Você está na página 1de 10

06/02/2018 arquitextos 207.

00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius

A cidade de amanhã
Mobilização, ocupação e apropriação do espaço público
Laura Sobral

Painel em azulejos pintados, Praça Roosevelt, São Paulo


Foto Abilio Guerra

“Estudar a vida cotidiana será um empreendimento perfeitamente


ridículo, e inicialmente condenado a não compreender seu objeto,
se não nos propomos a estudar a vida cotidiana com o fim de a
transformar”.
Perspectives de modifications conscientes dans la vie
quotidienne, Internacional Situacionista (1)

Não é de hoje que este mundo está grávido de outro: em contraponto ao


sistema tradicional ocidental hierárquico, opressor, controlado, há a
busca pela horizontalidade e pela coletividade. Vivemos em cidades
hierarquizadas e segregadas, seus espaços sendo produzidos sem a
participação de grande parte da população.

As decisões sobre nossas vidas e nossas cidades são tomadas por


representantes que, muitas vezes, não defendem o interesse público. Para
analisar a esfera pública que temos no Brasil, recorro ao professor de
arquitetura e urbanismo Guilherme Wisnik, que explica que o Brasil é um
país fortemente marcado por práticas sociais patrimonialistas, “isto é,
pelo costume de se tratar os interesses públicos como se fossem privados,
segundo relações pessoais, de favor, que não raro redundam em tráfico de
influência e corrupção” (2).

Desde que o território foi invadido pelos colonizadores, principalmente


nos quatro primeiros séculos, a ideia do país Brasil se desenvolveu sem
uma participação efetiva no cotidiano da população que sempre esteve
atrelada ao domínio e favores do poder público. Essa prática gerou uma
restrição ao espírito comunitário cuja herança carregamos até os dias de
hoje.

A crítica radical a esse modelo e a proposta de transformação no modo de


produção e apropriação do espaço vem de longe. Autogestão é um termo
relativamente novo, tendo sido incluído nos dicionários franceses na
década de 1960, quando, reagindo ao ordenamento funcional moderno e às

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 1/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius
consequentes injustiças sociais promovidas pela cultura do consumo na
Europa do pós-guerra, nasce a Internacional Situacionista – IS. A IS
elaborou uma poética da cidade com novas formas de representação e de
cartografia dos espaços urbanos e formas de agitação e ações coletivas,
destinadas a promover o uso livre e a livre transformação do meio urbano.
Com seu projeto vanguardista de fusão entre arte e vida, criou situações
definidas como “momentos da vida concretamente e deliberadamente
contruídos por uma organização coletiva de uma ambiência unitária e um
jogo de eventos” (3).

Conferência da Internacional Situacionista em Gotemburgo em 1961


Foto divulgação [Bibliothèque Nationale de France]

Ser livre

Quais são os modos de organização coletivos que têm como resultado uma
vida cotidiana livre?

E o que seria essa vida cotidiana livre?

Em arquitetura e urbanismo nos referimos aos tais “sistemas de espaços


livres” das cidades. Espaços livres, por definição técnica, são espaços
livres de edifícios: ruas, praças... Como seria se esses espaços fossem
realmente livres? E se pensássemos esses espaços como públicos, comuns,
autogestionados, livres?

Como seria essa cidade-livre?

Para a IS, ser livre também é poder ser improdutivo. O espaço-tempo


autogerido pode ser improdutivo, pode ser o lugar do lazer. Um lazer
ativo, do fazer lúdico, experimental, do prazer antissistêmico.

Essa liberdade se refere à produção de espaços mais justos e à


tranformação do trabalho – hoje em dia motor do nosso cotidiano – em
atividade livre e criativa, de cidadania ativa. O seu espaço político é a
rua, são os espaços públicos das cidades.

Não à toa foram eles os ocupados na virada dos 1960 para os 1970 em Paris
e são eles os disputados hoje nas grandes cidades do mundo.

