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Fundamentos

O conceito de
perversão era usado na
Psiquiatria para catalogar
PERVERSÕES
comportamentos sexuais
desviantes da norma.
Freud designou como OU
perversão uma posição
subjetiva direcionada ao
desmentido da castração.
Segundo Lacan, a
PERVERSÃO
perversão é sobretudo um
fato de linguagem.
Perversão;
psicanálise;
linguagem G e r a l d i n o A l ves
Ferreira Netto
PERVERSIONS OR
PERVERSION
The concert of
perversions was used in
Psychiatry to list sexual
behaviors turning aside
from the normal course.
Freud called perversion a
subjective position
toward the disavowal of
castration. According to f.
Lacan, perversion is more J LÂ ntre os muitos conceitos complexos e difíceis
a fact of language. de definir na teoria psicanalítica, o de perversão ocupa
Perversion;
psychoanalysis; um dos primeiros lugares, gerando equívocos e ambigüi-
language dades, seja pela abordagem médico-psiquiátrica com que
é geralmente tratado, seja pela contaminação moralista ou
religiosa de que dificilmente consegue escapar. Isto sem
falar de outro vício comum mesmo em publicações psi-
canalíticas, que consiste em identificar a perversão com a
homossexualidade, fazendo desta última uma' suposta
estrutura clínica.
O termo perversões, no plural, surgiu na psiquiatria
e na sexologia, designando uma série de práticas sexuais
consideradas desviantes com relação à norma social ou
moral, ora num sentido pejorativo, ora positivamente va-
lorizadas.
A partir de 1850, os manuais de psiquiatria elabo-
raram a primeira lista oficial das perversões com os se-
guintes itens: incesto, homossexualidade, zoofilia, pedo-
filia, pederastia, fetichismo, sado-masoquismo, trans-
vestismo, narcisismo, auto-erotismo, coprofilia, necrofilia,
exibicionismo, voyeurismo, mutilações sexuais.
A entrada em cena da psicanálise, pela porta da his-

• Psicanalista, diretor do Fórum de Psicanálise,


em São Paulo.
teria, fez com que Freud elaborasse minuciosamente e dominasse
com bastante segurança a teoria das neuroses. Entretanto, e conse-
qüentemente, a compreensão do fenômeno neurótico trazia em seu
bojo, pelo lado avesso, o conceito de perversão, já agora no sin-
gular. Assim, em 1897, em carta a Fliess, faz a famosa afirmação de
que a neurose é "o negativo da perversão". Entendia, com isso, que
tudo o que o neurótico recalca é justamente aí que o perverso
acentua o caráter bárbaro, polimorfo e pulsional de uma sexuali-
dade infantil, em estado bruto, que não respeita devidamente a
interdição do incesto, nem o recalque, nem a sublimação. Freud
adota o conceito de perversão ainda como desvio sexual em
relação a uma norma, embora desprovido de qualquer conotação
pejorativa ou valorativa, fundando aí o trio das estruturas clínicas:
• neurose, novo domínio incontestável da psicanálise;
• psicose, tradicional domínio da psiquiatria;
• perversão, campo antes dominado pelo direito e pela
sociologia, como perversões.
O conceito psicanalítico de perversão propriamente dito só foi
elaborado depois que surgiu a teorização sobre as pulsões, em
substituição aos instintos. Assim, as perversões, ligadas aos instin-
tos, apontam para desvios, aberrações e inversões na função
biológica, partindo do pressuposto de que o objetivo da sexuali-
dade é a reprodução, cujo objeto é definido, enquanto a perversão,
no rastro da pulsão, cujo objeto é indefinido e que aposta na finali-
dade de obter prazer na sexualidade, designa uma posição subjeti-
va diante da castração e da lei.
