamos como dario: que lo único que uno quiere es compromisso algum com o cir-
se deu a publicação nas palavras escribir. [...] Lo que uno quiere es ser cunstancial; além do mais, have-
de Llosa: escritor y todo lo demás le estorba y rá sempre um distanciamento re-
lo amarga mucho tener que hacerlo, lativo e necessário entre o autor e
“A comienzos de 1966, García tener que hacer otras cosas. Yo no o que ele está criando, por mais
Márquez recibe una carta de la Edi- estoy de acuerdo con lo que se decía que tenha a ver com sua própria
torial Sudamericana, de Buenos Ai- antes: que el escritor tenía que pasar experiência de vida.I
res, proponiéndole reimprimir sus trabajos y estar en la miseria para ser
libros; él le ofrece la novela que está mejor escritor. Yo creo de veras que el
escribiendo y «Cien años de soledad» escritor escribe mucho mejor si tiene
Analice Pereira é crítica de
aparece en junio de 1967. El éxito literatura, ensaísta, contista e
sus problemas domésticos y econó- professora de Língua Portuguesa e
es fulminante: la primera edición se micos perfectamente resueltos, y que Literatura Brasileira do Instituto
agota en pocos días, y lo mismo ocur- mientras mejor salud tenga y mejor Federal de Educação, Ciência e
rirá con la segunda, con la tercera y esté su mujer, dentro de los niveles
Tecnologia da Paraíba (IFPB). Mora
con las siguientes. En tres años y em Belo Horizonte (MG).

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6 livros

Breves leituras sobre


três poetas de Minas
Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com

A
fotos: divulgação
driane Garcia, Adri Aleixo e Simone Teo-
doro são poetas, são mineiras e moram
em Belo Horizonte. Isso é o que elas têm
em comum (além de outras coisas não
perceptíveis a olho nu). A poesia das três,
no entanto, não é igual. Cada uma tem
suas leituras, suas epifanias, suas desco-
bertas literárias. Cada uma fisga o leitor
com uma isca diferente.
Adriane Garcia traz o universo aquá-
tico para nosso mergulho. Só, com peixes,
seu livro que abordamos neste texto, foi
lançado em 2015 pela Confraria do Vento,
do Rio de Janeiro. Com prefácio de Nel-
son de Oliveira, Só, com peixes é uma obra
temática. Nascida em Belo Horizonte, em
1973, Adriane Garcia é historiadora, arte-
-educadora e atriz. Escreve poesia, contos,
Adri Aleixo, autora de Pés
livros infanto-juvenis e teatro. Venceu o (Patuá, 2016), que fala
prêmio de Literatura do Paraná – Helena da busca pelo equilíbrio
Kolody, em 2013, com o livro de poesia através da poesia
Fábulas para adulto perder o sono. Publicou,
ainda, O nome do mundo.
Nascida em Conselheiro Lafaiete, Minas
Gerais, Adri Aleixo nos brinda com o livro
Pés, que fala da busca pelo equilíbrio atra-
vés da poesia. Lançada em 2016 pela Editora Patuá,
de São Paulo, a obra tem textos de Marcelo Ariel e
A poesia das três,
Marcia Barbieri. Adri Aleixo é professora de Portu-
guês e Literatura. Possui textos publicados em sites no entanto, não é
e revistas literárias de todo o país. Publicou em 2014
Des.caminhos, também pela Editora Patuá. igual. Cada uma
Já Simone Teodoro chega com Movimento em falso,
livro onde o discurso é livre e em que sua poesia voa tem suas leituras,
além das páginas. Lançada em 2016 pela Editora Pa-
tuá, de São Paulo, a obra conta com textos de Jovino suas epifanias, suas
Machado e Alexandre Guarnieri. Simone Teodoro é
mestra em Literatura Brasileira pela Universidade Fe- descobertas literárias.
deral de Minas Gerais. Publicou em 2014 Distraídas as-
tronautas, também pela Patuá. Cada uma fisga o
Os três livros podem ser adquiridos nos sites das
respectivas editoras. leitor com uma isca
Com vocês, a poesia de Simone Teodoro, Adri Alei-
xo e Adriane Garcia. diferente. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 25


sordem poética, porque nesta ainda em formação. Movimento
há licença para o movimento em falso é uma prova, no entan-
em falso ser real. Caso contrá- to, que essa formação vem se
rio o poema pode se perder tornando cada vez mais sólida.
nas escadas sujas do metrô ou De Drummond a Ana Cristina
nas referências drummondia- César, o que não falta nas pá-
nas que não suportam baratas ginas desse livro é a poesia de
envenenadas nos ombros. Ou Simone Teodoro, só dela, ape-
algo de Manuel Bandeira, lendo sar das bênçãos de algumas re-
poemas para gatos e até para a ferências. Uma poesia que não
lua. Ou na inusitada inversão é pouca. E explode!
erótica do belo “Lugar”, com a
interessante analogia poética Com os pés no
entre hímem e hífen. Erotismo
este que vem com força também edifício poético de
nos primeiros versos do poema Adri Aleixo
seguinte - “Blue”, para desaguar Os pés são a parte do corpo
Simone na lógica de Gonçalves Dias, de que traz equilíbrio, seguran-
Teodoro se morrer de amor. ça, estabilidade. Não só isso.
lançou
Movimento Simone Teodoro é uma poeta Os pés nos fazem caminhar,
em falso no que já neste seu segundo livro seguir adiante, buscar novos
ano passado, demonstra que tem muito a di- horizontes. Podemos dizer que
pela Patuá zer. Sua poesia é visceral, com tudo isso está presente no livro
um lirismo estranho, porque Pés, de Adri Aleixo, o segundo
underground. Ou com um sub- de sua trajetória literária. O li-
mundo estranho, porque lírico. vro é delicado, sem excessos e
c Os movimentos Citaria aqui “Litania para quando nem faltas, e com a segurança
descarrilarem os astros”, “Tumba
certeiros de Simone e cal”, “Cem segundos de espera”
poética de quem está sabendo
onde está pisando.
Teodoro e “Todas as mulheres”, poemas
Gosto de muita coisa dessa
A dicção drummondiana é que dialogam abertamente com a
muito forte no livro Movimen- obra poética de Adri Aleixo.
dor de forma terna.
to em falso, de Simone Teodo- Gosto, principalmente, das
Movimento em falso traz,
ro. Mas não é uma dicção que folhas da memória que se es-
ainda, poemas com sabor de
pensa apenas em ser mais um palham por suas páginas. No
prosa. Não falei “poemas em
epígono do grande poeta de poema “Fotograma” ela diz
prosa”. São poemas escritos
Itabira. Pelo contrário, é uma que “Há um alicerce de pala-
com a linguagem cotidiana da
dicção com sotaque próprio e vras me perdendo”. Ouso dizer
prosa e um toque de irreverên-
verve poética múltipla. Há um que é o contrário que acontece
cia que vem na medida certa.
que de rock’n’roll, de blues, de em Pés. Na verdade, há um ali-
Cito alguns poemas neste es-
grafiteiros, de dark nos poemas tilo, como “Balada para Vita cerce de palavras se erguendo
da Simone. Como no forte “Lú- Sackville-West”, “Pecado origi- página a página do livro até
cifer”, que abre o livro falando nal”, “Esperar Saturno”, “Mor- chegar à construção do edifício
dos anjos caídos, dos anjos feri- rer devagar”, entre outros. poético dessa mineira de Con-
dos que habitam nosso ser. Aliás, alguns desses poemas selheiro Lafaiete.
“Balada para uma estrela lembram também a dicção de Esse edifício tem vários cô-
perdida” é cortante, como a Ana Cristina César: misto de modos espalhados por diver-
fuga do pecado original. Ao agonia, rebeldia e lirismo. sos apartamentos. Só que nes-
mesmo tempo singela, como “Detalhe sobre o vazio” é tes cômodos não se encontram
uma canção de ninar. “Blue uma das melhores líricas do li- camas, sofás, cadeiras ou me-
para a lâmina das horas” traz vro. Apesar de dividido em três sas. A mobília poética de Adri
uma das mais belas estrofes do partes, o título do poema está Aleixo é farta de quinquilha-
livro: “A mãe dormia/ de boca no singular, como a demarcar rias surpreendentes. Pode ser
aberta/ quase toda vestida de a originalidade do que está es- de células a revelar um nasci-
tempo”, falando da infância crito. “Tempestade de granizo mento para um futuro qual-
triste misturada a ladrilhos. ao redor” também vale a leitura quer ou a enxugar os pés en-
Notem que esses três primei- para lembrar que éramos cor de charcados na chuva, “porque
ros poemas citados revelam outono. Algo meio William Bla- toda reta se curva”.
como que um grito agoniado ke quer se libertar na poesia de Interessante a poesia de Adri
do eu-lírico. Um grito onde o Simone Teodoro. Sinto isso na Aleixo. No poema “A terceira
movimento em falso parece ser leitura de “Angelus” ou nas ima- margem do rio”, por exemplo,
a realidade. Daí, a fuga para o gens dionisíacas de “Tango”. ela não lembra Guimarães Rosa,
imaginário do passado. Simone Teodoro, até pela mas sim Adélia Prado, quando
Daí que é melhor instalar a de- sua juventude, é uma poeta fala que apanhou “com o corpo c

