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Página 8 São Paulo, sábado a segunda-feira, 28 a 30 de setembro de 2019

Especial
Sequestro de embaixador no Brasil moldou
política externa dos EUA na Guerra Fria Arte sobre fotos/Wikimedia Commons/Memorial da Democracia

Entre 1969 e 1974, no governo Nixon, o fenômeno dos sequestros diplomáticos cresceu em diferentes partes do mundo, a despeito da adoção de medidas de prevenção.

Usando fontes inéditas, historiadora aceitasse as demandas dos sequestradores. Um dos resultados da
pesquisa de Pâmela Resende foi o de derrubar essa percepção.
de onde teve de sair após a invasão das tropas da Alemanha
nazista. Retornou à Polônia para reabrir a embaixada em 1945.
inclui caso Elbrick em uma
sequência de eventos que levou “A partir de trocas de mensagens, telegrama, documentação
diplomática, essa noção da pressão inconteste do governo norte-
Foi embaixador em Portugal entre 1959 e 1963, um período
marcado pelas guerras de descolonização na África e pelas
governo norte-americano a -americano sobre o governo brasileiro não procede da maneira tensas relações entre Washington e a ditadura salazarista.
como é dita”, afirma a historiadora. No contexto da Guerra Fria, Logo depois, foi para a Iugoslávia do Marechal Tito, onde
endurecer política contra grupos os debates teóricos da esquerda latino-americana deram uma ficou por cinco anos. A partir de 1969, Nixon se empenhou
dissidentes em outros países. guinada a partir da Revolução Cubana. em redefinir a política dos EUA para a América Latina. Foi
nesse contexto que Elbrick foi nomeado para assumir a em-
Havia na época uma crítica à “burocratização” dos partidos baixada no Brasil. O curioso é que Nixon e Elbrick tinham
Silvana Salles/Jornal da USP
tradicionais e à influência da União Soviética, e uma parte da pouco em comum: enquanto o presidente poderia ser adje-

D
esquerda passou a defender a prática de atos de violência como tivado como um republicano linha-dura, o embaixador era
epois de ser libertado de três dias de cativeiro no Rio de
ferramentas legítimas de luta política. Do outro lado, o governo um liberal progressista.
Janeiro, o embaixador norte-americano Charles Burke
norte-americano respondeu com a consolidação da Doutrina
Elbrick deu uma declaração que desagradou os militares
de Contrainsurgência – um arcabouço teórico formulado para Apesar da máxima do governo Nixon nem sempre ter se ali-
brasileiros. Ele afirmou ter sido bem tratado pelos sequestrado-
combater guerrilhas, inspirado nos manuais que os franceses nhado rigorosamente à verdade factual, no caso do sequestro
res, que descreveu como jovens bastante inteligentes; fanáticos,
usaram para reprimir os movimentos de independência da Argélia. de Charles Elbrick, os documentos mostram que Washington
porém muito dedicados ao que estavam fazendo. O episódio do
pouco fez para garantir a liberdade do embaixador no Brasil.
sequestro do embaixador aconteceu há 50 anos, em setembro de
A política de contrainsurgência dos EUA começou a ser cons- “Uma das primeiras coisas com que eu tive contato pesqui-
1969, e foi narrado muitas vezes, tanto no papel quanto em filme.
truída no início dos anos 1960, mas se consolidou no governo de sando foi uma entrevista que a esposa do Elbrick deu já na
Richard Nixon, entre 1969 e 1974. A linha do governo Nixon se década de 1980.
No entanto, foram pouco investigados os fios que ligam o epi-
traduzia na máxima: “Não negociamos com terroristas”. Durante
sódio às decisões de política externa dos Estados Unidos durante
o período, o fenômeno dos sequestros diplomáticos cresceu em Ele já tinha morrido [na época]. Ela está num velório no
a Guerra Fria. Uma tese de doutorado defendida no programa de
diferentes partes do mundo, a despeito da adoção de medidas enterro de outro embaixador e o Nixon está lá também. Na
História Social da FFLCH/USP procura refazer essa costura. A
de prevenção. entrevista, ela relata a conversa que trocou (com o Nixon)”,
tese da historiadora Pâmela de Almeida Resende sugere
s diz a historiadora Pâmela, que reproduziu no trabalho o trecho
que o caso Elbrick deve ser entendido como parte P Imagen
US A recusa dos americanos em participar das ne- da entrevista de Elvira Elbrick à Association for Diplomatic
de uma sequência de eventos que levou o governo tos /
gociações nesses casos se apoiava nos tratados Studies and Training, uma entidade norte-americana que
norte-americano a endurecer sua política contra
n
Sa

internacionais que atribuem ao país anfitrião coleta registros de história oral da diplomacia. Neste relato,
s
rc o

