Você está na página 1de 27

sabe-se que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos.

Assim sendo, a compreensão da natureza da educação passa pela compreensão da natureza


humana.

Com efeito, sabe-se que, diferentemente dos outros animais, que se adaptam à realidade
natural tendo a sua existência garantida naturalmente, o homem necessita produzir
continuamente sua própria existência.

Para tanto, em lugar de se adaptar à natureza, ele tem que adaptar a natureza a si, isto é,
transformá-la.

E o trabalho instaura-se a partir do momento em que seu agente antecipa mentalmente a


finalidade da ação.

Para sobreviver, o homem necessita extrair da natureza, ativa e intencionalmente, os meios de


sua subsistência.

Ao fazer isso, ele inicia o processo de transformação da natureza, criando um mundo humano
(o mundo da cultura).

Dizer, pois, que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos significa afirmar que
ela é, ao mesmo tempo, uma exigência do e para o processo de trabalho, bem como é, ela
própria, um processo de trabalho.

Assim, o processo de produção da existência humana implica, primeiramente, a garantia da


sua subsistência material com a consequente produção,

Comunicação apresentada na mesa-redonda sobre a “Natureza e Especificidade da Educação”,


realizada pelo Inep, em Brasília, no dia 5 de julho de 1984.

Entretanto, para produzir materialmente, o homem necessita antecipar em ideias os objetivos


da ação, o que significa que ele representa mentalmente os objetivos reais.

Essa representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real


(ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte).

Tais aspectos, na medida em que são objetos de preocupação explícita e direta, abrem a
perspectiva de uma outra categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica “trabalho
não material”.

Trata-se aqui da produção de ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes,


habilidades.

Numa palavra, trata-se da produção do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber
sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana.

produto se separa do produtor, como no caso dos livros e objetos artísticos.

Há, pois, nesse caso, um intervalo entre a produção e o consumo, possibilitado pela autonomia
entre o produto e o ato de produção.

A segunda diz respeito às atividades em que o produto não se separa do ato de produção.
certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, participa da natureza própria do
fenômeno educativo.

Assim, a atividade de ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo
tempo, a pdo professor

Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e de seu consumo.

A aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professor e


consumida pelos alunos).

Compreendida a natureza da educação, nós podemos avançar em direção à compreensão de


sua especificidade.

Com efeito, se a educação, pertencendo ao âmbito do trabalho não material, tem a ver com
ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades, tais elementos, entretanto,
não lhe interessam em si mesmos, como algo exterior ao homem.

Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como algo exterior ao homem, esses
elementos constituem o objeto de preocupação das chamadas ciências humanas, ou seja,
daquilo que Dilthey denomina “ciências do 1.

Essa consideração sobre a produção não material e sua distinção em duas modalidades apoia-
se em Marx, 1978, pp.

Diferentemente, do ponto de vista da educação, ou seja, da perspectiva da pedagogia


entendida como ciência da educação, esses elementos interessam enquanto é necessário que
os homens os assimilem, tendo em vista a constituição de algo como uma segunda natureza.

Portanto, o que não é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos
homens, e aí se incluem os próprios homens.

Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida
sobre a base da natureza biofísica.

Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em


cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens.

Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais
que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem
humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas
para atingir esse objetivo.

Quanto ao primeiro aspecto (a identificação dos elementos culturais que precisam ser
assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial e o acidental, o principal e o secundário, o
fundamental e o acessório.

Quanto ao segundo aspecto (a descoberta das formas adequadas de desenvolvimento do


trabalho pedagógico), trata-se da organização dos meios (conteúdos, espaço, tempo e
procedimentos) através dos quais, progressivamente, cada indivíduo singular realize, na forma
de segunda natureza, a humanidade produzida historicamente.
Considerando, como já foi dito, que, se a educação não se reduz ao ensino - este, sendo um
aspecto da educação, participa da natureza própria do fenômeno educativo -, creio ser
possível ilustrar as considerações gerais acima apresentadas com o caso da educação escolar.

um indício da especificidade da educação, uma vez que, se a educação não fosse dotada de
identidade própria, seria impossível a sua institucionalização.

Nesse sentido, a escola configura uma situação privilegiada, a partir da qual se pode detectar a
dimensão pedagógica que subsiste no interior da prática social global.

Ali, ao tratar do papel da escola básica, parti do seguinte princípio: a escola é uma instituição
cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado.

Em grego, temos do senso comum, o conhecimento espontâneo ligado diretamente à


experiência cotidiana, um claro-escuro, misto de verdade e de erro.

Consequentemente, se do ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sábio do que um


jovem, do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sábio do que um velho.

Do mesmo modo, a sabedoria baseada na experiência de vida dispensa e até mesmo desdenha
a experiência escolar, o que, inclusive, chegou a cristalizar-se em ditos populares como: “mais
vale a prática do que a gramática” e “as crianças aprendem apesar da escola”.

É a exigência de apropriação do conhecimento sistematizado por parte das novas gerações que
torna necessária a existência da escola.

escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao
saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber.

Se chamarmos isso de currículo, poderemos então afirmar que é a partir do saber


sistematizado que se estrutura o currículo da escola elementar.

Daí que a primeira exigência para o acesso a esse tipo de saber seja aprender a ler e escrever.

Além disso, é preciso conhecer também a linguagem dos números, a linguagem da natureza e
a linguagem da sociedade.

Está aí o conteúdo fundamental da escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos das
ciências naturais e das ciências sociais (história e geografia).

E como é frequente acontecer com tudo o que é óbvio, ele acaba sendo esquecido ou
ocultando, na sua aparente simplicidade, problemas que escapam à nossa atenção.

Esse esquecimento e essa ocultação acabam por neutralizar os efeitos da escola no processo
de democratização.

De uns tempos para cá, disseminou-se a ideia de que currículo é o conjunto das atividades
desenvolvidas pela escola.

Porque se tudo o que acontece na escola é currículo, se se apaga a diferença entre curricular e
extracurricular, então tudo acaba adquirindo o mesmo peso;

e abre-se caminho para toda sorte de tergiversações, inversões e confusões que terminam por
descaracterizar o trabalho escolar.
Com isso, facilmente, o secundário pode tomar o lugar daquilo que é principal, deslocando-se,
em consequência, para o âmbito do acessório aquelas atividades que constituem a razão de
ser da escola.

Não é demais lembrar que esse fenômeno pode ser facilmente observado no dia a dia das
escolas.

depois, a Semana do Índio, Semana das Mães, as Festas Juninas, a Semana do Soldado,
Semana do Folclore, Semana da Pátria, Jogos da Primavera, Semana da Criança, Semana da
Asa etc., e nesse momento já estamos em novembro.

encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas muito pouco tempo foi
destinado ao processo de transmissão-assimilação de conhecimentos sistematizados.

Isto quer dizer que se perdeu de vista a atividade nuclear da escola, isto é, a transmissão dos
instrumentos de acesso ao saber elaborado.

preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas anteriormente enumeradas
são secundárias e não essenciais à escola.

A referência é à Revolução de 1964, pois esse texto foi escrito em 1983, quando ainda estava
em vigor o regime militar.

16 PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA curriculares próprias da escola, não devendo em hipótese


alguma prejudicá-las ou substituí-las.

Das considerações feitas, resulta importante manter a diferenciação entre atividades


curriculares e extracurriculares, já que esta é uma maneira de não perdermos de vista a
distinção entre o que é principal e o que

Assim, por exemplo, em nome desse conceito ampliado de currículo, a escola tornouse um
mercado de trabalho disputadíssimo pelos mais diferentes tipos de profissionais
(nutricionistas, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, artistas, assistentes sociais etc.), e uma
nova inversão opera-se.

De agência destinada a atender o interesse da população pelo acesso ao saber sistematizado, a


escola passa a ser uma agência a serviço de interesses corporativistas ou clientelistas.

esta altura é necessário comentar ainda uma possível objeção: até que ponto essa concepção
que estou expondo não configura uma proposta pedagógica tradicional?

E nós sabemos que esse movimento, no nível do ideário, teve grande penetração em nosso
país.

Para encaminhar a resposta à objeção acima formulada, parece-me útil recordar aqui uma
passagem de Gramsci, escrita na mesma época em que no Brasil se lançava o Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova (1932).

Escreveu ele: Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma dada
pelo método Dalton.

Toda escola unitária é escola ativa, se bem que seja necessário limitar as ideologias libertárias
neste campo [...].
Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na qual os elementos da luta contra a escola
mecânica e jesuítica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica: é
necessário entrar na fase “clássica”, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural
para elaborar os métodos e as formas [Gramsci, 1968, p.