Na história da humanidade, as perversões sempre ocuparam
um lugar de destaque nas artes, tanto no Oriente como no
Ocidente, com variações e nuances de acordo com cada época,
cada país ou cultura, acompanhando os costumes. Ora eram mar-
ginalizadas pela sociedade e pela religião, ora eram altamente valo-
rizadas na literatura, na poesia, na filosofia, como superiores às
práticas ditas normais.
Ainda hoje, por exemplo, a mutilação sexual feminina
(excisão e infibulação) é aceita e praticada em algumas regiões da
África, com a finalidade de abolir o desejo e o prazer sexual das
mulheres, ao mesmo tempo que é considerada um crime na
Europa. Na China ainda se pratica o genocídio infantil feminino,
com a finalidade de controlar o aumento da população feminina,
considerada improdutiva. A emasculaçâo dos homens no Antigo
Egito e na índia foi aceita ou não, dependendo de circunstâncias
históricas. O próprio cristianismo produziu seus eunucos, para
garantir a harmonia melodiosa dos sopranos masculinos, nos corais
das catedrais
Na Grécia Antiga, a homossexualidade era a forma suprema
do amor desinteressado, cantada em prosa e verso no Banquete de
Platão. No cristianismo, ela é considerada vício e pecado ainda
hoje. Na psiquiatria do século passado, era uma degenerescência.
E mais recentemente, em 1974, alguns • a superestimação exclusiva de
países democráticos começaram a in- uma zona erógena, como a
cluir em sua legislação o casamento boca (felação) ou o aparelho
entre homossexuais, com todos os di- genital.
reitos contratuais, até mesmo permitin- Nenhuma dessas práticas sexuais é
do a adoção de filhos e as garantias de intrinsecamente perversa. Desde que
herança e de bens. No Brasil, começa produza prazer, o ato é simplesmente
um movimento reivindicatório nessa uma forma a mais dentro do polimorfo.
direção. A designação de perversão é extrínseca
Em Freud, sobretudo no início, a ao ato em si, e é definida pela exclusão
teoria da perversão e da homossexuali- de outras práticas prazerosas. O ato
dade ressente-se da mesma ambigüi- seria então perverso não pelo que se
dade que caracterizou sua visão sobre a faz, mas pelo que se deixa de fazer. E
sexualidade feminina. Por um lado, foi justamente neste ponto que Freud
rejeita qualquer idéia de tara ou dege- levantou a dúvida cruel, assinalada em
neração na perversão, quando aplica a nota de rodapé, se a heterossexuali-
todas as pessoas, especialmente na dade, quando praticada com exclusivi-
infância, a "disposição perversa poli- dade, não seria também classificável
morfa". Por outro lado, conserva a idéia como perversão.
de norma e desvio na sexualidade, que De 1915 em diante, com a meta-
só aos poucos vai se arejando. psicologia e depois com a segunda
A partir de 1905, aquele mesmo tópica, Freud dá o passo decisivo das
Freud que era admirado e cumprimen- perversões para a perversão como para-
tado nas ruas de Viena, por causa de digma da organização do ego, baseado
suas teorias sobre a interpretação dos no conceito de clivagem.
sonhos, passa a ser supermalvisto após De 1923 a 1927, Freud busca
a publicação de seus escandalosos desesperadamente um mecanismo que
ensaios sobre a teoria da sexualidade, dê conta da psicose e da perversão. Nos
especialmente a infantil, um dos lampe- textos sobre "A organização genital
jos mais profundos, fecundos e clarivi- infantil", de 1923, "A perda da realidade
dentes que já se produziram a respeito na neurose e na psicose", de 1924, "A
dessa singela criatura chamada criança. negação", de 1925, "Inibições, sintomas
Reutilizando o plural perversões, dis- e angústia", de 1926, e "Fetichismo", de
tingue dois tipos: as perversões de obje- 1927, introduz o conceito de Verleug-
to e as perversões de objetivo. nung, ou desmentido, mostrando que
O objeto da sexualidade pode ser: as crianças negam a realidade da falta
• humano (incesto, homossexua- de pênis na menina. Neste momento,
lidade, pedofilia, auto-erotis- este mecanismo de defesa caracteriza a
mo); psicose, pela negação da realidade,
• não-humano (fetichismo, zoofi- enquanto na neurose há o recalque das
lia, transvestismo). exigências do id.
