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O chapéu do Mago - Italo Marsili
Impresso no Brasil. 1a edição, Novembro de 2020.

Os direitos desta edição pertencem a

WRL Cursos e Eventos LTDA.


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CEP: 87.015-280 - Maringá, PR
Telefone: (44) 99129-9578
E-mail: italo@italomarsili.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M372c.

Marsili, Italo.
O chapéu do Mago / Italo Marsili - Maringá, PR: Real Life Books, 2020.
288 p.

ISBN: 978-65-87926-19-3

I. Titulo II. Marsili, Italo

CDD 150 / 155.25 / 158.1

Índices para Catálogo Sistemático:

1. Psicologia - 150

3. Auto-ajuda: Aperfeiçoamento pessoal - 158.1

Direção Geral
Arno Alcântara
Editor
Luíza Monteiro de Castro Dutra Araujo
Revisão
Raíssa Prioste

Matheus Bazzo
Capa
Vicente Pessôa
Diagramação:
Gabriela Haeitmann

Reservados todos os direitos desta obra.


Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja
ela
eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução,
sem
permissão expressa da editora.
SUMÁRIO

Introdução.............................................................. 6

O mago ...................................................................... 24

A papisa ...................................................................... 92

A imperatriz ......................................................... 136

Mitos gregos e exílio interior ................ 196

Culpa existencial e fracasso......................232

Posfácio...................................................................285
INTRODUÇÃO
7

A quem este livro se dirige

N
ão escrevi este livro exclusivamente para psicólogos,
psiquiatras, psicanalistas, terapeutas e coaches, mas
também para leigos — pois Psicologia é um assunto
tão interessante e necessário, que não deveria ser propriedade
exclusiva dos profissionais da área.
Conhecer Psicologia pode equipar qualquer pessoa mini-
mamente interessada e capaz com um ferramental que lhe per-
mitirá olhar com mais atenção para suas relações, seu mundo
interior, seus projetos, enfim, para sua instalação no mundo.
Além disso, muitas pessoas fazem terapia sem conhecer mi-
nimamente a linha a que estão sendo submetidas, nem a visão
de mundo de seu terapeuta, nem mesmo o que ele pretende
com aquilo que está fazendo no setting terapêutico. Eu quero
que os leigos — façam eles terapia ou não — também conhe-
çam um pouco sobre as escolas de Psicologia Contemporânea,
sobre as principais linhas terapêuticas.
8

Mas não só. Ao longo deste livro, farei constantes remissões


às tradições hermética, simbólica e filosófica, de modo a sem-
pre acrescentar referências que, infelizmente, são desconheci-
das pelos homens de nosso tempo.
Não estranhe, portanto, se topar com menções a Platão,
Aristóteles e Santo Tomás de Aquino; sem eles você definiti-
vamente não entenderá nada de Psicologia.

Uma abordagem simbólica


da Psicologia
Eu poderia começar um curso de Psicologia de várias manei-
ras; uma delas seria pela apresentação da História da Psicologia.
Esta seria uma abordagem sem dúvida muito interessante, já que
todos os elementos históricos são bastante envolventes. Quando
uma história é bem contada, os ouvintes ou leitores conseguem
entrar no cenário, examinar seus detalhes e deixar-se encantar
pela vida dos homens, por seus feitos e pensamentos.
Eu poderia, ainda, fazer uma abordagem técnica. De fato,
ao longo deste livro, falarei de técnica várias vezes.
Mas não é minha pretensão começar de nenhuma dessas
duas maneiras. Optei pela via simbólica. Um eixo simbólico lhe
permitirá compreender, em linhas gerais, o que entendo por
Psicologia e como ela pode se transformar em uma ferramenta
muito útil para que psicólogos e psiquiatras auxiliem seus pa-
cientes — e as pessoas em geral auxiliem a si mesmas e aqueles
com quem convivem.
Se vou seguir pela via simbólica, será necessária uma matriz
simbólica, e são inúmeros os edifícios simbólicos aos quais é
possível recorrer. Eu poderia fazer uma Psicologia a partir das
Sete Moradas de Santa Teresa D’Ávila (e não seria difícil); ou
a partir das centúrias de Máximo, O Confessor; ou a partir dos
trinta degraus de São João Clímaco; ou ainda a partir da sepa-
ração prismática das cores do arco-íris. Se eu usasse, todavia,
um dos exemplos citados, a coisa ficaria muito desconectada da
compreensão dos homens de hoje.
9 introdução

Por isso, o fio condutor simbólico que escolhi para este livro
é o Tarô.

Por que o Tarô?


Sim, o Tarô.
E você deve estar se perguntando por que, dispondo de tan-
tas outras opções, eu escolhi justamente o Tarô.
Eu o fiz, porque o Tarô é um fio condutor simbólico ma-
ximamente profundo, que simboliza realidades complexas e
difíceis — como veremos mais adiante — e que, assim como
a Astrologia e a Alquimia, foi uma ferramenta amplamente
utilizada pelos psicólogos contemporâneos de maior reno-
me. Todo o edifício junguiano e uma boa parte do edifício
freudiano (para não dizer todo ele) baseiam-se na simbólica
dessas ciências ocultas. Portanto, se o sujeito que se interessa
por Psicologia não conhece nem entende a base teórica des-
sas ciências, ele não entenderá a própria técnica da Psicologia.
Ter um conhecimento mais aprofundado sobre o ocultismo é
necessário ao interessado e ao estudioso de Psicologia, seja ele
já profissional ou ainda acadêmico em formação.
Existem materiais realmente bons sobre a Gramática As-
trológica (que não são necessariamente materiais de formação
para que você aprenda a ser um astrólogo). No entanto, sobre o
Tarô há pouquíssimos materiais que se pode levar a sério, em-
bora tanto ele quanto a Alquimia tenham sido muito usados
por Jung no desenvolvimento de seu edifício teórico.
O Tarô se divide em 78 Arcanos — ou chaves de compre-
ensão —, sendo 22 Arcanos Maiores e 56 Arcanos Menores.
Disso derivam muitas coisas da Psicologia de hoje, como a ne-
cessidade da terapia, a necessidade de um diário, como fazer
para conhecer-se a si mesmo, o que é o eu, o que é o ego...
E por aí vai.
Aqui, importam-nos os 22 Arcanos Maiores, que serão as
nossas chaves de compreensão. É como se houvesse um kit de
ferramentas com 22 chaves, e cada uma delas fosse usada para
10

abrir certa realidade do mundo, oferecendo a nós a oportuni-


dade de compreendê-la.
Os 22 Arcanos Maiores contam a história de qualquer ini-
ciativa humana, partindo do início, até o final (quando ocorre o
domínio dessa iniciativa humana sobre o mundo). A pretensão
do Tarô é apresentar essas chaves para que você compreenda
verdades ocultas ou difíceis de ver.
O maior sofrimento do nosso tempo é a perda de um cer-
to olhar, é uma dificuldade de ver as coisas fundamentais. Na
língua árabe, a expressão “ser humano” (insan) significa “aquele
que se esquece”; mas se esquece não de qualquer coisa senão
somente daquilo que é fundamental.
Pagar boletos e pegar os filhos no colégio são coisas das quais
não nos esquecemos habitualmente. Elas ficam registradas num
lugar muito periférico do nosso eu; sempre pedem para retornar
e, como estamos constantemente voltando a lhes dar atenção,
jamais nos esquecemos delas. Por outro lado, esquecemo-nos
do fundamental, como, por exemplo, de fazer as perguntas bá-
sicas que vão nos orientar neste mundo: “De onde vim?”, “Para
onde vou?”, “O que se espera de mim?”, “Quem sou eu?”, “De que sou
feito?”. Dessas coisas a gente se esquece a todo instante.
A primeira coisa que os Arcanos Maiores pretendem é cha-
mar-nos a atenção para aquilo que é fundamental. Eles exis-
tem para nos lembrar daquelas verdades fundamentais de que,
habitualmente, nos esquecemos.
Os Arcanos — e o Tarô como um todo — fazem parte de
uma grande tradição que subsistiu ao longo dos séculos até a
contemporaneidade, sobretudo na França. A Europa ainda é
um lugar no qual se faz ciência com essa sabedoria; lá existe
toda uma tradição simbólica, chamada Hermetismo, que tenta
conservar esse olhar profundo para o mundo a partir da ciên-
cia do Tarô. O Hermetismo é fundamental para entendermos
tudo o que se faz na Psicologia Contemporânea: sem ele, não
há compreensão possível dela.
No Ocidente, há escolas de sabedoria simbólica que pre-
tendem manter vivos esses símbolos no imaginário do homem.
11 introdução

Como disse, uma dessas escolas é o Hermetismo, e o Tarô é uma


ferramenta que condensa uma série de saberes herméticos.
Precisamos falar do Tarô, porque toda a Psicologia Con-
temporânea se baseia nele.
Você sabia que Sigmund Freud, por doze anos, jogava Tarô
todas as quartas-feiras para seus pacientes? Sua finalidade era res-
ponder a uma pergunta: “Existe liberdade, ou meus pacientes estão
condicionados pelo saber dos Arcanos, pelo saber das lâminas do Tarô?”
Ele tinha esse olhar simbólico. Também, pudera: é dali que vem
boa parte de seu edifício teórico, conceitual, prático e técnico.
Muita gente também desconhece que Freud estava imerso
em uma literatura de satanismo judaico; ele bebia da tradi-
ção mística judaica. No fantástico livro “Sigmund Freud and the
Jewish Mystical Tradition” (“Freud e a Tradição Mística Judai-
ca”), ainda sem tradução para o português, David Bakan apre-
senta a conversa de Freud com a literatura espiritual satânica e
angélica dos judeus.
Freud estava imerso nessa tradição e, se não voltarmos nos-
so olhar para isso também, jamais entenderemos a Psicologia
Contemporânea.

Um aviso aos religiosos


que se escandalizam com o Tarô
Em nosso tempo, quando se fala em Tarô, a primeira coisa que
vem à cabeça das pessoas é aquela ferramenta prática que as
cartomantes utilizam para fazer previsões, como um oráculo
divinatório. Vê-se o tarólogo ou a cartomante como alguém
que se procura para ler o futuro; como se a sorte de cada um
estivesse disposta naquelas cartas e como se, a partir de uma
consulta, você pudesse entender o que vai lhe acontecer.
Esse tipo de prática atenta contra a liberdade humana, é
puro determinismo; e é por isso que várias tradições religio-
sas condenam que se recorra não só ao Tarô, como também à
Astrologia ou a quaisquer outros meios, se usados como ferra-
mentas para prever ou adivinhar o futuro.
12

Há, por exemplo, uma prescrição no livro bíblico de Deu-


teronômio reprovando práticas como a adivinhação e a comu-
nicação com os mortos: “Não se ache no meio de ti quem faça
passar pelo fogo seu filho ou sua filha nem quem se dê à adi-
vinhação, à astrologia, aos agouros, ao feiticismo, à magia ou
à invocação dos mortos, porque o Senhor, teu Deus, abomina
aqueles que se dão a essas práticas.” (Dt 18, 10-14). A conde-
nação de práticas divinatórias repete-se em várias passagens
do Antigo Testamento (Lv 19, 31; Lv 20, 6; 2Rs 17, 17). De
fato, não só a tradição judaico-cristã em que estamos inseri-
dos, como também outras tradições religiosas condenam tais
práticas. Por essa razão, católicos e evangélicos não deveriam
recorrer à cartomancia, ou seja, ao uso de baralhos como o Tarô
para fazer adivinhação.
Contudo, eu lhe pergunto: você sabe realmente o que é o
Tarô? Você alguma vez viu ou fez um curso sério sobre o Tarô?
Você sabe qual é a explicação real das lâminas do Tarô? Aposto
que não.
O Tarô é um jogo. E, embora haja quem se utilize dele para
adivinhar coisas (assim como fazem com borra do café ou bú-
zios), o Tarô não se presta a isso — ele definitivamente não é
um sistema de adivinhação.
Portanto, quando uma pessoa usa o Tarô para adivinhar coi-
sas, o problema está nela, que está buscando uma resposta fechada
para um problema real. Ela está aceitando ser governada pela
pretensa resposta oferecida por um punhado de cartas. A mu-
lher que pergunta à cartomante, por exemplo, se encontrará
um namorado esperando que as cartas respondam, está, afi-
nal, deixando-se submeter por um poder tirânico. A prescrição
“contra o Tarô” e “contra a Astrologia” (entre mil aspas) é, de
certo modo, como a prescrição para que você não cometa a es-
tultice de se submeter a um poder tirânico deste mundo.
Se você, evangélico ou católico, quer atirar as lâminas do
Tarô na fogueira da Inquisição, atire antes os tiranos que lhe
estão mais próximos: seus vícios e más inclinações. Esses são
os primeiros tiranos da nossa vida. Com o mesmo ódio, raiva e
13 introdução

petulância com que você fala sobre Tarô e Astrologia, levante-se


contra os tiranos do seu interior; depois, contra os tiranos po-
líticos e sociais — jamais apoie, por exemplo, regimes tirânicos,
como os comunistas.
Submeter-se a uma tirania implica a perda da individua-
lidade. Fomos feitos para nos individualizar maximamente,
para dizermos “Eu sou”; mas todo regime tirânico nos tira essa
possibilidade. A cosmovisão hegeliano-marxista consiste jus-
tamente em anular essa individualização, como dizendo a todo
ser humano: “Você não tem uma identidade. Ou você é proletário,
ou é burguês. Funda-se a essa visão de mundo bipartida, dual.”
Não há maior tirania do que essa.
Se, portanto, existem condenações às práticas divinatórias,
é porque elas, como os regimes tirânicos, acabam por anular o
indivíduo e impedi-lo de dizer “Eu sou”, escravizando-o. Veja
como, para os cristãos, isso é fatal: é a anulação da liberdade e
da individualidade que o próprio Deus deu aos homens.
Porém, tenha em mente que condenar a adivinhação não
significa absolutamente condenar as lâminas do Tarô e as rea-
lidades simbólicas nelas implicadas.
De todo modo, neste livro, eu não vou lhe ensinar a jogar
Tarô. Nem mesmo falarei sobre a disposição das lâminas na
mesa divinatória, mas apenas sobre os símbolos inscritos nas
lâminas do Tarô. É isso o que nos interessa aqui.

Símbolo e Alegoria
Se você olha para uma lâmina de Tarô, dela deduz um monte
de coisas e nela projeta sua visão de mundo, saiba que isso é
impróprio: é o que se faz com alegorias, não com símbolos.
Mas qual a diferença entre símbolo e alegoria?
Vou dar um exemplo de alegoria: eu, Italo Marsili, ser hu-
mano, dotado de uma certa capacidade intelectual e de uma
certa observação, posso, a partir dessa minha observação e des-
sa minha capacidade intelectual, projetar numa tela em branco
14

uma série de símbolos. Em regra, as obras de arte são alegóricas:


o artista observa a realidade e, com base nela, faz uma pintura,
uma escultura, etc. Ele registra algo que está em sua cabeça de
tal modo que, quando você olha para a obra, tem a intuição de
que o artista tinha certa visão específica da realidade. Alegorias
são geralmente construídas a partir de uma concepção frag-
mentada que o artista tem de um evento qualquer.
As grandes pinturas a que temos acesso, em geral, são ale-
góricas. Dito de outro modo, se você vai a um museu e observa
uma obra, você de fato fica mais inteligente, porque, em tese, o
artista é um sujeito inteligente que deixou registrada uma im-
pressão memorável. Por ter uma inteligência acima da média,
ele viu uma fração da realidade do mundo sob certo ângulo,
que você sozinho não observaria, e registrou essa impressão.
Ao olhar para aquele quadro, portanto, é como se você, por um
instante, pudesse ver a realidade com os olhos do pintor, sob o
mesmo ângulo.
A uma pessoa sensível e calma, o que a apreciação artística
faz é deixá-la mais inteligente. A contemplação de obras de
arte maravilhosas, além de lhe colocar diante da Beleza, trans-
mite-lhe algo a mais: uma fração da inteligência do artista.
Ao assistir a uma peça teatral como “Hamlet”, de Shakespe-
are, você notará nas cenas movimentos da vingança e da inveja
que foram percebidos pelo próprio Shakespeare. Isso, por si só,
já fará com que você fique um pouco mais inteligente. Algo
entra em você — e entra porque seus olhos viram alguma coisa.
Só entra no coração aquilo que passa pelos olhos, mas o
olhar do homem tosco, do homem vulgar (que, em regra, é o
nosso...) é um olhar pobre. Por outro lado, o olhar dos grandes
artistas, dos grandes filósofos, dos grandes místicos, dos gran-
des práticos, é um olhar já polido — e é disso que trataremos
ao falar da Papisa, a segunda lâmina do Tarô.
A arte como um todo é, via de regra, alegórica, mas não pense
que a alegoria é ruim! Ela é algo de maravilhoso, mas você pre-
cisa ter consciência de que ela comunica apenas uma fração da
realidade, uma fração capturada pela inteligência de um homem
concreto. O artista registra uma fração daquilo que ele percebeu.
15 introdução

Se você entrar, por exemplo, na


Basílica de São Pedro, um gran-
de repositório de Artes, perceberá
que sua manifestação artística é,
sobretudo, alegórica. Gian Loren-
zo Bernini é o grande artista da
Basílica de São Pedro; há ali, em
toda a parte, alguma de suas ma-
nifestações artísticas.
Dentro da Basílica, há um mo-
numento funerário específico que
serve de túmulo para o Papa Ale-
xandre VII. Ele é formado por um
lindo batente em mármore rosa,
maravilhosamente esculpido e poli-
do, do qual emerge um esqueleto de
bronze segurando uma ampulheta.
Quem quer que ali entre, pre-
cisa se abaixar (uma vez que o ba-
tente é baixo), como quem faz uma
reverência para algo. Mesmo o
sacerdote, todo paramentado para
celebrar o santo sacrifício da Mis-
sa, é obrigado a fazer essa vênia ao
passar por ali. A vênia é uma ma-
nifestação de respeito natural para
quando se está diante de alguém
ou algo que é grande e majestoso.
Ao abaixar-se naquele lugar, faz-
-se uma vênia — ainda que invo-
luntariamente — para a figura de
um esqueleto de bronze que segura
uma ampulheta na mão (que é uma
alegoria da passagem do tempo).
Ali, Bernini projetou arquiteto-
nicamente sua visão sobre a mor-
te: mesmo o sacerdote tem de se
curvar perante ela.
16

A maioria das pessoas que passa por esse monumento fune-


rário, no entanto, não se dá conta desses detalhes. Em grande
parte, isso se dá porque elas passam por ali apressadas, desa-
tentas e agitadas — e compreender uma alegoria exige atenção,
reflexão e, muitas vezes, uma explicação. Por uma razão seme-
lhante, entender uma tragédia de Shakespeare, como “Hamlet”
ou “Otelo”, é uma tarefa difícil para a maioria das pessoas.
Jorge Luis Borges, escritor argentino, disse que, para en-
tender um livro, é preciso ter lido muitos outros. Para você ler
e entender um livro, é preciso que várias pessoas tenham lhe
dado explicações sobre o conteúdo dele; caso contrário, você
não o entenderá. Esse é um princípio da alegoria; ela precisa
ser explicada por alguém.
Ninguém precisou me explicar a alegoria do batente de
Bernini, mas eu, ainda assim, consegui captá-la. Isso só acon-
teceu porque eu já “li muitos livros”, isto é, eu tenho certos
conhecimentos prévios que me permitiram compreendê-la. Eu
conheço o catolicismo, sei a finalidade de um túmulo, sei o
que um esqueleto representa, sei o que a ampulheta na mão do
esqueleto representa... Eu sei, porque estou dentro de uma tra-
dição simbólica e já analisei um monte de coisas semelhantes;
então, por semelhanças e diferenças, pude chegar ao significa-
do daquela alegoria.
Com um símbolo, a coisa é diferente; o símbolo não é a pro-
jeção do intelecto humano em uma manifestação artística, mas
o contrário disso.
A alegoria é uma manifestação projetiva. Um homem con-
creto (em regra, um artista) projeta algo (geralmente, uma peça
artística) a que chamamos alegoria. O símbolo, por sua vez, não
é uma projeção. Ele tem uma característica intensiva, sai de si e
nos penetra, e, assim fazendo, abre-nos uma visão mais ampla.
Podemos dizer, com certa segurança, que o Tarô é simbóli-
co; mas é dotado de um simbolismo diferente do Simbolismo
Astrológico, que é uma sorte de simbolismo natural.
17 introdução

