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Talvez uma apreciação escrita de Utopia possa começar por qualquer parte. A
diferença greco-latina entre o diálogo do Livro I e o discurso do Livro II pode ser uma
discussão profícua1; assim como as particulares nuanças idiomáticas dos neologismos;
as melhores formas de governo2; questões éticas e morais; a integração erudita dos
gêneros Tratado e Sátira, proporcionando instrução e deleite; posições estóicas e
epicuristas; métricas, geometrias, ritmos3; e paro para não ficar ad infinitum aqui. Cada
caminho é longo e vasto, o livro é como um labirinto com múltiplas entradas, no entanto
sem a certeza de haver uma saída. Pergunto-me se alguma destas discussões ou verdade
ocuparia um lugar central na obra. Utopia me parece um (não) lugar para se caminhar –
com um lado terrível, inclusive – como nota Carlo Ginzburg4.
2
Na epístola a Peter Giles, a frase do More personagem “Em suma, prefiro a
sinceridade à esperteza.”5 termina uma breve explanação ao leitor acerca de um de seus
maiores objetivos ao transcrever a história: a verdade como sinceridade. Como diz a
glosa correspondente ao trecho, uma mentira deliberada é diferente de uma inverdade.
Assim, More faz com que qualquer coisa que escreva esteja legitimada pelo pano de sua
sinceridade, ao mesmo tempo que tanto o autor como o personagem mentem
deliberadamente.
O que seria mais verdadeiro, o espírito ou o mundo sensível? Qual a medida da
diferença entre o que é e o que se pensa que é? A memória, síntese do encontro da
subjetividade com a realidade, pode sempre pender mais para um lado que para outro. O
personagem More expõe seu esforço de ser fiel à memoria retórica, fiel à realidade, mas
1 NELSON, E. “Utopia through Italian eyes: Thomas More and the critics of civic humanism”
2 SKINNER, Q. “Sir Thomas More Utopia and the language of Renaissance humanism”
3 PRÉVOST, A . “L'Utopie de Thomas More”
4 GINZBURG, C. “Nenhuma ilha é uma ilha”, p. 19.
5 MORE, T. “Utopia” (São Paulo, 2009), p. 9.
parece insinuar que seu relato subjetivo prevalecerá.
More brinca muito com dizer que não faria o que na realidade faz, sua própria
identidade é múltipla e facetada, há o More transcrevente que presenciou o relato de
Rafael Hitlodeu; há o More personagem que responde às pessoas da cena e escreve a
primeira carta a Peter Giles; há o More narrador das cartas anexas; há o próprio More
autor. E o livro segue oscilando entre ideias verdadeiras – que aparecem sobre as notas
atentas das edições posteriores, indicando que aquela era uma opinião real do autor, pois
poderia ser vista em outros de seus livros e correspondências – e ideias fantasiosas,
inverossímeis, absurdas – sempre umas 'sinceras', outras não.
Em certo ponto das saudações de Thomas More a Peter Giles, o primeiro
desabafa sobre sua desesperança nos leitores, como se seu empreendimento já
desapegasse da possibilidade de ser aproveitado. More teria apenas tomado nota do
relato de Hitlodeu (à uma maneira bem empírica, para definir sua inventio) e, ao invés
de publicar, poderiam ele e Giles viver a medição epicurista da vida – muito
característica também a Hitlodeu (um contador de lorotas tanto quanto nosso More,
inclusive). A justificativa para tal desesperança vem sob a forma da enumeração de
leitores ingratos, cada um correspondente ao gênero literário que rejeita, e todos estes
gêneros presentes no livro6. Algo como a fadada impossibilidade do livro ser
plenamente compreendido, o que justamente o mantém vivo e ativo no tempo. Não há
conceito estático na obra, não há nada definitivo, o que há é um centro escorregadio,
uma verdade que, paradoxalmente, sempre muda de lugar.
Toda esta fatura a respeito da verdade define a elocutio da Epístola, regra
retórica de constituição de estilo e cânone intermediário dentre os cinco (inventio,
dispositio, elocutio, memoria, pronuntiatio). Cozer disparates com a agulha da
sinceridade talvez seja a marca mais satírica do livro, comumente atribuída à referência
de Luciano de Samósata, com o emblemático exemplo da abertura de Uma história
verdadeira em que declara “pois ao menos sou verídico ao dizer que minto.”7. No
entanto, uma relação também evocada entre o autor More e Hitlodeu8, suscita a filosofia
epicurista, pois incita à não expectativa de uma moral no final – como nas fábulas –
valoriza mais a medida do processo que a medida da chegada.
L'analyse syncronique de ce double débat à la cour des princes révèle la maîtrise avec
laquelle l'écrivain dispose des thèmes, des structures et des rythmes pour donner à son
oeuvre les variations de l'entrecroisement des motifs et le charme indéfinissable que
procurerait une composition musicale. (PRÉVOST, 1978, p. 90)
[A análise sincrônica deste duplo debate no tribunal dos príncipes revela a maestria com
que o escritor dispõe temas, estruturas e ritmos para dar à sua obra as variações de um
entrecruzamento de padrões e o indefinível encanto que proporcionaria uma composição
musical.]