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 2/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius
Cidades outras

O exercício de sonhar essa cidade-livre é necessário e urgente, também


como o de traçarmos e retraçarmos caminhos para chegarmos até ela. As
utopias são norte para o palpável. A utopia é típica da cultura
ocidental. É a capacidade de imaginar o futuro.

Uma bela compilação de cidades imaginadas está no livro As cidades


invisíveis (4), de 1972, onde Italo Calvino narra um conjunto de
pequenas histórias a partir de um contexto ficcionado: Marco Polo
descreve ao imperador mongol Kublai Khan as cidades que visitou, nas suas
longas viagens. O desejo do imperador é montar o império perfeito a
partir dos relatos que ouve do seu jovem amigo e emissário. São mais de
cinquenta cidades descritas, dentre elas Zoé:

“Quem viaja sem saber o que esperar da cidade que encontrará no


final do caminho, pergunta-se como será o palácio real, a
caserna, o moinho, o teatro, o bazar. Em cada cidade do império,
os edifícios são diferentes e dispostos de maneiras diversas:
mas, assim que o estrangeiro chega à cidade desconhecida e lança
o olhar em meio às cúpulas de pagode e clarabóias e celeiros,
seguindo o traçado de canais hortos depósitos de lixo, logo
distingue quais são os palácios dos príncipes, quais são os
templos dos grandes sacerdotes, a taberna, a prisão, a zona.
Assim – dizem alguns – confirma-se a hipótese de que cada pessoa
tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma
cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades
particulares.

Não é o que acontece em Zoé. Em todos os pontos da cidade,


alternadamente, pode-se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar,
acumular moedas de outro, despir-se, reinar, vendar, consultar
oráculos. Qualquer teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o
lazareto dos leprosos quanto as termas das odaliscas” (5).

Quando penso em cidade-livre, penso em algo entre a cidade formal e a


cidade informal. Com poucas regras estabelecidas por todos. Nessa cidade-
livre, os espaços seriam avaliados pelo seu uso, não por quanto valem em
dinheiro, não haveria especulação. Nessa cidade livre, o pedestre seria
prioridade, e então os trilhos, os barcos… Automóveis seriam utilizados
só em caso de emergência.

Os direitos humanos seriam garantidos, e pessoas mais e menos vulneráveis


morariam lado a lado, em um tecido urbano misto. A cidade-livre é uma
cidade plural, diversa.

Nessa cidade-livre, os moradores produzem eles mesmos, coletivamente e


com baixo impacto, a maioria do que precisam.

A educação, de forma múltipla e cultural, cívica e ampla, seria geral


nessa cidade-livre. Todos os seus usuários saberiam que produzem a cidade
todos os dias, e cuidariam da cidade como sua grande casa, com senso de
pertencimento total.

A cidade livre seria uma cidade de códigos abertos e nela não haveria
propriedade, mas direito de uso de seus espaços. A cidade toda seria
pública, e mais que pública, comum.

Como escreveu Cornelius Castoriadis – filósofo, economista e psicanalista


francês, de origem grega, defensor do conceito de autonomia política –
“uma sociedade autônoma implica indivíduos autônomos – e reciprocamente.
Sociedade autônoma, indivíduos autônomos: sociedade livre, indivíduos
livres. Não se tratando de liberdade interior, mas da liberdade efetiva,
social, concreta” (6). Na cidade-livre se combinaria a atividade

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 3/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius
produtiva à participação política, sem perder de vista a ludicidade
própria da vida social.

Para os Situacionistas, cidade-livre é cidade-jogo: “O caráter de espaço


social será determinado pela forma como a energia liberada é investida.
De qualquer forma este espaço irá formar o cenário de jogo, para a
invenção e criação de um ambiente de vida. As normas utilitárias que se
aplicam à cidade funcional deverão dar lugar à norma da criatividade. No
futuro não será mais a utilidade, mas o jogo que determinará a forma de
viver do homem”, conforme se lê no texto Novo urbanismo, escrito em em
1966 por Constant, membro da IS (7).