Simbolismo natural
e realidades simbólicas simples
Mas o que é um simbolismo natural? Para entendê-lo, pense
no mar.
Apenas uma pessoa muito tosca pode achar que o mar está
ali só para que ela se refresque, pegue umas ondas, pratique
o surfe. O mar tem esse componente material também, mas
não somente. Ele de fato tem uma presença aquosa, salgada
e fluida. Você entra, se molha, se diverte, pode até se afogar e
morrer... Mas o mar é mais do que isso: ele é a presença de uma
outra coisa, de uma fluidez, de um ir e vir infinito, como na
música do Lulu Santos. Quando ele fala daquele “indo e vindo
infinito” das ondas, está captando a presença simbólica do mar,
pois foi capaz de entender que o mar é, além de sua presença
material, símbolo de algo.
O símbolo nos abre uma percepção de presença, abre-nos algo a
mais. O filósofo Heráclito, olhando para um rio, enunciou duas
das primeiras frases registradas na Filosofia: “Tudo flui.” e “Ne-
nhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio.” Ao
observar um rio com muita calma, abriu-se nele uma janela de
percepção: o rio pareceu a ele mais do que sua mera presença física.
Muita gente se alimenta com peixes pescados de um rio;
muita gente com calor se banha em um rio; muita gente lava
suas roupas nas águas de um rio; enfim, muita gente olha para
um rio e vê ali somente a fonte do alimento, o alívio para o ca-
lor, a solução para as roupas sujas. Para Heráclito, entretanto, o
rio é também a presença simbólica de uma fluidez que perma-
nece — e é verdade, porque se você puser sua mão em um rio,
depois retirá-la e a colocar novamente, ela já não será banhada
pela mesma água; já não será, sob certo aspecto, o mesmo rio,
ainda que, sob outro aspecto, se trate do mesmo rio que você
tinha diante dos olhos.
Temos o costume de falar do rio Nilo, do Eufrates, do Da-
núbio, ou mesmo do rio Amazonas, como se eles ainda fos-
sem uma coisa única e estática, embora todas as suas águas
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estejam em constante mudança.Alguma coisa permanece; alguma


coisa muda. Há um princípio de mutação e consistência no
calmo observar das águas. Nesse exercício, você começa a apre-
ender a presença simbólica daquele ente e deixa de se confun-
dir tanto. Isso é o simbolismo natural.
A lua, por exemplo, é um ente que ilumina as noites há mui-
to tempo; mas ela não é apenas aquele brilho no céu. É mais
do que isso: é presença de uma certa inconstância que orienta.
Diz-se “inconstância”, porque a lua tem fases, e sua capacidade
de iluminar não é sempre a mesma. Estar numa floresta em
noite de lua cheia é melhor do que estar nessa mesma floresta
em noite de lua nova: nesta mal se consegue ver um palmo do
que está à frente, ao passo em que naquela tudo fica banhado
de luz prateada.
Se você for um pouco mais sensível e se puser a observar
a lua com calma, verá que ela lhe abrirá os olhos para uma
realidade que está além daquele círculo branco enfeitando as
noites, verá a tal “inconstância que orienta”. Isso é o símbolo;
é uma presença — não uma projeção — de algo que lhe pene-
tra, abrindo-lhe horizontes de consciência. Essa é a função do
símbolo.
Por definição, tudo o que é é simbólico; tudo o que existe
é simbólico. E, por isso mesmo, perder a visão simbólica do
mundo é uma das grandes tragédias do nosso tempo.
Os psicólogos, os psiquiatras e os teóricos de hoje estão
olhando para o homem e perdendo essa dimensão simbólica;
eles têm construído seus edifícios sobre uma fundação predo-
minantemente materialista.
Não nos confundamos: quando olhamos nos olhos de outro
ser humano, quando conversamos com alguém, não é apenas
o Fulano ou o Beltrano que temos diante de nós; eles de fato
estão diante de nós, mas também são presença de uma outra
coisa, apontam para uma outra coisa. Não perceber isso é já ter
perdido a visão simbólica.
É claro que, quando falamos de entes materiais únicos, indi-
viduais — como pessoas, rios, oceanos, árvores, coelhos, leões etc.
—, estamos falando de realidades simbólicas muito simples.
19 introdução

Quando falamos de astros, então, estamos falando de realida-


des simbólicas simplíssimas; e digo isso, porque podemos de-
senvolver uma Simbólica Astrológica com muita precisão, já
que os astros (como Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter,
Saturno) estão presentes há milênios e em todas as civilizações.
Todos as povos olharam para cima e viram os astros, ao pas-
so que nem todos viram coelhos ou leões. Alguns deles nem
sequer viram oceanos e jamais souberam de sua existência. Se
uma dessas pessoas tivesse a oportunidade de ver o mar, ela
provavelmente pensaria tratar-se de um rio que se mexe com
mais intensidade e não tem margens (já que, em regra, todas
as civilizações se desenvolvem em torno de cursos d’água, mas
não necessariamente de oceanos). Essa pessoa olharia, num
primeiro momento, somente o aspecto material do mar, por-
que não estava inserida em uma cultura que tenha olhado para
o mar e percebido sua finalidade.
Com o céu, porém, não é bem assim. Tente imaginar uma
civilização que não tenha visto a terra e o céu. Não há! É por
isso que a simbólica terrestre dos quatro elementos, de que
trato no meu livro “Os 4 Temperamentos na Educação dos
Filhos”, foi desenvolvida em todas as civilizações. A Ayurveda
indiana, por exemplo, conecta-se muito com os quatro elemen-
tos, porque mesmo uma civilização de base completamente
distinta da nossa, como a hindu, tem as mesmas referências
simbólicas da terra. Ela está falando de Terra, Ar, Água e Fogo
mais ou menos do mesmo modo, porque estamos olhando para
as mesmíssimas realidades.
Selecione uma civilização hindu, uma civilização ocidental
européia e uma nativa indígena das Américas, e verá que todas
elas falam do Fogo (e dos demais elementos) de maneira si-
milar. Elas observaram as realidades materiais de Fogo, Terra,
Ar e Água, e foram por elas preenchidas; seus horizontes de
consciência foram se abrindo a partir daquelas observações.
Com o céu, dá-se o mesmo. A Simbólica Astrológica é
bastante simples, porque os astros não mudam. Você nunca
verá um Mercúrio gordo e um Mercúrio magro; uma lua gor-
da e uma lua magra; uma lua doente e uma saudável; uma lua
20

feroz e uma mansa. Até mesmo um coelho é, nesse sentido,


mais complexo do que um planeta — ele é passível de muitas
mudanças. Há coelhos gordos e magros, rápidos e lentos... Os
animais têm uma consistência mutável, e por isso mesmo é
mais difícil, para a inteligência, captar a simbólica desses entes
mutáveis — “entes mutáveis” são esses que estão presentes, mas
mudam e são desconhecidos por uma parte das civilizações.
Quando falo em “leão”, o sujeito que acabou de visitar o zo-
ológico Smithsonian, em Washington, pensará num baita leão
branco, cheio de vitalidade; já o sujeito que acabou de voltar do
zoológico do Rio de Janeiro pensará num bicho amarelo raquí-
tico, cheio de fome, sede, berne e sarna. São visões diferentes.
Quando você olha para um leão do zoológico do Rio, não
é a noção de majestade que se abre em sua cabeça, pelo con-
trário: você sente pena do bicho. Perceba que você olha para
aquele leãozinho e sua inteligência não capta o primeiro sím-
bolo dele, pois leões são corruptíveis, são bichos, são seres vivos
que mudam de figura.
Por outro lado, ao olhar para a lua, você pode projetar o que
quiser, mas, antes da sua projeção, ela tem uma estabilidade pró-
pria. A Lua está rodando daquele mesmo jeito em torno da Terra
desde que o mundo é mundo. A primeira civilização da história
viu a lua do mesmo modo com que nós a vemos hoje; e viu as
estrelas brilhando no céu mais ou menos do mesmo modo — em-
bora decerto haja projeções diferentes dessas mesmas realidades,
que se devem predominantemente a diferenças culturais.
A Gramática Astrológica é muito fácil de entender justa-
mente porque trata de algo que está lá desde sempre. Mercúrio
é Mercúrio, Sol é Sol, Saturno é Saturno. Os astros são, enfim,
bons exemplos de realidades simbólicas simples, porque estão sem-
pre do mesmo jeito, sendo presença de algo. É fácil olhar para
um astro e ver de quê ele é símbolo, pois ele está lá do mesmo
jeito desde sempre; muita gente já o viu e falou sobre ele.
Os quatro elementos (Água, Terra, Fogo e Ar), assim como
os astros, também são realidades simbólicas simples e fáceis:
simples, porque estão lá sempre do mesmo modo; fáceis,
porque não se degeneram, não se decompõem.
21 introdução

Já um coelho é uma realidade simbólica simples, porém


difícil. “Difícil”, porque cada coelho é de um jeito. Um leão
também é uma realidade simbólica simples e difícil, porque
cada indivíduo da espécie é de um jeito, como no exemplo que
dei do leão pertencente ao zoológico de Washington e do leão
pertencente ao zoológico do Rio de Janeiro.
É simples falar de um astro, de um leão ou de um coelho,
porque essas realidades sozinhas são presenças de si próprias.
Mas... e se quiséssemos fazer simbolismo com realidades
mais complexas?

Tarô: simbolismo de realidades


complexas e invisíveis
Não é verdade que tudo o que vemos teve um início? Tudo o
que faço teve um início: minha vida, minha empresa, este livro.
Tudo o que vivemos tem início. E o início é uma presença, as-
sim como a dificuldade. O início e a dificuldade têm presença;
existem, portanto. Ora, será que o modo de existir do início e
o modo de existir da dificuldade são iguais ao modo de existir
da lua ou do coelho? Não.
A lua tem uma presença estável e facilmente observável.
Todas as civilizações a viram. O coelho tem uma presença mais
difícil, mas também estável. Ele está lá, um coelho é um coelho.
E quanto ao início? Como extrair simbolismo dessa realidade
chamada “início”? Como extrair simbolismo da realidade cha-
mada “dificuldade”? Como extrair simbolismo de realidades
como intensidade, energia, generosidade?
O Tarô é justamente a simbólica dessas realidades. Por isso
ele é difícil e complexo, e por isso muita gente o entende como
uma projeção do homem. Poderiam dizer: “Mas, Italo, essas car-
tinhas foram um dia inventadas por alguém.” A verdade, porém,
é que ninguém “inventou” o Tarô, porque ele é a cristalização
simbólica de realidades complexas como essas que mencionei.
Há, portanto, várias maneiras de falar de inícios. Uma des-
sas maneiras é já estando dentro de uma tradição simbólica.
22

Nem todas as civilizações viram coelhos, ou mesmo o mar, mas


todas elas viram inícios, viram dificuldades, viram atos de ge-
nerosidade, atos de traição, atos de recomeço. Não é verdade?
Dispondo de uma tradição simbólica, somente um homem
de olhar muito pobre, padecendo da “síndrome do propriomio-
lismo”, optaria por abordar essas realidades com algo tirado de
sua própria cabeça. O Tarô já existe para nos contar a narrativa
simbólica de realidades mais complexas. A lâmina do Mago,
por exemplo, simboliza uma realidade específica: a postura
diante dos inícios, a postura daquele que quer começar.
As lâminas do Tarô põem-nos diante da densidade do real.
Mas não seja néscio de pensar que aquelas cartinhas que você
comprou na banca de jornal contêm a realidade em si. Essas
lâminas apenas nos recordam que o real tem presença, e que essas
realidades que você chama de “subjetivas” e de “abstratas” não
são, na verdade, tão subjetivas e abstratas assim. O início não é
subjetivo e abstrato, ele tem presença, e uma presença real — mas
como falar dessa presença real que não se vê, diferentemente de
um coelho ou da lua, por exemplo? O Tarô faz justamente isso,
por meio da cristalização de símbolos complexos e “invisíveis”.

Ainda sobre o Tarô...


Cabe ainda um comentário breve sobre o Tarô e sua origem.
Embora muitos apontem os egípcios ou os caldeus como seus
“inventores”, não há como remontar às suas origens. Muitos
tarólogos se apegam àquilo que aprenderam nos cursos que
fizeram, mas a verdade é que, ao estudar profundamente a
origem do Tarô, percebe-se que não é possível afirmar se os
Arcanos surgiram antes ou depois dos egípcios, se vieram com
os babilônios... Não há segurança histórica quanto à origem
do Tarô. O que se sabe é que as cartas mais antigas que foram
conservadas datam do final do séc. XIV.
Sabemos ainda que, tanto na tradição Ocidental quanto na
tradição Oriental (sim, o Tarô se desenvolveu também em boa
parte da Ásia), os símbolos são coincidentes. São os mesmos
23 introdução

símbolos, sempre presentes nas lâminas dos 22 Arcanos Maio-


res e nas 56 lâminas dos Arcanos Menores.
Além disso, é importante saber que não existe apenas um
baralho de Tarô. Existem, porém, alguns baralhos tradicionais,
como o que usaremos para a nossa explicação. Trata-se de um
baralho bastante consolidado, utilizado pela maior parte das
pessoas de estudos e mesmo pelos cartomantes. Ele se chama
Tarô de Marselha, e é muito completo. Ali estão quase todos os
elementos simbólicos que foram usados pela tradição do Tarô.
Para tratar com profundidade os símbolos representados em
todas as 22 lâminas dos Arcanos Maiores e relacioná-los à Psi-
cologia, a autores como Jung e Freud, bem como às suas técnicas
e práticas, seria necessário muito mais do que um livro como
este. Por essa razão, aqui você encontrará análises e explicações
fundadas no rico manancial simbólico de três dos 22 Arcanos
Maiores: as lâminas do Mago, da Papisa e da Imperatriz.
Os capítulos 5 e 6 parecem dar uma escapada ao fio condu-
tor do livro (as lâminas do Tarô), embora haja neles constantes
remissões às três cartas aqui apresentadas. Eles bebem, contu-
do, de outras ricas e importantes fontes, como a poesia lírica e
a mitologia grega — sem a qual boa parte da Psicologia, e parte
alguma da Psicanálise, se teriam desenvolvido.
Em cada capítulo, apresento uma ou mais ferramentas (ou
armas). O chapéu do Mago, a tríplice tiara da Papisa, o cetro
e o escudo da Imperatriz e o raio de Zeus fazem parte dessa
panóplia simbólica de que você deverá se munir caso deseje, de
fato, conhecer-se melhor, saber seu lugar no mundo, melho-
rar seus relacionamentos e ter uma história verdadeiramente
sua para contar. Aos psicólogos, psiquiatras, terapeutas e co-
aches, elas servirão também como instrumentos de trabalho e
“remédios” a serem prescritos.1

1  Quem assistiu às Super Live Series de Psicologia que ministrei no primeiro


semestre
de 2020 pelo Youtube, verá aqui organizado muito do que tratei nas primeiras lives.
O MAGO
25

O
primeiro Arcano do Tarô é o Mago.
O Mago é um rapaz jovem que traja uma roupa
colorida e extravagante, como o uniforme da Guarda
Suíça Pontifícia (responsável pela segurança do Papa). Ele se-
gura um bastão, que na maioria dos baralhos aparece na mão
esquerda. Na mesa que fica à sua frente, há alguns elementos
(discos, uma faca desembainhada etc.).
Em todos os baralhos, o Mago é representado com algo so-
bre a cabeça. Em geral, um grande chapéu. Esse chapéu tem a
forma da Lemniscata de Bernoulli, curva algébrica descrita por
Jacob Bernoulli em 1654, como modificação de uma elipse, e
logo depois adotada como símbolo para representar o infinito.
Você com certeza já viu dezenas de lemniscatas em tatuagens,
bijuterias, roupas e objetos decorativos.
26

O Mago é a primeira lâmina do Tarô porque é a primeira


chave de compreensão. Sem a noção do infinito, não teríamos
como compreender as séries seguintes. Ele usa o chapéu sobre
a cabeça para protegê-lo e proteger seus olhos, assim como um
chapéu nos protege da chuva e dos raios solares que podem nos
atrapalhar a visão.
Diferentemente, porém, dos nossos chapéus do dia a dia, o
chapéu do Mago tem a peculiar forma de lemniscata, comu-
mente referida como um “oito deitado”.
Mas qual é, afinal, a origem desse símbolo?
Desenhe uma cruz, com seus dois eixos: um horizontal e um
vertical. Feche as extremidades da cruz, ligando a esquerda à de
cima e a de baixo à direita. O que resulta daí? A lemniscata, sím-
bolo do infinito. A lemniscata não é, portanto, um oito deitado,
mas uma cruz cujas extremidades se fecham, dando-nos a noção
da totalidade do real, de todas as possibilidades do ser.
27 o mago

O princípio do tamanho
do mundo
O professor Olavo de Carvalho inicia seu curso de Filosofia da
Ciência ensinando que há algumas coisas que estão sempre em
nosso campo de percepção e das quais não podemos nos es-
quecer, porque, se delas nos esquecermos ou se as deixarmos de
ver, já não entenderemos mais nada e ficaremos desorientados
no mundo. Essas coisas são os primeiros princípios.
Um desses primeiros princípios essenciais é o princípio do
tamanho do mundo. Essa é a primeira coisa em que precisamos
concentrar a atenção. Para atender um paciente em consultó-
rio, para orientar um filho, para fazer um projeto com o cônju-
ge, para traçar as estratégias de uma empresa, para tudo isso é
preciso ter uma idéia do “tamanho” do mundo.
Alguém que jamais tenha refletido sobre isso poderá apres-
sar-se em dizer que o mundo se limita a este lugar material onde
estamos, àquilo que vemos. Mas será mesmo assim? Ou será
que existe um princípio filosófico indestrutível, que não se pode
negar, chamado infinitude? Qual é o tamanho do mundo? Ele é
limitado ou é ilimitado? É finito ou é infinito? Responder a es-
sas perguntas é fundamental para um bom exercício da Psicolo-
gia e para descobrirmos quem é o homem, qual é o tamanho do
homem e qual é o tamanho do mundo no qual ele está inserido.
Qual é o seu tamanho e qual é o tamanho do seu projeto?
Qual é o tamanho do seu coração, do seu amor? Qual é o ta-
manho possível de todas as suas sensações superiores, de sua
inteligência, de seu saber? É preciso descobrir.
Se dizemos, de modo ingênuo e rápido, que as coisas aqui
são limitadas e pequenas, então temos uma certa visão de mun-
do. Se, ao contrário, dizemos que o mundo é ilimitado e possui
um elemento de infinitude, temos então uma outra percepção
sobre o que é o mundo.
Se existe um limite para as coisas do mundo, o que é que
há na fronteira desse limite? Por definição, o limite já não pode
fazer parte da própria coisa, mas tem de ser uma outra coisa.
28

O limite do meu corpo, por exemplo, não é mais o corpo, é


onde ele acaba e começa uma outra coisa. E, se começa uma
outra coisa, isso quer dizer que obviamente existe uma outra
coisa além do meu corpo.
Vou dar outro exemplo, agora do campo da matemática.
Não sei se você se lembra, mas a série dos números inteiros
não termina, é infinita. ℤ = {...-3, -2, -1, 0, +1, +2, +3...}. Um,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, mil, dois mil,
vinte mil, um trilhão, um quintilhão... Pense no maior número
possível: sempre dá para acrescentar mais um.
É sempre possível, portanto, conceber um número inteiro
posterior ao último número em que você pensou. Ao menos
nesse universo matemático, a noção do infinito — de algo que
não termina — é clara e óbvia. Isso, por si só, já é uma ruptura
enorme com o pensamento materialista do nosso tempo, em-
bora se trate apenas de um infinito potencial.
Ora, até um homem vulgar contemporâneo que jamais te-
nha pensado em nada metafísico é capaz de reconhecer que
realmente existe algo infinito. Embora não saiba dizer exata-
mente de que se trata, ele é capaz de entender que não é mais
possível dizer que absolutamente tudo tem um limite e um fim.
Não. Há alguma coisa que nunca termina.
Partindo de uma análise muito simples da realidade, ele é
obrigado a declarar que há alguma coisa que permanece, há
algo que continua, que não acaba jamais.