Entretanto, para chegar à Verleug-
Com relação ao objetivo da sexua- nung, foi necessário um longo percur-
lidade, há três tipos de prazer: so. Em 1927, Freud entra em contato
• o visual (exibicionismo, voyeu- com o francês René Laforgue, o qual já
rismo); havia citado em alguns dos textos
• o de sofrer ou fazer sofrer acima, e com quem discute sobre o
(sadismo, masoquismo); conceito de escotomização, surgido de
um outro conceito utilizado de 1895 a memória ou da consciência certos fatos
1917, que era a alucinação negativa. desagradáveis".
Laforgue, citado por Roudinesco Segundo Elisabeth Roudinesco,
(1988), foi o primeiro discípulo francês Pichon chegou ao inconsciente freudi-
de Freud, um dos introdutores da psi- ano através da gramática. Afirmava que
canálise na França, e diretor do Grupo a negação gramatical tinha a ver com a
Evolução Psiquiátrica. Escreveu o livro separação entre consciente e incons-
La psychanalyse et les neuroses, e ficou ciente. E a língua francesa tem uma par-
famoso como clínico, principalmente ticularidade ímpar com relação à ne-
pelos trabalhos com pacientes psicóti- gação. A frase negativa utiliza dois
cos. De certa feita foi informado sobre advérbios ao mesmo tempo, dos quais
um paciente que não conversava com nenhum por si só é negativo. Antes do
ninguém já havia doze anos, e que pro- verbo, vem a partícula ne, e depois do
feria sempre uma única e mesma frase. verbo podem vir pas, rien, jamais.
Apesar de aconselhado a não perder Numa linguagem erudita, o ne pode ser
tempo com este caso, em que todos ha- suprimido: "fen sais rien" (não sei nada
viam fracassado, Laforgue assume o de- disso). Portanto, o elemento negativo
safio de fazer o paciente falar. Dirige-se está mais no segundo membro. A par-
a ele e pergunta: quem é você? Respos- ticularidade consiste no seguinte: quan-
ta de sempre: "Sou o cavalo de Nancy, do o segundo membro é constituído
com a mulher em cima". Ao que Lafor- por rien, aucun, personne, plus, guère,
gue retrucou: "Bom dia, Joana dArc". E etc., a negação aplica-se a fatos que o
o paciente: "Até que enfim, um homem locutor já não encara como algo que faz
me compreende". E voltou a falar nor- parte da realidade. O seguinte diálogo
malmente. de uma entrevista jornalística ilustra a
Laforgue fez supervisão com questão: "O caso Dreyffus, disse Ester-
Freud, bem como manteve uma longa hazy, é para mim um livro fechado para
correspondência com o mestre. No tex- sempre". Resposta do jornalista: "II dut
to sobre o fetichismo, Freud cita uma se repentir de Vavoir jamais ouvert"
frase do discípulo: "O menino esco- (deveria arrepender-se de tê-lo aberto).
tomiza sua percepção da falta de pênis O fato aludido estava forcluído. Pichon
na mulher". Mais tarde, afastou-se de chamou de forclusiva a segunda parte
Freud por causa de ciúmes pela prince- da negação na língua francesa. Um fato
sa Maria Bonaparte. acontecido era afetivamente excluído
Outro nome decisivo nesse mo- do passado.