Hoje se pode ver um pouco da cidade-livre nos espaços públicos. Espaços


que, em teoria, acolhem a todos e permitem certa liberdade de uso. Por
materializarem a possibilidade do vir-a-ser coletivo e diverso, são eles
que borbulham quando os habitantes da cidade sonham uma cidade melhor.

Emergência

Em uma entrevista de 2013, a filósofa Otília Arantes disparou “Em


primeiro lugar, do que se está falando ao reivindicar um espaço público?
Qual o sentido hoje de tal expressão? Pode-se ainda imaginar algo como
uma vida pública nas nossas cidades segregadas, muradas, vigiadas? [...]
não acho sequer que se possa falar em ideologia, tal a falsidade de um
tal conceito de ‘espaço público’, quando todo o espaço é avaliado
simplesmente pelo seu potencial de produção de mais-valia. Mas, ao mesmo
tempo, não se pode ignorar o fato de que ocorre hoje uma série de
experiências de apropriação do espaço urbano que nos faz perguntar: será
que é só isso, será que esses espaços não recomeçam a ganhar um alto
sentido social e político?” (8).

Diante do cenário de um capitalismo selvagem onde os mecanismos de


decisão estão completamente a mercê dos interesses do mercado, 99% da
população sofre com os privilégios do 1%. Também táticas e estratégias de
resistência e transformação em prol do bem comum são cooptadas e
manipuladas de maneira a fortalecer o consumismo vigente. O papel do
Estado se corrompe, como descreve Henri Lefebvre no seu livro Espaço e
política, “o estadista – curiosamente batizado de “social” ou “coletivo”
– se opõe ao “individual”ou “privado”, hoje a balança pendendo
nitidamente para o lado do individual, da iniciativa privada e dos
capitais, cujo objetivo é inscrever completamente a terra e o habitat na
troca e no mercado” (9).

Desde 2008 o mundo tem visto uma série de movimentos nas ruas pelos bens
comuns urbanos e justiça socioespacial. São ocupações pontuais,
permanentes, manifestações, intervenções artísticas, que tomam o espaço
público e o reclamam para o povo.

Nesses movimentos de resistência que hoje se esforçam para ir contra as


forças econômicas mundiais responsáveis pela degradação geral das cidades
se pode ver a influência política e o eco da IS. Como o Reclaim the
Streets, que se descreve como “grupo dotado de uma organização aberta mas
sem hierarquia nem chefe” (10), ou os Occupy recentes que seguem essa
mesma linha. “Roda por todos os lados e retorna a si mesmo por longos
circuitos. Todas as revoluções entram na História, e História não se
sacia. Os rios das revoluções voltam para onde saíram, para fluir
novamente” (11) escreve Debord, da IS, no livro Panégyrique, de 1993.

El Campo de Cebada, em Madri, é um desses espaços "entre". Um centro


poliesportivo público esteve com suas obras paradas por causa da crise e
se transformou em um espaço comum. Com horta coletiva, mobiliarios
autoconstruídos feitos com material reciclado, atividades culturais
frequentes, é um lugar de troca e voz das pessoas do bairro La Latina.

As nossas

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 4/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius
No Brasil, as manifestações e intervenções de rua ganharam novos adeptos
e uma nova e mais ampla abordagem midiática, especialmente depois de
2013, quando multidões tomaram as ruas de diferentes cidades demonstrando
insatisfação com o sistema vigente e suas repressões. O disparador da
tomada das ruas foi o aumento de 20 centavos na passagem do transporte
público. Então o MPL – Movimento Passe Livre convocou a população às ruas
pela agenda mais ampla do direito à cidade nele incluso os direitos ao
acesso e à mobilidade. Brutalmente reprimida a manifestação, se fez notar
o firme controle das ruas pela “manutenção da ordem”, o que fez com que
as manifestações diárias subsequentes fossem cada vez maiores e
polifônicas. “Não é pelos 20 centavos” diziam os cartazes nas ruas.