Um vislumbre da eternidade:
O que aconteceu aconteceu
e não pode “desacontecer”
Precisamos ter noção de dois tamanhos: do tamanho do ho-
mem e do tamanho do mundo no qual o homem está inscri-
to. Para isso, observaremos primeiramente nossos atos. Assim
ficará mais fácil, afinal, estamos constantemente pensando e
fazendo coisas; ou seja, estamos agindo a todo o tempo.
29 o mago

Quero que você pense no que está fazendo concretamente


neste exato momento. Agora você está lendo este texto, certo?
Não há como discordar disso. Daqui a pouco você deixará de
ler e irá tomar um copo d’água, dormir, fumar, trabalhar, en-
contrar um amigo ou fazer alguma outra coisa. Mas é inegável
que, agora, você está lendo.
Amanhã, ao se lembrar do que fez hoje, você se verá obri-
gado a admitir que, de fato, passou alguns minutos lendo este
texto. “É, eu fiz isso mesmo. Eu li. Isso realmente aconteceu.”
Faça o seguinte exercício. Amanhã, sente-se e ponha-se a
pensar: “Ontem eu li um texto por algum tempo. Esse ato de ler o
texto, onde é que ele está?” Talvez você se veja tentado a respon-
der prontamente: “Na minha memória! O ato está guardado na
minha memória.” Mas já adianto que o que estará na sua me-
mória será apenas a lembrança do ato, não o ato em si.
Busque uma resposta mais profunda. Onde está esse ato?
Ele aconteceu. Onde está isso que aconteceu? Essa é uma pergunta
que você é obrigado a se fazer caso queira levar a vida a sério,
porque o que aconteceu não “desacontece”.
Amanhã, se você tiver um pouco de sinceridade e sensibilida-
de, terá de reconhecer que o ato de ler este texto hoje realmente
aconteceu e, mesmo com o passar do tempo, não deixou de acon-
tecer. Por acaso algum dia aquilo deixará de ter acontecido? Nunca.
Estará registrado em algum “lugar”, isto é, continuará sendo. Eis
uma declaração de suma importância: há coisas que são. Aquilo
que aconteceu aconteceu. Aquilo que é é. A memória guarda ape-
nas um registro do ato, mas o ato precisa existir em algum “lugar”,
pois aquilo que aconteceu não pode “desacontecer”.
Você, por exemplo, pode não se lembrar do que comeu on-
tem no almoço, mas a falha em sua memória não apaga o ato
de ter comido algo, que está registrado em um lugar maior
do que a sua própria memória. Em outra ocasião, aborda-
rei a questão da lembrança como ação do ego, mas agora
interessa-nos o conceito de infinito.
Algumas pessoas dirão: “Ora, o que aconteceu está na história”.
É claro, mas a história é também uma espécie de lembrança,
30

é um registro de coisas que aconteceram, que pode ser trans-


mitido oralmente ou por escrito. Não confundamos o registro
da coisa com a coisa em si.
Se todos os registros da guerra napoleônica forem destru-
ídos, se todos os livros sobre ela forem queimados e todas as
pessoas deixarem de se lembrar dela, a derrota em Waterloo
deixará de ter acontecido? Não. Por mais que ninguém mais
fale sobre o evento, por mais que não reste um registro sequer,
ele ainda terá acontecido.
Esse é um primeiro vislumbre de um lugar chamado eterni-
dade; e não é preciso ter uma religião para conseguir percebê-
-lo. As coisas são o que são e seguem sendo, independentemente
de você se lembrar delas, registrá-las, tê-las visto; elas são inde-
pendentemente do seu testemunho.
Uma folhinha que balance lá fora terá balançado para sem-
pre; ela não “desbalançará”, por assim dizer. Um cachorro que
late não “deslate”. Um abraço dado não pode ser “desdado”,
ainda que você se arrependa de tê-lo dado. Você abraçou al-
guém, isso aconteceu. Existe uma consistência do mundo que
está além daquilo que vemos, e há também uma série infinita
de coisas, como o revela a série de números inteiros.
Qualquer pretensa abordagem psicológica que esqueça o
tamanho verdadeiro do mundo olha para algo que não é real.
Quando se olha para alguém, inclusive para um paciente, é
preciso sempre se lembrar de que esses atos permanecem — eles
podem ser esquecidos, mas não deixam de ser.

Ato e potência
Tudo o que eu fiz é; tudo o que pensei também é — espero
que ninguém mais duvide disso. Mas e aquilo que não fiz e
em que não pensei? Por incrível que pareça, isso também faz
parte da estrutura do mundo. Se agora estou dando uma aula,
não estou jantando com meu amigo, embora pudesse estar
jantando com ele.
31 o mago

A estrutura da realidade, portanto, tem de ser entendida


tanto por aquilo que pode ser, que está presente em potência,
quanto por aquilo que é mesmo, que está presente em ato.
Você pode pegar pedaços de madeira e transformá-los em
uma cadeira. Essa matéria-prima bruta não é uma cadeira, mas
pode ser uma cadeira. Eles têm a possibilidade de se converter
em uma cadeira se uma fonte externa de mudança agir sobre
eles, ou seja, se você pegá-los, lixá-los e uni-los com pregos
e cola. Nesse caso, pode-se dizer que a potência de se tornar
cadeira daqueles pedaços de madeira foi atualizada — e assim
deixou de existir como mera potência, como mera possibili-
dade. Pois bem: essa possibilidade de converter-se em cadeira
também faz parte da realidade.
Mas será que as coisas têm possibilidades infinitas? Quando
uma coisa não é algo em ato, será que ela sempre poderá adqui-
rir aquelas formas que atualmente não tem? Será que a água
de um rio poderá um dia ser transformada em cadeira? Um
boi é uma girafa em potência? Eu tenho a possibilidade de me
tornar uma árvore?
A água jamais poderá assumir a forma de uma cadeira, um
boi não tem em si a possibilidade de tornar-se girafa e eu nun-
ca poderei ser uma árvore. Não podemos pensar que uma coisa
é “potencialmente” qualquer coisa. Há potencialidades enrai-
zadas na natureza das coisas tal como existem, e essas poten-
cialidades são limitadas.
Aristóteles dizia que cada semente tem dentro de si uma
potência que a destina a chegar a uma determinada forma final.
Hoje temos um jeito diferente de dizer algo muito similar no
que diz respeito aos seres vivos. Usando o linguajar da ciência
moderna, podemos dizer, por exemplo, que o código genético
de uma semente de girassol programa um crescimento diferen-
te daquele dado pelo código genético de um grão de feijão. Isso
explica por que um girassol nunca será um pé de feijão.
Eu também não posso ser tudo o que eu quiser. Não posso
ser um macaco nem um búfalo, embora possa usar uma fan-
tasia e fingir que sou. Também não posso voar com minhas
32

próprias forças. Posso, sim, pegar um avião, mas nesse caso o


que estaria voando seria o avião e não eu. Eu mesmo não vôo
nem posso voar. Posso criar dispositivos voadores, mas eu mes-
mo não posso voar. Essa não é uma possibilidade minha.
Tenho, por outro lado, várias outras possibilidades — e mui-
to mais possibilidades do que uns pedaços de madeira. Tenho
a possibilidade de ser nobre, vil, generoso, mesquinho, avaren-
to, gordo, magro, forte, fraco... Por outro lado, há certas coisas
que não poderei jamais ser nem desenvolver. E, ainda, mesmo
tendo certas possibilidades, pode ser que eu não venha a de-
senvolvê-las efetivamente; por exemplo, mesmo podendo ser
magro — tendo a possibilidade de fazer uma dieta e exercícios
físicos —, talvez eu continue sendo gordo.
Se tomo um charuto nas mãos, posso fumá-lo ou não o fu-
mar. Ambas são possibilidades do real, ambas as coisas podem
acontecer. E sabemos que um charuto pode ser queimado. Não
importa, agora, saber como nós o sabemos. Basta entender que
um charuto pode ser queimado, ainda que não venha a sê-lo.
Quando você olha para uma pessoa, você sabe que ela pode
lhe dar um abraço, ainda que não o faça. Você sabe que ela
pode amá-lo, ainda que não ame. Essas são possibilidades de
um homem.
O real, portanto, é não apenas aquilo que está acontecendo
agora em ato, mas também aquilo que poderia acontecer, ou
seja, que está em potência.
Se só pudéssemos nos mover com base naquilo que aconte-
ce, naquilo que chega a ser ato, não teríamos qualquer tipo de
orientação neste mundo, e as pessoas seriam como manequins
de loja, estáticos.
Mas uma pessoa real não é assim, pois encerra um conjun-
to enorme de possibilidades. Enquanto estou gravando uma
de minhas aulas, ao olhar para minha irmã, que é quem faz
a filmagem, sei que ela pode dizer uma série de coisas: “Ita-
lo, essa aula está lenta.” ou, ao contrário, “Acho que você está fa-
lando rápido demais.” Ela pode dizer ainda: “Essa aula está óti-
ma.”, “Não estou entendendo nada.”, “Ah, agora estou começando a
33 o mago

entender.”, “Estou ansiosa.”, “Estou com dor de barriga.”, “Preciso


ir ao banheiro.”, “Estou com fome.”, “Preferia estar em outro lugar.”
e tantas outras coisas.
O que nos orienta, enfim, é o conjunto formado tanto pelas
atualidades quanto pelas virtualidades; noutras palavras, por
aquilo que está sendo e por aquilo que poderia ser. Isso é o real.
E é algo maravilhoso!, que joga por terra todo tipo de pensa-
mento materialista.
O materialismo é uma visão de mundo impossível. O cara
que acorda, abre a tampa da privada e urina ali, já não pode ser
materialista. Em primeiro lugar, porque esse vaso sanitário, an-
tes de existir fisicamente, existiu imaterialmente, na mente de
seu primeiro inventor. Além disso, chegando ao banheiro e se
deparando com a tampa do vaso sanitário fechada, nem mesmo
o materialista diz: “Puxa vida, a tampa está fechada. Já era. Não
posso mais urinar.” Ele sabe que, embora esteja fechada, ela pode
ser aberta. Ele não vê o vaso aberto, não vê o caminho livre, mas
sabe que há a possibilidade de abri-lo — uma possibilidade
que, até então, existe somente na mente dele. Uma vez aberta a
tampa, a possibilidade deixará de ser mera possibilidade e será
convertida em ato.
O conjunto de virtualidades é formado por aquilo que não
estou vendo, que não está acontecendo agora, mas que poderia
acontecer. As possibilidades também estão contidas no con-
junto do real. A realidade é tanto esse elemento material, que
se apresenta para nós no imperativo da presença física, quanto
aquilo que não está acontecendo, mas poderia acontecer.
Mas, então, o conjunto das possibilidades universais per-
manece sempre desconhecido, oculto, ou precisa ser conhecido
para que seja possível? Em outras palavras, para que as coisas
sejam possíveis, é necessário que alguém conheça essas possi-
bilidades? Essa é uma pergunta central que iremos responder
aos poucos. Não é preciso dar uma resposta agora, você terá de
conviver com essa dúvida.
34

Para melhor entender


o domínio do possível
Um cachorro que você vê parado na rua não é apenas um ani-
mal parado, mas um animal que pode morder, correr, abanar
o rabo, latir e atacar. Ele é tudo isso, do contrário não seria
um cachorro de verdade: seria um cachorro de madeira, um
bicho empalhado, um fóssil, qualquer outra coisa que não um
cachorro. Todas essas coisas pertencem ao conjunto do possível.
Vou dar ainda outro exemplo: eu tenho filhos. Talvez eles
tenham filhos; e talvez os filhos dos meus filhos também te-
nham filhos. Nada disso está presente agora, pois esses netos e
bisnetos não existem. Meu filho mais velho tem apenas nove
anos e não poderia ser pai agora ainda que o quisesse — mas
pode ser que, algum dia, ele se case e tenha filhos, ou que os
tenha mesmo sem se casar.
Pensemos, agora, nos meus bisnetos, que estão ainda mais
longe da minha percepção. É mais fácil pensar nos netos, afinal,
se meu filho mais velho tiver um filho, esse filho será meu neto.
Mas um bisneto é algo mais distante, pois o filho do meu filho
ainda nem existe. No entanto, é perfeitamente possível que eu
tenha bisnetos. Não é nenhum absurdo que eu os venha a ter,
pois fui pai cedo, já aos vinte e três anos. Logo, é perfeitamente
possível que eu viva para ver meus bisnetos. Se o Italo, meu filho
mais velho, for pai cedo, e se o filho dele também o for, verei
meus bisnetos e conversarei com eles. Hoje, porém, meu filho
ainda não tem filhos e nem sequer tem potência fisiológica para
tê-los. Não obstante, posso desde já falar dos filhos dele, e dos
filhos dos filhos dele. Por quê? Porque isso é possível.
O possível, portanto, não se limita à possibilidade no pre-
sente. Minha irmã pode se mexer aqui na minha frente; o mo-
ver-se dela é possível agora, já a existência dos meus bisnetos é
uma coisa possível remotamente. Ambas, porém, são possíveis;
logo, estão dentro do quadro do real.
Já conhecemos algumas possibilidades, e há ainda muitas
outras, conquanto não as conheçamos, e conquanto ninguém
consiga sequer imaginá-las.
35 o mago

Ser em Ato Puro


O lugar daquilo que é possível (tanto daquilo que nosso co-
nhecimento alcança, quanto daquilo que nem imaginamos ou
conseguimos perceber) tem um nome em Filosofia: chama-se
Logos (ou Verbo). O lugar do possível está contido no Logos. Ele
é o tamanho do real.
Religiosos, não se confundam! Falar do Logos não exige um
ato de fé. Estamos apenas usando a razão e a visão (que so-
zinhas já dão conta do trabalho), vendo como são as coisas e
dando-lhes nome.
Pois bem, a realidade na qual as coisas podem vir a ser, podem
ganhar o ser, em que podem acontecer, chama-se Logos ou Verbo.
Não é à toa que a Filosofia também chama esse ente (que é
a totalidade do real) de Ser em Ato Puro, porque nele tudo é ato.
Ele é um ser totalmente desprovido de matéria ou de potência.
Tudo nele é. E é esse ato puro que dá o ser às coisas. É esse
mesmo Ser que se apresenta a Moisés, dizendo “Eu sou aquele
que Sou”, como quem diz “Eu sou aquele que é. Eu sou o Eu sou.
Em mim, tudo é ato; nada escapa.” Para entendê-lo, não é preciso
ter fé, somente razão.

De volta ao chapéu do Mago


Voltemos então ao chapéu do Mago que, com sua “forma de
infinito”, protege a visão da cegueira da finitude: ele permite ao
Mago enxergar além daquilo que é finito. Esse é o significado
do chapéu em lemniscata na primeira lâmina do Tarô.
Os mesmos sujeitos que se arrogam grandes professores são
os primeiros a se cegarem pela finitude do método lógico —
ou até pela finitude do método escolástico. Eles se pretendem
sábios, magos, doutores, mas, como não vestiram o chapéu do
Mago, não passam de papagaios, embusteiros, arrogantes.
O chapéu do Mago é nossa entrada na Ciência Psicológica.
Na verdade, ele é a epistemologia de qualquer ciência, pois temos
sempre de nos proteger da finitude, do limitado, das amputações.
36

Quer um exemplo concreto dessas coisas em sua vida? Eu lhe


dou: o hábito de julgar imediatamente os outros. Muitos psi-
cólogos recebem um paciente no consultório pela primeira vez
e, ao bater os olhos nele, já o julgam. Que loucura!
Faça um exercício de ampliação do olhar: PARE DE
JULGAR OS OUTROS. Essa é uma tremenda experiência!
Ao ver alguém, lembre-se de que esse sujeito é — ele é um
ser humano. E assim como já houve seres humanos valentes,
nobres, santos, heróis, o sujeito à sua frente também pode ser
tudo isso! Ele traz em si todas essas possibilidades, e você não
pode tirá-las dele! Só porque alguém está com determinado
traje, possui certo olhar, tem certo gestual ou usa determinadas
palavras, não deduza tratar-se de alguém vil, traidor ou mes-
quinho. Se você faz esse tipo de julgamento, no consultório ou
fora dele, ainda não pôs na cabeça o chapéu do infinito. Você
definitivamente não está exercendo a função de mago.
Todos os arcanos do Tarô apontam para alguma coisa, e o
primeiro deles aponta para a disposição inicial do sujeito que
pretende se aventurar em uma ciência superior, em uma ciên-
cia da alma, como é a Psicologia. Esse sujeito precisa vestir o
chapéu do Mago imediatamente — do contrário, será cegado
pelos raios da finitude.

O Ser em Ato Puro é pessoa


Antes de falar sobre a segunda coisa a ser observada na lâmina
do Mago, farei um parêntese, que inicio com a seguinte per-
gunta: qual o ápice da criação humana?
O ápice não pode ser uma construção, como uma casa, um
prédio, uma pirâmide ou uma catedral. Um prédio é apenas uma
coisa. Um arquiteto, um engenheiro, um pedreiro e um mestre de
obras podem construir o edifício mais maravilhoso do mundo,
mas aquilo que construírem não passará de uma coisa.
Um objeto sem vida não tem tanta dignidade quanto um ani-
mal, por exemplo. Entre um cinzeiro e um cachorro, o cachorro
37 o mago

é obviamente mais digno, porque tem vida. O cachorro tem


um princípio de movimento interno; ele tem alma (anima), é
animado, move-se; o cinzeiro e o prédio não.
Um cachorro pode atualizar as possibilidades que a natureza
de sua espécie lhe permite. Ele é um indivíduo, dotado de vida
e alma; contudo não é uma pessoa. Qualquer pessoa pode mui-
to mais do que um cachorro, porque este, embora tenha uma
individualidade, uma alma, uma interioridade, um afeto, não é
uma pessoa. Um cachorro não pode dizer: “Eu sou um cachorro”.
Ele pode sentir frio, mas não pode dizer: “Estou com frio.”
O ápice da criação humana, portanto, é obviamente a ge-
ração de um outro ser humano: a geração de um filho. O
homem pode criar uma cidade inteira, com ruas bem pavi-
mentadas e iluminadas, um sistema de saneamento funcio-
nal e construções belíssimas, mas todas essas construções são
coisas, ao passo que uma criança é uma pessoa. Mesmo que
na juventude ela venha a se tornar um bruto, um bandido,
um maldito, uma criança sempre será mais digna do que um
edifício. Isso é evidente, afinal a criança tem mais possibili-
dades, ela pode mais. Ela pode inclusive, ao crescer, participar
da construção de edifícios; mas um edifício jamais construirá
coisa alguma.
O círculo de possibilidades de uma pessoa é maior do que
o círculo de possibilidades de um cinzeiro, de uma mesa ou
de um prédio. Um cinzeiro é apenas um cinzeiro. Ele pode
decompor-se, ser estilhaçado, mas não pode ser um herói, não
pode salvar uma vida.
Entramos na existência quando o Ser nos deu o ser. Nós,
no entanto, embora tenhamos mais possibilidades do que as
coisas e os animais, não podemos criar a Deus; não podemos
criar um Ser em Ato Puro, porque nós não somos ato puro;
muito pelo contrário, temos um monte de potências. Eu, ho-
mem que sou, posso, no máximo, gerar outro homem. Posso
oferecer uma parte de mim a uma mulher, e ela, recebendo-a,
gerará uma pessoa. Além disso, posso construir coisas inferio-
res, como uma mesa, uma casa, um prédio etc.
38

Pois bem, aquele que nos deu o ser também é pessoa. Ele é
pessoa porque, tendo criado pessoas, não poderia ser menos do
que uma pessoa, somente mais, pois ninguém pode dar aquilo
que não tem.
A Tábua de Esmeralda, artefato antigo que se diz ter sido
escrito por Hermes Trimegisto, traz os seguintes dizeres: Quod
est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut
quod est inferius. Traduzindo: “assim como o que está em cima
é o que está embaixo; e assim como o que está embaixo é o que
está em cima.” Assim como o menor, o maior; e assim como o
maior, o menor. Esse é um princípio hermético. Assim como o
Ser em Ato Puro é pessoa, nós também o somos. Assim como
somos pessoas, o Ser em Ato Puro também o é. Mas veja: o que
é menor não pode dar o que é maior. Só o contrário é possível,
pois só se pode dar aquilo que se tem.

