Você está na página 1de 7

05/05/2020 A invenção da duração - Revista Cult

A invenção da duração

62

(https://revistacult.uol.com.br/home/novo/2010/12/a-invencao-da-
duracao/bergson/)

 Eduardo Socha
Ilustração Sattu 

Você está parado no trânsito às 6 da tarde. Ouve a rouquidão opaca dos


motores dos ônibus, o zumbido das motos, a impaciência ocasional das
buzinas. O tempo parece amordaçado como se não quisesse fluir também.
Então você resolve tirar do bolso seu tocador de mp3, ajeitar bem os fones
de ouvido e escolher uma faixa do álbum predileto. Sua experiência do
tempo vai assumindo outra feição, e os instantes passam a se amalgamar
uns aos outros com uma qualidade bastante distinta do tempo anterior. A
quantidade de tempo não muda: um segundo continua um segundo,
tautologia assegurada pela isocronia do ponteiro (ou display) do relógio.
Mas você sente agora que os instantes se dilatam e se contraem segundo
uma contingência peculiar, promovida pelo encadeamento sonoro da
música. Antes amordaçado, o tempo agora corre mais rápido ou anda mais

https://revistacult.uol.com.br/home/a-invencao-da-duracao/ 3/15
05/05/2020 A invenção da duração - Revista Cult

devagar, dando-lhe a certeza de que sua percepção da passagem do tempo,


enquanto ouve música, não coincide com aquela enquanto ouvia apenas
ruídos do trânsito. Ao contrário do que sugere a cadência fixa do relógio,
você realmente não sente os instantes de maneira quantitativa e exata. Ou
seja, a passagem do tempo não é vivida pela sua consciência à semelhança
de um relógio, no qual uma série quantitativa, marcada pela divisão em
segundos, minutos e horas estabelece previamente a equivalência de todos
os instantes. Na realidade, você vive uma sucessão ininterrupta de
momentos qualitativos que não são divisíveis entre si, que se misturam uns
aos outros e se organizam em sua memória com um aspecto único e
intraduzível.

Dito de outro modo, vivemos o tempo de um jeito, mas geralmente


o pensamos de outro: esse enunciado, banal apenas na aparência,
deu esteio a paradoxos reincidentes na história da filosofia. De
fato, estamos condicionados a pensar o tempo como uma dimensão
quantitativa, cujos elementos internos são homogênos e definidos
de antemão, o que nos permite balizar o tempo por meio de
segundos, minutos, horas, dias, meses, anos e outras unidades de
medida, conforme a conveniência da nossa necessidade particular.
Assim, por força do hábito e, mais do que isso, por imposições
práticas e fundamentais de sobrevivência, identificamos o tempo
com uma linha sequencial de eventos. Consequentemente,
construímos instrumentos e técnicas a fim de mensurá-lo,
orientando nossas atividades partindo de segmentações
apropriadas, seja no uso do relógio de césio, da clepsidra, do
calendário, do azimute do sol ou do ciclo das marés.

Contudo, no interior de nossa experiência vivida, sentimos o fluxo


do tempo como uma multiplicidade indivisível e heterogênea, que a
cada instante se altera, se dilata, se contrai, reconfigurando
instantes já passados, criando expectativas para instantes futuros.
Por maior que seja nossa capacidade de antecipação, vivemos sob a
torrente criadora da imprevisibilidade e da mudança, o que não nos
impede de agir e pensar com regimes específicos de previsibilidade.
Tal constatação, que sentimos na experiência mais trivial do nosso
https://revistacult.uol.com.br/home/a-invencao-da-duracao/ 4/15
05/05/2020 A invenção da duração - Revista Cult

dia a dia, poderia ser finalmente resumida assim: os instantes, em


instrumentos como o relógio, são sempre iguais entre si; quando
vividos, são sempre diferentes.

Fácil na aparência
Reconhecemos desde já, portanto, duas modalidades para definir a
noção de tempo. Por um lado, há o tempo considerado em uma
dimensão quantitativa, tempo que pode ser medido, representado
conceitualmente, submetido a cálculos e previsões: o tempo
objetivo que, afinal, não depende de nossa consciência nem de
nossa situação particular. Por outro, há o tempo considerado como
fluxo qualitativo, íntimo, ligado aos estados internos da nossa
consciência e, por isso, refratário ao cálculo e ao conceito: o tempo
subjetivo que corresponde à efetiva passagem dos instantes nas
nossas diferentes situações de vida. Não se trata de dualismo, mas
de duas faces distintas para compreendermos com maior precisão
aquilo que designamos singularmente pela palavra “tempo”.