26 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c vivo dos meus filhos”. Em “Ma- no prefácio que coletâneas temá-
condo” não é a solidão que põe ticas de poemas são raridades
seus pés na poesia, mas a me- em meio universo literário. Ain-
mória, que torna-se lugar. “Flor da mais sobre um tema delicado
de lótus” não apenas reproduz e complicado, que é o universo
o símbolo do budismo, sussur- marítimo, aquático. Neste caso,
rando renascimentos, mas fala o mergulho pode ser perigoso,
de gentes como cadernos de sujeito a tempestades marítimas
apontamentos. com afogamento sem direito a
“Dínamo” é um poema cur- respiração boca a boca.
to e forte, de quem nasceu la- No caso de Adriane Garcia,
vradora, mas sempre quis ser não é isso que acontece. Feito uma
terra. Talvez, reminiscências escafandrista, a poeta se protege
das origens de Adri, em sítios das armadilhas do lugar-comum
nos mundos perdidos de Mi- e constrói um dos melhores livros
nas. Origens de quem sabe que de poemas temáticos recentes da
“o pior/ da dor/ são os tentácu- literatura brasileira no ótimo livro
los”. Raízes de quem sabe que Só, com peixes. Neste mergulho,
“É preciso pouco/ para molhar há o não desespero de afogar-se,
as margaridas// mas é tudo/ o como ousa num dos poemas do li- Adriane Garcia,
autora de Só,
que necessitam”. Sua pátria é vro, há a lógica de ficar enredada, com peixes
daqueles que flutuam no azul um repuxo de um violento misté- (Confraria do
da Ismália de Adri, não da de rio que “Nos tira do mar”. Para o Vento, 2015)
Alphonsus de Guimaraens. Ou eu-lírico poético, o primeiro oxi-
no diálogo com Autran Doura- gênio é rede. Em tom de fábula,
do, com Manuel Bandeira. tenta explicar a origem da água:
Como diz Marcelo Ariel no Nos mares de Adriane
prefácio da obra, é preciso estar “Ninguém se pergunta Garcia há outros seres miste-
atento a pistas, degustar ima- De onde vem a água? riosos, imprevisíveis. Como
gens, emergir sensações, permi- Ninguém desconfia “Medusa”, a que “Nunca
tir-se o desamparo e a descone- Que os peixes choram?” viu um peixe enlouquecido”.
xão na leitura de Pés. É preciso Como a “Menina de Crônica
grandeza para se chegar ao mí- O jeito é migrar para Depressão”, estranha histó-
nimo, ao rastro, às sutilezas”, re- onde os peixes correm, de prefe- ria que fala do peixe que es-
força Marcelo. Isso! Descobrir as rência longe do aquário. Afinal, tava dentro dela e suicidou-
sutilezas da poesia de Adri Alei- “Um peixe é um pássaro/ Sem -se. Tem, ainda, a lenda d’A
xo. Guardar suas palavras, que asas/ Mas um pássaro é um pei- Multiplicação dos Peixes,
não são desnecessárias. xe/ Sem águas”, espécies de alei- tentando aprender sobre
Na poesia de Adri Aleixo, o jões poéticos que só perdem para os homens que não amam.
edifício se constrói com a deli- o peixe-homem com seus trezen- Fala-se, também, nesses
cadeza da argila, minério das tos recursos “Pra nada”. mares, das “Bêbadas”, vis-
Minas para os gerais poéticos do O jeito é pescar, aliás, buscar tas “Expostas na madruga-
Brasil. Uma poesia para saborear outras fábulas. Como a do “So- da dormindo na rua”. Ou o
lentamente, como a leitura da brevivente”, que fala do menino erótico “No mais sensível de
sorte na borra dos dias. Afinal, que é peixe que escorregou do um corpo”. Ou o belíssimo
anzol pro rio. Ou a do “Peixe- “A língua para fora”.
“Há uma morte lenta/ nessa -Escorpião”, com seu vermelho Adriane Garcia mostra
luz que passa/ poída/ pela co- sangrando por fora. Se bem que que a loucura da poesia pode
zinha”. existe “O Milagre”: navegar em mares mineiros,
sim. Quem disse que Minas
Essa luz é o edifício poético, “Fizeste-me sem lugar não tem mar? I
do tempo de pedra, palavra e
Fizeste-me mamífera
umidade de Adri Aleixo, com
No mar
o silêncio obliterado, gritan-
Fizeste-me peixe Linaldo Guedes é jornalista e poeta.
do para o mundo sua poesia Na areia Nascido em Cajazeiras (PB), é
muito além dos condomínios radicado em João Pessoa desde 1979.
fechados do lirismo moderno. Como jornalista, atuou nos principais
Se ao menos eu fosse
órgãos de comunicação da Paraíba
Baleia e foi editor do Correio das Artes.
Mergulho, com Como poeta, lançou, entre outros, os
livros Os zumbis também escutam
Mas eu sou essa coisa
peixes, na poesia de De pouquíssima fé blues e outros poemas, Tara e outros
otimismos e Receitas de como se
Adriane Garcia Que dizem tornar um bom escritor. E-mail:
Nelson de Oliveira já lembra Poder caminhar sobre as águas”. linaldo.guedes@gmail.com.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 27


6 imagens amadas
João Batista de Brito
brito.joaobatista@gmail.com

Você gosta de faroeste? ,

A pergunta que intitula esta matéria talvez devesse ser formulada


no pretérito imperfeito, já que o gênero do faroeste está,
há muito tempo, aposentado.
Está mesmo? Bem, aposentado ou não, o velho wes-
tern ainda perdura na memória de meio mundo
de cinéfilos, e não só na memória: com as faci-
lidades eletrônicas de hoje em dia, podem-
-se rever os grandes – e os pequenos tam-
bém – clássicos do gênero quase com a
mesma emoção de antigamente. No
tempo das diligências, Rio vermelho,
Gatilho relâmpago... está tudo aí –
é só procurar...
Como me encontro entre
os que responderiam afir-
mativamente à pergunta do
título, resolvi investigar a
perenidade – simbólica ou
empírica – do faroeste e,
para tanto, fui ao encalço
dos cinéfilos que conheço.
A dezesseis deles pedi que
me dessem a lista de seus
dez westerns mais amados.

28 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c Inevitavelmente, as repetições das preferências ocorreram, o que me
permitiu brincar com a ideia de um cânone, que aqui exponho. Assim,
se entendermos as escolhas dos cinéfilos consultados como “votos”, eis
a relação dos dez melhores filmes faroeste, com a indicação entre parên-
teses dos números de votos:
Matar ou morrer (14)
Os brutos também amam (12)
O homem que matou o facínora (11)
Rastros de ódio (10)
No tempo das diligências (8)
Rio vermelho (6)
Paixão dos fortes (5) A colocação de Matar ou morrer (“High
Johnny Guitar (5) Noon”, Fred Zinnemann, 1952) em pri-
Era uma vez no Oeste (5) meiro lugar confirma uma verdade: com
esse filme, o gênero alçou voos da mes-
Meu ódio será tua herança (5) ma altura qualitativa de qualquer outro
gênero, ou de qualquer filme sem gêne-
ro. Relembremos o enredo:
São cerca de dez e meia de uma manhã de domingo nessa pe-
quena cidade do Oeste americano onde está se realizando o
matrimônio entre o Xerife Kane (Gary Cooper) e sua bela noi-
va (Grace Kelly). Os convidados estão parabenizando o casal
quando chega o telegrama fatídico – no trem do “meio dia”
(título original) está chegando Frank Miller, o assassino
que fora um dia condenado pela justiça local, que escapa-
ra da prisão e agora estava de volta para a vingança. Três
de seus capangas já haviam chegado a cavalo e todos na
cidade entendem, de imediato, que se trata de um plano c