Relacionamentos e religião
Outro dia saí para jantar com um amigo. Estávamos discu-
tindo onde jantar, quando ele disse: “Podemos ir ao Shopping
Leblon. Lá tem um restaurante Outback, sei que você gosta”. Como
esse amigo é uma pessoa com quem tenho muita intimidade,
eu imediatamente respondi, com toda a simplicidade de um
irmão: “Cara, eu nem gosto mais de Outback.”
Esse amigo fez uma proposta, porque acreditava que eu ain-
da gostava do Outback; e eu realmente gostava, até um ano
atrás. Hoje, não gosto mais. Seres humanos são assim: instá-
veis. A pessoa humana é instável, imprevisível, e nisso residem
as dificuldades dos relacionamentos humanos.
Porque mudamos o tempo todo, é muito difícil chegar a um
código duradouro de conduta que regule o relacionamento en-
tre os homens. Nosso elemento pessoal não é estável; por isso
é que nossos relacionamentos são dificultosos.
É difícil agradar os seres humanos. Um exemplo: a maioria
das pessoas gosta de chocolate, certo? Mas é possível que uma
pessoa que gosta de chocolate esteja de dieta. Eu mesmo estava
39 o mago

de dieta há pouco e meus pacientes me traziam um monte de


chocolates; eu não os comia. Eles me traziam um presente, mas,
na verdade, estavam me atrapalhando, pois eu estava de dieta.
Viu só? É difícil agradar gente. Nós tentamos, mas nem
sempre conseguimos. E é claro que o próprio ato de dar revela
uma preocupação que, de algum modo, já basta por si só. Em-
bora esteja de dieta, quando alguém me dá um chocolate, eu
não olho para o doce, mas para a intenção de quem presenteia.
Nós somos instáveis, passíveis de mudança, mas o Ser em
Ato Puro não tem potência nenhuma. Ele é puro ato. Ele é,
nele nada falta, e por isso ele é absolutamente estável. Nada
nele não é, ao contrário de nós, homens, que somos instáveis
porque temos um conjunto de coisas que não são: falta-nos
muita coisa.
Eu ainda não sou um herói, ainda não sou um vilão comple-
to, ainda não sou fortíssimo, ainda não sou obeso. Nós muda-
mos, porque vamos atualizando, ou seja, vamos transformando
em ato aquelas coisas que existiam apenas como potências.
Não somos fixos nem estáveis, mas o Ser em Ato Puro é. E
uma vez que esse Ser em Ato Puro é estável e é pessoa, ou seja,
é pessoa estável, há um conjunto também estável e previsível
de coisas que fazemos para nos relacionar com ele — porque
pessoas pedem relacionamentos, elas precisam amar.
Essas normas de conduta de relacionamento com a pessoa
perfeitíssima que é o Ser em Ato Puro e que garantem sua
relação pessoal com ela é o que chamamos vulgarmente de re-
ligião. Religião é apenas a prática pela qual um homem se rela-
ciona pessoalmente com o Ser em Ato Puro.
A religião não é um freio nem um acelerador. Ela é uma
prática para desenvolver sua razão, de modo que ela chegue a
algo que se chama fé — que não é credulidade, não é crença
idiota e não é coisa de criança. A fé é um upgrade da razão. Ter
fé não significa acreditar em contos da carochinha, pois a fé se
baseia em algo racional; ela é um passo a mais no relaciona-
mento com a pessoa do Ser em Ato Puro.
Em um texto fantástico chamado Fides et Ratio (“Fé e Razão”),
escrito por um polonês chamado Karol Wojtyla (Papa João
40

Paulo II), há uma imagem perfeita para o que quero dizer.


O texto inicia assim: “A fé e a razão (fides et ratio) consti-
tuem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se
eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou
no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em
última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O
e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si
próprio.” Ora, sem ambas as asas, não há como alçar vôos altos.

Um olhar perfeitamente desatento


Voltemos à lâmina do Mago. Já disse que o chapéu encobre e
protege sua visão, permitindo-lhe enxergar melhor as coisas.
A segunda coisa a se observar nessa lâmina é o olhar. O Mago
tem um bastão na mão esquerda e apoia a direita sobre a mesa.

Ele lança um olhar meio de


lado, encoberto pelo chapéu.
É como se ele tivesse uma atenção
— ou desatenção — perfeita. Ele
não precisa prestar atenção no seu
trabalho, pois seu trabalho é o jogo.
Slackline é um esporte no qual
o praticante prende uma fita de
nylon entre dois pontos fixos (ge-
ralmente, duas árvores), e tenta
se equilibrar sobre ela, andando e
fazendo manobras no ar. Noutro
dia, eu tentei jogar e falhei mi-
seravelmente. Foi muito difícil,
porque não sou equilibrista, não
tenho treino. Assim que subi na
fita, comecei a pensar unicamente
em me equilibrar, e é claro que caí
41 o mago

imediatamente, pois estava dando atenção ao meu equilíbrio com


a cabeça, quando na verdade a atenção teria que ser orgânica.
Se um equilibrista pára e pensa em cada movimento que faz,
ele cai. O equilibrista experiente, por outro lado, não pensa cons-
tantemente nos movimentos, mas deixa-se levar pelo corpo e as-
sim consegue seguir em um ritmo perfeito. Esse ritmo perfeito é
simbolizado pela ida e vinda do chapéu do Mago (∞).
Como o equilibrista experiente, o Mago já não precisa pen-
sar em cada passo que dará. Ele tem uma atenção perfeita —
ou uma perfeita desatenção —, em que trabalho é jogo. A des-
treza absoluta em seu ofício permite-lhe manter uma atenção
perfeitamente desatenta.
É dessa atenção que todas as escolas místicas falam, a aten-
ção de quem lança um olhar perfeito para o mundo. A Yoga,
por exemplo, nada mais é do que o “acalmar” de toda a subs-
tância mental dispersa.
É como Goethe disse: “Você quer ter sucesso nos seus atos, nos
seus projetos? Concentre o máximo de força no ponto mínimo”, ou
ainda, como falou o nosso jurista Ives Gandra: “Quer ter sucesso
em alguma coisa? Comece cedo e faça somente aquilo.”
Noutras palavras: concentre toda a sua força em uma única
coisa. Dedique-se a outra só depois que dominar a primei-
ra. Quando dominar a segunda, passe para a próxima e assim
por diante. Quem deseja ter força em todas as áreas, sempre e
logo, não consegue nunca ter força em nada. É um problema
de atenção.
É a mesma coisa da qual fala, por exemplo, a prática da
trapa. Os monges trapistas têm um exercício de silêncio que
consiste basicamente em... calar a boca. O professor Olavo de
Carvalho também recomenda a seus alunos dez anos de jejum
em matéria de opinião. E é também o que recomendava a esco-
la pitagórica: o aluno que entrava tinha de ficar quieto, obser-
vando, durante cinco anos, pois o que é disperso perde a força.
Quem já vivenciou um retiro de silêncio — católico ou pro-
testante — sabe do que estou falando. Esses retiros têm exer-
cícios maravilhosos que permitem um aquietar constante da
substância difusa psíquica.
42

Para nós, é difícil alcançar a perfeita atenção (ou desaten-


ção) do Mago. Estamos sempre muito agitados, temos um de-
sejo constante de dar opinião sobre tudo, de julgar os outros.

Cale-se!
Você já me ouviu dizer várias vezes um “Não encha o saco!” —
parte do lema “Trabalhe, sirva, seja forte e não encha o saco.”
Esse “Não encha o saco” nada mais é do que uma outra ma-
neira de dizer “Fique quieto”, “Cale-se”. É “ficando quieto” e
“não enchendo o saco” que se alcança a perfeita desatenção
do Mago. O silêncio interior permite transformar o trabalho
em jogo.
Hoje, fala-se bastante em mindflow — e um monte de co-
aches infelizmente entendeu a coisa de modo errado. Quan-
do o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi fala do flow, ele dá
exemplos maravilhosos. Imagine um maestro regendo uma
orquestra, com todos os grupos de instrumentos (as cordas, as
madeiras e os metais). Você acha que ele está pensando a todo
o tempo em cada mínimo detalhe da sinfonia? Se ele pensasse,
não conseguiria reger. Quando um regente move os braços,
ele não está pensando em mais nada — está simplesmente re-
gendo. Ele entra em um estado de flow e adquire uma postura
similar à do Mago da primeira lâmina do Tarô.
Quando os tenistas Roger Federer e Rafael Nadal jogam
tênis, não ficam pensando no que estão fazendo; apenas fazem.
O trabalho vira jogo, e isso fica muito claro, porque eles estão
mesmo jogando, o jogo flui. Eles são atletas de alta performan-
ce, não charlatães.
Até então, falamos de atividades práticas, como a do ma-
estro e a do tenista. Pensemos agora em uma atividade espiri-
tual, interior. É nesse campo que se abre um grande leque de
charlatanismo; e eu vi algumas pessoas na Internet caírem por
isso recentemente. Elas não atingiram estado algum de flow,
antes tentaram criar um estado de desconcentração absoluta.
43 o mago

Acharam que eram uma espécie de Osho. Tanto eram embus-


teiros, que esses sujeitos sumiram, não estão mais por aí.
A atenção/desatenção perfeita é necessária para fazer o tra-
balho virar jogo, e então a morada espiritual do seu espírito
passará a ser aquele lugar.

Comece então fazendo um exercício muito simples: cale-se.


Cale a boca e fique quieto por dez minutos, contemplando.
Um praticante, no início, conseguirá manter esse estado por
um minuto apenas. Depois de alguma prática, chegará aos dez
minutos de contemplação.
“Mas vou ficar calado contemplando o quê?” Ora, cale-se! “Mas
não estou entendendo. É para contemplar o quê?”. Cale-se! Se não
ficar quieto, nunca irá entender.
É óbvio que alguém sem a prática desse silêncio contempla-
tivo não consegue fazer uma análise sobre si nem sobre nin-
guém. Não consegue ser psicólogo, pai, instrutor, patrão nem
funcionário. O entendimento dos outros arcanos exige que,
primeiro, a pessoa se cale.
Alguns associarão o que estou dizendo ao mantra “é preciso
ficar quieto para ouvir a voz de Deus.”, porém não é disso que
estou falando. Você nem sabe se Deus tem voz! E, supondo
que Ele tenha uma, você não conseguiria distingui-la da voz
do seu próprio pensamento. O exercício que proponho é muito
simples: não reclame, fique dez minutos quieto. Não é a “voz
de Deus” que você deve procurar aí, até porque a voz de Deus
já é uma atividade.
É importante que tanto os religiosos quanto os não religio-
sos se dêem conta do seguinte: só escutamos a voz daqueles de
quem somos íntimos, pois conversa pressupõe intimidade. E
a intimidade é uma conquista — sobretudo a intimidade com
Deus, que é obtida por meio da prática da religião, que eleva
sua razão até o estado de fé. Por isso é que se fala de Fé como
virtude teologal. Em algum momento, a voz de Deus o alcança,
e nem isso você controla, pois pode ser que Ele não queira falar
com você naquele momento.
44

“Ai, Italo, mas é claro que Deus quer falar comigo”. É você quem
está dizendo... Na verdade, você nem sabe qual plano Ele tem
para você. Pense em São João da Cruz, por exemplo. Indepen-
dentemente de sua religião, você há de convir que ele foi um
sujeito grandioso, excelente. Sabe quanto tempo Deus ficou sem
falar com ele? Quarenta anos. Por quarenta anos ele não ouviu a
voz de Deus. Esse período, ele o chamou de “noite escura”.
Se, por vezes, Deus deixa de falar mesmo com homens des-
se calibre — e Ele tem suas razões para isso, ainda que não as
compreendamos —, é claro que essa história de que “Deus quer
me ouvir” é coisa da sua cabeça. Talvez seja algo que você está
apenas repetindo, pois ouviu em uma pregaçãozinha por aí,
feita por alguém que também não sabia o que dizia.
No silêncio, você não necessariamente ouvirá a voz de Deus.
O que o silêncio lhe proporcionará certamente é o aquietar da
sua substância difusa.

Quem sou eu, afinal?


Chegamos a um ponto fundamental. Afinal, quem é você? O
que é o seu ego, o seu eu?
Primeiramente, é preciso acabar com essa idéia equivocada
de que o ego é uma coisa ruim. “Meu ego está falando mais alto,
tenho de destruí-lo.” “Tenho o ego muito elevado, preciso baixar a
bola.” Pare com essa vulgaridade, com essa mentalidade redu-
cionista que não o levará a lugar algum. O ego tem, pelo me-
nos, três camadas de acepção, e precisamos conhecer todas elas
para começarmos a entendê-lo.
Geralmente, ao falar de ego ou eu, referimo-nos apenas à pri-
meira delas: o “eu” como na frase “Eu aluguei esta casa.” Esta é a
camada mais superficial do eu, a que chamamos eu narrativo — é
o eu a quem você consegue se referir, aquele de quem se pode fa-
lar. Esse eu é como uma camada superficial sob a qual subjazem
várias outras. Ainda não chamaremos a isso inconsciente nem
subconsciente. Estamos na nomina, como falou Freud.
45 o mago

As outras camadas mais profundas de que o eu é composto,


por outro lado, são tudo aquilo que você de fato é, tudo aquilo
que lhe aconteceu, tudo aquilo que você carrega, todas as suas
percepções, embora você não seja capaz de explicá-las nem mes-
mo de falar aos outros sobre elas. Esse é o eu profundo, que tam-
bém podemos chamar de eu substancial. Esse, sim, é você mesmo.
Você é, portanto, tudo aquilo que carrega, tudo aquilo que
lhe aconteceu, que percebeu, que sabe — ainda que não con-
siga se expressar sobre tais coisas nem dar razões para elas.
Como veremos adiante, a terapia e a escrita de um diário se
prestam a ajudar a pessoa a buscar esse eu profundo.
Se eu questionar minha irmã a respeito do dia em que
nosso avô morreu e do que fizemos após o velório dele (fo-
mos ao Outback e ficamos lá tomando um chá gelado e
conversando), ela provavelmente não se lembrará desses de-
talhes, pois eles não estão na superfície do eu dela. Mas, tão
logo eu os mencione, ela se lembrará do acontecido, pois
é algo que estava em seu eu profundo, mas que agora, com
a ajuda de algumas palavras, veio novamente à sua cons-
ciência. Ela o trouxe para o eu superf icial, para o primeiro
“andar” do eu.
A quantidade das coisas todas que lhe aconteceram é você.
Esse é o seu eu substancial, e ele permanece. Isso é incrível! Não
pense que se trata de um “eu falso” e um “eu verdadeiro”. O eu
narrativo e o eu substancial são, ambos, camadas do eu. Ambos
fazem realmente parte do eu.
Você tem um eu superficial, que é o eu narrativo. Ele existe,
está presente e, em geral, quando você diz “eu”, está se referin-
do a ele, ou seja, a esse andar mais aparente do eu, porque, nor-
malmente, jamais nos referimos ao eu em toda a sua dimensão
e profundidade.
Além do eu narrativo e do eu substancial, há uma terceira
acepção da palavra “eu”: refiro-me ao eu que aparece para o
outro, o eu social.
Quando apareço para o outro e o outro aparece para mim,
criamos um conjunto de expectativas. Quando, por exemplo,
46

você discute com sua esposa, com seu marido, com seu (sua)
namorado (a), com seu filho, com seu patrão, em geral, está
falando desse eu social, o eu das expectativas. Esse eu social, de
algum modo, é alienante — e é normal que seja assim. Quando
ele entra em cena, nós tiramos do horizonte de consciência
esse eu profundo, que abarca tudo.
A consistência do eu, porém, não pode ser apenas a expec-
tativa que os outros têm sobre mim, e a que eu tenho sobre os
outros. É claro que tenho uma expectativa sobre você que lê
este livro — se não tivesse, nem o escreveria. Tenho a expec-
tativa de que você aprenda algo do que ensino sobre Psico-
logia. Se tivesse outra expectativa sobre você, estaria falando
sobre futebol ou sobre qualquer outra coisa, mas existe afinal
um ajuste de expectativa social, então eu lhe apareço com esse
eu social.
Embora seu eu social esteja saliente em muitas situações, é
preciso lembrar que você não se limita a ele. Você é o eu pro-
fundo — do qual, aliás, procedem o eu narrativo e o eu social.
A maior parte das coisas que lhe acontecem, acontecem não
por circunstâncias do ambiente nem porque o outro acha isso
ou aquilo de você, mas porque você é esse eu profundo. Você, na
verdade, é muito mais profundo e complexo do que seu eu social
e seu eu superficial podem aparentar.
Quando nos desligamos do eu profundo (e esse desligamen-
to é generalizado), surge a necessidade de terapia. Na terapia
habilmente conduzida, o terapeuta ajuda uma pessoa a se lem-
brar daquilo que ela é de fato — não superficialmente ou con-
forme as expectativas alheias. A terapia, sozinha, não dá conta
de tudo, mas já é um bom início do processo.
A escrita de um diário é um outro elemento do processo.
Ao escrever um diário, você tenta tanger seu eu profundo. Ob-
viamente não será possível abrangê-lo em sua totalidade, pois
o ser humano é uma criatura complexa e maravilhosa e o eu
profundo é todo um universo do qual geralmente não falamos.
Agimos, o mais das vezes, a partir do eu narrativo ou a partir
do eu social. E isso é especialmente verdade para as pessoas que
47 o mago

ainda não transformaram seu trabalho em jogo, ou seja, que


ainda não adquiriram a capacidade de dar atenção às coisas
mais fundamentais.
O olhar do Mago na primeira lâmina do Tarô indica tudo
isso que acabei de descrever. O Mago age a partir daquilo que
é, e não a partir da expectativa alheia ou de uma narrativa.
Ele não lança seu olhar sobre o eu social, não lhe importa o que
os outros vão dizer, não lhe importam os juízos alheios (ob-
serve que ele não está olhando para ninguém). Ele tampouco
tem os olhos postos sobre o eu narrativo — ele nem sequer está
olhando para as próprias mãos.
Mas, afinal, o que diabos ele está olhando?
Perceba que o Mago está de lado, com a mão direita posta
sobre a mesa, segurando o bastão com a mão esquerda e mi-
rando outro lugar... Mas não sabemos exatamente qual. Seu
olhar não é propriamente um olhar perdido, mas está posto
no horizonte; nesse horizonte que abarca seu ser, que abarca
aquilo que ele é.
Como vimos, o chapéu do Mago em forma de lemniscata
simboliza a proteção necessária para que mantenhamos o olhar
voltado para o infinito, pois quando os raios de sol batem em
nosso rosto, baixamos os olhos e, assim fazendo, deixamos de
contemplar o infinito.
Não confunda esse olhar para o horizonte com uma ten-
tativa de acesso ao inconsciente. Ainda não falamos sobre ele,
ainda não sabemos se se trata de consciente ou inconsciente.
Trabalharemos essas noções em outro momento. Por ora, con-
centremos a atenção em duas coisas: na disposição a deixar-se
proteger pelo chapéu do Mago e no olhar atentamente desa-
tento, na atenção perfeitíssima àquilo que realmente se é.

