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Maio 2017 – ANO LXVIII Nº 3
O
Testamento
Publicação da obra completa
de Ariano Suassuna começa em
junho com, a nova edição do
Romance d’A Pedra do Reino
6 editorial
6 índice
, 4 @ 15 2 28 D 41
especial memória cinema Crônica
A Nova Fronteira começa O professor José Mário da O crítico de cinema João O professor Carlos Newton
a publicar, em junho Silva e o escritor Marcos Batista de Brito convoca Júnior entoa um belo canto
deste ano, o conjunto da Lucchesi comentam a dezesseis cinéfilos para de saudade em memória
obra de Ariano Suassuna, perda que significou, comporem a lista de de seus amigos poetas
cujo destaque é o novo para o Brasil, a morte de seus dez westerns mais Ariano Suassuna e Foed
romance do autor. Eduardo Portella. amados. Castro Chamma.
O Correio das Artes é um suplemento mensal do jornal A UNIÃO e não pode ser vendido separadamente.
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Redação: 3218-6509/9903-8071 Albiege Fernandes Azevedo Suassuna
ISSN 1984-7335 Editora Adjunta
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editor.correiodasartes@gmail.com Murillo Padilha Paulo Sérgio de
http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Azevedo
6 especial
A Ilumiara
aflora na
Ilha Brasil
LANÇAMENTO DA NOVA EDIÇÃO
DO ROMANCE D’A PEDRA DO
REINO, EM JUNHO, DÁ INÍCIO ÀS
HOMENAGENS ALUSIVAS AOS
90 ANOS DE NASCIMENTO DE
ARIANO SUASSUNA. O PONTO
ALTO DOS TRIBUTOS ACONTECE
EM OUTUBRO, COM A PUBLICAÇÃO
DO ROMANCE DE DOM PANTERO
NO PALCO DOS PECADORES,
UMA ESPÉCIE DE TESTAMENTO
LITERÁRIO OU “LIVRO DA VIDA” DO
AUTOR PARAIBANO
William Costa
Editor do Correio das Artes
N
o dia 16 de junho deste ano, se Ariano é considerado uma das
vivo fosse, o professor, romancista, pedras basilares do teatro e da
poeta, dramaturgo e artista plásti- literatura do nosso País – a sua
co Ariano Vilar Suassuna estaria poesia ainda carece de reconhe-
completando 90 anos de idade. O cimento nacional -, além de um
“Cavaleiro da Alegre Figura”, “Se- respeitado pensador do Brasil, no-
nhor do Castelo”, “Rei do Sertão” tadamente no campo da Cultura.
e “Imperador da Pedra do Reino” O professor, poeta e ensaísta per-
– títulos que, entre outros, recebeu nambucano Carlos Newton Júnior,
do povo e de artistas que o admi- que foi amigo íntimo do artista e
ravam - nasceu na cidade de Nossa é um dos mais conceituados estu-
Senhora das Neves, Paraíba, em diosos de sua obra, concorda com
1927, e faleceu no Recife (PE), a 23 os qualificativos. Em entrevista
de julho de 2014, aos 87 anos. Além exclusiva ao Correio das Artes, ele
de sonhos, esperanças e reflexões afirma que Ariano foi certamente
sobre a Cultura brasileira, legou à um dos grandes escritores da nos-
posteridade um grande e variado sa literatura, “com uma obra muito
acervo artístico, de incalculável uniforme, em termos qualitativos,
valor, de ascendência Universal, e muito variada, pelo fato de ter Capa da nova edição do
formado por romances, ensaios, se dedicado a diversos gêneros li- Romance da Pedra do
Reino e o Príncipe do
peças teatrais, poesias, desenhos terários – da poesia ao romance, Sangue do Vai-e-Volta,
e pinturas, entre outras formas de passando pelo teatro, pelo crônica, com ilustração de
manifestação da Beleza. pelo ensaio crítico etc.”. Ariano Suassuna
Para Carlos Newton, a importância de da boa preguiça, O santo e a porca oceano da Beleza”, agora em ju-
Ariano é enorme, e o tempo cuidará de etc.), Ariano deixou um grande nho, com a publicação, pela Nova
ratificá-la em toda a sua dimensão. “Pes- número de obras inéditas, em Fronteira, da nova edição d’A Pe-
soalmente – continua -, foi, para mim, um diversos gêneros, o que o torna, dra do Reino, com o título geral de
grande amigo, um verdadeiro mestre, podemos dizer assim, um artista A Ilumiara – Romance d’A Pedra do
com quem aprendi a ver o Brasil em toda apenas parcialmente conhecido, Reino – Introdução ao romance de
a sua complexidade e que muito influen- seja pelo público, seja pela críti- Dom Pantero no palco dos pecadores.