Não seria exagerado dizer que toda a obra filosófica de Henri


Bergson (1859-1941) apoia-se na “descoberta” dessa realidade. Por
mais singela que ela aparente ser, a distinção entre duas
modalidades de compreensão do tempo convida a uma reforma
complexa e radical do pensamento. Daí a grande armadilha na
filosofia de Bergson, com a qual eventualmente se deparam tanto o
leitor iniciante quanto o especialista. Sua linguagem às vezes
mostra-se fácil e acessível na superfície das frases, nas metáforas
balanceadas pela argumentação formal e impecável, na textura
cristalina da prosa em um registro meditativo. Nesse sentido, não é
casual que tenha recebido o Nobel de Literatura, em 1927, sem
nunca ter escrito uma obra de ficção. No alcance de seu conteúdo e
na profundidade da reforma que ambiciona, porém, a
complexidade do projeto rigoroso de Bergson o coloca entre os
precursores do pensamento contemporâneo, assegurando-lhe
lugar no panteão dos pensadores mais ambiciosos da história da
filosofia.

https://revistacult.uol.com.br/home/a-invencao-da-duracao/ 5/15
05/05/2020 A invenção da duração - Revista Cult

Sem dúvida, uma ousadia quase messiânica permeia a


originalidade do gesto teórico de Bergson. Pois, tomando a
confrontação do tempo como ponto de partida para o ato de
filosofar, o pensamento bergsoniano ambiciona não apenas a
revisão de uma filosofia específica (o que perpetuaria o anátema de
Kant segundo o qual a metafísica se reduz a um eterno “palco de
disputas” entre doutrinas), mas ambiciona a revisão da filosofia
em geral. Ora, para Bergson, “filosofar consiste em inverter a
marcha habitual do trabalho do pensamento”. Mas, para que tal
inversão ocorra, torna-se necessário reenquadrar metodicamente
alguns dos problemas clássicos da metafísica – como os problemas
da liberdade, do ser, da necessidade e contingência, da relação
entre corpo e alma – segundo os parâmetros oriundos da
“descoberta da duração”.

Ilusões da percepção
Usamos a palavra “duração”, provavelmente o termo mais
importante do pensamento de Bergson, e menos saturado de
sentido do que a palavra “tempo”. Seu significado não poderia ser
mais direto: a duração refere-se ao tempo qualitativo que
descrevemos acima, àquela natureza contínua do tempo. Nas
palavras do filósofo, trata-se daquilo “que sempre se chamou de
tempo, mas o tempo percebido como indivisível”.

Bergson aponta para a confusão histórica que se estabelece entre a


duração (tempo qualitativo), que não pode ser traduzida por
símbolos, representações ou conceitos, e a medida da duração
(tempo quantitativo, espacializado). No torvelinho dessa confusão,
observa que a metafísica ocidental colocou para si uma série de
dificuldades intransponíveis, que invadem o raciocínio de maneira
não enunciada e sub-reptícia. Já na Antiguidade, os eleatas
proscreviam ao tempo, à mudança, ao movimento, à mobilidade o
direito de cidadania ontológica. Seriam, afinal, ilusões da nossa
percepção e degradação de essências, pois “o verdadeiro é o que
não muda”. Mas, para Bergson, os famosos “paradoxos de Zenão”
já apontavam para a equivocidade caracterizada pela ausência de
https://revistacult.uol.com.br/home/a-invencao-da-duracao/ 6/15
05/05/2020 A invenção da duração - Revista Cult

distinção entre tempo quantitativo e tempo qualitativo, ou seja,


pela identificação exclusiva do tempo com uma projeção
espacializada de instantes – equivocidade que se perpetuaria, por
exemplo, na cisão platônica entre mundo inteligível e mundo
sensível, no cogito cartesiano, ou nas antinomias descritas na
Crítica da Razão Pura, de Kant.

Para além de paradoxos e antinomias, o que Bergson procura


detectar historicamente na filosofia e também na ciência de seu
tempo é tanto o privilégio ontológico concedido às formas estáveis,
à imobilidade, às representações conceituais, quanto a
desconfiança em relação aos sentidos, à mobilidade, à fluidez
instável do devir, às sensações que se transfiguram na consciência,
como fontes autênticas do conhecimento. O tom grandiloquente da
declaração mostra o tamanho do combate a ser empreendido:
“Nenhuma questão foi mais desprezada pelos filósofos quanto a do
tempo e, no entanto, todos concordam em declará-la fundamental
(…). A chave dos maiores problemas filosóficos está aí”, escreve em
Duração e Simultaneidade, livro que se propõe a debater, em solo
científico, nada menos do que o conceito implícito de tempo,
assimilado como quarta dimensão do espaço, na Teoria da
Relatividade, de Einstein. Para o filósofo, o exame da Teoria da
Relatividade justifica-se na medida em que toda formalização
científica carrega consigo os pressupostos de uma metafísica
particular que resiste em se apresentar como tal.