Uma semente grega


Se você investigar as primeiras conferências de Jung, na Suíça,
descobrirá que ele passava de quatro a cinco horas falando sobre
48

mandalas. É sério: muitos tomavam um trem para assisti-lo


falar durante horas sobre mandalas e a formação do universo a
partir delas. Essa é uma das coisas de que a Psicologia é feita.
Só hoje, em uma sociedade e um tempo bastante esquisitos
como os nossos, é que praticamente tudo aquilo que é amplo,
profundo, simbólico e penetrante, fica perdido — e daí é que
surgem essas pessoas que acham que a Psicologia é feita de
meia dúzia de técnicas. Não! A Psicologia não é a maleta de
ferramentas com as quais o psicólogo aperta os parafusos sol-
tos da cabeça do paciente. Ela não é um amontoado de técnicas
exaustivamente descritas em tratados e artigos científicos. Ela
lida com algo tão complexo e profundo, que não poderia esgo-
tar-se aí. Exige uma linguagem e uma percepção simbólicas e
filosóficas, e é disso que tratarei aqui.
Certa vez, fui jantar na casa de um amigo de longa data,
padrinho de um dos meus filhos. A esposa dele, exímia cozi-
nheira, na época cursava Gastronomia, e seus jantares eram
sempre ótimos (ainda são). Em um deles, ela me mostrou al-
guns azeites que havia trazido de uma viagem, e me convidou
a experimentar um azeite grego com pão. Foi então que eu
descobri que azeites gregos são excelentes; na verdade, são uma
das melhores coisas que a Grécia produz há milênios. Lá, eles
têm por tradição a arte do cultivo de azeitonas.
Um tempo depois, assisti a uma aula do Julián Marías na
qual ele comenta a origem da Filosofia na Grécia e, de passa-
gem, observa como é estranho que a Filosofia tenha surgido
em um país de agricultores, pobre e pequeno, onde não havia
mais que quatro gatos pingados pastoreando cabras e cultivan-
do azeitonas. A imagem daquele fruto tradicional grego não
saiu mais da minha cabeça.
A azeitona dá origem ao azeite, que é empregado em nossa
cultura com uma série de finalidades: como tempero culinário,
como medicamento, como combustível para lamparinas... Pe-
los antigos, ele também era empregado para besuntar o corpo
de atletas e lutadores, diminuindo o atrito durante os exercí-
cios ou combates. O azeite simboliza esse elemento que, ao
mesmo tempo, conserva e prepara para a batalha.
49 o mago

Há um outro fruto tradicional e que também nos chama muito


a atenção: o figo. A pessoa com um mínimo de cultura “escriturís-
tica” e de sensibilidade estética, ao olhar para um figo, haverá de se
lembrar daquela passagem emblemática das Escrituras.
(Se você não tem religião, não seja um implicante quando eu
falar do Cristo. A religião é uma prática e a Sagrada Escritura
é um registro simbólico e histórico dos eventos que iluminam
a nossa existência. O próprio Jung fez uma análise arquetípica
de vários elementos escriturísticos. Então, se isso lhe confortar,
entenda as Escrituras como Jung as entendeu, mas saiba que
haverá uma perda.)
Cristo andava à beira da estrada, quando sentiu fome e
avistou uma figueira junto do caminho. Ao aproximar-se dela,
porém, percebeu que só havia folhas e nenhum figo. Ora, uma
árvore frutífera deveria dar frutos. Uma figueira deveria dar
figos! Ele então amaldiçoou a figueira, dizendo: “Nunca mais
alguém coma fruto de ti!” A árvore secou imediatamente.
(Mt 21, 18-22; Mc 11, 12-14.)
Alguns podem se perguntar por que é que o Cristo, gene-
roso como era, ao constatar que a figueira não dava frutos, ao
invés de a amaldiçoar, não a abençoou. Ele poderia mesmo ter
abençoado a figueira e feito com que ela desse frutos.
Na multiplicação dos pães e dos peixes, por exemplo, ele
parece ter adotado uma postura diferente daquela que adotou
com a figueira. Havia poucos peixes e poucos pães, e as pessoas
estavam com fome. Sabendo disso, ele tomou o pouco que ha-
via nas cestas (cinco pães e dois peixes) e abençoou. Com sua
bênção, o alimento foi multiplicado, de modo a saciar a fome
de mais de cinco mil pessoas (Mt 14, 13-21; Mc 6, 34-44; Lc
9, 10-17; Jo 6, 1-13). Se ele foi tão generoso na multiplicação
dos pães e dos peixes, por que não o foi com a figueira? Por que
ele olhou para ela e a amaldiçoou, fazendo com que secasse?
Ao fazermos uma análise simbólica da figueira e da azeitona,
comparando-as, notaremos uma diferença essencial entre os frutos.
Nas análises hermenêuticas que os grandes homens que se
debruçaram sobre as Escrituras deram sobre essa passagem
da figueira, vemos, em regra, apenas um tipo de explicação
50

tradicional: o Cristo amaldiçoou a figueira, porque ela não


dava frutos, e porque tinha apenas folhas.
As folhas são o elemento aparente, mas a finalidade da ár-
vore frutífera é, em verdade, produzir frutos. Logo, se a árvore
não dá frutos, não está fazendo o que deveria fazer.
Muitos daqueles que interpretaram as Escrituras viram, na
figueira estéril, em sentido mais amplo, a figura de todos os
homens que não dão os frutos da fé, ou seja, que aderem à
religião, mas ficam guardados em si mesmos. A figueira é a
imagem do sujeito que exibe espalhafatosamente coisas sem
sentido algum, enquanto esconde para si o essencial. Na pará-
bola dos talentos (Mt 25, 14-30), de modo similar, Cristo con-
ta sobre um “servo mau e preguiçoso” que, medroso, escondeu
debaixo da terra o único talento (uma unidade contável que
equivalia, mais ou menos, a cinquenta quilos de prata) recebido
do patrão.
Antes de fazer uma viagem, esse patrão havia confiado uma
quantia em dinheiro (em talentos) diferente a cada um de seus
três servos. Os dois servos que receberam mais investiram o
dinheiro, e quando o patrão voltou, recebeu de volta o valor
multiplicado. Estes dois foram reconhecidos como servos bons
e fiéis, e o patrão, vendo que haviam sido fiéis no pouco, deu-
-lhes a intendência sobre muito. Já o servo que recebeu apenas
um talento, enterrou-o; o senhor, ao regressar e não ver seu
talento sequer corrigido, chamou-o “servo mau e preguiçoso”
e disse que deveria ser lançado “nas trevas exteriores, onde ha-
verá choro e ranger de dentes.” Nessa parábola, o “servo mau
e preguiçoso” é tradicionalmente entendido como figura da-
quele homem estéril, que esconde o que ganha, que guarda sua
vida para si mesmo. É um convite a que desenterremos nossos
talentos, tornemo-nos mais produtivos e coloquemos nossos
dons a serviço dos outros.
De volta à figueira, na explicação mais tradicional da pas-
sagem, o Cristo amaldiçoa aqueles que não revelam o seu in-
terior, que se escondem, ou seja, que não dão testemunho do
Cristo — mas esta é apenas uma das explicações.
51 o mago

O fato é que, se pusermos um figo ao lado de uma azeitona,


veremos uma diferença fundamental entre eles: a azeitona tem
uma (e somente uma) semente, ao passo que as sementes de
um figo são incontáveis. Ao comer um figo, ninguém separa as
sementinhas da polpa. Isso nem é possível, e por isso é que o
figo é um fruto que se come inteiro.
Acontece que, hoje em dia, as pessoas não têm qualquer
sensibilidade estética ou pensamento simbólico. Elas são inca-
pazes de entender que ambos os frutos estão na raiz da possi-
bilidade da filosofia dos gregos e também na raiz da maldição
que o Cristo lança sobre aquela fruta com inúmeras sementes
indistintas; são uma imagem, um espelho da nossa atuação
diante da vida.
Quando fui morar com o professor Olavo de Carvalho, em
2007, eu queria aprender certas coisas nas quais estava interes-
sado. Se por um lado eu não tinha ido lá a passeio, por outro
eu também era um idiota completo, então comecei a lançar-lhe
várias perguntas, dia após dia, uma atrás da outra, e uma total-
mente diferente da outra.
Eventualmente, com muita tranqüilidade, sem nenhum tipo
de ofensa ou grosseria, o Professor Olavo me colocou em meu
lugar, dizendo que um idiota consegue levantar mais questões que
mil sábios são capazes de responder. Era como se ele dissesse: “Seu
figozinho medíocre, você está amaldiçoado e irá secar. Há tantas semen-
tes dispersas em você! Há tantas perguntas desconexas em sua cabeça
que não irão frutificar, que o melhor é que você fique quieto.”
É isso o que simboliza o figo. Ele é um fruto cheio de pe-
quenas sementes dispersas; e remete a um pensamento disper-
so, a um modo disperso de viver.
Os camponeses de Atenas cultivavam azeitonas por exce-
lência. Ela é o símbolo da pergunta perfeita, bem colocada e
incisiva, é o símbolo mesmo da Filosofia. Em um só caroço,
está contida toda a possibilidade de brotar uma nova oliveira,
em todo o seu esplendor. É preciso aproveitá-lo.
Infelizmente, essa visão simbólica foi perdida hoje em dia.
A cultura e a filosofia gregas nos dão o alvo a que nosso olhar
52

precisa se dirigir; o centro mesmo das perguntas fundamentais,


a partir das quais brotarão coisas muito importantes. É como
Julián Marías certa vez disse em uma de suas aulas: é estranho,
e quase que surpreendente, que uma nação relativamente pe-
quena, com alguns camponeses e soldadinhos, tenha formado
dois terços da cultura ocidental por milênios. É espantoso.
E é igualmente estranho que as faculdades de Filosofia de
hoje não tenham por foco a formação de seus alunos na cul-
tura grega, ao menos nos primeiros dois ou três anos de curso.
O que é a Filosofia? O que ela tem para nos indicar? Por que
ela pode nos nutrir? Como ela pode abrir nossos olhos? Como
a Filosofia pode acrescentar algo ao nosso modo de ver as coi-
sas, de forma que possamos olhar para o ser humano como um
todo, em uma perspectiva mais ampla?
Bebemos da cultura grega há 2400 anos. Ainda hoje, pensa-
mos utilizando as categorias gregas; portanto, se temos a pre-
tensão real de entender a alma humana, de entender o que é
o homem e o que é este lugar em que ele está inserido, então,
necessariamente, teremos que voltar nossa atenção para a cul-
tura grega em algum momento. Neste livro, nós o faremos mais
de uma vez.

A quebra do paradigma sofista


Entre os gregos famosos, três são famosíssimos. Ainda que
você não conheça nada da cultura grega, ao menos destes três
gregos você já ouviu falar: Sócrates, Platão e Aristóteles.
Não temos nenhum texto escrito por Sócrates, como você
deve saber. Ele foi um soldado, lutou na Guerra do Peloponeso
e era um sujeito que simplesmente andava por aí falando com
as pessoas. Ele falou, lecionou e escreveu algumas coisas, mas
não temos registros dele — só o conhecemos por meio de Pla-
tão e Xenofonte, que eram seus discípulos.
Platão armou toda a Filosofia socrática que era, em primei-
ro lugar, oral, explicativa — mas não temos registro de toda ela;
temos somente alguns textos que Platão nos deixou redigidos,
53 o mago

em forma de diálogos. Na verdade, todos os textos de Platão


são diálogos entre Sócrates e outra(s) pessoa(s), e é essa a nossa
maior fonte de informação sobre o pensamento socrático. E a
escrita de Platão não é de difícil leitura: justamente por serem
conversas, não são textos filosóficos entediantes e secos. É pos-
sível ler, por exemplo, um livro como “A República” com certo
nível de compreensão.
Em termos de História da Filosofia, sabemos que muito
do que está posto na boca de Sócrates já é Filosofia do pró-
prio Platão; isto é, muitas das perguntas e respostas socráticas
foram colocadas pelo próprio Platão. Provavelmente, o pen-
samento de Sócrates não era exatamente aquele exposto por
Platão, mas isso não faz diferença para nós.
Outro grego famosíssimo e tão importante quanto Sócrates e
Platão é Aristóteles. Do que está na cabeça de um homem ou mu-
lher ocidental, 80% ou veio das novelas da Globo e dos filmes de
Hollywood ou veio de Aristóteles. As próprias novelas e os filmes
de Hollywood, aliás, baseiam-se em categorias aristotélicas, por
mais que isso não ocorra conscientemente (na maioria das vezes).
E, embora provavelmente não o saiba, você também pensa
aristotelicamente.
Eventualmente entraremos em crítica cultural na História
da Filosofia. Esta é uma dessas ocasiões. Acontece com o pen-
samento aristotélico o mesmo que acontece com o cristianis-
mo. Darei um exemplo: você pode ser ateu ou não-cristão, mas,
aqui no Ocidente, você só o é em função do cristianismo. Não
existe ateísmo puro e simples. O que existe é uma ciência não
desenvolvida do ateísmo comparado. O ateu cristão é de um
jeito; o ateu muçulmano é de outro; o ateu judeu é de outro; o
ateu hindu é de outro; o ateu budista é de outro ainda. O ateís-
mo é sempre ateísmo em relação à religião de base.
Por sua vez, a Filosofia Moderna que nega as categorias aristo-
télicas está, na verdade, negando o jeito aristotélico de pensar. Ela
não inventou algo a partir do nada: é sempre uma contraposição
ao aristotelismo. O próprio Alfred Whitehead, grande comenta-
rista da Filosofia, diz que a Filosofia Ocidental inteira não passa
de uma coleção de notas de rodapé à obra de Platão. Nietzsche,
54

Heidegger, Fichte, Hegel, Scheler, a filosofia de todos esses mo-


dernos não passa de nota de rodapé ao que Platão escreveu.
O pensamento grego é olival. Como a oliveira, ele produ-
ziu uma semente una e consistente, que realmente germinou
e deu muito fruto. A Filosofia Contemporânea, por outro lado,
é como a figueira. Se produziu algo, foram centenas de idéias e
sacadas sem unidade, como as sementinhas dispersas de um figo.
Aristóteles ensinou-nos a pensar. Herdamos um mun-
do absolutamente óbvio; afinal, nascemos no século XX (ou
XXI), em um momento da História em que tudo está à nossa
disposição, pois nos foi dado por alguém do passado. Temos
luz elétrica, utensílios domésticos, Google, iPhone, MacBook,
Teorema de Pitágoras, regras de composição literária, técnicas
medicinais... Tudo isso existe e hoje está à nossa disposição,
mas nem sempre foi assim.
É fácil para o homem atual observar que a lua possui uma
continuidade: ela é nova, crescente, cheia e minguante, nova,
crescente, cheia e minguante... Mas imagine quantas gerações
de homens precisaram observar e documentar esse fenômeno
para que você possa se referir a ele hoje! Naturalmente, até
certo momento da história humana, as coisas não eram tão
óbvias e estabilizadas assim. Houve necessidade e esforço para
conquistar essa estabilidade.
O alemão Bruno Snell escreveu um livro fantástico, chama-
do “A Descoberta do Espírito” (a edição brasileira apresenta-se
com um título diferente).2 A obra é difícil de ler — e não é
uma leitura prazerosa —, mas contém uma análise muito in-
teressante.
Partindo de textos literários, em especial de textos poéticos,
Snell argumenta que a noção de espírito e de unidade do ho-
mem nem sempre estiveram claras na história da humanidade.
Ele nota que, na “Ilíada” e na “Odisséia”, epopéias atribuídas a
Homero, não há palavras que designem “consciência”, “alma”

2 SNELL, Bruno. A cultura grega e as origens do pensamento europeu. São Paulo,


Perspectiva, 2001 (edição brasileira); SNELL, Bruno. A descoberta do espírito.
Lisboa,
Edições 70, 1975 (edição portuguesa).
55 o mago

ou “espírito” — o termo psykhé refere-se à alma que se esvai


do corpo morto. Aparecem com freqüência, contudo, termos
que se referem a funções, como thymós (“órgão ou sede das
emoções”) e nóos (“mente”, “órgão ou sede do pensamento”).
Tampouco há uma palavra para o “corpo” de um homem vivo
— soma é empregado para designar um cadáver. Em lugar de
um termo único para o corpo, são empregados nomes de partes
ou órgãos do corpo, como cabeça, olhos, mãos, coxas, fígado.
Isso se daria, segundo Snell, porque na poesia homérica não
havia ainda uma visão integral do corpo nem uma idéia abstra-
ta de sujeito. O despontar da individualidade teria vindo mais
tarde, com os poetas líricos arcaicos, como Arquíloco, Safo e
Anacreonte, que deram a conhecer e exploraram novas “regi-
ões” da alma. Esse desenvolvimento posterior de uma consci-
ência individual também se veria refletido na vida política, na
religião, nos artistas plásticos e nas primeiras escolas filosóficas
que então surgiam.
Eu sou o Italo, você é o fulano, ela é a ciclana. Há mesmo
uma unidade nas coisas, e é maravilhoso que possamos pensar
assim. Somos de fato privilegiados, por assim dizer, pois her-
damos um mundo no qual esse primeiro esforço da inteligên-
cia já foi feito por homens notáveis que viveram antes de nós.
Aristóteles, um desses homens notáveis, entrou na história
do pensamento humano em um momento no qual já havia
alguma consciência de que as coisas têm uma unidade, uma es-
tabilidade precisa; mas algumas noções que temos como certas
hoje em dia, tais como a do homem enquanto unidade, ou ain-
da noções mais importantes, como a de Verdade, eram coisas
sobre as quais ainda não havia certezas àquela época.
Sócrates, Platão e Aristóteles surgiram em um momento da
história no qual havia um esforço sincero por alcançar a percep-
ção de algo estável, esforço este que vinha se desenvolvendo há
séculos. Em Atenas, eram bastante comuns os debates e argu-
mentações públicas em tribunais, assembléias e outros contex-
tos. Nesses debates, opiniões diferentes eram confrontadas; mas
não eram opiniões quaisquer, nem meros achismos. Tratava-se
56

da doxa (“opinião” ou “crença”), mas a doxa grega não correspon-


de ao que hoje entendemos geralmente como “opinião”.
Hoje em dia, com as redes sociais, todos se julgam no direi-
to de opinar sobre tudo, sobre assuntos que nunca estudaram,
sobre temas a respeito dos quais não leram uma mísera página.
Tornou-se comum ver um sujeito que nem sequer é alfabeti-
zado, que nunca leu um livro na vida, ter a ousadia de tentar
debater com uma pessoa que estudou um assunto por décadas,
“opinando” sobre aquele objeto de estudo. E o que é pior: o
sujeito ainda tem o descaramento de achar que sua opinião é
gloriosa e que as pessoas têm obrigação de lhe dar atenção!
Ora, a opinião vulgar de um sujeitinho como esse não é
como a doxa grega, mas, como diz o ditado, é como bunda:
cada um tem uma — e ninguém tem obrigação de dar atenção
à de ninguém. Se um paspalhão se julga no direito de emitir
uma opinião ridícula, eu igualmente reclamo o direito de não
prestar-lhe atenção e de não levar a sério o que ele diz; afinal,
ele não se dedicou a estudar o assunto nem por um minuto.
A doxa, segundo Platão, é uma “opinião” a que se chega a
partir daquilo que é captado inicialmente. Ainda não é um co-
nhecimento seguro (episteme), nem capta as verdades supre-
mas, mas tampouco se reduz ao achismo que encontramos atu-
almente na arena das redes sociais.
Aristóteles diferencia ainda um tipo especial de opinião (en-
doxon), que seria uma opinião ou crença mais estável, dotada
de algum “renome”, “reputação” ou “glória”, por ser a opinião
de homens sábios e notáveis ou a opinião comum à maioria, já
tendo passado por vários debates anteriores na cidade.
Como eu dizia, quando vieram esses três filósofos, já havia
um esforço por alcançar a percepção de algo estável que se vi-
nha desenvolvendo há séculos. E a escola dos pensadores que
desenvolveram honestamente visões estáveis sobre questões
relevantes chamava-se Sofística.
Alguns dirão: “Puxa, sempre pensei que os sofistas fossem sujei-
tos maus que querem nos convencer de algo...” Bem, sim, eles que-
rem nos convencer de algo; mas não são necessariamente maus.
57 o mago

É claro que um sofista hoje não teria lugar no hall da morali-


dade, pois a técnica da descoberta da Verdade já foi desenvolvida.
Porém, antes de Sócrates, Platão e Aristóteles — e de uma sé-
rie de pensadores que deram continuidade a seus pensamentos
—, a maneira sofística era a única forma de estabilizar certas
coisas, tais como os princípios da lei, da justiça, do direito na-
tural e das operações da alma. Os filósofos sofistas tentavam
chegar a algo estável com um esforço honesto e sincero, mas
esse “algo estável” ainda não havia sido confrontado por um
outro pensador grande que a tivesse estabilizado.
Até que Aristóteles apareceu.
A grande descoberta de Aristóteles foi a seguinte: é possí-
vel confrontar as opiniões gloriosas em uma técnica chamada
Dialética. Isso nos parece muito óbvio hoje, mas foi o estagirita
quem inaugurou essa possibilidade em nosso pensamento.