Às vezes me dá a impressão de que, passados mais de cinquenta anos, continuamos ainda na


fase romântica.

É a fase em que ocorreu uma depuração, superando-se DERMEVAL SAVIANI 17 os elementos


próprios da conjuntura polêmica e recuperando-se aquilo que tem caráter permanente, isto é,
que resistiu aos embates do tempo.

É nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como clássica, que Kant e Hegel são
clássicos da filosofia, Victor Hugo é um clássico da literatura universal, Guimarães Rosa um
clássico da literatura brasileira etc.

É aí que cabe encontrar a fonte natural para elaborar os métodos e as formas de organização
do conjunto das atividades da escola, isto é, do currículo.

E aqui nós podemos recuperar o conceito abrangente de currículo: organização do conjunto


das atividades nucleares distribuídas no espaço e tempo escolares.

Isso implica dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe gradativamente do seu não
domínio ao seu domínio.

Ora, o saber dosado e sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no espaço


escolar, ao longo de um tempo determinado, é o que nós convencionamos chamar de “saber
escolar”.

Tendo claro que é o fim a atingir que determina os métodos e processos de ensino-
aprendizagem, compreende-se o equívoco da Escola Nova em relação ao problema da
atividade e da criatividade.

Com efeito, a crítica ao ensino tradicional era justa, na medida em que esse ensino perdeu de
vista os fins, tornando mecânicos e vazios de sentido os conteúdos que transmitia.

A partir daí, a Escola Nova tendeu a classificar toda transmissão de conteúdo como mecânica e
todo mecanismo como anticriativo, assim como todo automatismo como negação da
liberdade.

Entretanto, é preciso entender que o automatismo é condição da liberdade e que não é


possível ser criativo sem dominar determinados mecanismos.

Assim, por exemplo, para se aprender a dirigir automóvel é preciso repetir constantemente os
mesmos atos até se familiarizar com eles.

Entretanto, no processo de aprendizagem, tais atos, aparentemente simples, exigiam razoável


concentração e esforço até que fossem fixados e passassem a ser exercidos, por assim dizer,
automaticamente.

mão direita sem se descuidar do volante, que será controlado com a mão esquerda, ao mesmo
tempo que se pressiona a embreagem com o pé esquerdo e, concomitantemente, retira-se o
pé direito do acelerador.
A concentração da atenção exigida para realizar a sincronia desses movimentos absorve todas
as energias.

Portanto, por paradoxal que pareça, é exatamente quando se atinge o nível em que os atos
são praticados automaticamente que se ganha condições de se exercer, com liberdade, a
atividade que compreende os referidos atos.

Por isso, é possível afirmar que o aprendiz, no exercício daquela atividade que é o objeto de
aprendizagem, nunca

As considerações supra podem ser aplicadas em outros domínios, como, por exemplo,
aprender a tocar um instrumento musical etc.

Ora, esse fenômeno está presente também no processo de aprendizagem através do qual se
dá a assimilação do saber sistematizado, como o ilustra, de modo eloquente, o exemplo da
alfabetização.

Também aqui é preciso fixar certos automatismos, incorporá-los, isto é, torná-los parte de
nosso corpo, de nosso organismo, integrá-los em nosso próprio ser.

medida que se vai libertando dos aspectos mecânicos, o alfabetizando pode,


progressivamente, ir concentrando cada vez mais sua atenção no conteúdo, isto é, no
significado daquilo que é lido ou escrito.

A libertação só se dá porque tais aspectos foram apropriados, dominados e internalizados,


passando, em consequência, a operar no interior de nossa própria estrutura orgânica.

processo descrito indica que só se aprende, de fato, quando se adquire um habitus, isto é, uma
disposição permanente, ou, dito de outra forma, quando o objeto de aprendizagem se
converte numa espécie de segunda natureza.

A expressão segunda natureza parece-me sugestiva justamente porque nós, que sabemos ler e
escrever, tendemos a considerar esses atos como naturais.

Um grande escritor atingiu tal domínio da língua que terá dificuldade em compreender os
percalços de um alfabetizando diante de obstáculos que, para ele, inexistem ou, quando
muito, não passam de brincadeira de criança.

Para que ele se converta num bom alfabetizador, será necessário aliar ao domínio da língua

domínio do processo pedagógico indispensável para se passar da condição de analfabeto à


condição de alfabetizado.

O currículo deverá traduzir essa organização dispondo o tempo, os agentes e os instrumentos


necessários para que os esforços do alfabetizando sejam coroados de êxito.

Não é, pois, por acaso que a duração da escola primária é fixada em todos os países em pelo
menos quatro anos.

Pode-se chegar a conseguir decifrar a escrita, a reconhecer os códigos em um ano, assim como
com algumas lições práticas será possível dirigir um automóvel.
Mas do mesmo modo que a interrupção, o abandono do volante antes que se complete a
aprendizagem determinará uma reversão, também isso ocorre com o aprendizado da leitura.

Inversamente, completado o processo, adquirido o habitus, atingida a segunda natureza, a


interrupção da atividade, ainda que por longo tempo, não acarreta a reversão.

Consequentemente, se é possível supor, na escola básica, que a identificação e o


reconhecimento dos mecanismos elementares possam ocorrer no primeiro ano, a fixação
desses mecanismos supõe uma continuidade que se estende por pelo menos mais três anos.

É importante assinalar que essa continuidade se dará através do conjunto do currículo da


escola elementar.

criança passará a estudar ciências naturais, história, geografia, aritmética através da linguagem
escrita, isto é, lendo e escrevendo de modo sistemático.

Em suma, pela mediação da escola, acontece a passagem do saber espontâneo ao saber


sistematizado, da cultura popular à cultura erudita.

Cumpre assinalar, também aqui, que se trata de um movimento dialético, isto é, a ação escolar
permite que se acrescentem novas determinações que enriquecem as anteriores e estas,
portanto, de forma alguma são excluídas.

Assim, o acesso à cultura erudita possibilita a apropriação de novas formas por meio das quais
se podem expressar os próprios conteúdos do saber popular.

Cabe, pois, não perder de vista o caráter derivado da cultura erudita em relação à cultura
popular, cuja primazia não é destronada.

Sendo uma determinação que se acrescenta, a restrição do acesso à cultura erudita conferirá
àqueles que dela se apropriam uma situação de privilégio, uma vez que o aspecto popular não
lhes é estranho.

A recíproca, porém, não é verdadeira: os membros da população marginalizados da cultura


letrada tenderão

que já foi dito aqui a respeito da escola, em que sobressai o aspecto relativo ao conhecimento
elaborado (ciência), parece-me ser válido também para outras modalidades da prática
pedagógica, voltadas precipuamente para outros aspectos, tais como o desenvolvimento da
valorização e simbolização.

Em conclusão: a compreensão da natureza da educação enquanto um trabalho não material,


cujo produto não se separa do ato de produção, permitenos situar a especificidade de
educação como referida aos conhecimentos, ideias, conceitos, valores, atitudes, hábitos,
símbolos sob o aspecto de elementos necessários à formação da humanidade em cada
indivíduo singular, na forma de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e
intencionalmente, através de relações pedagógicas historicamente determinadas que se
travam entre os homens.

partir daí se abre também a perspectiva da especificidade dos estudos pedagógicos (ciência da
educação) que, diferentemente das ciências da natureza (preocupadas com a identificação dos
fenômenos naturais) e das ciências humanas (preocupadas com a identificação dos fenômenos
culturais), preocupa-se com a identificação dos elementos naturais e culturais necessários

dualismo:

A luta pela escola pública obrigatória e gratuita para toda a população tem sido bandeira
constante entre os educadores brasileiros, sobressaindo-se temas sobre funções sociais e
pedagógicas, como a universalização do acesso

Entretanto, têm-se observado, nas últimas décadas, contradições mal resolvidas entre
quantidade e qualidade em relação ao direito à escola, entre aspectos pedagógicos e aspectos
socioculturais, e entre uma visão de escola assentada no conhecimento e outra, em suas
missões sociais.

Ressalta-se, também, a circulação de significados muito difusos para a expressão qualidade de


ensino, seja por razões ideológicas, seja pelo próprio significado que o senso comum atribui ao
termo, dependendo do foco de análise pretendido: econômico, social, político, pedagógico etc.

O próprio campo educacional, nos âmbitos institucional, intelectual e associativo, está longe
de obter um consenso mínimo sobre os objetivos e as funções da escola pública na sociedade
atual.

