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1A VERDADE SOBRE A MENTIRA (PARTE 2)

GNOSTICISMO ANTIGO E CONTEMPORÂNEO (1)


.
Por: Leonardo Galdino

O Gnosticismo Antigo

“Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o


Cristo?” (João, o apóstolo – 1Jo 2.22).

“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana,


intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De
fato, as próprias heresias são equipadas pela filosofia”[1].
Foi dessa forma que Tertuliano (160-240 d.C.) ligou a
filosofia de seu tempo ao seu “filhote religioso” mais ilustre,
o Gnosticismo, um amalgamado de filosofia pagã,
esoterismo mitológico e elementos da doutrina apostólica
que veio para tentar apagar o evangelho legado por Cristo
e seus apóstolos da memória da Igreja. Dado o extremo
grau de periculosidade que esse movimento representou
para a manutenção da ortodoxia nas fileiras do
cristianismo, não seria nenhum exagero afirmar que, de
todas as heresias (“mentiras teológicas”) que a igreja
primitiva teve que enfrentar, o Gnosticismo foi, sem
sombra de dúvidas, a pior.

Definir o que foi o Gnosticismo não é uma tarefa fácil, mas


vamos tentar, em princípio, nos deter a algumas de suas
designações mais genéricas. Gnosticismo é um termo que
deriva da palavra grega gnosis, que significa, literalmente,
“conhecimento”. Para os gnósticos, a verdade é secreta, e
somente é revelada a algumas pessoas detentoras de um
“conhecimento” especial (daí o porquê do termo). A
salvação da alma consiste exatamente em descobrir qual é
essa “verdade”, voltando-se o indivíduo para dentro de si
mesmo em busca de suas origens. Essa característica
aproxima o gnosticismo do neoplatonismo, na sua busca de
tentar restabelecer a união com a divindade a partir de
uma interiorização contemplativa. Os gnósticos elaboraram
uma teogonia[2] extremamente complexa a fim de explicar
a origem do universo, incorrendo numa cosmovisão
puramente dualista (Bem x Mal). Segundo eles, o Supremo
e Verdadeiro Deus transcendente e último (não
cognoscível), que habita acima dos universos criados, fez
emanar de si mesmo todas as substâncias visíveis e
invisíveis existentes no mundo. Dessas emanações vieram
os éons, que eram seres divinos intermediários entre o
Supremo Deus e nós. Um desses seres eônicos, chamado
Sofia, teria feito emanar de si mesmo o deus (também
chamado de “Demiurgo”) que criou o mundo material e
psíquico, à imagem da sua própria imperfeição. Este deus
(que é identificado com o Deus do Antigo Testamento),
então, passou a pensar que era o próprio Deus Supremo,
incorrendo em orgulho. É dessa forma que o gnosticismo
explica as mazelas do mundo, bem como toda a corrupção
deste, concluindo, com isso, que toda matéria é
inerentemente má. É no meio de toda essa confusão que os
gnósticos unem elementos da filosofia pagã e do misticismo
esotérico das religiões de mistério para fazerem uma
verdadeira “salada” mística e religiosa.

Ao contrário do que muita gente pensa, essa filosofia não


nasceu dentro do cristianismo. Suas origens remontam às
antigas tradições persas e babilônicas antes mesmo de
Cristo ter nascido. Mas o grande problema para nós foi
quando, tendo surgido o cristianismo, alguns cristãos
presumiram que poderiam aliar as crenças gnósticas às
doutrinas apostólicas, numa “tentativa de explicar Cristo
em termos da filosofia pagã ou da ‘teosofia’”[3]. Isso
resultou num verdadeiro desastre para a Igreja, uma
mancha terrível na história do povo de Deus[4]. As ideias
gnósticas passaram a fazer parte da dieta doutrinária de
muitos grupos ditos cristãos, que já não sabiam mais
delinear marcos entre a ortodoxia e a heresia. A habilidade
dos mestres gnósticos em sintetizar noções gnósticas com
conceitos cristãos, pegando emprestado destes algumas de
suas terminologias, fez com que o próprio evangelho fosse
redefinido, ainda que este se mostrasse totalmente pagão
em eu âmago. Muitos passaram a ensinar que Jesus era um
“éon” que se desviou astuciosamente do mundo das trevas
para trazer esse “conhecimento” secreto (a gnosis),
proporcionando aos espíritos da luz, que habitam nos seres
humanos, a plena liberdade do cativeiro do mundo terreno
e material. A doutrina apostólica, então, passou a ser mais
um elemento a compor a “salada” gnóstica, que agora
passou a autodenominar-se de “cristã”, o que fez com que
o nome do Gnosticismo se associasse ao do Cristianismo
até aos dias atuais (contudo, é bom que fique bastante
claro que não havia um “cristianismo gnóstico”, como
muitos estudiosos de história antiga o querem, e sim, um
“gnosticismo cristão”).