Itinerário dos Quatro Discursos:


a estabilização dos símbolos
pela Poética
Em um primeiro momento da história da humanidade, hou-
ve um esforço poético para estabilizar símbolos. A função dos
poetas é estabilizar aquilo que se vê. É necessário um esforço
mental para dizer: “A isso que você traz sempre no peito, darei um
nome: inveja”, ou “A isso que você traz sempre no peito, darei um
nome: generosidade”. Existe um esforço poético para estabilizar,
por exemplo, a inveja, a generosidade, o amor, os quais encer-
ram certo mistério e nos são, de certo modo, desconhecidos.
A poesia é necessária para estabilizar aquilo que é perene,
que é constante, que está sempre aí. E é função do poeta —
e do artista em geral — registrar impressões memoráveis, ou
seja, registrar aquelas coisas de que você precisa se lembrar.
Por isso é que podemos chamar de “arte baixa” ou “arte vul-
gar” os esforços por estabilizar coisas que não precisam da arte
para serem estáveis. Não é preciso estabilizar, por exemplo, as
58

vontades de transar, de ir ao banheiro ou de espirrar — todo o


mundo as tem e as conhece bem, não há nelas mistério algum.
Uma arte que se proponha a estabilizar esse tipo de mo-
vimento pode ser chamada de arte vulgar, mas nunca de alta
cultura. O funk carioca, por exemplo, não é alta cultura por-
que registra em sua manifestação movimentos óbvios, que não
necessitam ser registrados pela arte para serem compreendi-
dos. Todos sabem que, se uma mulher rebolar diante de um
homem, ele ficará excitado. Onde está a novidade? Não é pre-
ciso que a arte venha nos mostrar isso.
Com a vingança, contudo, é diferente. É difícil distinguir a
vingança de outras inclinações, como a da raiva, por exemplo.
Até hoje, mesmo depois de os temas aparecerem em tantas
obras de arte e serem discutidos por tantos filósofos, psicólo-
gos e religiosos, ainda existe muita confusão sobre o assunto.
Você pode estar com raiva de uma pessoa que lhe fez um mal,
mas sem necessariamente querer se vingar. Se dar um soco na cara
dela já o aliviaria e o deixaria feliz, isso quer dizer que você não
queria se vingar, afinal, não desejava a destruição total dessa pessoa.
Você não é como o Hamlet de Shakespeare, por exemplo,
que vê sua própria situação e pensa o seguinte: “Meu tio ma-
tou meu pai, está dormindo com minha mãe e, não fosse suficiente,
virou rei da Dinamarca. Que vilania! Tenho de me vingar desse
sujeito deplorável, imoral. Se há algo de podre no reino da Dina-
marca, deve ser meu tio Cláudio. Vou matá-lo!”
Hamlet então trama a morte do tio, conforme nos relata
Shakespeare. Esconde-se atrás de uma cortina, e espera o rei
entrar em seus aposentos para apunhalá-lo com uma adaga.
Acontece que, ao entrar no quarto, Cláudio imediatamente se
ajoelha e, em um ato de contrição, pede perdão ao bom Deus
por seus crimes.
Todas as fibras do Hamlet se retesam. Toda a sua imagina-
ção se direciona para um só lugar: o inferno vazio. Ele pensa:
“Se eu matá-lo agora, o inferno não será a morada habitual e eter-
na desse canalha, desse assassino. Por isso, eu recuarei, esconderei
minha adaga e esperarei o momento oportuno para me vingar.”
59 o mago

Hamlet não confundiu raiva com vingança.


O que faria um sujeito “vingativo” na novela “Malhação” da
Rede Globo? Ele certamente gritaria: “Seu maldito! Seu ver-
me! Vou acabar com você! Argh! Eu te odeio!” Isso, porém, não
é vingança, mas mera expressão da raiva. Em manifestações
vulgares, é comum a confusão entre uma coisa e outra. Só um
artista de verdade, como Shakespeare, vê nuances como as que
existem entre raiva e vingança e é capaz de estabilizá-las com
o discurso poético. Se você quiser entender e falar sobre a vin-
gança, leia Shakespeare. Ele estabilizou um símbolo que não
estava claro.
O primeiro movimento na história da humanidade, então,
é o de estabilizar símbolos por meio da poesia. A função do
discurso poético é abrir à imaginação o reino do possível.
Só depois de estabilizados os símbolos é que se poderá falar
sobre eles: “Parece que a vingança é isso”, “Parece que a lua tem
essas características”, “Parece que o quadrado tem tais propriedades.
Existe um elemento sempre presente. Se eu fizer quatro linhas retas
de mesmo tamanho, articuladas por ângulos de noventa graus, sem-
pre terei essa mesma figura.”
E a arte poética é profundamente simbólica. Esse discurso
poético tem um efeito algo “mágico”, que se dá por meio de uma
comunhão de vivências entre o poeta e seu público. O público
firma um pacto com o poeta: “Enquanto eu estiver ouvindo esta
história, enquanto eu estiver lendo esta obra literária, suspende-
rei minha descrença e minhas desconfianças para de fato mergulhar
nela e contemplar o que você quer que eu contemple. Em troca, você
alimentará minha imaginação com imagens, com representações
possíveis.”

Arte tradicional X
arte contemporânea
O verdadeiro artista preocupa-se em saber o que as coisas são,
e não em imprimir sua marca na obra. Isso fica claríssimo no
60

contraponto entre arte tradicional e arte contemporânea —


esta fala muito mais sobre o autor do que sobre a coisa; aquela
fala muito mais sobre a coisa do que sobre o autor.
Ao ver uma obra de Picasso, você exclama: “Ah, eis a visão de
mundo de Picasso!”. Está bem, Picasso vê o mundo assim. Mas e
daí? Como o mundo de fato é?
A arte cubista não retrata o mundo, mas sim o modo como
os artistas cubistas vêem o mundo. É em um ato de revolta
que Picasso cria o Cubismo, como quem diz: “Este mundo é
mau, porque não me revela todos os seus lados ao mesmo tempo.
O mundo bom deveria se revelar para mim em todas as suas di-
mensões simultaneamente.” Pegue um cubo, desmonte-o e você
verá ao mesmo tempo todas as seis faces dele — daí o nome
“Cubismo”. O problema é que, no mundo real, ninguém con-
segue ver todas as faces de um cubo ao mesmo tempo, mas,
no máximo, três.
A arte contemporânea não serve para estabilizar símbolos;
ela é antes a história de uma autoestabilização psíquica do ar-
tista. Ela é mais um tratado de Psicologia do que um registro
memorável de como as coisas são. Estudando Arte, consegui-
mos captar traços muito importantes do espírito de cada épo-
ca. Nesse sentido, o estudo da arte contemporânea nos ajuda
muito a entender os sintomas dessa nossa geração.
Veja, por exemplo, Jackson Pollock. Ele é o cara dos quadros
com rabiscos e borrões circulares. Nada em linha reta. Os qua-
dros dele se parecem com um amontoado de novelos de linha
desfiados — e são um registro fenomenal do nosso tempo.
Se você alguma vez já parou para desembolar um novelo de
linha, sabe como é difícil encontrar o fio da meada, o início do
novelo. É duro ver uma unidade naquilo. Ao desembolar fones
de ouvido, um colar ou um cadarço, nosso primeiro impulso
é xingar meio mundo. Pensamos: “Onde é que está o centro, a
origem dessa coisa aqui? Que saco! Como vou desembaraçar esse
negócio?”. Levamos certo tempo até pegar o fio da meada e
poder dizer: “Ah, achei! Aqui está a origem da coisa. Já consigo
desembolar.”
61 o mago

Ritmo de outono (Número 30) | Jackson Pollock, 1950 |


Museu Metropolitano de Arte | Nova Iorque, Estados Unidos

Jackson Pollock nos apresenta uma perspectiva muito singu-


lar: há pensamentos que são tão confusos, que parece que o ser
humano não encontrou o fio da meada. Onde é que está o fio da
meada da sua vida? Onde é que está o fio da meada do Ocidente,
da religião, da cultura, das ciências políticas ou da arte?
O nosso tempo é como um novelo embaraçado cujo fio da
meada perdemos. Pollock não fez mais que registrar essa ima-
gem. Ao olhar para uma tela dele, você pensa: “Caramba! Olha
eu ali! Não sei o que fazer, pois está tudo embolado. Minha sogra
está ali! Meu paciente está ali! Minha mãe está ali! O padre está
ali! Está todo o mundo ali, todo o mundo embolado. Cadê o fio da
meada? Não sei.” Isso é arte contemporânea, arte abstrata.
Não nos aprofundaremos mais em arte aqui, mas saiba que,
enquanto a função da arte tradicional é estabilizar o mundo,
a função da arte contemporânea é deixar registrada a visão de
mundo subjetiva do artista.
Já recomendei várias vezes a produção de Roger Scruton,
Why Beauty Matters (“Por Que a Beleza Importa”), de 2009.
É um documentário interessantíssimo que, no entanto, apre-
senta um desprezo equivocado pela arte contemporânea.
Desprezá-la é um erro, porque também ela tem uma grande
62

função, que é estabilizar os sinais psicológicos da degenera-


ção de um tempo. Obviamente, não é possível olhar para arte
contemporânea apreciando o Belo, porque não há beleza ali —
mas alguma coisa há.
Metafisicamente falando, o mal não tem substância: o cân-
cer é a degeneração de uma célula sã; a pobreza é a falta de
dinheiro; a maldade é a falta de bondade; a escuridão é a falta
de luz. A maldade, a degeneração e a perversão sempre estão
em algo que tem substância, e somente coisas boas têm subs-
tância. Sempre que se fala em “mal”, devemos pensar em uma
carência de bem. É também por isso que as Escrituras dizem
que as portas do inferno não prevalecerão: o mal não subsiste,
e não subsiste justamente porque não tem substância.
Se por um lado é impossível considerar a arte contempo-
rânea como a substância mesma da Arte, ou ainda, como algo
que registra aquilo que a Arte deveria, em tese, registrar, por
outro lado, também não a podemos desprezar por inteiro.
A arte contemporânea registra um movimento importante
do espírito: ela dá a medida da miséria do nosso tempo. É mes-
mo necessário um grande artista como Pollock neste mundo
para nos dar essa dimensão.
“Grande artista?! Meu filho de quatro anos faz quadros iguais
aos do Pollock!” Não, seu filho não pinta como o Pollock, porque
seu filho não tem psicomotricidade alguma (e por isso é que
ele desenha daquele jeito). Já o Pollock, embora tivesse boa co-
ordenação motora, deliberadamente quis expressar a coisa da-
quele modo; aqueles borrões não surgiram por falta de técnica.
O sujeito que não tem talento artístico pode até se dizer
artista ao copiar um quadro de Pollock, mas ele será apenas
um idiota cuja arte não tem qualquer valor. Pollock dominava
a técnica da pintura, mas quis expressar o que estava vendo: a
perda do fio da meada. Ele não fazia aqueles desenhos con-
fusos porque não sabia desenhar bem; ele os fazia porque sua
visão de mundo era confusa, no sentido de que apresenta um
mundo impossível, de sonho e fantasia. Era um pesadelo neu-
rótico, no final das contas.
63 o mago

Itinerário dos Quatro Discursos:


a Retórica e a Dialética
Primeiro, surge o registro artístico do discurso poético. Com o
símbolo devidamente registrado, passa-se a poder falar sobre ele.
Já vimos que existe um mundo, e que parece haver algo nele
que permanece: a lua e os planetas estão sempre rodando do
mesmo jeito. Aparentemente, há uma estabilidade — mas será
que foi assim desde sempre, ou será que houve um início? Eis
aí uma questão que deu origem a grandes discussões filosóficas.
O momento da história em que se passou a falar das coisas
registradas pelo discurso poético é o momento que deu origem ao
discurso retórico, que foi se tornando dominante com o estabeleci-
mento da polis grega. Ele foi disseminado pela atividade dos so-
fistas, que eram espécies de “professores” de retórica, discurso cujo
objetivo é persuadir seu público, levando-o a tomar uma decisão.
Enquanto o discurso poético tem um efeito como que má-
gico em seu ouvinte ou leitor, levando sua imaginação em
um vôo pelo mundo do possível sem que isso resulte em uma
conseqüência prática imediata (uma determinada ação ou de-
cisão), a influência do discurso retórico é bastante diferente.
Este é menos profundo, porém vai direto ao ponto. Quando
digo: “Trabalhe, sirva, seja forte e não encha o saco”, a mensagem
está clara e é evidentemente traduzível em ações exteriores. Eu
quero que você pare de reclamar e de encher o saco e que faça
o que tem de fazer. A minha intenção é mexer mais com a sua
vontade do que com a sua imaginação: é fazer com que você
queira alguma coisa — ou rejeite alguma coisa. Para isso, eu
preciso fazer você sentir que a minha proposta coincide, pelo
menos um pouco, com uma vontade sua.
“Já não se trata, portanto, somente de uma participação con-
sentida em uma certa vivência contemplativa, mas na admissão
consentida de uma identidade de vontades, portanto de decisões.”3

3  CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. São Paulo: É realiza-


ções, 2006, p. 92-94.
64

É claro que um “bom” orador pode fazer seus ouvintes pen-


sarem que querem uma coisa que, na verdade, não querem — e
distraí-los por algum tempo para que não percebam que foram
ludibriados. Mas esse truque nem sempre dá certo e vai, pouco
a pouco, diminuindo a credibilidade do orador. Se você o fizer
três ou quatro vezes, muitos perceberão que foram enganados
e perderão definitivamente a confiança em você. Como bem
lembrou Abraham Lincoln — ele mesmo um tremendo ora-
dor: “Você pode enganar algumas pessoas por muito tempo, ou
muitas pessoas por algum tempo; mas não pode enganar todos
o tempo todo.”
Atualmente, quando se fala em retórica, logo se pensa em
algo negativo: “Esse sujeito dá nó em pingo d’água, ele tem retó-
rica, tem lábia, convence as pessoas de qualquer coisa.” De fato,
em um mundo como o nosso, a retórica pode ser (como aliás
tem sido) convertida em instrumento de enganação e trapaça,
sendo empregada freqüentemente por pessoas inescrupulosas
e interesseiras. Na época dos sofistas, porém, ela era o melhor
instrumento de que se dispunha.
Os sofistas desenvolveram a arte de olhar para símbolos es-
táveis e declarar: “Esse símbolo funciona desse jeito, essas coisas
funcionam assim”. Como as coisas nem sempre funcionavam
daquela maneira, aparecia sempre um outro sofista com uma
visão diferente sobre uma mesma coisa.
Hoje, retornamos ao mundo dos sofistas. Nos debates pú-
blicos, as pessoas alegam que não há verdade; que o que existe
é uma série de opiniões: cada um tem a sua e todas devem ser
respeitadas.
Mas a realidade é que, eventualmente, é, sim, possível ter
razão sobre as coisas. É possível analisar os fatos, fazer o con-
fronto dialético e ver quem está certo e quem está errado.
Nem sempre, porém. Em algumas situações, absolutamente
não dá para ter razão, porque a natureza da coisa é ser des-
conhecida — mas não é o que acontece na maioria dos casos,
em que é perfeitamente possível chegar a um conhecimento
verdadeiro.
65 o mago

Essa história de “Não quero ter razão, quero ter paz” é coi-
sa do mundo pré-sofista. Se essa é a sua tese, meus parabéns!
Você regrediu três mil anos na história da humanidade, você
não é sequer um sofista, pois ainda está no mundo da estabili-
zação simbólica. Não há paz na ignorância.
Obviamente, não há mal em usar essa expressão em tom
jocoso, mas, se levada a sério, ela revela um grande erro: o que
traz a paz não é a ignorância, senão a luta, sobretudo a luta
pela Verdade. Si vis pacem para bellum, diz o adágio latino. “Se
queres paz, prepara-te para a guerra.”
A paz é fruto da guerra pela Verdade, da guerra para que se
possa conhecer a substância mesma das coisas. O sujeito que pre-
tere a razão em favor de uma suposta paz até poderá conseguir
um pouco de tranqüilidade, mas apenas enquanto não surgir um
tirano para controlar-lhe a vida, já que ela não tem estrutura nem
estabilidade. Muitos regimes tirânicos foram erigidos por conta
de concessões como essa, feitas pelo mundo contemporâneo.
Hoje, não há mais ninguém interessado na Verdade. Minto:
alguém está, e esse alguém o dominará, porque você é só um
idiota desinteressado que acredita em qualquer porcaria. Você
é a porta do regime tirânico e não pode reclamar do nazismo
ou do comunismo, porque é quem permite a entrada deles.
Sempre que fizermos concessões à Verdade, seremos tirani-
zados, individual e socialmente. Esse é o resultado do acúmulo
de idiotice e de ignorância. Foi das perversões filosóficas e me-
tafísicas que nasceu a possibilidade de tiranos dominarem boa
parte do Ocidente.
Só uma Europa enfraquecida poderia ver a ascensão de um
regime como o nazismo, pois uma Europa fortalecida pela
Verdade teria um antídoto na sociedade para que, por exemplo,
Hitler jamais fosse eleito — muitos não se lembram, mas ele
foi eleito democraticamente. Lula também foi eleito democra-
ticamente — aliás, por quatro vezes consecutivas, se contarmos
que a Dilma é uma espécie de Lula; ou ainda, por seis vezes
consecutivas, se considerarmos também que Fernando Henri-
que Cardoso foi uma espécie de proto-Lula.
66

Há 3000 anos, a Retórica era o máximo a que o pensamento


humano poderia chegar. Os retores se debruçavam honestamente
sobre os assuntos dos quais falavam; e eles falavam tão excelen-
temente, que é como se suas opiniões se revestissem de glória.
Tais opiniões não eram ainda conhecimento sólido, mas eram
verossímeis e consistentes. Cabia aos ouvintes julgá-las e to-
mar uma decisão (sobre a culpa ou inocência de alguém, sobre
os méritos ou deméritos de alguém, sobre a necessidade ou não
de algo etc.)
É preciso lembrar que essas “opiniões gloriosas” definitiva-
mente não são “meras opiniões”. Todos nós temos nossos pre-
conceitos pessoais, coisas em que acreditamos por mera ligação
emocional. Eu tenho o direito de acreditar, por exemplo, que a
cidade em que nasci é a melhor cidade do mundo simplesmente
porque tenho um vínculo emocional com ela; mas não faz sen-
tido discutir sobre isso com meu amigo que acha que a melhor
cidade do mundo é a cidade em que ele nasceu, baseando-se
também em um vínculo emocional. Passa-se algo muito similar
com nossos gostos pessoais para comidas, cores, roupas etc.
“As diferenças de opinião se tornam discutíveis somente
quando as opiniões sobre as quais temos diferenças não são
meras opiniões (...) — somente quando não são apenas pre-
conceitos pessoais, expressões de gosto, ou de coisas em que
queremos acreditar.”4
Eu posso apresentar bons argumentos para defender a idéia
de que, atualmente, plantar café é melhor para um produtor ru-
ral brasileiro do que plantar feijão. Você, por outro lado, pode
apresentar boas razões para mostrar o contrário. Cada qual de
nós pode, aliás, apresentar pesquisas científicas, estatísticas e
exemplos positivos e negativos de outros produtores rurais para
embasar nossas idéias. E, ainda que eu não consiga convencê-lo
nem você convencer-me, fica claro que, em nossa discussão, não
estamos nos embasando em meras opiniões, em gostos pessoais
ou simplesmente em coisas em que acreditamos.