As interrogações e os embates sobre os objetivos da escola básica, suas formas de


funcionamento e a natureza de suas práticas pedagógicas têm alentado a produção científica
em diferentes posições e enfoques teóricos em que, geralmente, predominam análises de
cunho político e sociológico.

Neste texto, propõe-se uma análise predominantemente pedagógica dos percalços da escola
pública, ainda que amparada em análises sociopolíticas.

A discussão visa destacar o impacto negativo, nos objetivos e nas formas de funcionamento
interno das escolas, das políticas educacionais de organismos internacionais, as quais se
transformaram em cartilhas no Brasil para a elaboração de planos de educação do governo
federal e de governos estaduais e municipais, afetando tanto as políticas de financiamento,
quanto outras como as de currículo, formação de professores, organização da escola, práticas
de avaliação etc.

objetivo do texto é, assim, buscar ligações entre as proposições originariamente emanadas na


Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em 1990, em Jomtien, Tailândia, e
as políticas públicas para a educação básica praticadas nestes vinte anos pelos governos
brasileiros.

A Conferência, que produziu um documento histórico denominado Declaração Mundial da


Conferência de Jomtien, foi a primeira dentre outras conferências realizadas nos anos
seguintes em Salamanca1

,
No Brasil, o primeiro documento oficial resultante da referida Declaração e das demais
conferências foi o Plano Decenal de Educação para Todos (1993- 2003), elaborado no Governo
Itamar Franco.

2007-2010), tais como: universalização do acesso escolar, financiamento e repasse de recursos


financeiros, descentralização da gestão, Parâmetros Curriculares Nacionais, ensino a distância,
sistema nacional de avaliação, políticas do livro didático, Lei de Diretrizes e Bases (Lei no

A hipótese básica a ser desenvolvida aqui é de que estes vinte anos de políticas educacionais
no Brasil, elaboradas a partir da Declaração de Jomtien, selaram o destino da escola pública
brasileira e seu declínio.

A pesquisadora equatoriana Rosa Maria Torres (1996) avaliza essa afirmação quando se refere
ao pacote do Banco Mundial: Sustentamos que o referido pacote e o modelo educativo
subjacente à chamada “melhoria da qualidade da educação”, do modo como foi apresentado e
vem se desenvolvendo, ao invés de contribuir para

qualidade e a eficiência da educação e, 1- A Declaração de Salamanca trata da questão da


educação inclusiva de pessoas com necessidades especiais;

seu titulo completo é Declaração de Salamanca sobre princípios, política e práticas na área das
necessidades educativas especiais (1994).

de maneira específica, os aprendizados escolares na escola pública e entre os setores menos


favorecidos - está, em boa medida, reforçando as tendências predominantes no sistema
escolar e na ideologia que o sustente, ou seja, as condições objetivas e subjetivas que
contribuem para produzir ineficiência, má qualidade e desigualdade no sistema escolar.

127) As análises apresentadas a seguir iniciam-se com a constatação da diversidade e dos


antagonismos de posições sobre os objetivos

as funções da escola no Brasil na atualidade para, em seguida, desvendar, nas políticas oficiais,
um pensamento quase hegemônico sobre as funções da escola assentado nas políticas
educativas do Banco Mundial.

Na segunda parte, após uma caracterização das propostas de escola, ressaltando seu dualismo,
são apontadas possíveis saídas, visando a um consenso mínimo da sociedade sobre os
objetivos e as funções da escola pública.

Dos desacordos sobre os objetivos e as funções da escola aos atrativos da Declaração Mundial
de Jomtien Tem sido constante, nos meios intelectual

institucional do campo da educação, a constatação de um quadro sombrio da escola pública.

São reiteradas as demandas pela ampliação dos recursos financeiros para todos os níveis e
modalidades de ensino.
Há um volume considerável de investigações sobre a situação dos salários e das condições de
trabalho e formação dos professores.

No âmbito das análises internas, presume-se uma crise do papel socializador da escola, já que
ela concorre com outras instâncias de socialização, como as mídias, o mercado cultural, o
consumo

Outros estudos têm mostrado a crescente inquietude dos professores sobre como conseguir a
motivação dos alunos ou como conter atos de indisciplina.

Com bastante frequência, seja devido aos desacordos entre educadores, legisladores e
pesquisadores em relação aos objetivos e às funções da escola, seja pela atração exercida
pelas orientações dos organismos internacionais, muitas das medidas adotadas pelas políticas
oficiais para a educação e o ensino têm o aspecto de soluções evasivas para os problemas
educacionais.

Tais soluções estariam baseadas na ideia de que, para melhorar a educação, bastaria prover
insumos que, atuando em conjunto, incidiriam positivamente na aprendizagem dos alunos
(por exemplo, os ciclos de escolarização, a escola de tempo integral, a progressão continuada,

gratificação financeira a professores, a progressão continuada e, recentemente, a implantação


do Exame Nacional de Ingresso na Carreira Docente), deixando de considerar fatores
intraescolares que mais diretamente estariam afetando a qualidade da aprendizagem escolar
(LIBÂNEO, 2006).

Em face desses problemas, circula no meio educacional uma variedade de propostas sobre as
funções da escola, propostas estas frequentemente antagônicas, indo desde as que pedem o
retorno da escola tradicional, até as que preferem que ela cumpra missões sociais e
assistenciais.

Ambas as posições explicitariam tendências polarizadas, indicando o dualismo da escola


brasileira em que, num extremo, estaria a escola assentada no conhecimento, na
aprendizagem e nas tecnologias, voltada aos filhos dos ricos, e, em outro, a escola do
acolhimento social, da integração social, voltada aos pobres e dedicada, primordialmente,

uma escola a “duas velocidades”: por um lado, uma escola concebida essencialmente como
um centro de acolhimento social, Educação e Pesquisa, São Paulo, v.

64) Nas considerações a seguir, busca-se demonstrar que a escola para o acolhimento social
tem sua origem na Declaração Mundial sobre Educação para Todos, de 1990, e em outros
documentos produzidos sob o patrocínio do Banco Mundial, nos quais é recorrente o
diagnóstico de que a escola tradicional está restrita a espaços e tempos precisos, sendo
incapaz de adaptar-se a novos contextos

e
Além disso, o insucesso da escola tradicional decorreria de seu modo de funcionar, pois ela
está organizada com base em conteúdos livrescos, exames e provas, reprovações e relações
autoritárias.

Busca-se, então, outro tipo de escola, abrindo espaços e tempos que venham atender às
necessidades básicas de aprendizagem (reduzidas, como veremos adiante, a necessidades
mínimas), tomadas como eixo do desenvolvimento humano.

Nessa perspectiva, a escola se caracterizará como lugar de ações socioeducativas mais amplas,
visando ao atendimento das diferenças individuais e sociais e à integração social.

Com apoio em premissas pedagógicas humanitárias, concebeuse uma escola que primasse,
antes de tudo, pela consideração das diferenças psicológicas de ritmo de aprendizagem e das
diferenças sociais

culturais, pela flexibilização das práticas de avaliação escolar e pelo clima de convivência –
tudo em nome da intitulada educação inclusiva.

Marília Gouvea de Miranda (2005) assinala a principal mudança na educação de massas em


decorrência das reformas educativas neoliberais iniciadas por volta de 1980.

Segundo ela, [...] a escola constituída sob o princípio do conhecimento estaria dando lugar a
uma escola orientada pelo princípio da socialidade.

escola organizada em ciclos se situa como um tempo/espaço destinado à convivência dos


alunos, à experiência da socialidade, distinguindo-se dos conceitos de socialização e de
desenvolvimento da sociabilidade tratados pela sociologia e psicologia.

641) Assim, não se trata mais de manter aquela velha escola assentada no conhecimento, isto
é, no domínio dos conteúdos, mas de conceber uma escola que valorizará formas de
organização das relações humanas nas quais prevaleçam a integração social, a convivência
entre diferentes, o compartilhamento de culturas, o encontro e a solidariedade entre as
pessoas.

Em texto de 2004, José Carlos Libâneo associava o sistema de ciclos a uma escola identificada
mais como “lugar de encontro e compartilhamento entre as pessoas em que [...] sejam
acolhidos seus ritmos, suas diferenças” (p.

19) do que como espaço propiciador de condições para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e
moral dos alunos.

Lido sem intenção crítica e sem a necessária contextualização, esse documento apresenta um
conteúdo muito atraente, chegando a surpreender

Considere-se, por exemplo, o artigo 1º – Satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem:


Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as
oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem.

solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos,


habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam sobreviver,
desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar
plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões
fundamentadas e continuar aprendendo.