Entretanto, essas simples definições e conceitos não são


capazes de abranger todas as vertentes, modalidades e
nuances próprias do gnosticismo que se instalou no seio da
Igreja. O Gnosticismo, como um sistema de crenças, não
era homogêneo. Havia uma ampla diversidade dentro do
próprio movimento, já que “o pensamento gnóstico oferecia
possibilidades para os ‘inventores’ de religiões, nas quais
cada falso mestre podia inventar sua própria seita”[5].
Irineu (c. 180), bispo de Lyon, na Gália Romana, fala em
pelo menos quatro tipos de gnosticismo existentes em seus
dias: 1) Gnosticismo de tipo sírio (Saturnino); 2)
Gnosticismo de tipo egípcio (Basílides, Valentino);
Gnosticismo de tipo judaizante (Cerinto e os ebionitas); e
4) Gnosticismo de tipo pôntico (Márcion)[6]. Cada uma
dessas variantes tinha suas próprias particularidades (sobre
as quais não pretendemos entrar em detalhes agora). Uma
coisa interessante é que, quando as premissas gnósticas
conflitavam grosseiramente com as doutrinas apostólicas,
os gnósticos “inventavam” suas próprias versões do
evangelho. E o pior de tudo é que eles “assinavam” o
documento como se o mesmo fosse de autoria dos
apóstolos. Até a metade do século vinte, esses
“evangelhos” somente eram conhecidos por nós através
das obras polêmicas de seus críticos mais vorazes, como
Irineu (130-200) em Contra as Heresias e Tertuliano (160-
225) em Contra Márcion. Foi quando, em 1945, uma
“biblioteca gnóstica” foi encontrada em Nag Hammadi, no
Egito, contendo alguns manuscritos dos evangelhos
gnósticos, como por exemplo, o Evangelho de Tomé, o
Evangelho de Filipe, o Evangelho dos Egípcios e o
Evangelho da Verdade. Esses “evangelhos” não visavam
apenas a “‘preencher’ supostas lacunas nas informações
dos canônicos (como, por exemplo, sobre a infância de
Jesus), mas [...] apresentar versões diferentes dos fatos e
pessoas retratados nesses evangelhos”[7]. Um bom
exemplo desses “evangelhos” que procuravam redefinir o
papel de alguns dos personagens tidos como os “vilões” da
história é o famoso Evangelho de Judas (descoberto na
caverna de El Mynia, no deserto do Egito, em 1978), no
qual Judas, apresentado nos Evangelhos canônicos como
um traidor, é redefinido como o único que realmente
compreendeu a mensagem “secreta” que o Mestre veio
trazer. Desse modo, Judas é transformado no “herói” da
história, demolindo toda a sua tradicional fama de vilão.
Embora sua descoberta tenha se dado tão recentemente,
Irineu já fazia referências a ele na sua obra Contra as
Heresias (Livro I, 31.1 – lá aparecem também uns tais de
“cainitas”, uma seita que inocentava a Caim). E não apenas
Irineu, mas todos os tratados polemistas asseveram que o
gnosticismo foi um movimento marginal ao cristianismo, e
não integrante deste; um intruso, e não um convidado; um
“corpo estranho”, e não um órgão; uma gangrena que
precisava ser removida às pressas, numa intervenção
cirúrgica habilidosa.