4  ADLER, Mortimer. Aristóteles para todos. São Paulo: É realizações, 2010, p. 163.
67 o mago

Digamos que você tenha estudado mais a fundo sobre


as culturas de café e feijão no Brasil e consultado produto-
res rurais experientes, e que a maior parte dessas autoridades
defendam a sua idéia, e não a minha. Para Aristóteles, os seus
argumentos seriam mais fortes por representarem a opinião da
maioria das autoridades, ou dos especialistas, ou de uma maio-
ria de homens que já discutiram essa questão anteriormente.
Agora que você já sabe que um debate só faz sentido quan-
do as partes trazem opiniões com algum fundamento e não
meros “pontos de vista”, achismos de Facebook, opiniões de
boteco ou convicções de estimação, prossigamos.
Aristóteles desenvolveu uma técnica para o confronto de
opiniões. Essa técnica é a dialética. A partir desse confronto,
chega-se, dedutiva, indutiva ou apofanticamente, a algo que é
muito consistente: a noção de que existe algo que dura e per-
siste depois do confronto de opiniões.
Se desbastarmos as opiniões, tirando delas aquilo que não
presta, ou seja, aquilo que se limita ao campo do opinável, so-
brará algo que é central, que subsiste. É possível confrontá-lo
dialeticamente de novo, de novo e de novo, mas esse algo man-
terá uma consistência, não mudará, estará sempre presente.
Qual o nome dessa coisa? Os gregos a chamavam de alétheia.
“A” é um prefixo de negação ou privação e “léthe” significa
esquecimento. Na mitologia grega, Léthe designava também
o rio do esquecimento, no mundo inferior. Quem bebesse de
suas águas ou nelas se banhasse, se esqueceria das coisas.
Hoje, nosso rio do esquecimento é o dia-a-dia, no qual to-
dos nós nos banhamos diariamente ao acordar. Léthe é a água
da pia com que lavo meu rosto pela manhã. Esse é o rio que me
faz esquecer — não de tudo, mas apenas do que é fundamental.
Ao me banhar no rio do esquecimento, deixo de me perguntar
o que preciso fazer diante de Deus, o que preciso fazer diante
do próximo, o que preciso fazer diante da minha própria vida.
Na língua árabe, o homem (não o homem masculi-
no, para o qual a palavra é dhaker, mas sim o ser huma-
no) é chamado “insan”. Insan é uma palavra que significa o
68

“esquecente”, aquele que se esquece. E nós nos esquecemos


porque nos banhamos no rio diário do esquecimento. Aristó-
teles, porém, descobre uma negação desse rio: alétheia. Existe
um antídoto para que você não se esqueça: a técnica dialética
da Filosofia. O confronto foi feito, e sobrou algo que resiste,
que durará para sempre na eternidade, que não depende mais
da opinião de ninguém, nem da sua memória.
Na Dialética, a inteligência humana conseguiu capturar esse
grão que surgiu e brotou; conseguiu capturar essa semente una,
tal como uma semente de azeitona. Se você capturá-la e culti-
vá-la bem, ela se converterá em uma bela oliveira e produzirá
frutos como as azeitonas. A técnica da dialética, da Filosofia,
foi a descoberta da nossa possibilidade de chegar à alétheia.

Itinerário dos Quatro Discursos:


a articulação dos discursos
na vida concreta
Vimos que existem um discurso poético, um discur-
so retórico e um discurso dialético — três maneiras pe-
las quais o homem pode, por meio da palavra, exercer
uma influência sobre a mente de outro homem (ou so-
bre a sua própria). Esses discursos passaram por uma su-
cessão ao longo dos tempos, de modo que cada um de-
les teve uma autoridade maior durante determinado
período da história. O poético (dos poemas homéricos e
dos antigos livros sagrados, como o Antigo Testamento,
os Vedas e o Mahabharata) perdeu sua autoridade por volta
do séc. VII a.C. e foi dando lugar ao retórico, o discurso
dos sofistas, dos grandes oradores, dos logógrafos. Depois,
foi a vez do discurso dialético, inaugurado por Sócrates no
séc. V a.C., mas que só se tornou dominante mais tarde,
quando foi adotado como “instrumento básico de unifica-
69 o mago

ção da doutrina cristã e de sua defesa contra as heresias” 5.


O ponto mais alto de seu prestígio foi o séc. XIII, com os
escolásticos.
Perceba como foi uma evolução natural. Não houve con-
fronto entre o poeta, o sofista e o dialético, mas tão somente
um desenvolvimento orgânico, óbvio e necessário.
Se você está em um consultório, atendendo alguém, precisa
saber que existem vários tipos de discurso, com diferentes ní-
veis de credibilidade. O psicólogo não deve se confundir! Ao
atender um paciente no consultório — ou ao conversar com
alguém —, esta é a primeira grande distinção que deve ser fei-
ta: em qual nível de discurso se encaixa aquilo que essa pessoa
está falando? No poético, no retórico ou no dialético?
Seu paciente (ou amigo, ou familiar) pode estar simples-
mente se expressando “poeticamente”. Com isso, não quero
dizer que ele compôs uns versinhos e os declamou para você,
mas que o conhecimento que ele tem daquela coisa de que
falou ainda está em um nível bruto, ainda não foi processado.
Ele ainda não está comunicando aquela alétheia (“Verdade”)
de que falei, que seria como um antídoto para o rio do es-
quecimento. Não está nem mesmo expressando uma opinião
gloriosa, mas apenas uma “verdadezinha”, com “v” minúsculo
— uma verdade do registro poético. Ele está contando uma
“historinha”, um “conto de fadas” ou uma “epopéia”, que ainda
precisará ser processada para que dali se extraia um sumo.
Cabe ao psicólogo mostrar ao paciente que chega com esse
tipo de discurso que há um monte de outras coisas acontecen-
do com ele, das quais ele provavelmente nem está se dando
conta. E que, dentre essas coisas, há algumas mais salutares,
que vale a pena desenvolver retoricamente.
Há, por outro lado, pacientes que já chegam ao consultório e
apresentam uma explicação para tudo que lhes está acontecendo.
Como, porém, poderiam entender a razão pela qual as coisas es-
tão acontecendo se não sabem nem narrar ou descrever o que está

5  CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. São Paulo: É realizações,


2006, p. 47.
70

acontecendo? Um paciente que faz isso salta etapas importantes


para a compreensão real de seus problemas. Há coisas que pre-
cisamos apenas descrever e narrar. Descrever é a função poética;
explicar é função analítica (da qual ainda não falei).
Na poética, estabiliza-se a linguagem; na retórica, defende-
-se o que se estabilizou; na dialética, aquilo é confrontado com
uma argumentação diferente; na analítica, analisa-se o argu-
mento que venceu e, por fim, chega-se a uma explicação.
Uma das funções do setting terapêutico é fazer a distinção
entre esses discursos. Não há tratamento possível de um pacien-
te quando você não sabe sequer em que clave ele está falando.
Isto de que a pessoa está reclamando, será que ela já o processou?
Já plantou a azeitona, viu-a crescer, já a colheu e dela extraiu o
azeite com o qual irá untar-se para ir à guerra? Ou será que você
tem diante de si um protótipo de agricultor, que tem nas mãos
uma azeitona e mal a registrou simbolicamente?
Um psicólogo, um terapeuta, ou qualquer pessoa que não
tenha essa visão de mundo, não saberá o que está fazendo com
o outro e tomará um carocinho de azeitona por um vidro de
azeite. Ou seja, escutará aquele primeiro discurso do paciente
— que, como uma semente de azeitona, ainda precisaria passar
por uma série de etapas para chegar ao azeite da verdade — e
logo prescreverá um tratamento ineficaz, despachando o sujei-
to para a guerra munido apenas de uma semente.
O que o psicólogo deve fazer quando lhe chega um paciente
com uma sementinha de azeitona? Simples: ajudá-lo a plantar
a semente, a cultivar a oliveira, a colher as azeitonas, a extrair
delas o azeite e, só então, mandá-lo para o campo de batalha,
devidamente untado pelo azeite. Se não seguir esse itinerário,
o terapeuta dará ao paciente uma arma ineficaz.
O psicólogo que ignora a diferença entre esses discursos
tem uma visão de mundo amputada; é um cego tentando guiar
outras pessoas que, por vezes, enxergam até melhor do que
ele. Ele se reveste indignamente de uma função e desorienta
mais do que orienta, pois ainda não vestiu o chapéu do Mago
(representado naquela primeira lâmina), que o protegeria dos
71 o mago

raios da finitude e abriria sua visão para o infinito. E não há


nada mais desastroso do que um Mago sem chapéu.
Discurso poético, discurso retórico e discurso dialético. Vejo
uma semente de azeitona, planto-a, cultivo a oliveira, colho as
azeitonas e extraio o azeite, para que eu possa me untar dele e
ir para a luta.
Há também um quarto discurso, o discurso analítico, que
não explorei melhor porque, agora, ele não é importante para
nós. Em suma, estando diante da Verdade (alétheia), pode-se
falar sobre ela — e não mais apenas sobre as opiniões (doxai).
Conhecendo a Verdade, nós a analisamos e falamos analitica-
mente sobre ela — eis o discurso analítico.6

Introdução às quatro causas


de Aristóteles
Aristóteles nos deixou ainda um outro instrumento do qual
eu gostaria de tratar. Partindo do senso comum, ele buscou
responder a quatro questões que podemos e costumamos fa-
zer com relação às coisas e às mudanças que elas sofrem.
Ele inicia esses questionamentos em sua “Física” e os desenvol-
ve melhor na “Metafísica”.7 8

6  A base para o entendimento dos três discursos (poético, retórico e dialético)


está
no livro “Aristóteles em nova perspectiva - Introdução à Teoria dos Quatro Discur-
sos”, de Olavo de Carvalho. Vale a pena lê-lo para ter uma visão mais aprofundada e
completa do assunto. (CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. São
Paulo: É realizações, 2006.)
7  Recomendo a edição bilíngue grego-português da “Metafísica” em três volumes, a
cargo de Giovanni Reale. (ARISTÓTELES. Metafísica. 3 volumes. Ensaio introdu-
tório, texto grego com comentário de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine.
São Paulo: Loyola, 2002.)
8  Para melhor compreender a “Metafísica” de Aristóteles, recomendo também o
“Comentário à Metafísica de Aristóteles”, escrito por ninguém mais, ninguém menos
que Santo Tomás de Aquino. (TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de
Aristóteles. 3 volumes. Campinas: Vide Editorial, 2016, 2017 e 2020.)
72

As respostas a essas questões do senso comum são as famo-


sas “quatro causas”. Se você quer dizer, com propriedade, que
conhece uma coisa, Aristóteles diria que você precisaria conhecer
sua causa primeira; mas essa causa primeira pode ser dita de
várias formas — mais precisamente, de quatro maneiras.
Para ilustrá-las, ele usa, dentre outros exemplos, o de uma
escultura. Embora não estejamos estudando Artes Plásticas,
mas Psicologia, por ora adotarei o exemplo da escultura, pois
é mais fácil entender como funcionam as quatro causas em
uma produção humana — como uma estátua, uma mesa ou
um lápis — do que partir diretamente para a consideração da
operação das quatro causas em um ser humano. O homem é
uma criatura muito mais complexa!
Mas quais são, afinal, essas causas de que fala Aristóteles?
Para descobri-las, vamos fazer algumas perguntas fundamen-
tais sobre uma escultura. De que é feita uma escultura? Qual o
material empregado em sua confecção? Uma escultura pode
ser de mármore, de bronze, de madeira, de resina... Pode tam-
bém ser feita de mais de um material: madeira e resina, resina
e pó de mármore... Isso de que algo é feito, que passa por uma
mudança e então resulta em uma coisa diferente, Aristóteles
chama-o de causa material.
Suponhamos que nossa escultura seja de bronze. O que a faz
ser uma escultura e não uma outra coisa qualquer, como um sino
ou uma espada? Antes de o escultor começar a trabalhar o bronze,
ainda não havia uma escultura, certo? Havia apenas o bronze, a
matéria-prima. O bronze foi então derretido e derramado em um
molde para tomar, finalmente, a forma de uma estátua. Essa for-
ma entra na explicação da produção da escultura como a causa
formal. Mas a causa formal não é o mero formato, senão a essência
mesma da escultura: é a esculturidade, aquilo que faz a escultura
ser o que é. De maneira similar, se se tratasse de uma cadeira,
poderíamos chamar sua essência de “cadeiridade”.
E quem é que fez a escultura? Ora, a escultura foi feita por
alguém. Um escultor, provavelmente. Segundo Aristóteles, esse
escultor e a arte de fazer esculturas de bronze da qual ele se
valeu são a causa eficiente.
73 o mago

E esse alguém a fez para algo, tinha certa finalidade ao fa-


zê-la. Pode tê-la feito, por exemplo, em honra a um político
notável de sua cidade ou em homenagem a uma divindade,
como Hermes ou Atena. Essa é a sua causa final.

O que é? Exemplo

O bronze de que
CAUSA De que algo é feito?
uma escultura é
MATERIAL Qual a sua matéria?
feita.

Qual a forma ou
A “esculturidade”. O
essência de algo?
CAUSAL (Não confunda com
que faz a escultura
FORMAL o mero formato de
ser uma escultura e
não outra coisa.
uma coisa.)

O escultor (agente
Quem ou o que fez
que deu àquele
algo? Qual o agente
CAUSA responsável por dar
bronze a forma de
EFICIENTE início ao movimento
escultura) e a arte de
produzir esculturas
ou à transformação?
de bronze.

Para que algo


A escultura
foi feito? Qual
CAUSA o propósito ou
foi criada para
FINAL finalidade para o
homenagear uma
divindade.
qual algo foi criado?
74

Agora, vamos ver se você entendeu como funcionam as causas


de Aristóteles quando aplicadas a casos menos complicados,
como são os das produções do homem. Veja se consegue en-
contrar as quatro causas para as seguintes coisas:

Uma casa Uma camiseta

Causa material

Causa formal

Causa eficiente

Causa final

Foi fácil? Imagino que não. Mas com o tempo você vai pe-
gando o jeito.
Observe agora a seguinte organização desses quatro ele-
mentos, em forma de cruz:

PARA ALGO

MÁRMORE “HOMEM”
(matéria) (forma)

ALGUÉM FEZ
75 o mago

Podemos ainda ligar as extremidades da cruz para entender


essas quatro causas não como elementos separados, mas como
a totalidade do que se pode falar sobre algo, sobre um ente. Por
que fazer isso? Porque essas quatro causas são indispensáveis:
todas elas têm de estar presentes para que a produção de algo
aconteça. Para construir uma escultura de bronze necessaria-
mente há de haver (1) o bronze, que é a matéria-prima (causa
material); (2) alguém que pegue esse bronze e, aplicando a arte
de produzir esculturas de bronze, transforme-o em escultura
(causa eficiente); (3) uma finalidade como, por exemplo, colo-
car a escultura em uma praça pública para homenagear alguém
(causa final) e (4) a forma ou essência da escultura, a esculturi-
dade (causa formal).

Se fizermos isso, teremos novamente o símbolo do infinito, a


lemniscata. É o chapéu do Mago dando as caras mais uma vez.

Causa final

Causa material Causa formal

Causa eficiente

Vou repetir o raciocínio para que fique claro como as quatro


causas estão interligadas, mas agora utilizarei uma casa como
exemplo — e você pode verificar se o exemplo bate com as
respostas que você deu no último exercício.
76

O construtor da casa, aquele que a fez, é uma das causas da


própria casa. Por quê? Porque a casa saiu de seu pensamento
e de suas mãos. Foi ele quem deu o pontapé inicial para que a
transformação ocorresse. Não fosse por ele — e pela técnica de
construir casas por ele empregada —, não haveria casa. Ele é a
causa eficiente. Porém, ele não conseguiria construí-la a partir
do nada. Teve de usar alguma matéria que já existia antes de
existir a casa: madeira, tijolos, concreto, vidro, aço etc. Essa
matéria também é causa da casa. É sua causa material. E, bem,
ele deveria ter um propósito ou finalidade ao construir a casa:
habitar ele mesmo a casa, vendê-la para um casal que acabou
de se casar, tentar ganhar uma renda fixa alugando-a... A fina-
lidade é também uma causa da casa: a causa final. Por fim, ao
construir, o homem tinha uma forma ou essência em mente.
Ele transformou aqueles materiais de tal modo, que fez com
que o produto final pudesse receber o nome de “casa”. Embora
pareça algo um pouco estranho de dizer, a essência ou forma
da casa, a casidade, é também causa da casa. É sua causa formal.
Podemos, então, responder à pergunta “O que é a casa?” par-
tindo de quatro ângulos diferentes; ou desmembrar essa per-
gunta em outras quatro. Essas quatro perguntas estão ligadas
de tal modo que, se deixarmos uma delas de lado, perderemos
de vista o que é a casa em sua totalidade.
De modo análogo, se não tivermos as quatro causas na ca-
beça, interligadas e articuladas como no símbolo do infinito,
não seremos capazes de entender o que é o homem.
Em Psicologia e no relacionamento entre pessoas isso é fun-
damental. Ainda que a aplicação sistemática das quatro causas
de Aristóteles em Psicologia seja pouco usual, essas causas par-
tem do senso comum, são simplesmente respostas a perguntas
que todos nós deveríamos fazer antes de dizer que conhecemos
alguma coisa, antes de dizer que conhecemos o homem. É por
isso que, mesmo que você não as tenha aprendido na faculdade,
deve estudá-las e aprender a aplicá-las à realidade.
Você se lembra da lâmina do Mago? Lembra-se do cha-
péu em forma de lemniscata e da visão do infinito de que esse
77 o mago

chapéu é símbolo? Pois bem, sem essa visão — que passa também
pela habilidade de detectar essas quatro causas que acabo de men-
cionar —, você não conseguirá exercer a “magia”. Não será capaz
de entender o mundo — muito menos de orientar alguém, pois
ela é um dos princípios do entendimento de todas as coisas.