Pichação em muro do MPL – Movimento Passe Livre, São Paulo


Foto Abilio Guerra

Hoje pelo país todo são muitos os Praias do Capibaribe, Parques Augustas,
Ocupe Estelitas, Resiste Isidoras, Praias da Estação, Movimentos Boa
Praça, OcupaPL que, de forma semelhante à A Batata Precisa de Você, em
São Paulo, movimento do qual faço parte, ocupam espaços públicos e buscam
pela hierarquia não entre pessoas, mas de prioridades.

Muitos desses movimentos têm bandeiras de causas pontuais, mas,


realmente, militam pela expansão de possibilidades da vida comum. São
Zonas Autônomas Temporárias. Criada em 1990 pelo escritor anarquista
Hakim Bey (12), a expressão designa uma área “de terra, tempo ou
imaginação” liberada, em que a recusa da ordem política imposta se
converte em formas positivas de experimentação – que propõem espaços de
imaginação, de experimentação, laboratórios de gestão da participação
total e inclusiva. Zonas Autônomas Temporárias, ou ZAT, são uma
coagulação voluntária de pessoas afins não-hierarquizadas podem maximizar
a liberdade por eles mesmos numa sociedade atual. Uma organização para o
desenvolvimento de atividades comuns, sem controle de hierarquias
opressivas.

Muitos movimentos atuais são ensaios de autogestão que tem como norte que
cada agente influencie as decisões proporcionalmente ao quanto ele é
afetado, todos tendo fácil acesso às avaliações relevantes dos resultados
esperados. Se persegue que cada agente do processo tenha conhecimento
geral e segurança intelectual suficientes para entender as avaliações e
desenvolver suas preferências sob sua luz. A organização da sociedade

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 5/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius
autogerida idealmente deve garantir que as fontes das análises, que
tenham relação com a tomada de decisão, sejam imparciais, diversas e bem
testadas.

O movimento A Batata Precisa de Você (13) tem algumas táticas


interessantes. Em seus três anos de ocupação e zeladoria regulares no
Largo da Batata, o movimento tem poucas diretrizes. Uma delas é que no
seu espaço público virtual – grupo aberto no Facebook – tudo pode ser
discutido, mas para algo ser decidido é necessário que os interessados no
tema encontrem-se no espaço público real – Largo da Batata – e decidam
sobre o que foi apresentado. Outra tática da Batata é a construção de
experimentos, de protótipos, de estruturas que permitam testes imediatos
de uso, como mobiliário urbano, cisterna e estruturas de sombreamento. É
o uso da precariedade e temporalidade como provocação: amplia-se o
vocabulário urbano dos usos possíveis da cidade, com base na gambiarra
como “manifestação da permanente criatividade humana e tática social
capaz de manobrar a ordem tradicional de mercado baseada na perspectiva
de um consumo passivo”, como descrito na tese de doutorado de Rodrigo
Boufleur, de 2013, “Fundamentos da gambiarra: a improvisação utilitária
contemporânea e seu contexto socioeconômico” – FAU USP (14).

Mobiliário urbano construído pela sociedade civil, Largo da Batata, São Paulo
Foto Abilio Guerra

É uma experimentação social onde se aprende constantemente, afinal a


horizontalidade e abertura à participação são elementos raros, seja na
cultura política, seja nas relações de trabalho ou no lazer.

Assim como o Largo da Batata em São Paulo, cidades de dentro e fora do


Brasil abrigam espaços onde a simetria entre Estado e cidadãos é maior e,
por consequência, há mais liberdade e possibilidades de teste de outros
sistemas organizacionais, diversas formas de gestão e de autogestão. Será
possivel regulamentá-los para o reconhecimento desses processos e de uma
maior liberdade, ou a liberdade é o não-previsto, a transgressão? Há algo
possível entre as normas, a burocracia exagerada e a informalidade?

Bordas

Propor a apropriação dos espaços públicos da cidade não é tarefa fácil,


mas é sim mais fácil para os que não vivem nas bordas. Nas periferias
qualquer direito à cidade que persista nas cidades é esmagado pela
invisibilidade do cidadão perfiférico frente à Justiça.