(WCEFA, 1990) Nos tópicos seguintes da Declaração, são definidas estratégias bastante
aceitáveis na direção de uma educação para todos: a) satisfazer as necessidades básicas de
aprendizagem para todos;

e) fortalecer alianças (autoridades públicas, professores, órgãos educacionais e demais órgãos


de governo, organizações governamentais e não governamentais, setor privado, comunidades
locais, grupos religiosos, famílias).

Tão boas intenções parecem, à primeira vista, compatíveis com uma desejada visão
democrática da escola para todos e até com uma visão renovada das políticas educativas.

No entanto, esses conceitos necessitam ser examinados com base nas políticas globais
definidas pelos organismos internacionais para os países pobres (BIRD, PNUD, BID, UNESCO,
UNICEF), de modo a obter o significado contextualizado de tais termos.

No entanto, a análise 2- O termo educação básica deve ser lido como educação fundamental,
ensino fundamental, ou seja, o nível mais elementar de ensino.

Torres (2001) esclarece em seu texto que, ao longo das avaliações e revisões da Declaração em
conferências e reuniões subsequentes entre os organismos internacionais e os países
envolvidos, a proposta original foi encolhida,

Desse modo, a visão ampliada de educação converteu-se em uma visão encolhida, ou seja: a)
de educação para todos, para educação dos mais pobres;

c) da atenção à aprendizagem, para a melhoria e a avaliação dos resultados do rendimento


escolar;

d) da melhoria das condições de aprendizagem, para a melhoria das condições internas da


instituição escolar (organização escolar) (p.

Numa análise pedagógica dessas estratégias, verifica-se, tal como alerta Torres (2001), que as
necessidades básicas de aprendizagem transformaram-se num “pacote restrito e elementar de
destrezas úteis para a sobrevivência e para as necessidades imediatas

prover conhecimentos ligados à realidade imediata do aluno, utilizáveis na vida prática (como
acreditam, também, algumas concepções mais simplistas da ligação do ensino à vida
cotidiana).

Em síntese, a aprendizagem transforma-se numa mera necessidade natural, numa visão


instrumental desprovida de seu caráter cognitivo, desvinculada do acesso a formas superiores
de pensamento.

Coraggio (1996) mostra que as políticas sociais do Banco Mundial visam ao investimento no
desenvolvimento das pessoas, “garantindo que todos tenham acesso a um mínimo de
educação, saúde, alimentação, saneamento” (p.
Ou seja, as políticas sociais são elaboradas para instrumentalizar a política econômica, “em
contradição com os objetivos declarados” (p.

modo economicista com que se usa essa teoria (da análise econômica) para derivar
recomendações, contribui para introjetar e institucionalizar os valores do mercado capitalista
na esfera da cultura,

95) As análises de Torres e de Coraggio explicam a versão encolhida da Declaração de Jomtien


adotada por boa parte dos países em vias de desenvolvimento.

Têm-se, assim, traços básicos das políticas para a educação do Banco Mundial: a) reducionismo
economicista, ou seja, definição de políticas e estratégias baseadas na análise econômica;

b) o desenvolvimento socioeconômico necessita da redução da pobreza no mundo, por meio


da prestação de serviços básicos aos pobres (saúde, educação, segurança etc.) como condição
para torná-los mais aptos

educação escolar reduz-se a objetivos de aprendizagem observáveis, mediante formulação de


padrões de rendimento (expressos em competências) como critérios da avaliação em escala;

na execução para os sistemas de ensino, mas centralização das formas de aplicação das
avaliações (cujos resultados acabam por transformarem-se em mecanismos de controle do
trabalho das escolas e dos professores).

satisfação das necessidades básicas de aprendizagem conduz ao desenvolvimento humano,


cujos índices são aferidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Na Declaração de Jomtien, o conceito de aprendizagem refere-se à aquisição de capacidades,


atitudes e comportamentos necessários à vida, nos quais se “incluem leitura, escrita, cálculo,
técnicas, valores a atitudes que necessitam os seres humanos para sobreviver” (p.

Além disso, o autor afirma que “a educação básica deve centrarse nas aquisições e nos
resultados efetivos da aprendizagem” (p.

222), antecipando a ideia de avaliação em escala com base em competências mínimas


estabelecidas pelo sistema de ensino

idéia do Desenvolvimento Humano é mais exeqüível aos indivíduos e não exclusivamente à


sociedade e, neste sentido, já não se trata da ênfase no desenvolvimento econômico em geral
mas no desenvolvimento dos indivíduos em que cada um se reconhece como portador de um
desenvolvimento, como propriedade intrínseca do individuo.

O foco das políticas sociais deve ser o ser humano como recurso mais importante, pois se trata
de sujeito que deseja e consome, portanto suscetível de ingressar no mercado.

Eis, então, que o conceito de aprendizagem como necessidade natural, como incorporação de
competências mínimas para sobrevivência social, torna-se pré-requisito para o
desenvolvimento humano e social.
Afirma o autor: Este novo paradigma se sustenta em uma visão “realista”, ou melhor,
economicista, da educação, apresentada como necessidade “natural” que responde a leis
definidas

educação como necessidade, fica reduzida a uma simples pulsão natural, perdendo seu caráter
de acontecimento cultural em que intervém o pensamento, a linguagem,

A educação deixa de ser, assim, um assunto da cultura para ser um serviço desprovido de
política e de história, reduzindo seu papel à aquisição de competências de aprendizagem.

ideia do protagonismo da aprendizagem e a desvalorização do ensino que tomaram conta das


concepções de escola de muitos educadores, não apenas os dirigentes de órgãos públicos, mas
também vários segmentos da intelectualidade do campo da educação.

política do Banco Mundial para as escolas de países pobres assume duas características
pedagógicas: atendimento a necessidades mínimas de aprendizagem e espaço de convivência
e acolhimento social.

Com isso, produz-se, nos sistemas de ensino, o que Nóvoa (2009) chamou de transbordamento
de objetivos, em que os objetivos assistenciais se sobrepõem aos objetivos de aprendizagem.

Conclui-se, assim, que a escola passa a assumir as seguintes características: a) conteúdos de


aprendizagem entendidos como competências e habilidades mínimas para a sobrevivência e o
trabalho (como um kit de habilidades para a vida);

b) avaliação do rendimento escolar por meio de indicadores de caráter quantitativo, ou seja,


independentemente de processos de aprendizagem e formas de aprender;

c) aprendizagem de valores e atitudes requeridos pela nova cidadania (ênfase na sociabilidade


pela vivência de ideais de solidariedade e participação no cotidiano escolar).

Destaca-se, nesse terceiro item, o papel socializador da escola mediante a promoção da


equidade social, o respeito às diferenças e a solidariedade com o próximo.

Mas Ialê Falleiros (2005) mostra a verdadeira tarefa da escola na visão das agências financeiras
internacionais: ensinar as futuras gerações a exercer uma cidadania de ‘qualidade nova’, a
partir da qual o espírito de competitividade seja desenvolvido em paralelo ao espírito de
solidariedade.

Assim, ocorre uma renúncia, uma negação da expectativa de divisão de classes e há um


ajustamento para uma atitude ‘cidadã’ que diminua as diferenças e

novo paradigma supõe, também, um novo papel do professor, ou seja, da mesma forma que,
para os alunos, oferece-se um kit de habilidades para sobrevivência, oferecese ao professor
um kit de sobrevivência docente (treinamento em métodos e técnicas, uso de livro didático,
formação pela EaD).

A posição do Banco Mundial é pela formação aligeirada de um professor tarefeiro, visando


baixar os custos do pacote formação/ capacitação/salário.
que as políticas educacionais pós- -Jomtien promovidas e mantidas pelo Banco Mundial
escondem, portanto, é o que diversos pesquisadores chamaram de educação para a
reestruturação capitalista, ou educação para a sociabilidade capitalista.

As análises mais críticas dessas reformas educacionais são unânimes em afirmar que o pacote
de reformas imposto aos países pobres gerou Educação e Pesquisa, São Paulo, v.

21 um verdadeiro pensamento único no campo das políticas educacionais, incluindo governos


populares como o brasileiro, conforme se verá a seguir.