mento importante da teoria psicanalíti- Numa outra característica da lín-
ca é o do pouco citado Édouard gua, a expressão ne... que acumula, ao
Pichon, autor da famosa Gramática, mesmo tempo, uma afirmação e uma
em sete volumes, e de um artigo intitu- negação, como na frase: je ne parle que
lado "Sur la signification psychologique français (eu só falo francês). Nesta frase
de la negation en français". Ele apro- há uma negação (eu não falo) e uma
fundou o conceito de escotomização, afirmação (eu falo), exatamente como
que na oftalmologia indicava uma Freud concebia a denegação na clássica
impressão visual- incidindo sobre um frase de seu paciente: não é minha mãe,
ponto cego da retina, aplicando-o à que deve ser entendida como: (é minha
psicanálise como "um mecanismo mãe, mas não suporto isto). Aliás, é
inconsciente ou uma cegueira, pelo pouco provável que Pichon tivesse co-
qual o sujeito faz desaparecer da nhecimento do texto de Freud sobre a
denegação, escrito em 1925, mas só • perversão: denegação ou des-
traduzido para o francês em 1934. mentido da castração, com fixa-
Pichon teve, portanto, um papel ção na sexualidade infantil.
essencial na história da psicanálise. Sendo assim, o percurso de Freud
Aprofundou a polêmica Freud-Laforgue até então consistiu em ultrapassar a
sobre a escotomização e inventou, em descrição das perversões, para chegar a
1928, o conceito mais apropriado de um mecanismo geral da perversão que,
forclusão, tirado de um fenômeno da mais do que apontar para uma dis-
língua, como que antecipando a tese posição polimorfa infantil, descreve a
lacaniana do inconsciente estruturado atitude de uma escolha subjetiva diante
como linguagem. Enquanto a escotomi- da diferença anatômica dos sexos, tanto
zação mantinha a psicose como patolo- no homem quanto na mulher.
gia médica, a forclusão situava o meca- Depois de Freud, de 1930 a I960,
nismo da psicose como fenômeno de seus discípulos continuaram a estudar a
linguagem, e não como anomalia. Cu- perversão, mas abdicaram do espírito
riosamente, e estranhamente, o Vocabu- do mestre, a ponto de proibir os per-
lário de psicanálise publicado pela versos, agora identificados aos homos-
dupla Laplanche-Pontalis (ex-analisan- sexuais, de praticar a psicanálise em
dos de Lacan) atribui a invenção do todas as sociedades ligadas à IPA, sob o
conceito de forclusão a Lacan, sem ne- pretexto de que poderiam prejudicar os
nhuma referência a Pichon. O próprio pacientes, numa época em que nem
Lacan apresentava-se como autor da mais a psiquiatria encarava as perver-
façanha. Entretanto, 25 anos depois, no sões com moralismo.
Seminário I, em 1954, Lacan retoma o Com Lacan, a perversão ganha sta-
mesmo debate, agora com Jean Hyppo- tus inconteste de estrutura, juntamente
lite, não mais pela vertente da esco- com a neurose e a psicose, que passam
tomização, mas da denegação. a ser pensadas como versões diferentes
A algumas particularidades da lín- da relação do sujeito com a lei da cas-
gua francesa, portanto, devemos os tração, cada versão podendo ser chama-
conceitos de denegação, desmentido e da de Père-version, a versão do Pai.
forclusão. Com base na experiência Ligado à tradição da poesia erótica,
clínica com o elemento fetiche, Freud da filosofia de Platão e da corrente li-
postula que na perversão há duas reali- bertina na literatura, afirmava que so-
dades opostas e simultâneas: por um mente os perversos sabem falar da per-
lado, a negação e, por outro, o reco- versão. Aprofunda dois conceitos da psi-
nhecimento da ausência de pênis na canálise, o desejo e o gozo, dizendo que
mulher. Ausência esta que o fetiche a perversão é uma componente do fun-
escamoteia. É a mesma clivagem do cionamento psíquico do homem e da
ego, antes entendida como mecanismo mulher, um desafio permanente à lei.
da psicose, agora estendida à neurose Em 1956, no seminário sobre a
e à perversão, que passa a se alinhar relação de objeto, que é mais uma teo-
com as estruturas clínicas, assim ria da falta de objeto, esclarece que, se
descritas: existe alguma inversão, é a inversão (ou
deslocamento) do simbólico pelo imagi-
• neurose: conflito interno, segui- nário, característica da perversão. É
do de recalque; assim que Lacan interpreta a afirmação
• psicose: reconstrução de uma de Freud, segundo a qual a neurose é o
realidade alucinatória; negativo da perversão-.