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 6/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius
Apesar das dificuldades, ou até incentivadas por elas, se multiplicam
cada vez mais experiências inovadoras de gestão nos espaços públicos das
periferias, muitas vezes não ganhando suficiente repercussão ou suporte.

O olho midiático está focado no centro, e é imprescindível que


iniciativas que recebem mais repercussão se articulem com iniciativas das
bordas, empenhando-se em identificar suas causas comuns para fortalecer-
se enquanto rede.

Em uma mesa que participei em 2016, “Gestão e ocupação do espaço livre na


cidade”, do Seminário Internacional: Espaço livre na cidade , depois de
muita conversa sobre a liberdade nos espaços livres, sua gestão e a
situação política no País, falou Ermínia Maricato “o ordenamento atual da
cidade é insuficiente para as demandas de hoje em dia”, e, ainda, a
respeito das manifestações sobre o cenário político e situação das
cidades no que estamos vivendo nesse turbulento 2016: “eu sinto falta do
Mano Brown.” Para descrever o Mano Brown , do Racionais Mc’s, pego
emprestadas palavras da Ermínia, “é o herói de tantos jovens que moram
nos esquecidos depósitos de trabalhadores que são as periferias
metropolitanas”. Suas letras de rap e suas falas se referem às ruas das
bordas de São Paulo, a sua precariedade e a resistência diária dos seus
moradores por sobrevivência. Nelas se faz clara a emergência de uma nova
organização social e territorial.

Fim de semana no parque – Racionais Mc’s

“Chegou fim de semana todos querem diversão


Só alegria nós estamos no verão,
mês de Janeiro São Paulo Zona Sul
Todo mundo a vontade calor céu azul
[...]

Automaticamente eu imagino A molecada lá da área como é que tá


Provalvelmente correndo pra lá e pra cá
Jogando bola descalços nas ruas de terra
É, brincam do jeito que dá

[...]

Vamos passear no Parque Deixa o menino brincar Fim de Semana no


parque Vou
rezar pra esse domingo não chover

[...]

A número número 1 em baixa-renda da cidade Comunidade Zona Sul é


dignidade
Tem um corpo no escadão a tiazinha desse o morro
Polícia a morte, polícia socorro
Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo
Pra molecada frequentar nenhum incentivo
O investimento no lazer é muito escasso
O centro comunitário é um fracasso
Mas aí se quiser se destruir está no lugar certo
Tem bebida e cocaína sempre por perto”.

Amanhã

Nos ultimos anos a juventude conectada está mostrando como a relacoes


entre sistemas livres e autogeridos pode se fortalecer, unindo centros e
bordas de cidades de todo o país, inclusive com repercussão em outras
cidades Latinoamericanas.

Os estudantes secundaristas se mobilizaram contra a proposta de


“reorganização do ensino”, apresentada pelo Governo de São Paulo em 2015,

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 7/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius
que pretendia fechar 92 escolas e transferir mais de 300 mil alunos da
rede pública sob o argumento de que era necessária uma separação em
ciclos únicos (Fundamentais I e II e Médio) para melhorar o desempenho
escolar. Os jovens ocuparam gradualmente cerca de 200 escolas estaduais,
se posicionando fortemente contra a proposta e, principalmente, à falta
de diálogo sobre sua educação imposta pelas autoridades públicas.

O movimento ocupou não só escolas, mas também as ruas de diversas cidades


do estado e se espalhou pelo Brasil: por exemplo em Goiás, secundaristas
também tomaram suas escolas para barrar a privatização do ensino público.
Após um mês de mobilização intensa, em que os estudantes conquistaram o
apoio público de diversos segmentos da sociedade civil e descobriram uma
nova escola – onde eles podem construir sua própria educação, livre das
amarras de um projeto pedagógico conservador e alienante – o governador
Geraldo Alckmin se viu obrigado a revogar o decreto da reorganização.

Imagens de como os estudantes estavam autogerindo suas escolas de maneira


coletiva e promovendo melhoras em sua infraestrutura colaboraram para que
a opinião pública pesasse a favor das ocupações. Para a articulação
entre unidades e divulgação em tempo real do que acontecia nas escolas o
acesso à internet e a mídia livre foram imprescíndíveis.