Brasil, vinte anos de políticas educativas do Banco Mundial: o pensamento hegemônico oficial
sobre as funções da escola Os problemas da escola pública brasileira não são novos, mas há
décadas desafiam órgãos públicos, pesquisadores nas áreas das ciências humanas e sociais,
movimentos sociais ligados

No entanto, nos últimos anos, também no Brasil os discursos sobre as funções da escola vêm
manifestando um raciocínio reiterativo, a saber: o insucesso da escola pública deve-se ao fato
de ela ser tradicional, estar baseada no conteúdo, ser autoritária e, com isso, constituir-se
como uma escola que reprova, exclui os mal-sucedidos, discrimina os pobres, leva ao
abandono da escola e à resistência violenta dos alunos etc.

Tal como aparece nos documentos dos organismos internacionais, é preciso um novo modelo
de escola, novas práticas de funcionamento.

Os anos 1990 demarcam a chegada efetiva do neoliberalismo no Brasil, coincidindo com os


primeiros ensaios da reforma educativa brasileira surgidos já no Governo Itamar Franco,
quando foi elaborado o Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003), que é
praticamente uma reprodução da Declaração de Jomtien.

- Satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem das crianças, jovens e adultos, provendo-


lhes as competências fundamentais requeridas para plena participação na vida econômica,
social, política e cultural do País, especialmente as necessidades do mundo do trabalho: a)
definindo padrões de aprendizagem a serem alcançados nos vários ciclos, etapas e/ou séries
da educação básica e garantindo oportunidades a todos de aquisição de conteúdos c
competências básicas:

no domínio cognitivo: incluindo habilidades de comunicação e expressão oral e escrita, de


cálculo e raciocínio lógico, estimulando a criatividade, a capacidade decisória, habilidade na
identificação e solução de problemas e, em especial, de saber como aprender;

no domínio da sociabilidade: pelo desenvolvimento de atitudes responsáveis, de


autodeterminação, de senso de respeito ao próximo e de domínio ético nas relações
interpessoais e grupais.

É notória a assunção do papel da escola como atendimento de necessidades mínimas de


aprendizagem e de espaço de convivência e acolhimento social.

A proposta economicista e tecnicista do Plano Decenal ganhou mais concretude durante o


Governo FHC, quando foi implantada a maior parte das medidas vinculadas à reforma
educacional do período em questão, inclusive os Parâmetros Curriculares Nacionais.
Além das novas orientações curriculares, outras medidas foram implantadas desde 1990,
estando, de alguma forma, relacionadas às orientações do Banco Mundial;

Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), depois Fundo de Manutenção e


Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb),
a avaliação em escala do sistema de ensino, os ciclos de escolarização, a política do livro
didático, a inclusão de pessoas com deficiências em escolas regulares e a escola fundamental
de nove anos (LIBÂNEO, 2006).

É verdade que parte dessas medidas ligadas à reorganização das estruturas de funcionamento
das 22 José Carlos Libâneo.

Diversos estudos realizados entre nós sobre os ciclos de escolarização, por exemplo, mostram
que temas como progressão continuada e promoção automática eram discutidos no Brasil
desde os anos 1950 e que, entre os anos 1960 e 1970, vários Estados brasileiros introduziram
inovações associadas ao regime de ciclos escolares até chegarem à organização dos ciclos
propriamente ditos no início dos anos 1990 (BARRETTO;

No entanto, há razões para ligar a introdução do sistema de ciclos às políticas educacionais de


atendimento à pobreza.

Elba Siqueira de Sá Barretto e Eleny Mitrulis (2001) mencionam que as iniciativas de adoção
dos ciclos escolares por volta dos anos 1980, inspiradas no sistema de avanços progressivos
adotado nas escolas básicas dos Estados Unidos e da Inglaterra, tinham propósitos explícitos
de promoção social de todos os indivíduos.

Nesses países a progressão escolar nos grupos de idade homogênea foi historicamente
considerada, antes de tudo, como uma progressão social a que todos os indivíduos,
indiscriminadamente, tinham direito mediante a freqüência às aulas, independentemente das
diferenças de aproveitamento que apresentassem.

30) As autoras observam que, por ocasião da reforma educativa na Inglaterra, nos anos 1990, a
alunos com dificuldades escolares, geralmente de origem popular, eram oferecidas tarefas
escolares menos desafiadoras, subestimando-se sua capacidade de progredir
intelectualmente.

Desse modo, o aluno pode ser relegado, pelo próprio aparato institucional, a um ensino mais
pobre, que lhe cerceia posteriormente

35) Analisando uma proposta brasileira de 1994 de implantação de ciclos de formação, em que
se privilegia a função social da escola,

A lógica dos conteúdos cedeu lugar a uma lógica de formação do aluno a partir de experiências
educativas, em que se articulavam conhecimentos já adquiridos por vivências pessoais,
conhecimentos provenientes dos diferentes campos do saber e temas de relevância social, em
um processo de contextualização e integração que visava ao desenvolvimento de
individualidades capazes de pensamento crítico e autonomia intelectual.

35) Há razões, assim, para crer que a Declaração Mundial sobre Educação para Todos
confirmou tendências anteriores ao enfatizar, como função social específica da escola, a
socialização e a convivência social, colocando em segundo plano a aprendizagem dos
conteúdos.

As ações organizacionais e curriculares nessa direção, desde 1990, foram absorvidas quase que
integralmente nos oito anos do Governo Lula, incluindo-se ainda outras formuladas nesse
mesmo governo, como o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), a consolidação da
formação de professores a distância, o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, o
aprimoramento das avaliações em escala do ensino fundamental e superior (Sistema de
Avaliação da Educação Básica

23 sociopolítica em que se denuncia seu caráter economicista e pragmático, estando ausentes


análises do ponto de vista pedagógico-didático, ou seja, análises sobre como essas políticas
induzem objetivos para a escola e concepções de ensino e aprendizagem, com repercussões
nas práticas de gestão pedagógica e curricular

escola que sobrou para os pobres Constata-se, assim, que, com apoio em premissas
pedagógicas humanistas por trás das quais estão critérios econômicos, formulou-se uma
escola de respeito às diferenças sociais e culturais, às diferenças psicológicas de ritmo de
aprendizagem, de flexibilização das práticas de avaliação escolar – tudo em nome da educação
inclusiva.

o problema está na distorção dos objetivos da escola, ou seja, a função de socialização passa a
ter apenas o sentido de convivência, de compartilhamento cultural, de práticas de valores
sociais, em detrimento do acesso à cultura e à ciência acumuladas pela humanidade.

Não por acaso, o termo igualdade (direitos iguais para todos) é substituído por equidade
(direitos subordinados à diferença).

Segundo ele, a visão de educação imposta por organismos internacionais produz o


ocultamento da dimensão cultural e humana da educação, à medida que se dissolve a relação
entre o direito das crianças e jovens de serem diferentes culturalmente e, ao mesmo tempo,
semelhantes em termos de dignidade e reconhecimento humano.

Ele conclui: “Desse modo, a redução da educação ao estatuto de mercadoria resultante do


neoliberalismo ameaça

Com isso, Charlot ressalta, aumentam os índices de escolaridade, mas se agravam as


desigualdades sociais de acesso ao saber, pois à escola pública é atribuída a função de incluir
populações excluídas ou marginalizadas pela lógica neoliberal, sem que os governos lhe
disponibilizem investimentos suficientes, bons professores e inovações pedagógicas.

Eis as consequências dessa política: os jovens são cada vez mais escolarizados em instituições
diferentes, dependendo do status econômico de seus pais.

Com isso, à escolarização de base [...] perseguida por muito tempo, segue-se um fracasso em
massa dos alunos, com iletrismo, abandonos repetências, etc.
144) Assim, a escola que sobrou para os pobres, caracterizada por suas missões assistencial e
acolhedora (incluídas na expressão educação inclusiva), transforma-se em uma caricatura de
inclusão social.

As políticas de universalização do acesso acabam em prejuízo da qualidade do ensino, pois,


enquanto se apregoam índices de acesso à escola, agravamse as desigualdades sociais do
acesso ao saber, inclusive dentro da escola, devido ao impacto dos fatores intraescolares na
aprendizagem.

Isso pode explicar o descaso com os salários e com a formação de professores: para uma
escola que requer apenas necessidades mínimas de aprendizagem, basta um professor que
apreenda um kit de técnicas de sobrevivência docente (agora acompanhado dos pacotes de
livros didáticos dos chamados sistemas de ensino).

As reformas educativas jogaram todo o peso das supostas inovações escolares para a redução
da pobreza em medidas externas, como

professores etc., deixando de investir nas ações pedagógicas no interior da escola para um
enfrentamento pedagógico-didático dos mecanismos de seletividade e exclusão.

É inevitável, aqui, constatar o fracasso dos cursos de formação de professores para os anos
iniciais do ensino fundamental (LIBÂNEO, 2010b).