ciou na minha formação literária e na mi- ca, haja vista que só a análise crí- No dia 9 de outubro, data que
nha visão de mundo”. Homem declarada- tica minuciosa deste conjunto de assinala os 87 anos do assassina-
mente urbano, de formação urbana, que bens simbólicos irá possibilitar to do pai de Ariano - o ex-presi-
sempre viveu em cidade grande, confessa um dimensionamento valorativo dente da Paraíba, João Suassuna,
que foi Ariano quem lhe revelou um Bra- mais realista do autor. “vítima das cruentas lutas e per-
sil que ele desconhecia, e que passou a co- Há mais de trinta anos, preci- seguições de origem política de-
nhecer através da sua obra. “Não apenas samente desde 1981, Ariano vi- sencadeadas no contexto da cha-
literariamente, mas fisicamente, geografi- nha se dedicando a escrever um mada ‘Revolução de 30’”, como
camente, pois lendo a obra me interessei romance inédito, que conside- registra Carlos Newton, será lan-
em conhecer o sertão verdadeiro, que lhe rava uma súmula de toda a sua çado o romance epistolar inédito
serviu para a construção do seu universo obra, conjunto por ele denomi- do autor, Romance de Dom Pantero
poético”, completa. nado de A Ilumiara. Nele, o autor no palco dos pecadores – Autobiogra-
O Auto da Compadecida (1955) e A pena pretendeu agregar o que fez de fia musical, dançarina, poética, tea-
e a lei (1959), por exemplo, são entendidas essencial na poesia, no roman- tral e vídeo-cinematográfica (a obra
como obras seminais do moderno teatro ce, no teatro e nas artes plásti- sairá acompanhada de um DVD,
brasileiro, assim como o Romance d’A Pe- cas, ou seja, tencionou, talvez, a com uma das aulas-espetáculo
dra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai- concretização máxima do Armo- de Ariano), dividido em duas
-e-Volta (1971) é visto como um marco rial, movimento de valorização partes: “O jumento sedutor” e
literário do nosso País. No entanto, além da Cultura brasileira, idealizado “O palhaço tetrafônico”. Assim
dos romances, peças teatrais e ensaios já e liderado por ele. A primeira como A Pedra do Reino, do qual é
publicados (A história do amor de Fernando parte desse monólito angular e a continuação, Dom Pantero tam-
e Isaura, Uma mulher vestida de sol, Farsa luminoso emergirá do “imenso bém foi ilustrado por Ariano. c
A hora do
encontro
O ENCANTAMENTO DE
ARIANO SUASSUNA
ABRE CAMINHO PARA A
APROXIMAÇÃO DO FILHO
COM A OBRA DO PAI
William Costa
Editor do Correio das Artes
O
artista plástico pernambucano Manuel
Dantas Suassuna, filho de Ariano Suassu-
na, conta que se afastou do pai, deliberada-
mente, para poder desenvolver, com mais
liberdade, a própria personalidade artística.
Mas não se tratava de ausência física, de ne-
gação de valores estéticos, nem de incompa-
tibilidade de gênios. Muito pelo contrário.
Certamente foi apenas a maneira que ele
encontrou de escapar da poderosa força
gravitacional exercida pela obra monumen-
tal erigida pelo pai, até amadurecer sua lin-
guagem pictórica, que, por sinal, segue den-
tro de parâmetros poéticos armoriais.
A aproximação, segundo Dantas, come-
çou mais ou menos uns três ou quatro anos
antes do encantamento de Ariano, quando
este o chamou para uma conversa no seu
gabinete de trabalho, instalado no famoso
casarão da Rua do Chacon, Bairro de Casa
Forte, no Recife (PE), às margens do rio
Capibaribe. “Carlos Newton Júnior estava
lá com ele, no gabinete, conversando, e ele
Manuel Dantas Suassuna, filho de
mandou me chamar. Então, ele disse: ‘olha,
Ariano, afastou-se deliberadamente
o livro (Romance de Dom Pantero no palco dos do pai , para assim poder criar
pecadores) está praticamente terminado, mas com mais liberdade a sua própria
se eu não conseguir terminar, eu queria que personalidade artística
vocês dois terminassem’”.