grupos dissidentes que atuavam em outros


a responsabilidade pela segurança dos diplo- a viúva do embaixador conta:
Ma

países, particularmente no que diz respeito


matas – e, de certa forma, igualava o papel do
aos sequestros diplomáticos.
diplomata ao do soldado que estava sujeito a “(…) então eu disse: ‘Por acaso você lembra de um homem
perder a vida em batalha. com o nome de Burke Elbrick?’ E ele disse, ‘Oh, sim. Eu o
A interpretação parte da análise de muitas
nomeei como embaixador no Brasil’. E eu disse: ‘Você lem-
fontes inéditas encontradas em arquivos norte-
Segundo Elizabeth Cancelli, professora do bra que ele foi sequestrado por lá e que você foi seu Judas e
-americanos. A pesquisa também permitiu à
Departamento de História da FFLCH e orien- seu Pôncio Pilatos?’ E eu disse: ‘Adeus, Sr. WaterGate’, e fui
historiadora recuperar a biografia de Charles
tadora de Pâmela no doutorado, a principal embora. E esse foi o fim de tudo. Claro, ele provavelmente
Elbrick, uma figura esquecida após a passagem
contribuição do trabalho é trazer uma renovação nunca se lembrará desse arranhão que eu dei nele, mas pelo
pelo Brasil. A tese foi intitulada “Ser um embaixador
historiográfica para a história da ditadura militar menos eu me senti bem por isso…”.
não é um mar de rosas”: o sequestro de Charles
Historiadora Pâmela de brasileira e da própria Guerra Fria. Ela coordena
Burke Elbrick no Brasil em 1969, em alusão a
um grupo de estudos sobre a Guerra Fria que se
uma frase atribuída ao embaixador. Almeida Resende.
dedica a compreender a guerra cultural travada
no período.
“Como você estuda um episódio cujo personagem principal
[não aparece em] lugar nenhum?”, questiona Pâmela, referindo-
E explica que nos Estados Unidos do final da década de 1960,
-se às diversas narrativas sobre o caso que pareciam encaixadas
se por um lado havia um esforço no sentido de combater mo-
demais para contar a história toda. “Eu tenho uma impressão
vimentos insurgentes, por outro já se questionava o apoio às
muito forte que [houve] uma tentativa de apagamento muito
ditaduras latino-americanas. “Com a crise do Vietnã, por exemplo,
grande, inclusive da figura do Elbrick”, diz ela.
há toda uma movimentação de intelectuais importantes, liberais,
conservadores e neoconservadores, que começam a repensar
O episódio do sequestro começa no dia 4 de setembro de 1969.
essa questão das ditaduras”, diz a professora.
Militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento
Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) interceptaram o carro
do diplomata na zona sul do Rio e levaram-no como refém. Eles Protagonista silenciado
negociaram com o governo brasileiro a liberdade do embaixador Pâmela pesquisa temas da ditadura militar brasileira desde o
pela de 15 presos políticos, mais a veiculação em rede nacional mestrado na Unicamp, além de ter trabalhado com a Comissão
de um manifesto que denunciava a ditadura militar instituída em Nacional da Verdade. Ela conta que estava preparada para se
1964. Elbrick foi solto três dias depois, com os presos políticos deparar com dificuldades nos arquivos americanos, pois esperava
libertos e a caminho do México. encontrar muitos documentos sob sigilo. No entanto, diz que ficou
surpresa ao perceber que havia pouca informação disponível
A historiografia brasileira, de modo geral, recontou o episódio justamente sobre o protagonista do episódio.
como se as negociações pela liberdade do embaixador norte-
-americano tivessem sido permeadas por pressões do governo dos “Eu acho muito surpreendente porque ele teve um papel
Estados Unidos para que a Junta Militar que governava o Brasil fundamental nas relações luso-americanas no tempo em que
ele esteve em Portugal, na me-
diação entre dois presidentes,
Reprodução/YouTube

primeiro o Eisenhower, depois


o Kennedy, com o [Antônio]
Salazar. E depois na Iugoslávia
com a questão do Movimento
dos Países Não-Alinhados, a
relação do governo da Iugos-
lávia com a União Soviética.
Ele teve um papel fundamental
nesses dois momentos e que
não aparece em lugar nenhum”,
afirma Pâmela.

Charles Burke Elbrick foi


um diplomata de carreira que
se especializou em Europa
Oriental e Península Ibérica.
Foi conselheiro da embai-
xada americana em Cuba e
secretário de estado adjunto
O embaixador Charles Burke Elbrick em depoimento à TV Tupi para assuntos europeus.
em 15 de setembro de 1969, após o sequestro. Serviu em Varsóvia em 1939,

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