O que lhes foi oferecido foi uma escola sem conteúdo e com um arremedo de acolhimento
social e socialização, inclusive na escola de tempo integral.

O que se anunciou como novo padrão de qualidade transformouse num arremedo de


qualidade, pois esconde mecanismos internos de exclusão ao longo do processo de
escolarização, antecipadores da exclusão na vida social.

formação cultural e científica com as práticas socioculturais em que se manifestam diferenças,


valores e formas de conhecimento local e cotidiano

luta política e profissional pelas conquistas sociais – entre elas, o ensino público – é um dever
ético dos educadores.

Escreve Potyara Pereira (2000): Sem a existência de referências teórico- -conceituais


alternativas, coerentes e consistentes, dificilmente se consegue contra- -arrestar a “retórica da
intransigência” do pensamento reacionário de que nos fala Hirschman, que rotula de fútil,
ameaçadora ou defasada toda e qualquer intenção progressista de sobrepor às aspirações
desmedidas do mercado as necessidades humanas.

Dificilmente, também, se desmontam os argumentos, aparentemente corretos, de neoliberais


e neoconservadores, de que é mais democrático e justo atender a demandas e preferências
individuais através do mercado, do que necessidades sociais por meio de instituições coletivas,
incluindo o Estado como garantia de direitos.

183) Em estudos recentes, Libâneo (2006, 2010a) vem discutindo duas orientações
pedagógicas no campo progressista da educação em relação a objetivos e formas de
organização das práticas educativas escolares.
Uma delas atribui prevalência à formação cultural e científica, em que se valoriza o domínio,
pelos alunos, dos saberes sistematizados como base para o desenvolvimento cognitivo e a
formação da personalidade, por meio da atividade de aprendizagem socialmente mediada.

As teorias da formação cultural e científica abrangem as pedagogias voltadas para a formação


do pensamento conceitual

A outra orientação valoriza experiências socioculturais vividas em situações educativas (cultivo


da diversidade, práticas de compartilhamento sociocultural, ênfase no cotidiano etc.),
obviamente com objetivos formativos.

Teorias ligadas a essa orientação incluem, ao menos, algumas orientações teóricas do


movimento mundial da educação nova,

As duas abordagens buscam objetivos formativos em torno de uma mesma questão: o que se
espera que a escola faça para formar cidadãos educados e críticos, aptos a participar da vida
em sociedade, e como fazer isso.

25 no entanto, são distintos e disputam as preferências de intelectuais no campo investigativo


e de dirigentes de sistemas educacionais no campo institucional, determinando diferentes
escolhas em relação às funções da escola e às suas formas de funcionamento pedagógico-
didático

Será possível conciliar posições relativistas em que os valores e práticas são produtos
socioculturais e, portanto, decorrentes do modo de pensar e agir de grupos sociais
particulares, com a exigência social de prover a cultura geral, acessível a todos,
independentemente de contextos particulares?

A aposta que se faz aqui é de que possíveis acordos em torno de propósitos educativos e
meios de ação pedagógica implicam admitir, como princípio, a universalidade da cultura
escolar.

À escola caberia assegurar, a todos, em função da formação geral, os saberes públicos que
apresentam um valor, independentemente de circunstâncias e interesses particulares;

junto a isso, caberia a ela considerar a coexistência das diferenças e a interação entre
indivíduos de identidades culturais distintas, incorporando, nas práticas de ensino, as práticas
socioculturais.

Desse ponto de partida, surgiria uma pauta comum de ação em torno da função nuclear da
escola: assegurar a qualidade e a eficácia dos processos de ensino e aprendizagem na
promoção dos melhores resultados de aprendizagem dos alunos.

Para isso, os legisladores, planejadores e gestores do sistema escolar, bem como os


pesquisadores do campo educacional, precisariam prestar mais atenção, também, aos
aspectos pedagógico-didáticos da qualidade de ensino, isto é, aos fatores intraescolares da
aprendizagem escolar em que estão implicados os professores e pedagogos especialistas.
texto teve o propósito de apanhar, nos estudos consultados, pistas de que as políticas
educacionais brasileiras dos últimos vinte anos pautaram-se no princípio da satisfação de
necessidades mínimas de aprendizagem com vistas à promoção do desenvolvimento humano,
em consonância com o conjunto das políticas sociais formuladas pelas agências internacionais
para a redução da pobreza.

Conforme anunciado, o que se produziu foi uma análise pedagógica das políticas do Banco
Mundial, de forma a identificar os objetivos e as funções pretendidas para a escola em relação
ao ensino

Com efeito, os documentos revelam uma visão ao mesmo tempo restrita e ampliada de
aprendizagem expressa nesta assertiva: cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deverá
aproveitar as oportunidades educativas destinadas a satisfazer suas necessidades básicas de
aprendizagem (WCEFA, 1990).

Uma visão restrita, pois, ao longo do documento, a noção de aprendizagem vai-se firmando
em torno da ideia de aprendizagens mínimas, como aquisição de competências básicas para a
sobrevivência social;

visão ampliada, no sentido de não se restringir à aprendizagem escolar e cognitiva, abrindo-se


para outros espaços e tempos, inclusive para vivências de acolhimento da diversidade e para
uma aprendizagem ao longo da vida (no sentido de uma educação permanente).

Por um lado, a noção mais restrita confina a aprendizagem numa mera necessidade natural,
desprovida de seu caráter cultural e cognitivo;

por outro, a noção ampliada dissolve o papel do ensino, destituindo a possibilidade de


desenvolvimento pleno dos indivíduos, já que crianças e jovens acabam obrigados a aceitar
escolas enfraquecidas, um ensino reduzido às noções mínimas, professores mal preparados,
mal pagos, humilhados e desiludidos.

de seus seguidores, postula que o papel da escola é prover aos alunos a apropriação da 26
José Carlos Libâneo.

cultura e da ciência acumuladas historicamente, como condição para seu desenvolvimento


cognitivo, afetivo e moral, e torná-los aptos

Nessa condição, a escola é uma das mais importantes instâncias de democratização social e de
promoção da inclusão social, desde que atenda

As mudanças no modo de ser e de agir decorrentes de aprendizagem dependem de mediação


do outro pela linguagem, formando dispositivos internos orientadores da personalidade.

Tal como expressa Vygotsky, trata-se de uma reconstrução individual da cultura num processo
de interação com outros indivíduos: o que inicialmente são processos interpsíquicos converte-
se em processos intrapsíquicos.

Pelo ensino, opera-se a mediação das relações do aluno com os objetos de conhecimento,
criando condições para a formação de capacidades cognitivas por meio do processo mental do
conhecimento presente nos conteúdos escolares, em associação com formas de interação
social nos processos de aprendizagem lastreados no contexto sociocultural (LIBÂNEO, 2009).

Essa posição tem correspondência com o lema cunhado por Gimeno Sacristán (2000): uma
escolarização igual, para sujeitos diferentes, por meio de um currículo comum.

jovens, em condições iguais, o acesso aos conhecimentos da ciência, da cultura e da arte, bem
como o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e a formação da cidadania.

No entanto, falar de igualdade é considerar, ao mesmo tempo, a diferença, pois, se a escola


recebe sujeitos muito diferentes entre si, ela precisa enfrentar a realidade da diversidade
como condição para ser integradora de todos.

mundialização-solidariedade implica uma escola que faça funcionar, ao mesmo tempo, os dois
princípios, o da diferença cultural e o da identidade dos sujeitos enquanto seres humanos, ou
seja, os princípios do direito à diferença e do direito à semelhança.

[...] A diferença só é um direito se for afirmada com base na similitude, na universalidade do


ser humano.

136) Em síntese, trata-se, por um lado, de uma escola que visa à formação cultural e científica,
isto é, ao domínio do saber sistematizado mediante o qual se promove o desenvolvimento de
capacidades intelectuais, como condição de assegurar o direito à semelhança, à igualdade.

Por outro, é preciso considerar que essa função primordial da escola – a formação cultural e
científica – destina-se a sujeitos diferentes, já que a diferença não é uma excepcionalidade da
pessoa humana, mas condição concreta do ser humano e das situações educativas.

É claro que a escola pode, por um imperativo social e ético, cumprir algumas missões sociais e
assistenciais (a escola convive com pobreza, fome, maus tratos, consumo de drogas, violência
etc.), mas isso não pode ser visto como sua tarefa e sua função primordiais, mesmo porque a
sociedade também precisa fazer sua parte nessas missões sociais e assistenciais.