"Aquilo que estava articulado de caracteriza este caso como perversão
maneira latente no nível do grande Ou- não tem nada a ver com as possíveis ou
tro começa a se articular de maneira supostas transas sexuais aí envolvidas,
imaginária, à maneira de perversão, e é, mas sim com o fato de que a moça usou
aliás, por essa razão e não por outra que a prostituta como instrumento para con-
isso vai resultar numa perversão" (p.120). seguir objetivos totalmente outros,
Como conseqüência dessa inver- camuflados num interesse sexual, e que
são e do desmentido, a perversão vai se não foram devidamente explicitados. É
caracterizar pela dessubjetivação: o jogo da tapeação.
"Resta, com efeito, uma dessubjeti- No filme italiano La condanna (O
vação radical de toda a estrutura, em processo do desejo), de 1991, dirigido
cujo nível o sujeito ali está reduzido ao por Marco Bellocchio, supervisionado
estado de espectador..." "No nível da por um psicanalista lacaniano, apresen-
fantasia perversa, todos os elementos ta-se uma situação semelhante à do
estão lá, mas tudo o que é significação caso acima. Uma mulher (Andrzej
está perdido, a saber, a relação inter- Sewerin) tira o dia para fazer uma visi-
subjetiva. O que se pode chamar de sig- ta a um grande museu. Fica toda en-
nificantes em estado puro mantém-se tretida com as obras de arte, que sem-
sem a relação intersubjetiva." "Vocês pre admira. Na hora de fechar o expe-
vão encontrar aí o que eu chamei de diente do museu, um rolo compressor
metonímia, que consiste em dar a escu- de funcionários e seguranças costuma
tar alguma coisa, falando de uma coisa rastrear os visitantes, pelo menos no
completamente diferente." "Existe aí co- Louvre é assim, convidando-os deli-
mo que uma redução simbólica, que cadamente a se retirar. Essa mulher
eliminou progressivamente toda a estru- escapou da vigilância nesse dia, mais
tura subjetiva." Trata-se de um "jogo de por distração do que por premeditação.
tapeação", um falso pacto. E percebeu, depois de algum tempo,
Nesse ponto, Lacan está comen- que ficara trancada sozinha no museu.
tando o texto freudiano "Psicogênese Condenada pelo destino a passar toda a
de um caso de homossexualidade femi- noite ali, resolve relaxar e... continua a
nina", de 1920, que ele denomina "A observar as obras de arte. Depois de
jovem homossexual": Uma moça decide perambular algumas horas, dá de cara
aproximar-se de uma prostituta, com a com um homem (Vittorio Mezzogiorno)
qual supostamente inicia uma relação que também se deleitava apreciando os
amorosa. Saem as duas ostensivamente quadros famosos, perdido na noite
pelas ruas, de mãos dadas. A prostituta, como ela. Os dois se apresentam,
ao que tudo indica, está envolvida apai- acham graça no insólito da situação, e
xonadamente. Mas a moça não quer seguem juntos no turismo acidental.