Porém, mesmo após o compromisso firmado pelo Governo, a “reorganização”


continuou por debaixo dos panos, muitas salas foram fechadas em várias
escola. Somou-se a isso a fraude da merenda, onde muitas escolas ficaram
sem dar merenda para seus alunos enquanto documentos que provavam desvio
de verba da merenda por alguns do Governo do Estado foram encontrados.
Novamente as escolas foram ocupadas.

O movimento dos secundaristas é um interessante fenômeno contemporâneo


que evidencia o quanto a autogestão pode ser mais efetiva e justa que
o status quo. O seu trabalho em rede e uso dos mecanismos digitais pode
inspirar o fortalecimento de todos os movimentos existentes hoje que
aspirem a cidades-livres, a ZATs.

O ganho de escala nas articulação entre autonomias é central nesse


momento, sempre pensando na sua reprodutibilidade, diversidade e
polifonia. É urgente uma nova organização e a possibilidade que cada
indivíduo possua meios de tornar suas vontades conhecidas. As
experiências que têm como objetivo as cidades-livres e sistemas mais
justos, precisam ser democratizadas, ampliadas, inclusivas, pra que
reconstruam o real, o transformando. Amanhã tem que ser maior.

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 8/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius

Mobiliário urbano construído pela sociedade civil, Largo da Batata, São Paulo
Foto Abilio Guerra

notas

1
ANDREOTTI, Libero. Le grand jeu à venir, textes situationnistes. Paris,
Editions de La Villette, 2008.

2
WISNIK, Guilherme. Temos espaço público? . Revista SescTV 10/2015
<www.sescsp.org.br/online/artigo/9498_TEMOS+ESPACO+PUBLICO>.

3
ANDREOTTI, Libero. Op. cit.

4
CALVINO, Italo. Cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

5
Idem, ibidem.

6
CASTORIADIS, Cornelius. Socialismo ou barbárie – o conteúdo do socialismo. São
Paulo, Editora Brasiliense, 1983.

7
ANDREOTTI, Libero. Op. cit.

8
PALLAMIN, Vera. Formas urbanas em mutação (Entrevista com Otília Arantes
realizada em out. 2013). Revista Eptic Online, vol. 16, n. 1, jan./abr. 2014,
p. 58-67 <www.fau.usp.br/wp-
content/uploads/2015/09/entrevista_otilia_arantes.pdf>

9
LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008.

10
Website Rechaim The Streets London <http://rts.gn.apc.org>.

11
ANDREOTTI, Libero. Op. cit.

12
BEY, Hackim. Zonas Autonomas Temporárias. 1990
<www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf>

13
SOBRAL, Laura; VINCINI, Lorena; KARPISCHEK, Tatiana (Org.). Ocupe Largo da
Batata – Como fazer ocupações no Espaço Público – A Batata precisa de
Você.2015. <http://largodabatata.com.br/publicacao>; SOBRAL, Laura. O Largo da
Batata Precisa de Você. Ocupação e apropriação do espaço público. Minha Cidade,
São Paulo, ano 14, n. 166.06, Vitruvius, maio 2014
<www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.166/5176>.

14
BOUFLEUR, Rodrigo. Fundamentos da gambiarra: a improvisação utilitária
contemporânea e seu contexto socioeconômico. Tese de doutorado. São Paulo, FAU
USP, 2013.

sobre a autora

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 9/10
06/02/2018 arquitextos 207.00 urbanidade: A cidade de amanhã | vitruvius
Laura Sobral é arquiteta e urbanista (FAU USP), com intercâmbio na Universidad
Politecnica de Madrid. Atualmente é mestranda na Universidade de São Paulo,
onde pesquisa sobre a produção social dos espaços públicos e comuns. Em janeiro
de 2014 teve a iniciativa do A Batata Precisa de Você, movimento de ocupação
regular do Largo da Batata, São Paulo SP.

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6658 10/10

Você também pode gostar