Fotos: reprodução/internet

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 29


6 imagens amadas
c pessoal contra o Xerife. Tanto é cena da estrebaria ele mesmo ad-
que empurram o casal para den- mite ter medo e embora a sua ex-
tro de uma carroça para que fuja -amante mexicana, a Sra. Rami-
o quanto antes. Depois de rodar rez (Kate Jurado) insista no tema
alguns quilômetros, Kane sente da sua hombridade, ela clara-
que não está fazendo a coisa certa mente não implica com isso, for-
e decide voltar. ça física nem rapidez no gatilho.
A partir do retorno do Xerife, Considerem que Kane só vence o
exatamente às dez horas e qua- duelo final, ajudado primeiro por
renta minutos, o tempo ficcional uma mulher, sua frágil esposa, e
começa a coincidir com o tempo depois pela sorte. Ou seja, esse
real e o suspense se torna quase pobre “cidadão Kane” decidida-
insuportável. O “resgate de últi- mente não se enquadra no este-
mo minuto” nos westerns primi- reótipo do herói americano, que,
tivos de Griffith já era suspense, no entanto, ainda subsistiria em
mas ainda um suspense físico, muitos dos westerns posteriores.
quando agora estamos no des- Na cena final, lembrem que
confortável reino da psicologia. ele não hesita em jogar ao chão
Em uma hora e vinte minutos o símbolo da lei que defendera, a
o que se tem aqui é o progressi- “estrela de lata”, aliás, título ori-
vo caminhar de Kane para o que ginal do romance adaptado, The
parece ser suicídio certo. No seu tin star. Mas não somente Kane
intuito de enfrentar os bandidos é psicologicamente ambíguo no
a qualquer preço, o Xerife vai filme. Considerem por exemplo,
sendo abandonado pelos seus o desmonte da dicotomia western
conterrâneos, um após o outro. homem-mulher, no caso, a fra-
Apesar da trilha sonora - do not queza masculina (o sub-Xerife e
Matar ou morrer (“High
forsake me, oh my darling (não me Noon”, Fred Zinnemann,
seu abalado complexo de macho,
abandone, oh minha querida) - o 1952), com Gary Cooper o Sr. Fuller e sua estratégia de di-
primeiro abandono vem da espo- zer que não está em casa, o amigo
sa que, por ser quaker, é contra a Herb que na hora H foge da ideia
violência. Em seguida vem o sub- de lutar só, ao lado de Kane) e a
-Xerife, ainda que por motivos coragem feminina (a determina-
diferentes. O fato é que, cada um ca parcialmente respondia, já que ção da prostituta Ramirez, a vol-
com seus próprios motivos, os a situação representada era a de ta atrás da esposa que finalmente
cidadãos, frequentadores do Sa- uma população amedrontada, pega em armas, a relutância da
loon ou da Igreja, vão deixando se recusando, por conveniência, Sra. Fuller em trair Kane, e final-
o Xerife a mercê de seu destino a ajudar um cidadão em perigo, mente aquela senhora na assem-
e quando o trem apita no hori- como acontecera com a maioria bleia da Igreja, mais decidida a
zonte, até a câmera o abandona que permaneceu silenciosa sobre entrar na luta que os homens).
fazendo aquele longo desloca- a prisão dos suspeitos de comu- Pois todo esse jogo de ambi-
mento para cima, que o deixa di- nismo naquele período. guidade psicológica, moral, ideo-
minuto e desamparado no centro Contudo, se os melhores as- lógica, como que explode naquela
da rua vazia da cidade. pectos de High Noon se limitas- magnífica sequência pré-final da
Os comentários críticos do fil- sem a isso, o filme estaria datado. chegada do trem em pleno meio
me ressaltaram, suficientemente, Por que é que hoje, depois de de- dia. No curto intervalo entre os
as inovações que ele, em 1952, vidamente vivenciado o avanço seus três apitos, se intercalam em
fazia em cima do gênero. A coin- semiótico e mesmo a morte histó- montagem rápida, mas extrema-
cidência dos tempos, diegético e rica do gênero, e depois de pas- mente efetiva, com música forte
real, o suspense minuciosamen- sada a página da caça às bruxas, em crescendo, os rostos em close
te construído pela narração, e o o filme de Zinnemann continua de todos os personagens envolvi-
estudo da complexa psicologia tão empolgante? Uma razão é o dos no drama de Kane, os quais
dos personagens eram pontos incrível casamento entre o desen- expressam em poucos segundos,
que conduziam o gênero a avan- volvimento do conteúdo e a sua mas de forma condensada, os
çar sobre suas convenções – um manifestação formal. seus anseios, expectativas, temo-
western para adultos e não mais Aqui ilustro com a combina- res, culpas e pesadelos privados.
para crianças. Outros apontavam ção entre a ambiguidade psico- Quando a sequência se encerra,
o contexto americano em que foi lógica, já referida, e o recurso da com a imagem da cadeira onde
bolado e rodado, em plena era do montagem. Que Kane é ambíguo Frank Miller fora sentenciado, a
Maccarthysmo a que sua temáti- ninguém pode ter dúvidas. Na música arrefece e voltamos para c

30 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas
c um Kane isolado e solitário que Obviamente, as repetições dos zação do mesmo ano, dialoga bem
escreve as últimas palavras de filmes preferidos conduzem à ideia com o mais prestigiado Os brutos
seu testamento. – correta ou incorreta - de um idên- também amam, e, no entanto, até
Cinema em alto nível. tico perfil espectatorial para os de- hoje um ilustre desconhecido do
Voltando à lista dos mais vo- poentes, porém, quando conside- grande público. Fora disso, cha-
tados, mais do que esperável radas de perto, cada uma das listas mo a atenção do leitor para algu-
nela é a presença do mestre John individuais contém menções mais mas raridades, ou, se for o caso,
Ford – afinal de contas, conside- pessoais – por vezes idiossincráti- curiosidades. Um caso é o de O
rado o pai do gênero - com qua- cas – a filmes que ninguém mais proscrito (Howard Hughes, 1943),
tro títulos muito bem colocados: citou, salvo o autor da lista. western com estatuto de cult, mas
terceiro, quarto, quinto e sétimo Esses filmes “solitários” são, na mal conhecido fora do território
lugares. Já curioso pode ser o verdade, 19, aliás, número supe- cinéfilo, raridade lembrada por
fato de os dois primeiros lugares rior ao de depoentes: 16. A maior uma espectadora caprichosa. Já
serem filmes de autores de um parte deles são, como esperado, dois casos “curiosos”- para não
único faroeste: Fred Zinnemann filmes dos anos cinquenta, wes- dizer, polêmicos - são Conspiração
e George Stevens. Tanto é assim terns menos conceituados, alguns do silêncio (John Sturges) e Onde
que, no quadro completo das pre- mal avaliados pela crítica ou pelo os fracos não têm vez, ambos sus-
ferências (vide adiante) estes dois público. Um caso bem típico é o citando a difícil questão sobre o
diretores são mencionados, res- de Caminhos ásperos (John Farrow, que vem a ser o western, já que
pectivamente, 14 e 12 vezes, exa- 1953), um grande filme que, reali- suas estórias ocorrem em tempo c
tamente as vezes em que seus fil-
mes foram citados, ao passo que,
para Ford, há nada menos que 36
menções. Eis a relação dos dez di-
retores mais votados:

John Ford (36)


Fred Zinnemann (14)
George Stevens (12)
Howard Hawks (12)
Anthony Mann (10)
John Sturges (10)
Sam Peckinpah (7)
Sergio Leone (7)
Nicholas Ray (5)
John Huston (3)

Um consenso crítico é que a


década áurea do western foi a de
cinquenta, quando o gênero ama-
dureceu e deu os seus melhores
frutos. Sem coincidência, por-
tanto, esta é a década mais refe-
rida no quadro geral dos meus
depoentes, numericamente bem
adiante de todas as outras. Notar,
por exemplo, que não há filmes
citados nos anos oitenta. Eis a
frequência de referências às dé-
cadas:

Década de cinquenta (81)


sessenta (41)
quarenta (17)
trinta (8)
noventa (6)
setenta (3)
anos dois mil (4) Na foto de cima, Paixão dos fortes (“My Darling
oitenta (0) Clementine”, 1946), de John Ford. Abaixo, Os brutos
também amam (“Shane”,1953), de George Stevens