Ultimo texto:

Algumas Ilusões da Assim Chamada Sociedade do Conhecimento niciarei este artigo


defendendo a tese de que a assim chamada pedagogia das competências é integrante de uma
ampla corrente educacional contemporânea, a qual chamarei de pedagogias do “aprender a
aprender”, já há algum tempo venho desenvolvendo estudos acerca dessas pedagogías, por
meio de uma pesquisa de cunho teórico-bibliográfico que realizo com apoio do CNPq, pesquisa
essa intitulada O construtivismo: suas muitas faces, suas filiações e suas interfaces com outros
modismos.

Philippe Perrenoud, em seu livro Construir as competências desde a escola, afirma que “a
abordagem por competências junta-se às exigências da focalização sobre o aluno, da
pedagogia diferenciada e dos métodos ativos” (Perrenoud, 1999, p.

Convém lembrar que a expressão métodos ativos é utilizada como referência às idéias
pedagógicas que tiveram sua origem no movimento escolanovista.
Alguns parágrafos mais adiante, nesse mesmo livro, Perrenoud afirma que “a formação de
competências exige uma pequena ‘revolução cultural’ para passar de uma lógica do ensino
para uma lógica do treinamento (coaching), baseada em um postulado relativamente simples:
constroem-se as competências exercitando-se em situações

Esse aprender a aprender é, portanto, também um aprender fazendo, isto é, learning by doing,
na clássica formulação da pedagogia de John Dewey.

Perrenoud expressou-se da seguinte maneira na entrevista que deu à Revista Nova Escola no
ano de 2000: Para desenvolver competências é preciso, antes de tudo, trabalhar por
problemas e projetos, propor tarefas complexas e desafios que incitem os alunos a mobilizar
seus conhecimentos e, em certa medida, completá-los.

Isso pressupõe uma pedagogia ativa, cooperativa, aberta para a cidade ou para o bairro, seja
na zona urbana ou rural.

Citei essa passagem de Perrenoud para mostrar que não se trata de uma rotulação apressada
de minha parte, a inclusão da pedagogia das competências no grupo das pedagogias do
aprender a aprender, com o construtivismo, a Escola Nova, os estudos na linha do "professor
reflexivo" etc.

Ao investigar em minha pesquisa as interfaces entre o construtivismo e outros modismos


educacionais, tenho chegado ao estabelecimento de elos de ligação entre ideários
pedagógicos normalmente vistos por boa parte dos educadores brasileiros como ideários
pertencentes a universos distintos.

Tendo em vista os objetivos deste trabalho, passarei diretamente ao seu tema central, isto é,
as relações entre “as pedagogias do ‘aprender a aprender’ e algumas ilusões da assim
chamada sociedade do conhecimento".

7 Mas para estabelecer relações entre as ilusões da sociedade do conhecimento e as


pedagogias do “aprender a aprender”

Para isso retomarei aqui algumas das considerações que teci sobre esse tema em meu livro
Vigotski e o “aprender a aprender crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria
vigotskiana (Duarte, 2000a).

Nesse livro analisei a presença do lema “aprender a aprender” em dois documentos da área
educacional: o primeiro, relativo à educação em âmbito mundial, é o relatório da comissão
internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), conhecido como Relatório Jacques Delors, presidente da comissão (Delors, 1998);

o segundo, o capítulo “Princípios e fundamentos dos parâmetros curriculares nacionais”, do


volume I, “Introdução", dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) das séries iniciais do
Ensino Fundamental (Brasil, 1997, pp.

primeiro posicionamento pode ser assim formulado: são mais desejáveis as aprendizagens que
o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais está ausente a transmissão, por outros indivíduos,
de conhecimentos e experiências.
Esse autor chega mesmo a apresentar o “aprender a aprender” como a finalidade última da
educação em uma perspectiva construtivista: Numa perspectiva construtivista, a finalidade
última da intervenção pedagógica é contribuir para que o aluno desenvolva a capacidade de
realizar aprendizagens significativas por si mesmo numa ampla gama de situações e
circunstâncias, que o aluno “aprenda a aprender" [Coll, 1994, p.

Nessa perspectiva, aprender sozinho contribuiria para o aumento da autonomia do indivíduo,


enquanto aprender como resultado de um processo de transmissão por outra pessoa seria
algo que não produziria a autonomia e, ao contrário, muitas vezes até seria um obstáculo para
alcançá-la.

Não discordo da afirmação de que a educação escolar deva desenvolver no indivíduo a


autonomia intelectual, a liberdade de pensamento e de expressão, a capacidade e a iniciativa
de buscar por si mesmo novos conhecimentos.

Mas o que estou aqui procurando analisar é outra coisa: trata-se do fato de que as pedagogias
do “aprender a aprender” estabelecem uma hierarquia valorativa, na qual aprender sozinho
situa-se em um nível mais elevado que o da aprendizagem resultante da transmissão de
conhecimentos por alguém.

Ao contrário desse princípio valorativo, entendo ser possível postular uma educação que
fomente a autonomia intelectual e moral por meio da transmissão das formas mais elevadas e
desenvolvidas do conhecimento socialmente existente.

segundo posicionamento valorativo pode ser dessa forma formulado: é mais importante o
aluno desenvolver um método de aquisição, elaboração, descoberta, construção de
conhecimentos, que esse aluno aprender os conhecimentos que foram descobertos e
elaborados por outras pessoas.

Esse segundo posicionamento valorativo não pode ser separado do primeiro, pois o indivíduo
só poderia adquirir o método de investigação, só poderia “aprender a aprender” por meio de
uma atividade autônoma.

Em uma conferência proferida em 1947, intitulada “O desenvolvimento moral do adolescente


em dois tipos de sociedade: sociedade primitiva e sociedade 'moderna’”, Piaget defendeu tal
idéia ao contrapor a transmissão de conhecimentos existentes ao oferecimento de condições
que permitam ao aluno construir suas próprias verdades: AS PEDAGOGIAS DO "APRENDER
AAPRENDER”...

problema da educação internacional é, portanto, essencialmente o de direcionar o


adolescente não para soluções prontas, mas para um método que lhe permita construí-las por
conta própria.

A esse respeito, existem dois princípios fundamentais e correlacionados dos quais toda
educação inspirada pela psicologia não poderia se afastar: I ) que as únicas verdades reais são
aquelas construídas livremente

Também a formação humanados indivíduos é prejudicada quando verdades, que poderiam


descobrir sozinhos, lhes são impostas de fora, mesmo que sejam evidentes ou matemáticas:
nós os privamos então de um método de pesquisa que lhes teria sido bem mais útil para
a

166, grifo meu], São, portanto, duas idéias intimamente associadas: I ) aquilo que o indivíduo
aprende por si mesmo é superior, em termos educativos e sociais, àquilo que ele aprende por
meio da transmissão por outras pessoas e 2) o método de construção do conhecimento é mais
importante que o conhecimento já produzido socialmente.

terceiro posicionamento valorativo seria o de que a atividade do aluno, para ser


verdadeiramente educativa, deve ser impulsionada e dirigida pelos interesses e necessidades
da própria criança.

A diferença entre esse terceiro posicionamento valorativo e os dois primeiros consiste em


ressaltar que, além do aluno buscar por si mesmo o conhecimento e nesse processo construir
seu método de conhecer, é preciso também que

pria atividade do aluno, ou seja, é preciso que a educação esteja inserida de maneira funcional
na atividade da criança, na linha da concepção de educação funcional de Claparède ( 1954).

quarto posicionamento valorativo é o de que a educação deve preparar os indivíduos para


acompanharem a sociedade em acelerado processo de mudança, ou seja, enquanto a
educação tradicional seria resultante de sociedades estáticas, nas quais a transmissão dos
conhecimentos e tradições produzidos pelas gerações passadas era suficiente para assegurar a
formação das novas gerações, a nova educação deve pautar-se no fato de que vivemos em
uma sociedade dinâmica, na qual as transformações em ritmo acelerado tomam os
conhecimentos cada vez mais provisórios, pois um conhecimento que hoje é tido como
verdadeiro pode ser superado em poucos anos ou mesmo em alguns meses.

O indivíduo que não aprender a se atualizar estará condenado ao eterno anacronismo, à


eterna defasagem de seus conhecimentos.

Uma versão contemporânea desse posicionamento aparece no livro do autor português Vrtor
da Fonseca, intitulado Aprender a aprender: a educabilidade cognitiva (Fonseca, 1998).