6 artigo
ABC
de cultura
popular
José Maria Tavares de Andrade Judeus, cativos qual ciganos
Especial para o Correio das Artes perdidos de um mundo seu
se esconderam nas serras
fugindo dos europeus;
nativos mostram caminhos
A
nuncio para breve a publicação de ABC
de cultura popular, obra para o grande salvando-se quem não morreu.
público sendo igualmente destinada (Do prefácio de Marcusdiaurelio)
ao ensino, tratando-se de livro didático
e de referência. Trata-se de uma espé-
cie de pequeno dicionário, em sentido
amplo e atual, sem as exigências de logia e da utopia popular brasileira; do saber e saber
padronização especifica de definições. fazer, das artes inclusive da arte de curar (magia, re-
Ficaria contente de contribuir a levar a ligiosidade popular, etnoteologia, etnomedicina, fi-
cultura popular às escolas; a depender toterapia, etnobotânica e até de Etnoimunologia). Os
do editor, uma próxima tiragem pode- termos em negrito no ABC correspondem a artigos,
ria ser destinada ao sistema nacional como sistema ou rede de remissivas ou referências
de distribuição de livros didáticos. cruzadas, o que ajuda na reconstituição de conexões
Distinguimos dois tipos de artigos: entre realidades descritas.
os verbetes propriamente ditos, às ve- Em termos de âmbito geográfico e histórico
zes subdivididos em temas comple- a abrangência da obra é o Nordeste, sobretudo.
mentares; e expressões da cultura po- Identificam-se, entretanto círculos concêntricos
pular que completam os dicionários de em ondas de expansão - como as desenhadas por
termos populares, como alguns glos- uma pedra caída n’água - que partem de um ponto
sários. O livro poderia ser considera- até se dissolveram; em termos de olhar comparati-
do uma Antropologia do popular (ou vo, portanto não se restringe à regionalismo. Cla-
Etnologia, preferem os franceses), ou ro cada cultura popular é de fato bem localizada
Etnociencia, pois trata da linguagem, entre singularidades, sem esquecer a generalidade
etnolinguística e etnoterminologia; da antropológica buscada.
literatura oral e dos folhetos, da mito- A fase de redação do ABC, final de 2016, foi bem c
Eduardo
Portella
José Mário da Silva
Especial para o Correio das Artes
Para
Elizabeth
Marinheiro,
com o afeto
no entretexto.
A
cultura brasileira ficou sumamente empobrecida com a repentina mor-
te do pensador Eduardo Portella, um dos mais completos intelectuais
do Brasil, com amplas e significativas ressonâncias internacionais. Já
tendo ultrapassado a quadra cronológica dos oitenta anos de idade,
mostrava-se extraordinariamente produtivo: seja nas magistrais con-
ferências que proferia na Academia Brasileira de Letras, da qual fazia
parte; seja nos luminosos ensaios que escrevia e publicava na Revista
Tempo Brasileiro; seja nos artigos que com regularidade escrevia e pu-
blicava nos grandes jornais do país, a exemplo do belíssimo artigo-en-
saio intitulado “A morte do homem cordial”, último artigo do mestre
da crítica poética brasileira.
Plural, Eduardo Portella atuou em várias frentes, e sempre condu-
zido pela singular competência com que sempre se distinguiu. Polí-
tico, sua passagem pelo ministério da Educação, Cultura e Desportos c
6 memória
Adeus,
Eduardo
Marco Lucchesi Portella optou por um percurso
Especial para o Correio das Artes intensivo mais que extensivo,
denso, rarefeito. A qualidade do
pensamento não se mede por lé-
N
ão direi de minha amiza-
guas de sesmaria ou latifúndio,
de por Eduardo Portella.
sua métrica não se quantifica por
Não encontro forças, aba-
testadas, mas de acordo com a
lado pela sua partida. Direi ape-
potência qualitativa de expansão
nas do crítico, do pensador, que
conceitual, no conteúdo crescente
vivo permanece, como um dos
de Popper, ou na leitura de Hei-
maiores poetas do ensaio em lín-
degger sobre Hölderlin.
gua portuguesa.
Eduardo Portella sente a de-
Eduardo Portella poderia figu-
manda do sistema que elabora em
rar nas páginas de Walter Benja-
horizonte fértil. Como quem par- fluxo e a permanência operam,
min como um anjo em meio às
te de uma norma fractal. Como cada qual a seu modo, como ins-
ruínas, levado pelos ventos da
quem reclama a vastidão da parte trumentos de abordagem do real.