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 31


6 imagens amadas
c coetâneo a suas respectivas produções, 1953 e 2007. Rastros de ódio, John Ford, 1956
Por fim, vejamos o quadro geral dos depoentes e Meu ódio será tua herança, Sam Peckinpah, 1969
seus filmes preferidos:
Ipojuca Pontes
Alessandra Brandão Winchester 73, Anthony Mann, 1950
Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952 Matar ou Morrer, Fred Zinnemann, 1952
Meu ódio será tua herança, Sam Peckinpah, 1969 O homem que matou o facínora, John Ford, 1962
Era uma vez no Oeste, Sergio Leone, 1968 Os brutos também amam, George Stevens, 1953
No tempo das diligências, John Ford, 1939 Gatilho relâmpago, Russell Rouse, 1956
Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954 Os abutres têm fome, Don Siegel, 1970
Os brutos também amam, Georges Stevens, 1953 Os profissionais, Richard Brooks, 1966
Rio bravo, John Ford, 1950 Meu ódio será tua herança, Sam Peckinpah, 1969
O proscrito, Howard Hughes, 1943 Os imperdoáveis, Cleant Eastwood, 1992
O homem que matou o facínora, John Ford, 1962 O homem dos olhos frios, Anthony Mann, 1957
Rastros de ódio, John Ford, 1956
Ivan (Cineminha) Costa
André Ricardo Aguiar Consciências mortas, William Wellman, 1943
No tempo das diligências, John Ford, 1939 Os brutos também amam, George Stevens, 1953
Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952 Duelo de titãs, John Sturges, 1959
Era uma vez no Oeste, Sergio Leone, 1968 O último bravo, Robert Aldrich, 1954
Os brutos também amam, George Stevens, 1953 Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952
Três homens em conflito, Sergio Leone, 1966 O estigma da crueldade, Henry King, 1958
O homem que matou o facínora, John Ford, 1962 O passado não perdoa, John Huston, 1960
Meu ódio será tua herança, Sam Peckinpah, 1969 Golpe de misericórdia, Raoul Walsh, 1949
Rastros de ódio, John Ford, 1956 Pistoleiros do entardecer, Sam Peckinpah, 1962
Rio vermelho, Howard Hawks, 1948 Sem lei e sem alma, John Sturges, 1957

Edward Lemos Joaquim Inácio Brito


Consciências mortas, William Wellman, 1943 Caminhos ásperos, John Farrow, 1953
Almas em fúria, Anthony Mann, 1950 Almas em fúria, Anthony Mann, 1950
Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952 O estigma da crueldade, Henry King, 1958
No tempo das diligências, John Ford, 1939 Rastros de ódio, John Ford, 1956
Rio vermelho, Howard Hawks, 1948 Onde começa o inferno, Howard Hawks, 1959
Galante e sanguinário, Delmer Daves, 1957 No tempo das diligências, John Ford, 1939
O homem que matou o facínora, John Ford, 1962 Rio vermelho, Howard Hawks, 1948
Paixão dos fortes, John Ford, 1946 Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952
O matador, Henry King, 1950 O matador, Henry King, 1950
O rio das almas perdidas, Otto Preminger, 1954 Pacto de justiça, Kevin Costner, 2003
Maria Adette Wanderley c
Fernando Trevas Falcone
O homem que matou o facínora, John Ford, 1962
Rastros de ódio, John Ford, 1962
Paixão dos fortes, John Ford, 1946
Onde começa o inferno, Howard Hawks, 1959 No tempo das diligências
Rio vermelho, Howard Hawks, 1948 (“Stagecoach”, 1939),
Winchester 73, Anthony Mann, 1950 dirigido por John Ford
O preço de um homem, Anthony Mann, 1953
E o sangue semeou a terra, Anthony Mann, 1952
Minha vontade é lei, Edward Dmytryk, 1959
Os imperdoáveis, Clint Eastwood, 1992

Glória Gama
Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952
Os brutos também amam, George Stevens, 1953
Sete homens e um destino, John Sturges, 1960
Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954
Era uma vez no Oeste, Sergio Leone, 1968
Três homens em conflito, Sergio Leone, 1966
Butch Cassidy, George Roy Hill, 1969
O homem que matou o facínora, John Ford, 1962

32 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas
c No tempo das diligências, John Ford, 1939 Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1962
Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952 Banzé no Oeste, Mel Brooks, 1974
Os brutos também amam, George Stevens, 1953 Rastros de ódio, John Ford, 1956
Conspiração do silêncio, John Sturges, 1955 Onde os fracos não têm vez, Ethan e Joel Cohen, 2007
O homem que matou o facínora, John Ford, 1962 Eu matei Jesse James, Samuel Fuller, 1949
Sete homens e um destino, John Sturges, 1960 Os brutos também amam, George Stevens, 1953
Assim são os fortes, William Wellman, 1951 Rio vermelho, Howard Hawks, 1948
Rio vermelho, Howard Hawks, 1948
Bravura indômita, Henry Hathaway, 1969 Renato Felix
A bela e o renegado, John Farrow, 1953 O homem que matou o facínora, John Ford, 1962
Rastros de ódio, John Ford, 1956
Martinho Moreira Franco Onde começa o inferno, Howard Hawks, 1959
Os brutos também amam, George Stevens, 1953 Era uma vez no Oeste, Sergio Leone, 1968
O homem que matou o facínora, John Ford, 1962 Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1962
El Dorado, Howard Hawks, 1967 Os brutos também amam, George Stevens, 1953
Pistoleiros do entardecer, Sam Peckinpah, 1962 Os imperdoáveis, Clint Eastwood, 1992
Os profissionais, Richard Brooks, 1966 Pacto de justiça, Kevin Costner, 2003
Vera Cruz, Robert Aldrich, 1954 Butch Cassidy, George Roy Hill, 1969
Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952 Banzé no Oeste, Mel Brooks, 1974
Paixão dos fortes, John Ford, 1946
Da terra nascem os homens, William Wyler, 1958 Silvino Espínola
O homem dos olhos frios, Anthony Mann, 1957 Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952
Rastros de ódio, John Ford, 1956
Paulo Melo No tempo das diligências, John Ford, 1939
Rastros de ódio, John Ford, 1956 O homem que matou o facínora, John Ford, 1962
Rio Bravo, John Ford, 1950 Os brutos também amam, George Stevens, 1953
Onde começa o inferno, Howard Hawks, 1959 Gatilho relâmpago, Russell Rouse, 1956
Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954 Duelo de titãs, John Sturges, 1959
O diabo feito mulher, Fritz Lang, 1952 Paixão dos fortes, John Ford, 1946
O homem do Oeste, Anthony Mann, 1958 Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954
Reinado do terror, Joseph H. Lewis, 1958 Os imperdoáveis, Clint Eastwood, 1992
Sem lei e sem alma, John Sturges, 1957
Vera Cruz, Robert Aldrich, 1954 Thamara Duarte
A árvore dos enforcados, Delmer Daves, 1959 Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952
Rastros de ódio, John Ford, 1956
Ramayana Lira No tempo das diligências, John Ford, 1939
Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954 Os brutos também amam, George Stevens, 1953
Era uma vez no Oeste, Sergio Leone, 1968 Os imperdoáveis, Clint Eastwood, 1992
O atalho (Meek´s cutoff), Kelly Reichhardt, 2010. O homem que matou o facínora, John Ford, 1962
Dança com lobos, Kevin Costner, 1990
A face oculta, Marlon Brando, 1961
Sete homens e um destino, John Sturges, 1960
O tesouro de Sierra Madre, John Huston, 1948

Yolanda Limeira
Matar ou Morrer, Fred Zinnemann, 1952
Os brutos também amam, George Stevens, 1953
No tempo das diligências, Jonh Ford, 1939
Meu ódio será tua herança, Sam Peckinpah, 1969
Sem lei e sem alma, John Sturges, 1957
Paixão dos fortes, John Ford, 1946
O passado não perdoa, John Huston, 1960
Sangue da terra, Hugo Fregonese, 1953
O homem do Oeste, Anthony Mann, 1958
Sete homens e um destino, John Sturges, 1960 E

João Batista de Brito é crítico de cinema e de literatura


brasileira, e autor, entre outros livros, de Signo e imagem
em Castro Pinto, Passou no Bangüê e Um beijo é só um beijo:
minicontos para cinéfilos. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 33


6 cinema
Fotos: reprodução internet
Genilda Azerêdo A exibição, no momento, de
Especial para o Correio das Artes dois filmes sobre poesia e sobre
poetas estadunidenses nos incita
a pensar sobre algumas questões:
vida, cotidiano e poesia
a relação entre vida, banalidade
e poesia; anonimato e publica-
ção; função da poesia; motivação
para a poesia; diálogos poéticos.
A quiet passion/Uma paixão con-
tida (filme dirigido por Terence
Davies, que recebeu em portu-
guês o título Além das palavras) é
sobre a poeta Emily Dickinson.
Paterson, de Jim Jarmusch, é so-
bre um poeta chamado Paterson,
cujos poemas não chegam a ser
publicados. O filme de Davies é
sobre uma poeta que já conhe- Terence Davies,
cemos, cujos poemas já lemos diretor de Além das
e continuamos a reler. Embora palavras
também se caracterize como tex-
to ficcional, o filme se constitui
ao mundo:
Cartas

como ficcionalização da vida de


alguém que realmente existiu, e
que teve sua produção poética
publicada depois de sua morte.
O filme de Jarmusch é sobre um
poeta que só existe como perso-
nagem de um filme, sendo, por-
tanto, uma invenção do diretor.
Porém, para problematizar This Is Just to Say
essa diferença entre os filmes,
os poemas que Paterson escre- I have eaten
ve e lê ao longo da narrativa são the plums
de autoria de um poeta contem- that were in
porâneo chamado Ron Padgett, the icebox
admirador da poesia de outro and which
poeta estadunidense, William you were probably
Carlos Williams – autor, dentre saving
outros, de um livro de poemas for breakfast
chamado Paterson. Forgive me
Um primeiro contato com a They were delicious
poesia de William Carlos Wil- so sweet
liams, mesmo feito de modo and so cold.
casual e informal, já nos revela
alguns aspectos interessantes: a Tradução:
linguagem é coloquial, o discur-
so “soa” natural, e há uma certa
Isto É Apenas para Dizer
recusa ou resistência à adoção de
uma prática poética em sua for-
ma e sentido mais tradicionais. Eu comi
É que há uma aparente simplici- as ameixas
dade em sua poesia: alguns poe- que estavam na
mas apenas parecem dizer algo, geladeira
de forma direta e objetiva, sem e que
aquele princípio de obliquidade, você estava provavelmente
quase como se fora destituída de guardando
significados metafóricos. Cite- para o café da manhã
mos um poema de Williams que Me perdoe
Cynthia Nixon interpreta Paterson recita para sua mulher. elas estavam deliciosas
a poeta Emily Dickinson O poema se chama “This Is Just tão doces
em Além das palavras to Say/Isto É Apenas para Dizer”: e tão frias. c