Ao abordar as mudanças na economia global e suas implicações para uma formação de


recursos humanos que esteja à altura dos desafios do século XXI, esse autor afirma o seguinte:

miopia gerencial e arrogante e a resistência à mudança, que paira em grande parte no sistema
produtivo, devem dar lugar à aprendizagem, ao conhecimento, ao pensar, ao refletir e ao
resolver novos desafios da atividade dinâmica que caracteriza a economia global dos tempos
modernos.

Tal mundialização da economia só se identifica com uma gestão do imprevisível e da


excelência, gestão essa contra a rotina, contra a mera redução de custos e contra a simples
manutenção.

Em vez de se situarem numa perspectiva de trabalho seguro e estático, durante toda a vida, os
empreAS PEDAGOGIAS DO "APRENDER A APRENDER" 11 sários e os trabalhadores devem cada
vez mais investir no desenvolvimento do seu potencial de adaptabilidade e de
empregabilidade, o que é algo substancialmente diferente do que se tem praticado.
O êxito do empresário e do trabalhador no século XXI terá muito que ver com a maximização
das suas competências cognitivas.

Cada um deles produzirá mais na razão direta de sua maior capacidade de aprender a
aprender, na medida em que o que o empresário e o trabalhador conhecem e fazem hoje não
é sinônimo de sucesso no futuro.

[...] A capacidade de adaptação e de aprender a aprender e a re-aprender, tão necessária para


milhares de trabalhadores que terão de ser re-convertidos em vez de despedidos, a
flexibilidade e modificabilidade para novos postos de trabalho vão surgir cada vez com mais
veemência.

Com a redução dos trabalhadores agrícolas e dos operários industriais, os postos de emprego
que restam vão ser mais disputados, e tais postos de trabalho terão que ser conquistados
pelos trabalhadores preparados e diferenciados em termos cognitivos [Fonseca, 1998, p.

autor não deixa qualquer dúvida nessa passagem quanto ao fato do “aprender a aprender" ser
apresentado como uma arma na competição por postos de trabalho, na luta contra o
desemprego.

O “aprender a aprender” aparece assim na sua forma mais crua, mostrando seu verdadeiro
núcleo fundamental: trata-se de um lema que sintetiza uma concepção educacional voltada
para a formação, nos indivíduos, da disposição para uma constante e infatigável adaptação à
sociedade regida pelo capital.

tendência em ir rápido demais em todos os países que se lançam na elaboração de programas


sem dedicar tempo em observar as práticas sociais, identificando situações na quais as pessoas
são e serão verdadeiramente confrontadas.

O que sabemos verdadeiramente das competências que têm necessidade, no dia-a-dia, um


desempregado, um imigrante, um portador de deficiência, uma mãe solteira, um dissidente,
um jovem da periferia?

Trata-se de preparar os indivíduos, formando neles as competências necessárias à condição de


desempregado, deficiente, mãe solteira etc.

Aos educadores caberia conhecer a realidade social não para fazer a crítica a essa realidade e
construir uma educação comprometida com as lutas por uma transformação social radical,
mas sim para saber melhor quais competências a realidade social está exigindo dos indivíduos.

Quando educadores e psicólogos apresentam o “aprender a aprender" como síntese de uma


educação destinada a formar indivíduos criativos,

importante atentar para um detalhe fundamental: essa criatividade não deve ser confundida
com busca de transformações radicais na realidade social, busca de superação radical da
sociedade capitalista, mas sim criatividade em termos de capacidade de encontrar novas
formas de ação que permitam melhor adaptação aos ditames da sociedade capitalista.

Nem sempre perguntas dessa natureza têm sido respondidas, sequer formuladas por aqueles
que cultivam a idéia de que estaríamos vivendo na sociedade do conhecimento.
13 minha parte quero deixar bem claro que de forma alguma compartilho da idéia de que a
sociedade na qual vivemos nos dias atuais tenha deixado de ser, essencialmente, uma
sociedade capitalista.

denominação que empregarmos para caracterizar nossa sociedade dependa do “olhar” pelo
qual focamos essa sociedade: se for o “olhar econômico” então podemos falar em capitalismo,
se foro “olhar político” devemos falarem sociedade democrática, se for o “olhar cultural”
devemos falar em sociedade pós-moderna ou sociedade do conhecimento ou sociedade
multicultural ou sei lá mais quantas outras denominações.

Reconheço, e não poderia deixar de fazê-lo, que o capitalismo do final do século XX e início do
século XXI passa por mudanças e que podemos sim considerar que estejamos vivendo uma
nova fase do capitalismo.

Mas isso não significa que a essência da sociedade capitalista tenha se alterado ou que
estejamos vivendo uma sociedade radicalmente nova, que pudesse ser chamada de sociedade
do conhecimento.

A assim chamada sociedade do conhecimento é uma ideologia produzida pelo capitalismo, é


um fenômeno no campo da reprodução ideológica do capitalismo.

Dessa forma, para falar sobre algumas ilusões da sociedade do conhecimento é preciso
primeiramente explicitar que essa sociedade é, por si mesma, uma ilusão que cumpre
determinada função ideológica na sociedade capitalista contemporânea.

Quando uma ilusão desempenha um papel na reprodução ideológica de uma sociedade, ela
não deve ser tratada como algo inofensivo ou de pouca importância por aqueles que busquem
a superação dessa sociedade.

Ao contrário, é preciso compreender qual o papel desempenhado por uma ilusão na


reprodução ideológica de uma formação societária específica, 14 SOCIEDADE DO
CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSÕES?

No meu entender, seria justamente a de enfraquecer as críticas radicais ao capitalismo e


enfraquecer a luta por uma revolução que leve a uma superação radical do capitalismo,
gerando a crença de que essa luta teria sido superada pela preocupação com outras questões
“mais atuais”, tais como a questão da ética na política e na vida cotidiana pela defesa dos
direitos do cidadão e do consumidor, pela consciência ecológica, pelo respeito às diferenças
sexuais, étnicas ou de qualquer outra natureza.

Primeira ilusão: o conhecimento nunca esteve tão acessível como hoje, isto é, vivemos numa
sociedade na qual o acesso ao conhecimento foi amplamente democratizado pelos meios de
comunicação, pela informática, pela internet etc.

Segunda ilusão: a capacidade para lidar de forma criativa com situações singulares no
cotidiano, ou, como diria Perrenoud, a habilidade de mobilizar conhecimentos, é muito mais
importante que a aquisição de conhecimentos teóricos, especialmente nos dias de hoje,
quando já estariam superadas as teorias pautadas em metanarrativas, isto é, estariam
superadas as tentativas de elaboração de grandes sínteses teóricas sobre a história, a
sociedade e o ser humano.
Terceira ilusão: o conhecimento não é a apropriação da realidade pelo pensamento, mas sim
uma construção subjetiva resultante de processos semióticos intersubjetivos, nos quais ocorre
uma negociação de significados.

Quarta ilusão: os conhecimentos têm todos o mesmo valor, não havendo entre eles hierarquia
quanto à sua qualidade ou quanto ao seu poder explicativo da realidade natural e social.

Quinta ilusão: o apelo à consciência dos indivíduos, seja por meio das palavras, seja por meio
dos bons exemplos dados por outros indivíduos ou por comunidades, constitui o caminho para
a superação dos grandes problemas da humanidade.

Essa é a razão da difusão, pela mídia, de certas experiências educativas tidas como aquelas que
estariam criando um futuro melhor pela preparação das novas gerações.

Nessa direção, a guerra entre os Estados Unidos da América e Afeganistão, por exemplo, é
vista como conseqüência do despreparo das pessoas para conviverem com as diferenças
culturais, como conseqüência da intolerância, do fanatismo religioso.

Deixa-se de lado toda uma complexa realidade política e econômica gerada pelo imperialismo
norte-americano e multiplicam-se os apelos românticos ao cultivo do respeito às diferenças
culturais.

Afirmar que as idéias acima enunciadas constituemse em ilusões da sociedade do


conhecimento gera a necessidade de apresentar uma análise detalhada, bem fundamentada
16 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSÕES?

Essas idéias, anteriormente apresentadas na forma de cinco ilusões, têm sido tão amplamente
aceitas, têm exercido um tal fascínio sobre grande parcela dos intelectuais dos dias de hoje,
que o simples fato de questionar a veracidade delas talvez já produza um efeito positivo, qual
seja, o de fazer com que a adesão a essas idéias ou a crítica a elas deixe o terreno das emoções
que sustentam o fascínio e a sedução e passem ao terreno da análise propriamente
intelectual.

preciso, porém, estar atento para não cair na armadilha idealista que consiste em acreditar
que o combate às ilusões pode, por si mesmo, transformar a realidade que produz essas
ilusões.

Você também pode gostar