Mas não devemos pensar que foi apenas no período pós-


apostólico que essa heresia surgiu, não. Há claros indícios,
a partir do próprio Novo Testamento, que a igreja
neotestamentária enfrentou em suas fileiras uma forma
incipiente de gnosticismo. Tertuliano afirma que Paulo tinha
em mente a filosofia gnóstica quando advertiu aos cristãos
colossenses para que estes tomassem cuidado com certas
“filosofias e vãs sutilezas, conforme os rudimentos do
mundo e não segundo Cristo” (Cl 2.8)[8]. Sugere-se que os
hereges de Colossos estavam unindo elementos judaicos,
crenças populares da Frigia e “germens” de gnosticismo ao
evangelho, promovendo um verdadeiro sincretismo
religioso, o que lhes rendeu a pecha de “heresia
colossense” – um sistema de crenças absolutamente
estranho. É possível também que sejam essas as “fábulas”
e “genealogias sem fim” que Paulo fala aos jovens pastores
Timóteo (1Tm 1.4) e Tito (Tt 1.14), sobre as quais eles
deveriam tomar o máximo de cuidado. Ainda que não nos
seja possível fazer uma absoluta associação desses erros
com o gnosticismo, devemos pelo menos reconhecer certos
pontos de semelhança entre eles.

Contudo, as principais evidências da infiltração gnóstica na


igreja neotestamentária encontram-se nos escritos do
apóstolo João, especialmente nas suas cartas. Nelas, o
apóstolo nos dá algumas informações do tipo de
gnosticismo que a igreja de então estava enfrentando. A
principal acusação de João contra os ensinos heréticos era
que “muitos enganadores tem saído ao mundo, os quais
não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o
enganador e o anticristo” (2Jo 7 – ênfase minha). Na
realidade, essa negação da encarnação de Jesus é uma
doutrina gnóstica que ficou conhecida depois como
Docetismo (do grego dokeo – lit. “parecer”, “aparência”).
Essa variante gnóstica ensinava que todas as
manifestações da natureza humana de Jesus eram apenas
uma aparência, uma ilusão de ótica (uma espécie de
holograma). Sendo assim, seguindo a premissa gnóstica
básica de que a matéria é essencialmente má, os falsos
mestres, além de negarem a humanidade de Jesus
(encarnação), negavam também a própria crucificação e
ressurreição deste, atribuindo tudo a uma mera ilusão, já
que Deus não poderia ter assumido a forma humana, em
Jesus. João também nos informa que os hereges, de igual
modo, negavam a divindade de Jesus. Essa outra variante
gnóstica pode ser atribuída a um homem chamado Cerinto,
que residia em Éfeso e foi, inclusive, contemporâneo (e
possível adversário) do próprio João. De acordo com Irineu,
um polemista do segundo século, Cerinto “representava
Jesus como não tendo nascido de uma virgem, mas como
sendo filho de José e Maria segundo o curso comum da
geração humana, enquanto que era, não obstante, mais
justo prudente e sábio do que os outros homens. Além
disso, depois do seu batismo, Cristo desceu sobre ele, em
forma de pomba, vindo do Supremo Regente, e que depois
proclamou o desconhecido Pai, e realizou milagres. Mas por
fim Cristo separou-se de Jesus, e então Jesus sofreu e
ressuscitou, enquanto Cristo permaneceu impassível [isto
é, “não sujeito a dor ou ferimento”], visto que era um ser
espiritual”[9]. A ideia de Cerinto sugere que Jesus não era
verdadeiramente Deus, mas que foi habitado pelo Cristo,
uma emanação do éon divino que desceu sobre o homem
Jesus. Esse Cristo veio sobre Jesus por ocasião do seu
batismo, mas o deixou por ocasião da sua crucificação. Isso
faz com que a divindade de Jesus seja algo imposto, vindo
de fora, e não inerente a ele. Esse pensamento de Cerinto
foi aderido pelos Ebionitas[10], uma seita gnóstica de tipo
judaizante do fim do primeiro século. Para João, contudo,
tanto a negação da encarnação quanto da divindade de
Jesus constitui-se em verdadeira mentira teológica. Uma
das definições que o dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa dá para mentira é “aquilo [...] que se aproxima
da verdade ou é real apenas na aparência” (ênfase minha).
João concordaria plenamente com essa definição. Se Cristo
era apenas uma “aparência”, como queriam os docetistas,
então o próprio Deus era um mentiroso, e Jesus, uma
mentira; se Jesus não tinha um corpo físico, então ele não
foi para a cruz para morrer pelos nossos pecados, muito
menos ressuscitou para a nossa justificação (cf. Rm 4.25).
Por este motivo, para o apóstolo João qualquer coisa que se
aproxime da verdade, mas que não seja exatamente a
Verdade, não passa de pura mentira; qualquer um que
negue que Jesus é o Cristo (plenamente humano e
plenamente divino) é um mentiroso (1Jo 2.22).