História, quando começa a reunir
sobre o todo, assim como da sín- Portella segue um processo livre
as partes de um todo disperso.
tese sob suspeita, como desejo de e vigoroso, ao mesmo tempo fic-
Poderia flanar igualmente nos
futuro, sem veleidades sintáticas, cionista e poeta, elemento-chave
versos de Baudelaire no limes de
alquimista que não se limita à de sua obra esse hibridismo,
uma cidade infinita, um Wande-
busca da pedra, uma enciclopé- como quem flutua, com Claudio
rer na espessura da superfície.
dia que indaga as malhas de um Magris, sobre um Danúbio de
Portella fez de sua condição pe-
verbete inacabado, onde lateja conceitos convergentes da políti-
regrina uma autêntica forma men-
uma sinergia multidirecional. ca e da poética, que se nutre de
tis, congenial ao tempo que nos
Nesse drama da parte com o uma terceira margem. Portella é
desafia, para lidar com a astúcia
todo, movem-se as máquinas do um nômade do pensamento sem
da incerteza, na genealogia do
ensaio de Portella, que coinci- endereço fixo para não se apri-
fragmento. Sua leitura passa de
de com o círculo hermenêutico, sionar dentro de uma província.
um regime vertical para um trâ-
sem um deus ex machina. Sob a É inquilino da complexidade de
mite radial, como um saber que
estética do risco, o ensaio patro- Morin e do pensamento fractal de
se move a contrapelo das formas
cina uma fratura, um elemento Mandelbrot, contradança da par-
transitivas. Não aceita horizonte
descontínuo. Portella não admite te com o todo.
prévio, como a euclidiana geo-
as tautologias, os determinismos Nos últimos anos, o baricen-
metria de Kant, mas segue uma
sublimados e escondidos. Imerso tro de Eduardo Portella migrou
perene reinvenção dos sistemas,
nos desafios da “baixa moderni- da crítica para a metacrítica e a
como queria Sloterdijk, cuja trilo-
dade”, Portella optou nos últimos novos pontos de fuga. Suas pági-
gia mais de uma vez discutimos,
anos pela dissonância, distan- nas se tornaram espantosamente
à sombra das estantes da Biblio-
ciando-se da síntese hegeliana, híbridas e abertas, como um her-
teca Nacional, levando à cena o
acolhendo a paralaxe de Žižek. meneuta da suspeita, de quem
jogo da Parte e do Todo, dramatis
Falamos do céu astronômico, de realiza uma biografia indireta,
personae do repertório ocidental.
quanto meu corajoso telescópio a partir de sua intensa noosfera.
Portella desistiu de escrever
captura nas noites de Itacoatiara. Uma memória futura, bem enten-
uma história de para exorcizar uma
A partir daí o sentido e a re- dido, atravessada por um tempo
rima conceitual que considerou
gra, a demanda e o percurso, o que não fecha.I
perigosa, de um todo totalitário,
mais inclinado, muito embora,
Marco Lucchesi é poeta, romancista, ensaísta, tradutor e professor titular de
a um todo totalizável, no corte
Literatura Comparada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
do fragmento, como Wittgens- Janeiro (UFRJ). É membro, entre outras instituições, da Academia Brasileira de
tein, para atingir uma história em. Letras e da Accademia Lucchese di Scienze, Lettere e Arti. Mora em Niterói (RJ).
Palavras e
números – a sublime poesia de
Marco Lucchesi
M
arco Lucchesi (Rio de Janeiro, 1963) é professor da UFRJ, poe-
ta, romancista, ensaísta, tradutor, crítico literário, memorialista,
missivista, roteirista, organizador de antologias, organizador de
obras, editor de revistas literárias, membro da ABL. Foi contem-
plado com vários prêmios nacionais e internacionais. Tem livros
Foto: divulgação
Delírios fugazes
Líquidos lampejos
História
primordialmente, goza do di-
reito à liberdade no exercício
de sua escritura. Essa postura,
de um
certamente, influencia a sua lei-
tura crítica como investigador
deicídio:
vinculado à academia e, assim,
em certa medida, submetido às
suas diretrizes e, nem por isso,
engessado por elas. Além disso,
e observando com cuidado o dis-
curso de Llosa, percebe-se que
a análise-intepretação empreen-
crônica de um estilo anunciado – parte iI dida por ele passa longe de ser
meramente apologética, mesmo
que haja em seu argumento uma
construção ou reivindicação da
Analice Pereira primazia do gênio.