outra coisa que se exibir com a prosti- Nada melhor que este cenário para se
tuta para impressionar o próprio pai, do imaginar o que vai rolar a seguir. Pinta
qual estaria assim exigindo um outro um clima, os dois deitam e rolam, a
tipo de atenção, a saber, um amor de- mulher adora, havia tempos que não
sinteressado, como o dos homosse- desfrutava de uma noitada tão divertida
xuais, do qual não se pode esperar um quanto inesperada. Foi bárbaro. Estava
filho. Ao ser duramente recriminada muito grata pelo prazer proporcionado
pelo pai, ameaça suicidar-se, justamente por seu amigo notívago, e continuaram
na hora em que sua mãe estava às a fazer hora até o raiar do dia, quando
vésperas de ter um filho dele. O que os portões seriam abertos. Daí a pouco
iam se despedir. Talvez trocassem os consentimento deste. A perversão, as-
telefones, ou marcassem um próximo sim entendida, é um fenômeno de lin-
encontro. Começando já a se preocupar guagem, não um ato ou um fato sexual.
com os compromissos daquele dia, ela A metonímia, de que fala Lacan, signifi-
consulta o relógio, quando então o ca etimologicamente que algo vai além
homem declara que tinha a chave do do nome, da palavra, que um determi-
museu e que poderiam sair de imedia- nado significante (puro, porque só
to. Nisso a mulher percebe o equívoco aparentemente é um elo na cadeia) é
todo, sente-se injuriada e usada. Re-sig- usado fora do contexto, deslocado da
nificando retroativamente tudo o que significação convencionada pelo códi-
acontecera naquela noite, sai à procura go, provocando uma atribuição de sen-
de um advogado, processando o ho- tido da parte do ouvinte, diferente do
mem. Ganha a batalha judicial. sentido que o emissor intenciona. O
Onde está a perversão nesse caso? significante puro, para Lacan, é um sig-
Não está no sexo que fizeram, aliás, nificante objetivado, mais signo que sig-
todo certinho. A perversão está no fato nificante. Ora, o signo não representa
de o homem ter usado a mulher como (ou não produz) um sujeito. Para que
instrumento do próprio gozo, criando um sujeito se constitua, um significante
todo um entorno simbólico, quando sua deve representá-lo para outro signifi-
intenção imaginária era outra, já que cante na seqüência da cadeia signifi-
não declarou de imediato que possuía a cante. Daí a saída perversa pela dessub-
chave. Ela foi enganada. É o mesmo jetivação.
jogo da tapeação feito pela jovem Naturalmente, qualquer signifi-
homossexual. cante dá margem à ambigüidade em vir-
Com a redução simbólica, por tude do deslizamento do significado.
meio da metonímia, o registro do imagi- Mas há um referencial socialmente
nário passa a organizar os outros dois aceito e um limite de equivocação que
na perversão, assim como na neurose na perversão é ultrapassado, constituin-
esta função cabe ao simbólico, pela do a "desmentira" do mal-intencionado.
metáfora paterna, e na psicose é o real A saber, o mal-entendido, inerente ao
que comanda, na ausência da metafori- registro do simbólico, é essencialmente
zação. Isto é, o lugar da lei varia em diferente do mal-intencionado, no regis-
cada estrutura clínica: na psicose, a lei tro do imaginário. Aí está a inversão.
está do lado da mãe como o Outro Confrontando as propostas de Sa-
Absoluto; na neurose, a lei está do lado de, autor de Justina e de Filosofia na
do Grande Outro, o Pai; na perversão, alcova, com os imperativos categóricos
devido à redução simbólica, a lei está de Kant na Crítica da razão prática,
no pequeno outro, no próprio sujeito Lacan (1966) tenta conciliar o que pa-
que se assujeita, sim, à lei do Pai, mas rece impossível: a fantasia sadiana com
com a condição de cumpri-la a seu o imperativo kantiano. Diz Sade:
jeito, ao seu bel-prazer, que é sua "Tenho o direito de gozar de teu
maneira de desmentir a lei. corpo, e este direito eu o exercerei sem
Na perversão, o sujeito finge uti- que limite algum me detenha no capri-
lizar o simbólico dentro dos códigos cho das extorsões que me dê gosto de
convencionais da linguagem, mas intro- nele saciar". Já a proposta kantiana diz:
duz um sentido todo seu, criando uma "Faz de tal modo que a máxima de tua
ambigüidade da qual vai se beneficiar, ação possa ser tomada como uma máxi-
em detrimento do outro, e/ou sem o ma universal" (p.l 11).