As fortes ênfases joaninas à retidão do viver cristão em


oposição às dissoluções carnais sugerem que esses falsos
mestres também ensinavam que o cristão poderia pecar à
vontade, pois não fazia diferença alguma, visto que a carne
má. O apóstolo combate essa ideia com veemência,
dizendo que “todo aquele que é nascido de Deus não vive
na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina
semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é
nascido de Deus” (1Jo 3.9 – ênfase minha). Outra
característica desses falsos mestres era a sua flagrante
falta de amor para com os outros irmãos, uma vez que o
acesso às verdades espirituais (a “gnose”) pertencia
somente aos “iluminados”. Isto posto, duas categorias de
crentes foram criadas: a dos “iluminados” e a dos “não-
iluminados”. João combate essa falácia ao dizer que “se
[...] andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos
comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu
Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7 – ênfase
minha). O apóstolo é mais enfático ainda quando diz que
“se alguém disser: Amo a Deus, e odiar seu irmão, é
mentiroso, pois aquele que não ama a seu irmão, a quem
vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4.20 –
ênfase minha). João é tão vigoroso em seu combate ao erro
que ele adverte a um grupo de cristãos a não receber em
suas casas qualquer um que não traz a sã doutrina, muito
menos dar-lhes as boas-vindas, “porquanto aquele que lhe
dá boas-vindas faz-se cúmplice das duas obras más” (2Jo
10,11). Quanto a isso, Irineu, em sua conhecida obra
Contras as Heresias, no livro III, nos traz um episódio
interessante envolvendo João e Cerinto, contado por
Policarpo, bispo de Esmirna e discípulo de João: “E há
quem o tenham ouvido dizer que João, o discípulo do
Senhor, indo banhar-se em Éfeso e tendo visto Cerinto nos
banhos, saltou para fora das termas sem ter-se banhado e
disse: ‘Fujamos, não ocorra que também as termas
venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da
verdade’”[11]. O zelo que João nutria pela verdade legou
para os cristãos subseqüentes a munição necessária para
que o erro religioso fosse combatido.