Especial para o Correio das Artes
Vejamos que, nos primeiros
tópicos da segunda parte do en-
saio, ora resenhada, mais espe-
cificamente do tópico I ao VI, o
D
ando continuidade à resenha do ensaio de Mario ensaísta se encarrega de analisar
Vargas Llosa sobre Gabriel García Márquez – García obras anteriores a Cem anos de
Márquez: historia de um deicidio – iniciada na edição solidão, não apenas como um bi-
anterior do Correio das Artes e por ocasião das cele- bliógrafo, mas como um obser-
brações do meio século de Cem anos de solidão, tra- vador atento ao processo criativo
tarei agora da segunda parte do ensaio, na tentativa de um escritor, no sentido de en-
de apresentar, mesmo que resumidamente, as ideias tender de que maneira se dá esse
centrais que o escritor peruano desenvolve acerca da processo, quais as matrizes que
produção do escritor colombiano, desde os seus pri- dão sustentação a um roman-
meiros escritos, chegando a Cem anos de solidão, que ce tão colossal, e que, no caso
é o foco do ensaio, e estendendo-se aos cinco contos de García Márquez, já vinham
posteriores ao romance. sendo anunciadas nas obras
Para além da qualidade desse ensaio, é instigante a anteriores. Não se trata, exata-
leitura, tendo em vista, também, que se trata de uma mente, de verificar elementos e/
circunstância um tanto peculiar: um reconhecido es- ou temas recorrentes; trata-se de
critor latino-americano, Vargas Llosa, analisando a algo maior que é a maneira como
obra de outro reconhecido escritor latino-americano, esses elementos/temas são recor-
García Márquez; tal reconhecimento se confirma, não rentes na estrutura de Cem anos
só pelo alcance de seus nomes e obras, mas, também, de solidão, constituindo, assim,
pelo Nobel concedido a ambos, bem posteriormente um projeto literário que ocupa a
à escritura do romance e do ensaio: ao primeiro em vida inteira de um escritor e não,
2010 e ao segundo em 1982. Trata-se, portanto, de apenas, aquele momento de pro-
uma leitura crítica de um ensaísta e romancista que, dução de uma determinada obra.
Em certo sentido, é o que Llosa
fotos e ilustrações: reprodução internet
chama de “demônios de escritor”
que irão configurar a “vocação
do escritor”.
A segunda parte do ensaio de
Llosa, intitulada La realidad ficti-
cia, é subdividida em oito tópi-
cos, dos quais, seis são direciona-
Gabriel García dos à análise da obra de García
Márquez e a capa
Márquez anterior a Cem anos de
de uma das edições
do “clássico” Cem solidão; um tópico, subdividido
anos de solidão em três subtópicos, direcionado c
A
fotos: divulgação
driane Garcia, Adri Aleixo e Simone Teo-
doro são poetas, são mineiras e moram
em Belo Horizonte. Isso é o que elas têm
em comum (além de outras coisas não
perceptíveis a olho nu). A poesia das três,
no entanto, não é igual. Cada uma tem
suas leituras, suas epifanias, suas desco-
bertas literárias. Cada uma fisga o leitor
com uma isca diferente.
Adriane Garcia traz o universo aquá-
tico para nosso mergulho. Só, com peixes,
seu livro que abordamos neste texto, foi
lançado em 2015 pela Confraria do Vento,
do Rio de Janeiro. Com prefácio de Nel-
son de Oliveira, Só, com peixes é uma obra
temática. Nascida em Belo Horizonte, em
1973, Adriane Garcia é historiadora, arte-
-educadora e atriz. Escreve poesia, contos,
Adri Aleixo, autora de Pés
livros infanto-juvenis e teatro. Venceu o (Patuá, 2016), que fala
prêmio de Literatura do Paraná – Helena da busca pelo equilíbrio
Kolody, em 2013, com o livro de poesia através da poesia
Fábulas para adulto perder o sono. Publicou,
ainda, O nome do mundo.
Nascida em Conselheiro Lafaiete, Minas
Gerais, Adri Aleixo nos brinda com o livro
Pés, que fala da busca pelo equilíbrio atra-
vés da poesia. Lançada em 2016 pela Editora Patuá,
de São Paulo, a obra tem textos de Marcelo Ariel e
A poesia das três,
Marcia Barbieri. Adri Aleixo é professora de Portu-
guês e Literatura. Possui textos publicados em sites no entanto, não é
e revistas literárias de todo o país. Publicou em 2014
Des.caminhos, também pela Editora Patuá. igual. Cada uma
Já Simone Teodoro chega com Movimento em falso,
livro onde o discurso é livre e em que sua poesia voa tem suas leituras,
além das páginas. Lançada em 2016 pela Editora Pa-
tuá, de São Paulo, a obra conta com textos de Jovino suas epifanias, suas
Machado e Alexandre Guarnieri. Simone Teodoro é
mestra em Literatura Brasileira pela Universidade Fe- descobertas literárias.