34 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c Vemos claramente que é um É claro que a diferença de
poema-bilhete (ou bilhete-poe- contexto histórico e social entre
ma), algo que poderia ser “gru- os dois filmes precisa ser consi-
dado” na própria geladeira com derada, além do fato de estar-
um ímã. O título “Isto É Ape- mos (ludicamente) comparando
nas para Dizer”, ao tempo em uma “poeta real” com um “poe-
que anuncia limitar o conteúdo ta ficcional”. A Emily Dickinson
do poema, ironicamente pare- lhe faltavam um tempo e espaço
cer requisitar do leitor um gesto próprios, privados (“a room of
de leitura que o apreenda para her own”, para dizer com Vir-
ginia Woolf): ela teve, inclusive,
além de sua referencialidade. Por
que pedir permissão ao pai para
exemplo, o que poderia ser dito
escrever de madrugada; a Emily
que o “bilhete poético” não diz?
Dickinson sobravam a densi-
Aliás, o que será que ele “diz” dade e estreiteza do conserva-
sem dizer? Mas não é nosso ob- dorismo (algo que ela tentava
Jim Jarmusch, diretor
jetivo aqui analisar o poema de de Paterson combater) inerente ao contexto
Williams. Ao citá-lo, queremos puritano de Amherst.
apenas criar uma aproximação Quanto ao “poeta” Paterson,
entre sua natureza “anti-poética” é um homem casado, motorista
e aquela dos poemas que Pater- de ônibus, habitante de Pater-
son escreve no “caderno-tela” ao em uma origem “concreta” e son, cidade do estado de New
longo do filme. biográfica, pode também am- Jersey, nos Estados Unidos. Sua
Ao vermos o filme de Jar- pliar sua significação, ao dotar experiência com a escrita de poe-
musch, logo percebemos uma a narrativa fílmica – conse- mas dá-se em meio aos afazeres
relação intrínseca entre o dia a quentemente, a narrativa de da rotina diária, quer em casa,
dia de Paterson e os flashes poé- vida dos poetas – de uma den- quando volta do trabalho, quer
ticos que saltam de sua banalida- sidade comovente e inesperada. no ônibus, antes de sair para tra-
de: de fato, há uma convergência Tal é o caso com a aparição dos balhar. Quando o personagem
formal entre o despojamento da poemas “This is my letter to the é flagrado em seu escritório, te-
narrativa fílmica (pensemos na World/That never wrote to Me – mos acesso aos inúmeros livros
assinatura do diretor Jarmusch) (…)/Esta é minha carta ao Mun- de poesia de sua biblioteca, o
e a simplicidade artesanal da- do/que nunca escreveu a Mim” que também informa sobre sua
quela escrita poética ainda feita e “Because I could not stop for subjetividade de leitor. O en-
a lápis no papel/caderno. Death – / Porque eu não podia contro com a menina-poeta, que
Coincidentemente, era (qua- parar para a Morte – (...)”. também esboça poemas em um
se) assim que Emily Dickinson É verdade que o mundo não caderno, revela a admiração de
também escrevia – mas, diferen- escreveu a Emily Dickinson, não ambos por Emily Dickinson.
temente de Paterson, supomos respondeu à sua poesia quando O fato é que Paterson, enquan-
que ela o fazia porque viveu no a poeta ainda vivia. Mas isto se to poeta, desmistifica a figura
século XIX, sem acesso aos re- deu, dentre outras razões, por- do poeta como sujeito angustia-
cursos tecnológicos – em folhas que enquanto poeta consciente do ou desesperado, que poderia
de papel que amarrava com fitas, de sua arte, ela ‘preferiu’ o ano- morrer, caso não escrevesse poe-
dando-lhe feição de cadernos/ nimato a ter que subjugar-se aos sia (É Rilke quem pergunta/acon-
livros poéticos. Ao intitular seu ditames formais de uma poesia selha, em Cartas a um jovem poeta:
filme A quiet passion, Davies cha- palatável e menos “idiossincráti- “confesse a si mesmo: morreria,
ma a atenção para um paradoxo ca” (na avaliação de alguns pou- se lhe fosse vedado escrever?”).
que permeia a vida da poeta, ca- cos leitores/editores). Tal escolha Paterson tampouco se sente
racterizada pela reclusão e pelo – reflexo de sua afirmação auto- frustrado ou fracassado porque
anonimato, de um lado, e pela ral – é materializada em outro seus poemas não foram publica-
necessidade de expressão, pul- poema seu que afirma: “Publica- dos; na verdade, como dissemos
são poética, de outro. tion – is the Auction/Of the Mind acima, sequer sabemos se ele
No filme de Davies, os poe- of Man/A Publicação é o Leilão/ escreve pensando em publicar,
mas de Dickinson são citados Da Mente Humana(...)”. em tornar-se poeta legitimado.
como ilustrações de suas expe- Enquanto as questões de ano- Por ora, ele parece viver a poesia
riências de vida, como se numa nimato e (não) publicação são como uma das outras atividades
tentativa de revelar a motivação relevantes na trajetória poética que preenchem seu cotidiano,
existencial dos mesmos. Em ge- de Emily Dickinson, Paterson bem ao modo da metáfora que
ral, trata-se de uma estratégia já não parece nem um pouco an- Manoel de Barros inventou para
adotada por outros cineastas, a gustiado com a existência de o poeta – como um “apanhador
exemplo de Jane Campion, em seus poemas em um caderno. de desperdícios”.I
Bright star, filme sobre o poeta Paterson, que nem smartphone
romântico inglês John Keats e possui, sequer aparenta ter de-
sejo de publicar seus poemas, Genilda Azerêdo é professora do
sua relação amorosa com Fanny curso de Letras da Universidade
Brawne. Tal recurso, ao tempo sendo sua mulher quem insiste Federal da Paraíba (UFPB), e
em que pode reduzir o signifi- para que ele partilhe seus poe- pesquisadora PQ2 do CNPq. Mora em
cado dos poemas, fincando-os mas com o mundo. João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 35


6 ponto de vista crítico
Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br

Anotações ,

sobre romances (24)

A
lice, de Quarenta dias, cede um tanto a força da perso- dores de rua – tudo isso a iden-
de Maria Valéria Rezen- nagem, a ‘descida’ de Alice para tifica com uma mendiga. E é a
de, é uma personagem a mendicância ou algo parecido? própria protagonista-narradora
que tem muita força, no- (Sim, Alice, em parte dos quaren- que anota, já para o fim do livro,
tadamente nos primei- ta dias em que circula por Porto que os moradores de rua são seus
ros momentos do livro, quando Alegre, vive à beira da mendi- “iguais”). A sensação de “existir
está dilacerada por sua transfe- cância ou mesmo como mendiga. solta”, por si só, seria suficiente,
rência para Porto Alegre (“cida- A indumentária, o modo de se justificaria a virada drástica na
de pra onde me transplantaram alimentar e de dormir nas ruas, vida da personagem? A insatis-
à força”). Aqui o leitor sofre com num parque ou em prédios pú- fação da protagonista provocada
a personagem, apega-se ao seu blicos, a convivência com mora- por seu “transplante” para outro
drama, comove-se com a sua so- estado moveria mesmo a mudan-
lidão. Aqui o tema do ‘exílio’, da ça, tão radical, de sua condição/
angústia do indivíduo desterra- identidade, teria mesmo carga
do, se impõe. Alice, já foi dito, é foto: rafael passos
para proporcionar a sua penúria
aposentada (tem duas aposenta- (e Alice recebendo, repito, duas
dorias), deu aulas de francês, es- aposentadorias e tendo um bom
teve na França fazendo um curso, apartamento à sua disposição)
tem uma filha professora univer- pelas ruas e noites frias de Porto
sitária que a leva para Porto Ale- Alegre? O romance, por uma via
gre (deixa-a num bem equipado que muito provavelmente a escri-
apartamento na capital gaúcha tora não desejava enveredar, não
antes de seguir com o marido terminaria de algum modo refor-
para uma pós-graduação de seis çando o estereótipo do nordestino
meses na Europa; apartamento paupérrimo, miserável, social-
disponibilizado exclusivamente mente inviabilizado? São questões
para Alice e que esta irá abando- para as quais não encontro respos-
nar de uma hora para outra). Ali- tas no momento. São inquietações
ce tem erudição, é apegada aos sérias, responsáveis, de quem re-
Maria Valéria
livros (que estão sempre presen- conhece os méritos do romance de
Rezende é um
tes na sua vida, tornando-se um dos nomes mais Maria Valéria Rezende. I
elemento importante, em várias importantes
Rinaldo de Fernandes é escritor,
cenas do livro, na caracterização da literatura
ensaísta, antologista e professor de
brasileira,
da personagem). É, como qual- ganhadora dos literatura da Universidade Federal
quer brasileiro médio, bem pos- prêmios Jabuti da Paraíba (UFPB). É autor, entre
ta na vida. Sendo assim, é de se e Casa de las outros livros, de Rita no pomar, O
perfume de Roberta e O professor
perguntar: não soa estranho, não Américas
de piano. Mora em João Pessoa (PB).