Pensar em duração
Mas, em se tratando exclusivamente de filosofia, “inverter a
marcha habitual” do pensamento significa mostrar, antes de mais
nada, que boa parte de suas questões clássicas seria dissolvida
como “falsos problemas” mediante o reconhecimento da natureza
qualitativa do tempo. Para tanto, o método bergsoniano exige um
pensar em duração – a intuição, que pouco ou nada tem a ver com a
acepção que comumente damos à palavra.  O método comportaria
duas etapas indissociáveis: a “etapa crítica” e a “etapa

https://revistacult.uol.com.br/home/a-invencao-da-duracao/ 7/15
05/05/2020 A invenção da duração - Revista Cult

propositiva” (como esclarece o livro monumental de Bento Prado


Júnior Presença e Campo Transcendental – Consciência e Negatividade
na Filosofia de Bergson).

Na etapa crítica, cuja forma mais acabada seria o “lance de olhos


na história dos sistemas” que Bergson realiza no último capítulo
de Evolução Criadora (sua obra mais conhecida), descreve-se a
progressiva racionalização do tempo e o ocultamento de seu
aspecto qualitativo no campo do conhecimento. Bergson considera
que o próprio embate epistemológico entre idealismo e realismo
está contaminado pelos vícios de um jogo de ideias abstratas que
não aderem efetivamente à realidade, que ignoram a presença
substancial da duração.

Evidentemente, o jogo não é gratuito, pois há uma propensão


natural do pensamento à dimensão prática da existência humana, e
sua “marcha habitual” equivale a recortar da realidade a face útil,
abstrata, calculável, que favorece a ação. “Pensar”, diz Bergson,
“consiste em ir dos conceitos às coisas, e não das coisas aos
conceitos”, o que leva a ciência e o senso comum a considerar o
tempo e o espaço como coisas do mesmo gênero. Por isso, aliás,
dizemos que podemos “medir”, “localizar” e “situar” um
momento qualquer na “linha” do tempo – às vezes, não nos damos
conta de que esses termos se aplicam não à duração em si, mas a
uma projeção espacializada da duração na qual seria possível até
“voltar” no tempo.

Ocorre que a inclinação pragmática do pensamento, que sobrepõe


um feixe de conceitos e ideias à realidade, contamina a especulação
metafísica, forçada a se acomodar aos hábitos de uma linguagem
que estabiliza e cristaliza o devir em palavras e conceitos. Na etapa
crítica, é preciso, portanto, denunciar a intrusão de uma concepção
espacializada de tempo lá onde menos se espera. Assim, cada livro
e cada ensaio de Bergson empenham-se na “depuração” crítica das
concepções espacializadas da duração que permeiam o campo do
conhecimento filosófico.
https://revistacult.uol.com.br/home/a-invencao-da-duracao/ 8/15
05/05/2020 A invenção da duração - Revista Cult

A partir daí, o filósofo reposiciona nossa maneira de entender a


liberdade, a memória, a percepção, a existência, a linguagem, a
evolução vital. Na etapa propositiva do método, paralela à crítica,
trata de afirmar que tempo é processo, é justamente aquilo que
impede que tudo seja dado de uma só vez. Pensar em duração é
pensar a própria transição vivida entre os instantes, é ver na
elaboração do tempo a indeterminação das coisas. Ao conceder
maior estatuto ontológico àquilo que muda e se diferencia, ou seja,
dando mais “Ser” ao “Tempo” do que às “Formas”, Bergson
encontra na duração não mais o receptáculo formal e vazio a ser
“preenchido” pelo conteúdo da experiência (como acontece no
relógio), mas redescobre a duração como a experiência imediata à
consciência, forma e conteúdo inseparáveis, trazendo implicações
para um conhecimento que não mais reconstrói a realidade com
base em conceitos e formas, mas que adere às “sinuosidades” e às
diferenças qualitativas da realidade.

A tarefa parece difícil. “Sim, o tempo é um enigma singular, difícil


de resolver”, sentenciava Thomas Mann em A Montanha Mágica. No
entanto, tal enigma se dissipa quando resolvemos inverter a
marcha habitual do pensamento. Quando reencontramos, afinal,
nem que seja por um tempo, a interioridade vivida dos ruídos e
silêncios do próprio tempo.

(8) COMENTÁRIOS

DEIXE O SEU
CO M E N TÁ R I O
Você precisa fazer o login
(https://revistacult.uol.com.br/home/wp-login.php?
itsec-hb-token=painel-

https://revistacult.uol.com.br/home/a-invencao-da-duracao/ 9/15

Você também pode gostar