deral de Minas Gerais. Publicou em 2014 Distraídas as-
tronautas, também pela Patuá. Cada uma fisga o
Os três livros podem ser adquiridos nos sites das
respectivas editoras. leitor com uma isca
Com vocês, a poesia de Simone Teodoro, Adri Alei-
xo e Adriane Garcia. diferente. c
Fotos: reprodução/internet
Glória Gama
Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952
Os brutos também amam, George Stevens, 1953
Sete homens e um destino, John Sturges, 1960
Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954
Era uma vez no Oeste, Sergio Leone, 1968
Três homens em conflito, Sergio Leone, 1966
Butch Cassidy, George Roy Hill, 1969
O homem que matou o facínora, John Ford, 1962
Yolanda Limeira
Matar ou Morrer, Fred Zinnemann, 1952
Os brutos também amam, George Stevens, 1953
No tempo das diligências, Jonh Ford, 1939
Meu ódio será tua herança, Sam Peckinpah, 1969
Sem lei e sem alma, John Sturges, 1957
Paixão dos fortes, John Ford, 1946
O passado não perdoa, John Huston, 1960
Sangue da terra, Hugo Fregonese, 1953
O homem do Oeste, Anthony Mann, 1958
Sete homens e um destino, John Sturges, 1960 E
Anotações ,
A
lice, de Quarenta dias, cede um tanto a força da perso- dores de rua – tudo isso a iden-
de Maria Valéria Rezen- nagem, a ‘descida’ de Alice para tifica com uma mendiga. E é a
de, é uma personagem a mendicância ou algo parecido? própria protagonista-narradora
que tem muita força, no- (Sim, Alice, em parte dos quaren- que anota, já para o fim do livro,
tadamente nos primei- ta dias em que circula por Porto que os moradores de rua são seus
ros momentos do livro, quando Alegre, vive à beira da mendi- “iguais”). A sensação de “existir
está dilacerada por sua transfe- cância ou mesmo como mendiga. solta”, por si só, seria suficiente,
rência para Porto Alegre (“cida- A indumentária, o modo de se justificaria a virada drástica na
de pra onde me transplantaram alimentar e de dormir nas ruas, vida da personagem? A insatis-
à força”). Aqui o leitor sofre com num parque ou em prédios pú- fação da protagonista provocada
a personagem, apega-se ao seu blicos, a convivência com mora- por seu “transplante” para outro
drama, comove-se com a sua so- estado moveria mesmo a mudan-
lidão. Aqui o tema do ‘exílio’, da ça, tão radical, de sua condição/
angústia do indivíduo desterra- identidade, teria mesmo carga
do, se impõe. Alice, já foi dito, é foto: rafael passos
para proporcionar a sua penúria
aposentada (tem duas aposenta- (e Alice recebendo, repito, duas
dorias), deu aulas de francês, es- aposentadorias e tendo um bom
teve na França fazendo um curso, apartamento à sua disposição)
tem uma filha professora univer- pelas ruas e noites frias de Porto
sitária que a leva para Porto Ale- Alegre? O romance, por uma via
gre (deixa-a num bem equipado que muito provavelmente a escri-
apartamento na capital gaúcha tora não desejava enveredar, não
antes de seguir com o marido terminaria de algum modo refor-
para uma pós-graduação de seis çando o estereótipo do nordestino
meses na Europa; apartamento paupérrimo, miserável, social-
disponibilizado exclusivamente mente inviabilizado? São questões
para Alice e que esta irá abando- para as quais não encontro respos-
nar de uma hora para outra). Ali- tas no momento. São inquietações
ce tem erudição, é apegada aos sérias, responsáveis, de quem re-
Maria Valéria
livros (que estão sempre presen- conhece os méritos do romance de
Rezende é um
tes na sua vida, tornando-se um dos nomes mais Maria Valéria Rezende. I
elemento importante, em várias importantes
Rinaldo de Fernandes é escritor,
cenas do livro, na caracterização da literatura
ensaísta, antologista e professor de
brasileira,
da personagem). É, como qual- ganhadora dos literatura da Universidade Federal
quer brasileiro médio, bem pos- prêmios Jabuti da Paraíba (UFPB). É autor, entre
ta na vida. Sendo assim, é de se e Casa de las outros livros, de Rita no pomar, O
perfume de Roberta e O professor
perguntar: não soa estranho, não Américas
de piano. Mora em João Pessoa (PB).