36 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 conto
ilustrações: Ícaro medeiros de França

A Scena Muda
Luiz Augusto Paiva da Mata
Especial para o Correio das Artes

No escurinho do cinema no preço, mas acabava sempre adqui-


Chupando dropes de anis rindo algumas unidades, pois no seu
(Rita Lee e R. Carvalho) dizer delicado e comprometedor, iam
ficar “uma graça!” em seus aposentos.

M
orávamos na rua Paraibuna. Meu pai vi- Muito me intrigava que sua alcova re-
via envolvido com o Partido e não eram quisitasse tantos ornamentos, mas nun-
raros os dias de penúria. Minha mãe ali- ca comentávamos a respeito, pois Elza
mentava o orçamento costurando para muito necessitava daqueles proventos e,
a vizinhança, e minha irmã, Elza, dava generosa jamais negara algumas pratas
sua colaboração exercitando o bordado às minhas investidas ao tentador balcão
com habilidade tal que Dona Leontina, da padaria Nossa Senhora de Lourdes,
exigente contumaz, não cansava de lhe onde o popular Maneco empanturrava-
rasgar elogios. Recomendava o que ela -me com seus confeitos. Assim, Elza ga-
chamava de “que maravilha!“ ao páro- rantia seu corte de organdi, eu minhas
co Tertuliano – rival implacável de meu marias-moles e o padre Tertuliano via-
pai nas lides políticas – que regateava -se livre de nossas maledicências. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 37


c Mas minha irmã também vi- zes pra ver se aquela aparição ga- jeito que Frank Sinatra vivia com
via seus sonhos e as paredes do nhava sumiço e se mandava dali. Ava Gardner. Uma esculham-
nosso quarto estavam repletas Que nada! Só dei fé de estar aqui- bação! Eu precisava ver! Todo
de migalhas dessas ilusões. Eram lo acontecendo de verdade quan- mundo ali na parede andava co-
cartazes retirados de A Scena do vi Leninha sentada em minha mentando. Ela também prome-
Muda, compradas a duzentos cama com aquele sorriso, que eu teu que seria muito boa comigo.
réis na banca do Geraldo Mage- já disse não tinha no mundo um Sempre. Adormeci e sonhei que
la. Elza tinha dezesseis anos e eu que se comparasse. Batia com a um dia eu seria famoso, daria pra
sete. À noite eu a via “falando” palma da mão na cama num ges- Elza um cartaz daqueles, com
com seus preferidos, principal- to de muita delicadeza e formo- minha foto ao lado de Ginger
mente com Errol Flynn, de quem sura para eu me sentar ao lado Rogers. Fotografia bem bonita,
ela mais gostava. Eu ria muito de dela. Aproveitei ao saber minha com os dois de capa, de chapéu,
suas “conversas” com os artistas mãe ausente. Ela e Elza haviam olhando um pro outro, que nem
e ela ficava muito brava comigo. saído para comprar aviamentos, nos reclames de Casablanca. Eu
Mais brava ainda porque eu dava fiz o sinal da cruz e fui me sentar gostava muito de Elza.
outros nomes às personagens de ao lado de Ginger Rogers com Quando acordei, Ginger Ro-
sua requintada galeria. E daí? Eu um ouvido para o que ela dizia e gers já estava de volta à parede.
achava aquela gente muito pare- outro para a porta da sala, onde Fiquei um tempão olhando pra
cida com pessoas que eu conhe- podia muito bem aparecer o meu ela. Pensei muitas coisas e ela
cia. Jean Harlow, para mim era pai, que se não gostava dos ar- provavelmente também, tanto
a Celeste, filha de Dona Leonti- tistas pregados na parede, mui- que ficou o tempo todo de olho
na, que namorava o Nicanor no to menos deveria apreciá-los ali em mim e, pra tirar o pijama,
maior agarro! Nicanor eu achava conversando comigo. Muitas coi- quase morri de vergonha. Sem
parecido com Humphrey Bogart. sas bonitas Leninha me disse na- que Elza me visse, me despedi de
Fred Astaire era igualzinho ao quela tarde e me prometeu voltar Leninha e, quando fechei a porta
Nestor da quitanda. Igualzinho! à noite quando todos estivessem do quarto, ela e Ingrid Bergman
Robert Taylor era o Carlão: tinha dormindo. Pedi que tivesse mui- estavam conversando. Tenho cer-
motocicleta e andava “daquele to cuidado com Elza e principal- teza que era a meu respeito. Senti
jeito” com a Rita sempre pareci- mente com meu pai, que volta ou o maior orgulho. Na escola todo
dinha com a Loreta Young. Tyro- outra prometia arrancar aqueles mundo notou que eu estava meio
ne Power lembrava-me o doutor cartazes da parede pois tudo diferente. Dona Leninha pergun-
Teodoro, dentista prático, que aquilo era coisa do imperialismo tou o que é que estava acontecen-
tinha um Cadilac e era casado americano e só faltava essa! ... os do comigo. Não respondi. Como
com Dona Mirtes, tal qual a Bette filhos dele colecionando aquelas é que ela que passara a noite co-
Davis que tinha aquela cara de bobagens. Com Elza, as preocu- migo vinha com uma pergunta
bruxa. Edward G. Robson, não pações, evidentemente menores, daquelas? Ela devia saber muito
tinha o que tirar e nem por do Jo- ficariam por conta de seus me- bem o que eu estava pensando.
sué – motorista do doutor Teodo- xericos, pois se de algo soubesse Durante o restante daquele
ro – o pobre viera do Ceará com não era de se surpreender que ano, vivi o melhor tempo da mi-
uma mão à frente e outra atrás e dali a duas horas toda a rua co- nha vida. Na escola não trocáva-
uma penca de filhos. Eram tantos mentasse o fato. Elza era assim. mos uma palavra que não fosse
retratos! Tantos! Mas no meio de Conforme o prometido, Gin- coisas da aula, das minhas obri-
tanta gente famosa, a mais bonita ger Rogers voltou tão logo ador- gações; aliás, eu as levava em dia
era a Ginger Rogers, que eu cha- mecemos. Quando dei por mim e no maior capricho para Ginger
mava de Leninha, porque pare- ela estava deitada ao meu lado, Rogers não brigar comigo. Era
cia com minha professora, dona dando muito carinho nos meus uma cumplicidade silenciosa
daquele sorriso. O sorriso mais cabelos com um perfume que que depois do primeiro dia eu
bonito do mundo! dava até tontura de tão bom que soube muito bem disfarçar. Em
Foi por causa de Leninha, ou era. Devia ser aquele que apare- casa, nem Elza percebia quan-
melhor, de Ginger Rogers, que a cia nas revistas, um tal de “Night do apagávamos a luz e Leninha
minha vida mudou de forma tão and Day”, coisa de gente bonita. ia se deitar comigo. Ficava bem
incrível! Eu, às vezes, tenho até Gente rica. Não era perfume pra juntinho de mim, dando carinho
medo de contar. Parece mesmo coitada da Elza que vivia pele- e dizendo coisas muito gosto-
ter sido praga de Elza! Pois não jando para ter um batom “Tan- sas de escutar. Eu engasgava
é que uma tarde o Gary Cooper, ge”, dos mais baratinhos e não um pouco na hora de falar, mas
com aquela cabeçona igual a do sobrava dinheiro nem pra com- também prometia umas coisas,
Vicente, vem me chamar dizendo prar um sabonete “Palmolive”. dizia outras que ela fazia gosto
que a Ginger Rogers queria falar Coitada da Elza! de ouvir. Com o amanhecer ela
comigo? Isso mesmo! O Gary Conversamos muito naquela voltava para o cartaz e ficava
Cooper saiu do cartaz e me deu noite e ela me fez prometer que me olhando. Não sei como Elza
um cotucão quando eu procura- quando eu crescesse jamais a não notava meu entusiasmo, mi-
va um par de meias na gaveta da maltrataria, pois homem que é nha pressa de voltar para cama.
cômoda. Eu não acreditei! Abri e homem tinha que procurar viver Nem notou que eu não implicava
fechei os olhos um montão de ve- bem com a mulher, não daquele mais quando ela falava para Er- c