De fato, a heresia gnóstica teve que mover um verdadeiro


arsenal de defensores da ortodoxia: os polemistas[12].
Inácio de Antioquia, Irineu, Justino, o mártir, Tertuliano e
Hipólito foram alguns deles. Não era fácil combater os
mestres gnósticos, pois, além de eles serem ótimos
debatedores, o próprio gnosticismo, como já vimos, era
bastante diversificado. Alguém comparou o gnosticismo à
Hidra, um monstro (serpente) mitológico que tinha várias
cabeças. Quando se cortava uma, nascia outra em seu
lugar. Assim era o gnosticismo dos primeiros séculos. Por
essa razão, essa heresia, enquanto sistema, não era fácil
de ser refutada, uma vez que suas premissas
possibilitavam aos inventores de religião criar o seu próprio
“gnosticismo” com os elementos que preferissem. Dentre
os principais mestres gnósticos estavam Saturnino (c.120);
Basílides (c. 130); Valentino (c. 140), seu sucessor;
Carpócrates; Cerinto; e Cerdon, dentre outros[13]. Mas
nenhum deles, talvez, tenha chegado aos pés de um
homem natural do Ponto, chamado Márcion (c. 160),
sucessor de Cerdon. Dentre os mestres gnósticos ele foi,
sem sombra de dúvidas, um dos maiores inimigos do
cristianismo. Alguns chegam até a afirmar que, se havia
alguém capaz de aniquilar o cristianismo nos primeiros
séculos, esse alguém era Márcion. Irineu dedica boa parte
da sua obra Contra as Heresias no combate a esse falso
mestre, acusando-o de, por exemplo, mutilar o Evangelho
de Lucas, “rejeitando narrativas referentes ao nascimento
do Senhor”, uma vez que era docetista. Márcion também,
segundo Irineu, mutilou as cartas de Paulo, “eliminando
delas tudo que declara ser o Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo o Deus que fez o mundo, bem como o ensino dos
profetas anunciando o advento de nosso Senhor”. Ele
estava criando o seu próprio cânon, o que forçou a Igreja a
delimitar e reconhecer quais eram os livros
verdadeiramente inspirados. Além disso, ele “persuadiu
seus discípulos de que merecia mais crédito do que os
apóstolos que legaram o Evangelho”[14]. Inácio de
Antioquia também parece combater os ensinos de Márcion
quando adverte os cristãos de sua época: “Torna-te surdo,
quando te falam de um Jesus Cristo fora daquele que foi da
família de Davi, filho de Maria, nasceu autenticamente,
comeu e bebeu, padeceu verdadeiramente sob o poder de
Pôncio Pilatos, foi crucificado e morreu verdadeiramente...
De que me valeria estar em cadeias, se Cristo sofreu
somente na aparência, como certos pretendem? Esses, sim,
não passam de meras aparências”[15]. A pergunta feita por
Inácio ecoa o mesmo argumento que Paulo havia exposto
aos coríntios: “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa
pregação, e vã, a nossa fé” (1Co 15.14). Outro polemista
importante, Tertuliano, afirma que Márcion herdou o “bom
deus” sossegado dos estóicos, uma vez que Márcion cria
que o deus do Antigo Testamento é mau, cruel e
imperfeito. Por este motivo ele se negava a identificar o
deus veterotestamentário com o Deus do Novo Testamento
que, segundo ele, era o verdadeiro Pai de Jesus. Tertuliano
ainda afirma que “quando Márcion afirma que a alma
perece, obedece a Epicuro; quando nega a ressurreição da
carne, segue o parecer de uma dentre todas as filosofias;
quando confunde matéria e Deus, repete a lição de Zenon;
quando alude a um deus de fogo, torna-se aluno de
Heráclito”[16]. Toda essa série de coisas fez com que
Márcion se tornasse a persona non grata mais eminente
dentre os hereges de sua época. Isso é atestado por uma
ocasião em que ele, ao topar com Policarpo, perguntou-lhe:
“Reconheces quem eu sou?”, ao que Policarpo respondeu:
“Reconheço. És o primogênito de Satanás”[17]. Decerto,
havia muitos outros hereges gnósticos altamente perigosos,
mas entrar em detalhes sobre a vida de cada um nos
exigiria uma investigação mais intensa (e extensa).

A influência gnóstica foi realmente uma praga dentro da


Igreja, pois sua filosofia serviu de base para todas as
outras heresias que surgiriam logo em seguida,
principalmente àquelas que envolviam a Pessoa de Cristo e
a Trindade[18]. Mas isso foi, de certa forma, bom, porque
foi ali que a Igreja começou a cerrar fileiras e a fazer
algumas definições teológicas importantes, como aconteceu
nos concílios de Nicéia (325), Éfeso (431) e Calcedônia
(451), por exemplo. As heresias, num certo sentido,
“ajudaram” a Igreja na formulação dos credos mais
importantes do cristianismo, como o famoso Credo
Apostólico. Como bom calvinista, penso que tudo foi
providencial. É claro que não podemos cair no erro de
“louvar” os hereges por isso, mas também devemos
reconhecer o que de positivo tudo isso trouxe à fé cristã de
um modo geral.

Como deve ter ficado mais do que evidente em nossa breve


pesquisa, o gnosticismo é totalmente incompatível com a
doutrina dos apóstolos e, por extensão, com todo o
restante das Escrituras. As tentativas de se conciliar as
duas partes não passam de teimosia incrédula. Os mestres
gnósticos não estavam atacando apenas pontos
“periféricos” do evangelho, e sim, o próprio cerne dele: a
Cruz de Cristo. Sem a cruz não há Cristo; sem a cruz não
há ressurreição; sem a cruz não há justificação; sem a cruz
não há redenção; em suma, sem a cruz não há evangelho.
Mas o esforço dos hereges não foi suficiente para aniquilar
a cruz, pois o próprio Cristo havia prometido que “as portas
do inferno” não prevaleceriam contra a sua Igreja (Mt
16.18). A ortodoxia, a despeito dos fortes ataques que
sofreu, se manteve de pé. Entretanto, os rastros do antigo
gnosticismo perduraram, chegando até aos dias de hoje por
diversos meios e de diversas formas e nomes, continuando
a incomodar a Igreja militante de Cristo aqui na terra. A
mentira ainda ronda por aí. Mas esse é um assunto para
uma próxima conversa.

Continua na próxima postagem da série “A verdade sobre a


mentira”, se Deus permitir...

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