A Scena Muda
Luiz Augusto Paiva da Mata
Especial para o Correio das Artes
M
orávamos na rua Paraibuna. Meu pai vi- Muito me intrigava que sua alcova re-
via envolvido com o Partido e não eram quisitasse tantos ornamentos, mas nun-
raros os dias de penúria. Minha mãe ali- ca comentávamos a respeito, pois Elza
mentava o orçamento costurando para muito necessitava daqueles proventos e,
a vizinhança, e minha irmã, Elza, dava generosa jamais negara algumas pratas
sua colaboração exercitando o bordado às minhas investidas ao tentador balcão
com habilidade tal que Dona Leontina, da padaria Nossa Senhora de Lourdes,
exigente contumaz, não cansava de lhe onde o popular Maneco empanturrava-
rasgar elogios. Recomendava o que ela -me com seus confeitos. Assim, Elza ga-
chamava de “que maravilha!“ ao páro- rantia seu corte de organdi, eu minhas
co Tertuliano – rival implacável de meu marias-moles e o padre Tertuliano via-
pai nas lides políticas – que regateava -se livre de nossas maledicências. c
Ubi sunt?
E
m certa passagem de suas Imagens do pen- portas do seu universo poético para o gran-
samento, Walter Benjamin faz uma breve re- de público através do teatro e do romance,
flexão sobre a amizade entre duas pessoas depois levados para a televisão.
separadas por uma diferença de idade mui- Meu convívio com Ariano foi bem mais
to grande; pessoas ligadas por algum tipo intenso e duradouro. Conheci-o em março
de afeição, apesar do abismo existente entre de 1984, quando ingressei na Universidade
suas gerações. Ao que parece, não conside- Federal de Pernambuco para estudar Arqui-
ra ele a possibilidade dessa amizade existir tetura, aos 17 anos de idade. Ariano, então
se não de modo superficial. Em relação ao com 56, foi meu professor de Estética. Foi a
jovem, o velho seria um “interlocutor com partir daí que comecei a ler a sua obra, da
quem, certamente, não se podia tocar na qual só conhecia o Auto da Compadecida.
maior parte dos assuntos, nas coisas mais Mais do que amigo, foi, para mim, um ver-
importantes que dissessem respeito à pes- dadeiro mestre. Como era um homem muito
soa. Em compensação, a conversa com ele ligado à família, minha amizade por ele foi
era cheia de um frescor e de uma paz que aos poucos sendo transmitida para sua es-
nunca seriam possíveis com um coetâneo”. posa, Zélia, para seus filhos e depois seus
Discordo profundamente. Entre as coisas netos. E assim cheguei a ser considerado
boas que a vida literária me proporcionou, pelos dois, Ariano e Zélia, como “um filho
não posso deixar de registrar a amizade que mais moço”. Terminamos compadres, pois
mantive com alguns escritores bem mais ve- Ariano e Zélia foram padrinhos de batismo
lhos do que eu, escritores que bem poderiam do meu filho mais velho, Heitor, e “padri-
ter sido meus pais, quando não meus avós. nhos honorários” (como Ariano gostava de
Em nossas conversas, tratamos de assuntos dizer) de minha filha Beatriz.
os mais variados, sobretudo de literatura, Minha amizade com Foed começou atra-
algo importantíssimo para todos nós. Dois vés de cartas, em meados da década de 1990.
desses escritores, Ariano Suassuna e Foed Pessoalmente, só fui conhecê-lo em 2006,
Castro Chamma, nasceram no mesmo ano, quando, em viagem ao Rio, fui levado à sua
em 1927: Foed, a 28 de março; Ariano, a 16 casa por um amigo comum, o escritor e crí-
de junho. Ou seja: se já não estivessem dor- tico André Seffrin. O poeta residia no bairro
mindo, “dormindo profundamente”, como do Rio Comprido, num pequeno e modesto
diz o belo poema de Manuel Bandeira, se- apartamento térreo. Vivia uma vida humil-
riam ambos, hoje, nonagenários. de ao lado da esposa Lucy, após terem criado
Foed Castro Chamma foi um dos maiores um casal de filhos com bastante dificuldade.
poetas da literatura brasileira. Nasceu em Durante anos, Foed sobreviveu trabalhando
Irati, Paraná, e faleceu no Rio de Janeiro, ci- como vendedor ambulante, oferecendo pro-
dade onde se radicou no final da década de dutos diversos de porta em porta, e assim
1940. Escreveu uma obra de fôlego, da qual conhecia o Rio de Janeiro na palma da sua
se destaca o livro Pedra da Transmutação, lan- mão. A partir de 2006, por motivos de tra-
çado em 1984, um longo poema com dez mil balho, minhas idas ao Rio se tornaram mais
versos decassílabos, um “poema-rio”, como frequentes. Sempre que eu estava na cidade,
ele costumava dizer. Escreveu uma poesia André marcava um encontro comigo e com
de altíssimo nível, porém hermética; uma Foed na sua casa, no bairro das Laranjeiras.