38 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c rol Flynn. Até ficou brava comi- grandeza. Queria um canto só Eu não tive forças para reagir
go quando perguntei se à noite pra ela e eu prometi falar com quando o vi rasgando os cartazes
ele saía do cartaz e vinha dormir Elza. Foi então que ela me aper- e dizendo que na casa nova, vida
com ela. Achou a coisa mais es- tou no seu peito enquanto uma nova!, não ia ter daquelas coisas.
quisita o que eu estava pensando, sensação muito estranha foi to- Deste dia em diante nunca
mas ficou por isso mesmo. Tam- mando conta de mim, invadindo mais pensei em coisas do cine-
bém vivi cenas de ciúme, pois minhas entranhas numa mansi- ma, nunca mais quis saber dos
Leninha não suportava Vivien dão venenosa e sorrateira. artistas, nem quis mais conversar
Leigh, que segundo ela, era uma Na véspera da mudança, com eles. Também nunca mais
alcoólatra e estava destruindo a Leninha chorou muito. Quan- gostei de uma professora como
vida de Laurence Olivier. Era só do ela veio para a minha cama gostei de Leninha. Algumas ve-
olhar pra cara dele e ver aquela percebi que os artistas esta- zes, à noite, ainda penso nela
tristeza, aquele olhar de peixe vam muito agitados na parede, sem conseguir entender que a
morto. Todo mundo sabia que como que se pressentissem uma vida fosse capaz de afastá-la de
ela não era boa bisca e era bom grande tragédia. mim daquela forma. Não pos-
que eu tomasse prumo e deixasse Clark Gable consolava Myrna so mesmo entender que aquele
de conversa com aquela sirigaita. Loy que era só lágrimas. A maior sorriso deixasse de existir, muito
Eu também não suportava aque- agitação. Fred Astaire, descon- menos entender aquela carta que
la cara de limão chupado do Fred solado, não queria nem saber de deixou de despedida, dizendo
Astaire. Pancudo! Tinha mania dançar. Marlene Dietrich sentou- que não havia mais o que esperar
de tirar Leninha pra dançar na -se à cama de Elza, beijou-lhe a da vida. Elza foi quem me contou
minha cara, sem a menor cerimô- testa enquanto minha irmã dor- e achou muito esquisito minha
nia. Só pra me provocar! mia e agradeceu o carinho que professora ter feito aquilo justa-
Nem sempre era assim, por- tínhamos pelos artistas. Elza mente no dia em que mudamos
que normalmente estávamos mesmo dormindo sorriu. Ginger para Taubaté, quando deixamos
sempre, eu e Leninha, muito bem Rogers acolheu-me em seus bra- para trás, não apenas alguns de
um com o outro e tudo durou até ços e fez-me adormecer em paz. nossos belos sonhos, mas princi-
o dia em que meu pai deu a no- Nunca mais os vi. palmente, a incontrolável mania
tícia de que iríamos mudar para Pela manhã, os pertences da que tínhamos de sonhar. I
Taubaté. Percebi logo: aquilo ia casa estavam sendo colocados
atrapalhar a minha vida. Só es- no caminhão quando meu cora- ***
peraríamos as aulas terminarem. ção começou a bater muito forte,
À noite contei tudo pra Leninha como nunca mais viria a bater Para João Batista de Brito por
e ela ficou mais triste do que eu. em minha vida. Meu pai come- amar o cinema tal qual o menino que
Durante o tempo em que aguar- çou a brigar com Elza, que já era colecionava cartazes como na histó-
dávamos a mudança, eu e Ginger tempo dela parar com aquelas ria que está aí à disposição do leitor.
Rogers fizemos muitos planos e coisas, que estava na hora de to-
ela até chegou a ficar entusias- mar responsabilidade com a vida
mada com a possibilidade de, na e não ficar colecionando aqueles O conto é parte do livro A saudade e
nova moradia, ganhar um lugar trastes na parede. Elza respondia outras manias do coração (Editora All
especial para o seu retrato, pois e meu pai mais se irritava e mais Print, São Paulo, 2014). Luiz Augusto
Paiva da Mata é professor e escritor.
já não aguentava mais a conver- alto falava. Minha mãe, sempre
É membro da União Brasileira de
sa de Joan Crawford ao lado dela paciente, quis intervir, mas meu Escritores, secção Paraíba (UBE-PB).
com aquela irreparável mania de pai não deu a menor confiança. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 39


6 novo almanaque armorial
Carlos Newton Júnior
cnewtonjr@gmail.com

Ubi sunt?
E
m certa passagem de suas Imagens do pen- portas do seu universo poético para o gran-
samento, Walter Benjamin faz uma breve re- de público através do teatro e do romance,
flexão sobre a amizade entre duas pessoas depois levados para a televisão.
separadas por uma diferença de idade mui- Meu convívio com Ariano foi bem mais
to grande; pessoas ligadas por algum tipo intenso e duradouro. Conheci-o em março
de afeição, apesar do abismo existente entre de 1984, quando ingressei na Universidade
suas gerações. Ao que parece, não conside- Federal de Pernambuco para estudar Arqui-
ra ele a possibilidade dessa amizade existir tetura, aos 17 anos de idade. Ariano, então
se não de modo superficial. Em relação ao com 56, foi meu professor de Estética. Foi a
jovem, o velho seria um “interlocutor com partir daí que comecei a ler a sua obra, da
quem, certamente, não se podia tocar na qual só conhecia o Auto da Compadecida.
maior parte dos assuntos, nas coisas mais Mais do que amigo, foi, para mim, um ver-
importantes que dissessem respeito à pes- dadeiro mestre. Como era um homem muito
soa. Em compensação, a conversa com ele ligado à família, minha amizade por ele foi
era cheia de um frescor e de uma paz que aos poucos sendo transmitida para sua es-
nunca seriam possíveis com um coetâneo”. posa, Zélia, para seus filhos e depois seus
Discordo profundamente. Entre as coisas netos. E assim cheguei a ser considerado
boas que a vida literária me proporcionou, pelos dois, Ariano e Zélia, como “um filho
não posso deixar de registrar a amizade que mais moço”. Terminamos compadres, pois
mantive com alguns escritores bem mais ve- Ariano e Zélia foram padrinhos de batismo
lhos do que eu, escritores que bem poderiam do meu filho mais velho, Heitor, e “padri-
ter sido meus pais, quando não meus avós. nhos honorários” (como Ariano gostava de
Em nossas conversas, tratamos de assuntos dizer) de minha filha Beatriz.
os mais variados, sobretudo de literatura, Minha amizade com Foed começou atra-
algo importantíssimo para todos nós. Dois vés de cartas, em meados da década de 1990.
desses escritores, Ariano Suassuna e Foed Pessoalmente, só fui conhecê-lo em 2006,
Castro Chamma, nasceram no mesmo ano, quando, em viagem ao Rio, fui levado à sua
em 1927: Foed, a 28 de março; Ariano, a 16 casa por um amigo comum, o escritor e crí-
de junho. Ou seja: se já não estivessem dor- tico André Seffrin. O poeta residia no bairro
mindo, “dormindo profundamente”, como do Rio Comprido, num pequeno e modesto
diz o belo poema de Manuel Bandeira, se- apartamento térreo. Vivia uma vida humil-
riam ambos, hoje, nonagenários. de ao lado da esposa Lucy, após terem criado
Foed Castro Chamma foi um dos maiores um casal de filhos com bastante dificuldade.
poetas da literatura brasileira. Nasceu em Durante anos, Foed sobreviveu trabalhando
Irati, Paraná, e faleceu no Rio de Janeiro, ci- como vendedor ambulante, oferecendo pro-
dade onde se radicou no final da década de dutos diversos de porta em porta, e assim
1940. Escreveu uma obra de fôlego, da qual conhecia o Rio de Janeiro na palma da sua
se destaca o livro Pedra da Transmutação, lan- mão. A partir de 2006, por motivos de tra-
çado em 1984, um longo poema com dez mil balho, minhas idas ao Rio se tornaram mais
versos decassílabos, um “poema-rio”, como frequentes. Sempre que eu estava na cidade,
ele costumava dizer. Escreveu uma poesia André marcava um encontro comigo e com
de altíssimo nível, porém hermética; uma Foed na sua casa, no bairro das Laranjeiras.
grande poesia para um grande leitor de E assim passamos tardes alegres a conver-
poesia – algo cada vez mais raro, no Brasil. sar sobre literatura, muitas vezes dividindo
Por isso o seu nome permanece desconheci- uma cuia de chimarrão, que André, como
do da maioria dos brasileiros, algo que não bom gaúcho, nos oferecia.
ocorre com o nome de Ariano, que abriu as Eram tão joviais, Ariano e Foed, cada c