Para além do ritmo, Prévost propõe uma série de outras alegorias para
apreender a essência viva de Utopia. Evoca o Fio de Ariadne, a maiêutica socrática,
construção arquitetônica; fala de exegese, de leitmotif, de teatro... até chegar ao “método
utópico” ou “maiêutica utópica”, uma maneira de “pelo cômodo da história adentrar a
ficção”9. Não cabe aqui fazer uma análise da extensa obra de Prévost. Parece-me bem
sucedida sua percepção de um Utopia vivo, como uma fábrica que liga suas máquinas a
cada novo leitor que entra. No entanto, é possível também perceber como este – e outros
– estudos sobre Utopia tentam definir seu todo através de uma chave de compreensão
própria. Se o livro questiona sua verdade, torce e ironiza suas técnicas, muitos dos
métodos de More podem ser descobertos10 e discutidos. Mas como um leitor pode
chegar a um veredicto sobre o seu sentido? Prévost, mesmo atento aos dispositivos
retóricos e satíricos do livro, parece querer crer que tudo constitui uma manobra para o
leitor visitar Utopia.
Para então fazer uma visita à Utopia, comecemos por uma parte não tão
agradável. A exibição da virtude na descrição do Livro II chega, em certos momentos, a
permear uma perfeição sufocante, por demais regrada em seu louvor à ordem. Em
9 PRÉVOST, . op. cit., p. 89 “[...]c'est par le vestibule de l'histoire qu'il entre dans la fiction.”
10 Jorge Luis Borges nos relembra que as palavras “descobrir” e “inventar” eram sinônimos no latim “invenire”.
Utopia, os cidadãos são pontuais, trabalham e dormem todos na mesma hora e pela
mesma duração. As vestimentas são uniformes e duram por 7 uniformes anos. A
arquitetura é simétrica, cada cidade possui quatro bairros, com o mesmo número de
casas e mesma densidade demográfica. Os destinos são previstos pelo funcionamento da
República, como por exemplo se uma criança nasce com aptidão para o ofício de outra
família, é transferida e adotada pela casa mais apropriada. A sugestão é de que todos os
cidadãos sejam como uma só família reinada pela igualdade.
No ápice de uma longa exposição esquemática da vida em Utopia, que
antecede uma discussão sobre metais preciosos e economia, há uma declaração
sintomática da relação igualdade-liberdade dentre os utopianos: “Todos estão sob o
olhar vigilante dos demais, o que praticamente força o indivíduo a realizar bem o seu
trabalho e a não desperdiçar o tempo livre de que dispõe.” (MORE, 2009, p.112).
O tempo talvez seja a medida mais justa de uma vida. Um processo de
individuação – muito caro ao ocidente e bem menos típico no oriente (onde as filosofias
vão mais na direção de um todo universal) – é um domínio individual do tempo. Em
Utopia, o tempo é comunitário: o tempo livre de um indivíduo é um espaço ocioso na
ilha, desperdício para todos. Uma experiência do tempo compartilhada por toda uma
sociedade faz com que o tempo quase pare, pois a perfeição é estática. Esta percepção
pode ser angustiante.
Carlo Ginzburg, em seu perspicaz ensaio, também adverte para uma faceta
assustadora da obra. A seu ver, a ironia de Utopia se desenvolve para o escárnio, os
paradoxos entre filosofia política e sátira acabam criando uma realidade às avessas,
donde “as cabras devoram os homens.”11.
Se a realidade de Utopia é perfeita, avessa ou oblíqua, não saberia dizer. O
relato de Hitlodeu que, não se pode esquecer, seria sua experiência e não Utopia em si,
abre também inúmeras janelas de bem-aventurança no leitor. E mesmo a advertência
sobre o grau de fantasia da obra não furta nosso envolvimento com uma ideia de paraíso
e benevolência.
Os leitores por demais apegados a essa sensação podem perseguir as teorias
acerca da virtude no livro. Desde o epílogo, More apresenta um manual de virtude e
retidão, seja pelo lado do político, seja pelo lado do filósofo, figurado no debate de
GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha – Quatro visões da literatura inglesa.
Companhia das Letras. São Paulo, 2004.
LOGAN, George M. Interpreting Utopia: Ten recent studies and the Modern Critical
Traditions. Moreana 118-119 (june, 1994) 203-258.
MORE, Thomas. Utopia. Org. George M. Logan, Robert M. Adams; trad. Jefferson
Luiz Camargo, Marcelo Brandão Cipolla – 3a edição. Ed. Martins Fontes. São Paulo,
2009.
NELSON, Eric. “'Utopia' through italian eyes: Thomas More and the Critics of Civic
Humanism”. In Renaissance Quarterly, Vol. 59, No. 4 (Winter 2006) pp. 1029-1057.
University of Chicago Press.
PRÉVOST, Andre. L'Utopie de Thomas More. Nouvelles Éditions Mame. Paris, 1978.
SKINNER, Quentin. “Sir Thomas More 'Utopia' and the language of Renaissance
humanism” In The Languages of Political Theory in Early Modern Europe. Cambridge
University Press, 1987.