Essas considerações desenvolvidas • masoquismo sexual;
por Lacan, em 1966, culminaram com a • pedofilia;
sugestão de fazer do mal, no sentido • sadismo sexual;
sadiano, um equivalente do bem, no • voyeurismo;
sentido kantiano. Na perversão, o sujeito • e, sem outra especificação,
se transformaria em objeto de gozo ofe- escatologia telefônica (telefonemas obs-
recido a Deus, subvertendo a lei, e dese- cenos), necrofilia, parcialismo (foco em
jando inconscientemente anular-se no uma parte do corpo), zoofilia, coprofi-
mal absoluto e no aniquilamento de si. lia, clismafilias (enemas) e urofilia
A partir daí, perde sentido o diag- (urina).
nóstico de incurabilidade da perversão, Com relação ao parceiro, a "para-
e caduca a proibição de acesso dos per- filia" pode contemplar: um sujeito (pe-
versos (não necessariamente perversos dofilia, sadomasoquismo); o próprio
sexuais) à prática da psicanálise nas corpo (transvestismo, exibicionismo);
instituições psicanalíticas. um animal ou objeto (zoofilia, fetichis-
Em 1972, Joyce McDougall, no mo).
livro Plaidoyerpour une certaine anor- Certamente que a influência da
malité, postula que o modelo da tríplice psicanálise foi decisiva nessa virada da
estrutura clínica é rígido demais para psiquiatria. Substituir o significante
explicar as perturbações sexuais e as "perversões" por "parafilias" e eliminar
desordens narcísicas. Propõe os con- a categoria de homossexualidade tem,
ceitos de neo-sexualidade e de sexuali- pelo menos, o mérito de livrar-se de
dade aditiva para as formas de sexuali- uma contaminação moralista e discrimi-
dade ligadas à droga e à toxicomania, natória que dominou soberana todo um
que permitem a certas pessoas, beiran- saber médico-psiquiátrico, durante tan-
do a loucura, encontrar o caminho da to tempo. Praza aos céus que um sig-
cura, da criatividade e da realização de nificante novo signifique novas idéias.
si mesmas. É a visão de um caráter O avanço que a psicanálise reali-
curativo da perversão, semelhante ao zou com a teorização sobre a perversão
que Lacan atribuiu à paranóia de auto- consiste em desvinculá-la da patologia
punição, no caso Aimée. mórbida, do moralismo social ou reli-
Em 1995, foi publicado o DSM - IV gioso, do preconceito sexual. Caracteri-
- TM - Manual Diagnóstico e Estatístico zá-la como estrutura clínica, uma estru-
de Transtornos Mentais, em quarta tura de linguagem, como uma escolha
edição, pela Editora Artes Médicas. A subjetiva, no sentido em que Freud fala-
grande novidade e avanço teórico da va da escolha das neuroses, é vinculá-la
atual psiquiatria consiste em "deletar" à lei ou versão do Pai, como uma alter-
os conceitos de perversões e de homos- nativa. Com isto, a homossexualidade,
sexualidade, que nem constam mais no do mesmo modo que a heterossexuali-
índice geral. Para substituir os "antigos" dade, ou qualquer outra prática sexual,
conceitos, esse manual inventa a nova passa a ser um sintoma localizável em
denominação de "parafilias". E as enu- qualquer uma das estruturas clínicas. •
mera na seguinte listagem:
• exibicionismo;
• fetichismo transvéstico;
• fetichismo;
• frotteurismo (tocar ou esfregar-
se numa pessoa);
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