40 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 novo almanaque armorial
ilustração exclusiva de manuel dantas suassuna para a coluna novo almanaque armorial

c um a seu jeito! Amavam tanto


a vida e o que faziam, eram tão
fortes e rijos, aos 70, aos 80 anos,
que durante muito tempo man-
tive a convicção de que ambos
chegariam, no mínimo, aos 90.
Foed, com mais de 70, ainda cos-
tumava andar de bicicleta pelo
Rio. Quanto a Ariano, jamais me
esqueço de uma viagem que fize-
mos ao sertão da Paraíba, quando
ele estava com 71 anos de idade.
Ariano levou-me para conhecer a
Pedra do Tendó, em Teixeira, mu-
nicípio próximo a Taperoá. E com
que agilidade subiu aquela pedra
enorme, para me mostrar, lá do
alto, o sertão que tanto amava.
Não pude deixar de me lem-
brar, no momento, daquela cena
de A Pedra do Reino em que Qua-
derna e alguns amigos sobem
a Serra do Reino guiados por
um velho vaqueiro e cangaceiro
aposentado, Luís Cachoeira. En-
quanto todos sentiam o esforço
da subida, “Cachoeira continuava
à frente, e, apesar dos seus seten-
ta anos, ia com o passo lépido e
seguro de andarilho sertanejo,
com o tronco desempenado, seco
e duro, como se os anos, passando
por ele, tivessem somente secado
e enrijecido um tronco escuro e
meio-queimado de Pau-ferro”.
De repente, adoeceram. Os
seus corpos, aparentemente sau-
dáveis, começaram a sentir o si-
lencioso trabalho de destruição
que o tempo vinha realizando.
Foed partiu primeiro, em 12 de ja-
neiro de 2010, perto de completar
83 anos; Ariano, em 23 de julho
de 2014, pouco mais de um mês
após comemorar os seus 87.
Na última vez que encontrei última vez dias antes de sua par- inconsciente e ligado a aparelhos.
Foed, saímos juntos da casa de tida. Recebeu-me em casa com a Eu respondi que não. Queria que
André. Descemos a Rua Mário mesma alegria de sempre, apesar a última lembrança dele, na mi-
Portela em direção à Rua Alice, de se queixar de dores nas per- nha memória, fosse aquela da sua
onde o poeta tomaria o lotação nas e de certa fraqueza no corpo. casa, Ariano levantando-se com
que o levaria ao Rio Comprido. Em um dos nossos últimos en- certa dificuldade da espreguiça-
Como ele estava ruim da vista, contros, falara-me que não temia deira para me abraçar e dizendo:
sofrendo de catarata, acompa- a morte, mas que gostaria de ser – Dom Carlos! Que alegria em
nhei-o até o ponto de ônibus e agraciado com uma “morte lim- vê-lo!
fiquei lendo para ele os letreiros pa”, ou seja, uma morte rápida, Ah, meus queridos amigos,
das vans, aguardando a que me- sem ter de passar meses ou anos meus amigos velhos! Como vo-
lhor lhe conviesse. Foed estava preso a uma cama, inconsciente, cês fazem falta! Quanta sauda-
feliz com a proximidade da cirur- sendo cuidado por enfermeiras. de tenho de vocês! Onde vocês
gia que faria pelo SUS e lhe resti- A Compadecida certamente in- estão? I
tuiria a visão. Quando ele entrou tercedeu por ele. Quando fui ao
no lotação, desci para a Rua das hospital, após o acidente vascular
Laranjeiras e tomei um táxi para cerebral que o levaria a óbito dois Carlos Newton Júnior é poeta,
o hotel em que estava hospedado, dias depois, uma de suas filhas, ensaísta e professor da Universidade
Isabel, perguntou-me se eu que- Federal de Pernambuco.
no Flamengo. Mora em Recife (PE).
Quanto a Ariano, eu o vi pela ria vê-lo na UTI. Ariano estava

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2017 | 42


6 conto interroguei a “querida colega”,
com a angustiosa esperança de
que o timbre de sua voz desfizes-
se minha quimera:
- Aonde vai este veículo?

Um bonde
- Aonde? Ao Cemitério! – me
respondeu, com um sorriso ma-
ligno boiando entre as palavras.
Apesar da velocidade do bon-
de, me arrojei fora de um salto.

chamado Cemitério Embora ferido nas pedras da


rua, meus olhos não deixaram de
acompanhar seu rosto de ironia
cáustica impregnando o veículo
Cláudio Feldman que se afastava.
Especial para o Correio das Artes Arrastando as machucaduras
até o ponto mais próximo, sentei-
-me num banco, com anúncio de

S
nirs”.
ou Mestre Benedicto, artesão numa firma de “souve-
fortificante.
O frescor de uma súbita brisa
ajudou-me a coordenar melhor
as ideias: eu, provavelmente, ha-
Naquele crepúsculo, após ter esculpido alguns Cristinhos via tomado a linha do Cemitério,
Redentores de pedra-sabão, saí exausto do emprego. ao invés da que me levaria à mi-
E meio febril, devido ao verão temperadíssimo. nha casa.
Como um sonâmbulo, subi no costumeiro bonde aberto, E tentei me tranquilizar con-
que me deixaria o mais próximo possível de minha cama. siderando que a face que me
O veículo ia vago, com exceção de uma passageira, que mal horrorizara trazia apenas uma
notei, mergulhando num instantâneo cochilo. surpreendente semelhança com
Quando despertei, de um solavanco nos trilhos, foi que per- Leonora morta.
cebi a outra viajante. Depois, com o vigor já consu-
Ao mirá-la, com estupor, meu sangue quase esfriou nas veias. mido, desmaiei.
Era Leonora Cruz! Quando voltei à tona, esta-
Por mais empenho que eu fizesse para varrer a alucinação, va deitado no banco, com duas
mais ela se impunha. pessoas ao redor: um grisalho
Sem dúvida, era Leonora, parceira de fábrica, especialista de pincenê, que se identificou
em caveirinhas de metal para chaveiros e pedras de dominó como médico, e um motorneiro,
feitas de ossos. de uniforme.
Só que ela não deveria estar ali, pois eu, seu apaixonado Os passageiros do bonde para-
em surdina, a chorara em seu pobre jazigo de tuberculosa, há do fruíam a cena.
meses! O doutor foi logo dizendo:
Leonora exibia o mesmo rosto, porém não alvo, como em - Parece que caiu do bonde,
vida, mas de uma cor verde-cinza, idêntica à sua feição defunta. enquanto dormia. Sorte que a ca-
O que variava radicalmente era seu olhar: antes, docemente beça...
melancólico; agora, rebelde, com um brilho sarcástico. Não quis dialogar com o mé-
Esta mudança (influenciada pelo Além? pelo seu triste fim?) dico, mas com o condutor.
me causou agudo pavor. Perguntei-lhe qual era o ponto
Para rebater um pouco meu estremecido espanto, brinquei para a minha residência e ele dis-
que ela ressuscitara para me cobrar os 30$000 que eu não pu- se que aquele mesmo.
dera devolver, devido ao seu falecimento. - E o bonde “Cemitério”?
Este pequeno intervalo de nada adiantou como alívio: mi- - Trabalho na companhia há
nhas pernas tremiam e um suor gelado, em pleno verão, desli- 20 anos e nunca ouvi falar desta
zava por meus negros poros. linha...
Tentei, então, descobrir, com o canto dos olhos, algum deta- Os ferimentos da queda geme-
lhe que amenizasse minha terrível condição. ram menos que minha perplexi-
Inutilmente: quanto mais eu a inspecionava, maior era a ob- dade.I
sessão de que Leonora Cruz achava-se no bonde.
Tentei, de novo, me distrair do pesadelo e espiei a via.
Onde estava?
Aquelas casas, muros e árvores que íamos deixando para Cláudio Feldman é escritor e
trás, sob a lua cheia, não me eram conhecidos. professor aposentado de Língua &
Por ali, eu nunca chegaria ao meu lar! Literatura. O bilhete do morto -
contos criminais (Editora Taturana,
Que bonde eu havia tomado em meu sonambulismo? 2017) é sua mais recente publicação.
Reunindo as forças que me restavam, inclusive a coragem, Mora em Santo André (SP).

42 | João Pessoa, maio de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO

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