grande poesia para um grande leitor de E assim passamos tardes alegres a conver-
poesia – algo cada vez mais raro, no Brasil. sar sobre literatura, muitas vezes dividindo
Por isso o seu nome permanece desconheci- uma cuia de chimarrão, que André, como
do da maioria dos brasileiros, algo que não bom gaúcho, nos oferecia.
ocorre com o nome de Ariano, que abriu as Eram tão joviais, Ariano e Foed, cada c
Um bonde
- Aonde? Ao Cemitério! – me
respondeu, com um sorriso ma-
ligno boiando entre as palavras.
Apesar da velocidade do bon-
de, me arrojei fora de um salto.
S
nirs”.
ou Mestre Benedicto, artesão numa firma de “souve-
fortificante.
O frescor de uma súbita brisa
ajudou-me a coordenar melhor
as ideias: eu, provavelmente, ha-
Naquele crepúsculo, após ter esculpido alguns Cristinhos via tomado a linha do Cemitério,
Redentores de pedra-sabão, saí exausto do emprego. ao invés da que me levaria à mi-
E meio febril, devido ao verão temperadíssimo. nha casa.
Como um sonâmbulo, subi no costumeiro bonde aberto, E tentei me tranquilizar con-
que me deixaria o mais próximo possível de minha cama. siderando que a face que me
O veículo ia vago, com exceção de uma passageira, que mal horrorizara trazia apenas uma
notei, mergulhando num instantâneo cochilo. surpreendente semelhança com
Quando despertei, de um solavanco nos trilhos, foi que per- Leonora morta.
cebi a outra viajante. Depois, com o vigor já consu-
Ao mirá-la, com estupor, meu sangue quase esfriou nas veias. mido, desmaiei.
Era Leonora Cruz! Quando voltei à tona, esta-
Por mais empenho que eu fizesse para varrer a alucinação, va deitado no banco, com duas
mais ela se impunha. pessoas ao redor: um grisalho
Sem dúvida, era Leonora, parceira de fábrica, especialista de pincenê, que se identificou
em caveirinhas de metal para chaveiros e pedras de dominó como médico, e um motorneiro,
feitas de ossos. de uniforme.
Só que ela não deveria estar ali, pois eu, seu apaixonado Os passageiros do bonde para-
em surdina, a chorara em seu pobre jazigo de tuberculosa, há do fruíam a cena.
meses! O doutor foi logo dizendo:
Leonora exibia o mesmo rosto, porém não alvo, como em - Parece que caiu do bonde,
vida, mas de uma cor verde-cinza, idêntica à sua feição defunta. enquanto dormia. Sorte que a ca-
O que variava radicalmente era seu olhar: antes, docemente beça...
melancólico; agora, rebelde, com um brilho sarcástico. Não quis dialogar com o mé-
Esta mudança (influenciada pelo Além? pelo seu triste fim?) dico, mas com o condutor.
me causou agudo pavor. Perguntei-lhe qual era o ponto
Para rebater um pouco meu estremecido espanto, brinquei para a minha residência e ele dis-
que ela ressuscitara para me cobrar os 30$000 que eu não pu- se que aquele mesmo.
dera devolver, devido ao seu falecimento. - E o bonde “Cemitério”?
Este pequeno intervalo de nada adiantou como alívio: mi- - Trabalho na companhia há
nhas pernas tremiam e um suor gelado, em pleno verão, desli- 20 anos e nunca ouvi falar desta
zava por meus negros poros. linha...
Tentei, então, descobrir, com o canto dos olhos, algum deta- Os ferimentos da queda geme-
lhe que amenizasse minha terrível condição. ram menos que minha perplexi-
Inutilmente: quanto mais eu a inspecionava, maior era a ob- dade.I
sessão de que Leonora Cruz achava-se no bonde.
Tentei, de novo, me distrair do pesadelo e espiei a via.
Onde estava?
Aquelas casas, muros e árvores que íamos deixando para Cláudio Feldman é escritor e
trás, sob a lua cheia, não me eram conhecidos. professor aposentado de Língua &
Por ali, eu nunca chegaria ao meu lar! Literatura. O bilhete do morto -
contos criminais (Editora Taturana,
Que bonde eu havia tomado em meu sonambulismo? 2017) é sua mais recente publicação.
Reunindo as forças que me restavam, inclusive a coragem, Mora em Santo André (SP).