Causa formal e causa material


de um homem
Compreendidas as quatro causas da escultura, sabemos o que
é uma escultura. Se compreendermos as quatro causas de um
homem, também saberemos o que ele é. No entanto, aplicá-las
ao ser humano é uma operação mais complexa.
A causa material de um ser humano (e talvez a mais fácil de
se responder) é toda a matéria de que ele é composto: carne,
ossos, músculos, sangue, hormônios etc.
Imagine que um homem chegue a um consultório psiqui-
átrico com a seguinte queixa: “Estou sofrendo, doutor. Não vejo
mais a vida como antes. Já não gosto mais de fazer as coisas como
antes. Não tenho motivação para trabalhar nem para abraçar mi-
nha mulher e meus filhos. Não tenho vontade nenhuma para acor-
dar de manhã. Parece que uma coisa ruim está acontecendo comigo.”
Se o psiquiatra diagnosticar falta de serotonina e prescrever
Escitalopram (um inibidor da captação dessa substância), não
estará errado. Mas terá feito um diagnóstico “amputado”.
“Amputado” porque baseado em um olhar que se limita a mi-
rar a causa material do homem. Que não vê senão a matéria.
Acredito que, em um caso como esse, de fato falte serotonina
ao paciente. Mas o médico deveria ver seu paciente como um
ser humano completo: olhar para os demais pontos da cruz, não
apenas para o pólo da matéria. Se vestisse o chapéu do Mago, ele
veria o paciente em sua totalidade e teria vergonha de se limitar
a despachá-lo com uma receitinha de Escitalopram.
Suponha que aquele mesmo homem, insatisfeito com o
diagnóstico do psiquiatra, vá a um psicólogo excelente, que
78

entende as potências da alma. Imagine que o psicólogo é um


desses que não gosta de remédios (pois existem tipos assim, bem
como existem os psiquiatras que abominam psicoterapia). Su-
ponha que, depois de ouvir atentamente os mesmos sintomas do
paciente, ele diga: “Você não precisa de remédio, não. Remédios não
funcionam. Não temos que atacar a febre, pois ela é apenas um sin-
toma. Temos que atacar a causa da febre. Você não está sofrendo por
falta de serotonina, mas sim porque não está agindo segundo a essên-
cia de um homem. O homem foi feito para a virtude, para servir, tra-
balhar e ser generoso.” Pense em um psicólogo moral, na linha de
Igor Caruso, que foi quem criou uma teoria muito interessante.
Caruso ensinava que todo sintoma aparece não a partir das
pulsões inconscientes — não do inconsciente individual (como
diria Freud), não do inconsciente coletivo (como diria Jung),
nem a partir do inconsciente familiar (como diria Szondi), mas
a partir da repressão da consciência moral: quando você sabe
o que é o certo e ainda assim age contra isso, surge o sintoma.
Suponha, então, um psicólogo excelente, de formação ca-
rusiana, dizendo àquele homem o seguinte: “De fato, vejo uma
manifestação sintomática a partir da repressão da consciência mo-
ral. Quando faz aquilo que é contrário à forma do homem de fazer
as coisas, você sofre.” Esse psicólogo tem uma senhora razão de
ser — mas também está deixando algo escapar. Está, no mí-
nimo, deixando a questão material de lado, pois em um caso
como esse, é comum que realmente falte serotonina e haja uma
necessidade real de tomar o remédio além de fazer terapia. Ora,
será necessário tomar o remédio e fazer terapia, uma vez que
um homem tem uma causa material e uma causa formal.
Essas duas causas são o máximo a que se chega hoje.
Há sete faculdades humanas: Senso Comum, Razão, Apeti-
te Concupiscível, Vontade, Apetite Irascível, Intelecto Ativo e
Intelecto Passivo. E essas sete faculdades constituem somente a
causa formal do homem, a sua forma.
Ao olhar para um homem, nós de imediato percebemos que
ele é um homem, e não uma samambaia ou um cinzeiro. Essa
distinção imediata não ocorre porque o homem é feito de carne
79 o mago

e osso. Carne e osso, no limite, são carbono (e mais umas coi-


sinhas agrupadas), e de carbono as samambaias e os cinzeiros
também são feitos.
Um cachorro é, em termos de matéria, muito similar ao
homem; eles se distinguem muito pouco. O cachorro tam-
bém tem fígado, rins, pelos, dentes, pupilas, íris, ligamentos...
É considerando apenas uma parte da realidade que a turma
da genética arrota afirmações como esta: “O macaco e o homem
são 99% iguais”. Não! Eles só serão praticamente iguais se os
considerarmos apenas sob o ângulo da matéria. Em termos de
causa material, um pássaro e um homem também não são mui-
to diferentes. O pássaro tem um pouco de queratina a mais no
bico, mas há muitas similaridades entre eles.
Ortega y Gasset tinha razão quando disse que, no século XX,
a Filosofia teve um pequeno ataque de modéstia e se contentou
em ser só mais uma Ciência. Se a Filosofia estivesse em seu de-
vido lugar, se se revestisse de sua devida dignidade, ela olharia
para a Ciência Contemporânea e diria: “Oh, que legal! Mas agora
fique quietinha que os adultos vão fumar um pouquinho e conversar.
Pegue seu Danoninho e vá para a sala assistir ao novo episódio da
Peppa Pig”. É isso o que se deveria dizer para um cientista con-
temporâneo, para toda a produção da Ciência Contemporânea,
para Stanford, para Harvard, para todas essas universidades.
Quando a Ciência Contemporânea chega ao ponto de dizer
que um homem e um macaco são 99% iguais, a única resposta
possível é: “Meu Deus do Céu! Que idiotice!” É simplesmente
impossível concebê-lo. Eu, pelo menos, nunca tive notícia de
um tatu-bola que tivesse escrito um parágrafo de texto. Tam-
bém nunca tive notícia de um gorila que tivesse lido a “Ilíada”,
a “Odisséia” ou “Os Lusíadas”. Nem um textinho jornalístico
vagabundo um macaco é capaz de ler ou escrever!
Que o homem e o macaco têm algo de semelhante, isso é
óbvio. Têm praticamente a mesma causa material. Lagostas têm
serotonina. Aves têm serotonina. O frango à parmegiana que
você comeu no domingo passado tinha serotonina — frita, mas
tinha. É claro, portanto, que existe uma mesma causa material.
80

Há, porém, um outro elemento, frequentemente ignorado,


que é a causa formal. A inteligência contemporânea, quando
muito, consegue chegar até este ponto, até a compreensão da
realidade básica de que, embora homens e macacos sejam com-
postos quase exclusivamente das mesmas matérias, o homem
tem forma de homem e o macaco tem forma de macaco.
Com forma, não me refiro à figura externa, ao formato ou à
aparência de algo. Há macacos de certas espécies que lembram
muito um homem. Se você cruzasse com um desses macacos
à noite, de costas, talvez chegasse a confundi-lo com um ho-
mem. Já viu canguru lutando boxe? Também é igualzinho a um
homem.
O homem, porém, tem uma fórmula de funcionamento — e
somente o homem funciona daquele jeito, assim como somente
o macaco funciona na sua fórmula de funcionamento própria.
A fórmula de funcionamento, a forma do homem é composta
por aquelas sete faculdades que mencionei há pouco.
Para começar, o homem tem Senso Comum e Razão, das
quais o macaco também é dotado. Mas o homem tem Apetite
Concupiscível, Vontade e Apetite Irascível — e essas coisas o
macaco não tem. Intelecto Ativo e Intelecto Passivo, então, são
faculdades que nem a doutíssima gorila de estimação de uma
ilustre pesquisadora de Stanford tem.
Nós sabemos que um homem é um homem porque ele faz
certas coisas, tem certas habilidades, tem certas faculdades: elas
compõem a forma do homem. O homem opera a partir de cer-
tas possibilidades de funcionamento que o identificam.
Profissional, lembre-se disso quando chegar ao seu consul-
tório um sujeito que está sofrendo e você for tomado pelo im-
pulso de despachá-lo rapidamente com uma receita de Escita-
lopram. Sim, é falta de serotonina, mesmo, mas existem ainda
outras questões. Você tem de olhar para esse homem e pensar que
ele não está funcionando como um homem, que algo nele está
atrofiado, oculto, escamoteado, amputado ou lesado. Que algo
é esse? Caberá a você descobrir. Será o Senso Comum? Será a
Razão? Será a Vontade? Serão os Apetites? Ou os Intelectos?
81 o mago

Isso já é muito. Um psicólogo, uma mãe, um pai, um patrão,


um amante, um marido, uma esposa, um noivo, uma noiva, um
filho, uma amiga, qualquer um que consiga ao menos fechar
aquela linha horizontal da cruz (que liga a causa material à
causa formal) já terá uma visão bastante ampla da questão.
O problema é que, hoje, só se fala ou somente da causa ma-
terial (do bronze, do mármore, da carne e do osso) ou somente
da causa formal, reduzida por todas as escolas de Psicologia.
Tome, por exemplo, a Psicanálise de Freud. Faça-lhe uma per-
gunta simples: “Freud e freudianos: às vezes eu estudo, entendo
uma coisa e fico mais inteligente. Onde é que isso entra na sua te-
oria?” Ora, esse não é um movimento genuíno, legítimo, que
todos nós já experimentamos? Sim — mas ele não é contem-
plado na teoria freudiana.
Pegue agora uma teoria como o Behaviorismo de Skinner
e faça-lhe alguns questionamentos. “Eu realmente noto em mim
um monte de coisas, que realmente são reflexos condicionados; mas
também noto um monte de outras coisas que não o são. A mãe com
mastite que acorda de madrugada para dar de mamar a um filho.
Por que diabos ela o faz? Dê-me uma justificativa dentro dos siste-
mas de reflexos condicionados que sustente uma operação dessa por
um ano, dentro da teoria behaviorista, sem nenhum apelo externo.”
Simplesmente não há resposta.
Pense em Pavlov e seus cães. Se você, por várias vezes, tocar
uma sirene e, na seqüência, botar um prato de ração para o
cachorro comer, na vigésima vez em que a sirene disparar, de
fato o cachorro começará a salivar — ainda que não haja ração
por perto. É um reflexo condicionado. Isso acontece mesmo.
Acontece comigo, com você, com todo o mundo. Mas é assim
que você escolhe explicar um ser humano? É claro que não;
não obstante, a teoria behaviorista se sustenta inteiramente
com base nisso, essa é sua razão de ser.
Não nego a existência dos reflexos condicionados, pois eles
realmente existem — existem e precisam ser recondicionados.
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) baseia-se nesse
recondicionamento, e ela realmente consegue readequar certos
82

mecanismos (e por isso é tão eficaz). Há uma técnica para isso.


Com a TCC, você consegue fazer o cachorro parar de salivar
com o toque de sirene, assim como consegue fazer com que seu
filho pare de ter dispnéia (falta de ar) quando está perto de um
elevador. São reflexos passíveis de “descondicionamento”.
No entanto, o sistema de mecanismo dos reflexos condicio-
nados não consegue explicar como é que uma mãe com mastite
não mata seu filho ao cabo de duas ou três semanas de uma
amamentação sofrida e dolorida, mas, ao contrário, é ainda ca-
paz de acordar todas as noites de madrugada para dar de ma-
mar ao bebê, trocar suas fraldas e, como se não bastasse, ainda
o cobrir de carinhos e beijos.
Logo se vê que falta algo a essa teoria. Ela não vê o homem
como um todo, mas detém-se somente sobre duas de suas fa-
culdades: o Senso Comum e a Razão. Os Intelectos, os Apeti-
tes e a Vontade, por outro lado, escapam totalmente ao beha-
viorismo de Skinner e à teoria psicanalítica freudiana.
Se você está estudando Psicanálise, saiba que, na teoria psi-
canalítica, só se falará de Apetite Concupiscível — e um pou-
quinho de Razão. Freud simplesmente reduz o homem a esses
dois princípios de funcionamento.
Porém, a causa formal do homem não se limita a esses dois
princípios, mas é composta de sete. O homem possui uma ma-
triz de funcionamento e é pela utilização dessas sete faculdades
que o homem é um homem.
Em 1910, Alfred Adler assumiu a presidência da Sociedade
Psicanalítica de Viena, a primeira do mundo. No ano seguinte,
rompeu com a Sociedade e fundou sua própria escola psicana-
lítica, a segunda de Viena, chamada Sociedade de Psicologia
Individual. A crítica de Adler à psicanálise freudiana era justa-
mente a de que esta carecia de uma visão do homem.
Estudando a psicanálise freudiana, não se vê um homem
por inteiro, tampouco uma mulher. Para Freud, o analisando
ideal é um homem de trinta anos, ao passo que uma mulher,
aos trinta, já seria como uma pedra: não haveria mais nada que
se pudesse fazer por ela. Não estou colocando palavras na boca
83 o mago

de Freud. Foi ele mesmo quem o escreveu em sua conferência


“A feminilidade”, publicada nas “Novas conferências introdu-
tórias à psicanálise” (1933): “Não é raro uma mulher da mesma
idade [trinta anos] nos assustar com a sua fixidez e imutabili-
dade psíquica. Sua libido tomou posições definitivas, e parece
incapaz de abandoná-las por outras. Não há trilhas para mais
desenvolvimento: é como se todo o processo já tivesse decorri-
do, permanecendo ininfluenciável a partir de então; de fato, é
como se a difícil evolução até a feminilidade tivesse esgotado
as possibilidades da pessoa.”9
À visão freudiana de ser humano falta uma série de coisas.
“Não há trilhas para mais desenvolvimento”? Não se pode di-
zer isso de ninguém! Todos podem mudar, evoluir, prosperar,
continuar, converter-se, arrepender-se. Isso é facultado ao ser
humano.
Freud certamente não formulou essa conclusão como um
disparate sem fundamento. Ele falava de algo real, com base
na experiência. De fato, há algo na mulher com mais de trinta
anos que parece estar consolidado. Quem vê uma balzaquiana
já pensa: “Ih, ela passou dos trinta. Alguma coisa já não dá mais.”
Mas é apenas uma coisa, uma coisa pequenininha. Existe, por
outro lado, uma porção de outras coisas que ainda podem ser
mudadas.
Paul-Laurent Assoun, estudioso de Freud e Nietzsche, em
seu livro “Introdução à Epistemologia Freudiana”10, faz essa
análise de modo profundo e conclui que faltam muitos ele-
mentos à teoria psicanalítica freudiana. E esse não é um mal
de que apenas Freud padece.
Afirmo categoricamente que nenhum psicólogo contempo-
râneo tem uma visão total do homem — nem o celebrado e
aclamado Viktor Frankl (um gênio, o lumiar do nosso tempo),
nem mesmo Rudolf Allers.

9  FREUD, Sigmund. Obras completas. Volume 18: O mal-estar na civilização e outros


textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
10  ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à Epistemologia Freudiana. Rio de Janeiro:
Imago, 1983.
84

Allers rompeu com a segunda escola psicanalítica de Viena


(dirigida por Adler) e fundou a sua própria, a terceira esco-
la psicanalítica de Viena. Com Allers temos mais um upgra-
de. Primeiro, tínhamos Freud olhando para o homem e seus
desejos. Depois, veio Adler com sua crítica: “Não! Precisamos
analisar o homem na sociedade”. Em seguida, Allers acrescentou:
“Não é apenas a sociedade o que devemos considerar. Há muitos
elementos, muitos princípios transcendentais, e ainda não estamos
analisando o homem diante disso”. Ele se perguntou: como é que
o homem se relaciona com esses princípios superiores, que não
têm necessariamente a ver com a sociedade? É o que veremos
mais à frente.

Causa eficiente e causa final


de um homem
Passemos aos dois pólos do outro eixo da cruz: a causa eficiente
e a causa final do homem. Dessas causas não se fala absoluta-
mente; elas são, hoje, completamente negligenciadas.
A tradição do idealismo alemão fez uma descoberta fun-
damental (que depois se degenerou), sintetizada no seguinte
questionamento: não sabemos se existe isso a que chamam
“mundo”; o que sabemos é que existe algo muito consistente
chamado “eu”. Eu sou. Há em mim um eu — mas o que é o
mundo diante dessa coisa chamada “eu”? Esse questionamen-
to tem raízes no cogito de Descartes, mas só se manifesta de
fato no idealismo alemão, sobretudo com Johann Gottlieb
Fichte.
Um cinzeiro tem matéria de cinzeiro. Tem também forma
de cinzeiro, uma ”cinzeiridade” — que não é, repito, sua figura
externa, sua aparência (cor, formato, tamanho, peso, etc.), mas
aquela essência comum aos cinzeiros todos, independente de
tamanho, formato, cor ou peso.
Entretanto, um cinzeiro não tem um eu. Nem mesmo um ca-
chorro tem um eu. O cachorro, ainda que tenha individualidade,
85 o mago

jamais poderá dizer “Eu sinto frio”, “Eu quero comer”, “Eu acho
que vou morrer”, “Eu estou apaixonado pela cadela da casa ao lado”
ou “Eu sinto falta do meu dono”. Um cachorro reage. Ele sente
frio, mas não sabe que está sentindo frio. Ele sente falta do
dono, mas é incapaz de declará-lo.
Já ouvi de alguns donos de gatos a seguinte constatação:
“Eu não consigo mais ser apegado a esse gato como já fui uma vez.”
É como se compreendessem que aquele afeto que seus felinos
parecem manifestar na verdade são reações ao afeto que lhes é
dado pelos donos.
Se você é pai ou mãe de pet, não fique com raiva de mim.
Você pode, sim, derramar seu afeto e seu amor por seu bichi-
nho, porque essas criaturinhas são de fato amáveis. Um filhote
de husky siberiano é quase tão fofo quanto o Ângelo, meu filho
mais novo — talvez seja até mais fofo do que ele. Ao olhar para
um filhotinho de husky, você imediatamente deseja ter vários
deles, brota uma vontade repentina de lhe fazer carinhos, de
pegá-lo no colo... Um filhote de cachorro nos amolece o co-
ração — mas é ele quem recebe o nosso afeto. O que ele nos
dá não é afeto nem amor, senão apenas uma reação da espécie.
Quando se trata de seres humanos, porém, não se pode mais
falar meramente em “reação da espécie humana”.
Todo agente age segundo o que é. O cachorro sempre age
como cachorro. Ele é estereotipado, padronizado. Um labrador,
no Brasil, no ano de 2019, é igual a um labrador, em Portugal,
no ano de 1384. Eles não são o mesmo indivíduo, mas sempre
reagem conforme está prescrito no “código” de sua espécie. Os
seres não-racionais, como os animais, tendem a um fim deter-
minado apenas “por causa da ordenação inscrita em sua na-
tureza. É essa ordenação que determina os meios a empregar
para realizar o fim da natureza, e eles lhe obedecem passiva-
mente, de forma espontânea — e não mecanicamente, como um
autômato.”11 Quando seu cachorrinho rola uma bolinha para
você, ele é o agente, a causa eficiente desse movimento, certo?

11  JOLIVET, Régis, Tratado de filosofia. Tomo III: Metafísica. Rio de Janeiro:
Agir,
1972, p. 312.
86

Mas ele só rola a bolinha para você, porque a natureza dele o


impele a fazê-lo, e ele obedece. Isso acontece porque ele não
tem um eu.
Já os seres inteligentes, como nós, humanos, somos capazes
de conhecer formalmente a finalidade de nossas ações e esco-
lher os meios próprios para garantir sua realização. Nós temos
vontade livre e inteligência que nos permitem escolher fazer
uma coisa com uma determinada finalidade. Quando agimos,
não o fazemos por mera obediência a uma ordenação inscrita
em nossa natureza.
Por isso, não se pode esperar que um homem em 1384 em
Portugal aja da mesma forma que um homem no Brasil em 2019.
Nem mesmo dois homens do mesmo tempo agem da mesma ma-
neira. Eu e meu amigo Dario, ambos homens da mesma idade,
vivendo no mesmo país à mesma época, não agimos do mesmo
modo. A razão para isso é muito simples: nem eu nem ele somos
bichos reativos; nem eu nem ele falamos em nome da nossa es-
pécie humana, nós não temos uma “resposta padrão” da espécie.
Eu falo em primeira pessoa, eu tenho um eu — assim como meu
amigo também tem um eu e fala em seu próprio nome.
Quando Fichte toma consciência disso, ele pensa: “Puxa,
existem vários ‘eus’ andando por aí. E cada eu é um universo.” Um
cachorro, porém, não é um universo. A espécie cachorro é um
universo, mas não o são os indivíduos dessa espécie. Um ca-
chorro não tem um ego. Somente uma pessoa pode dizer: “Eu
sou um universo. Eu falo em primeira pessoa.”
Estamos, agora, conectando os pontos de cima e de baixo
de nossa cruz. Você se lembra da cruz? Nela, causa f inal e
causa ef iciente fazem parte de um mesmo eixo vertical. Vol-
tando ao esquema da escultura, veja como as duas coisas estão
conectadas: quando o artesão esculpe a estátua, ele é sua causa
ef iciente. E é a causa f inal o que leva o artesão a agir. Antes
de colocar a mão na massa, ele tinha uma finalidade que o
moveu a construí-la.
Assim como as duas causas do eixo horizontal (matéria e
forma) só existem em conexão, também as duas causas do eixo
vertical (final e eficiente) só existem juntas.
87 o mago

Para construir uma escultura de bronze, eu preciso de bron-


ze, a matéria, mas também preciso ter uma idéia do que seja
uma escultura de bronze, preciso ter em mente a forma da es-
cultura de bronze. Caso contrário, não conseguirei fazer nada,
ou então farei outra coisa.
Agora pense em um cachorro. Se não houvesse cachorros de
carne e osso — e, portanto, você nunca houvesse visto um —,
você não seria capaz de imaginar um cachorro, de conceber a
sua forma. Por outro lado, os cachorros de carne e osso só exis-
tem porque existe uma cachorridade, uma forma de cachorro.
Como dizia Aristóteles, a forma se realiza na matéria.
Essa é a solução aristotélico-tomista para uma grande dis-
puta chamada “Querela dos Universais”, um enorme problema
na Filosofia, que levou 2000 anos para ser resolvido.
“Universais” são “coisas aptas a serem predicadas de muitas”,
são termos que designam os indivíduos de uma determinada
espécie. O termo “cachorro” designa todos os indivíduos da es-
pécie “cachorro”, seja qual for sua raça, seu tamanho, a cor de
seu pêlo, o lugar em que nasceu e a época em que viveu. O ter-
mo “homem” é um universal para Sócrates, Platão, José, Pedro,
etc. A questão é saber se os universais existem ou não, e onde
é que eles estão.
Platão achava que os universais realmente existiam no
mundo das idéias. Em um mundo ideal, existiriam formas
completamente desvinculadas da matéria. Seriam formas pu-
ras, Formas com “F” maiúsculo. Ali estariam o cachorro ideal,
o homem ideal, a escultura ideal, o cinzeiro ideal... Essa é a
posição chamada de realismo. A partir do séc. XI, apareceram
os nominalistas, que afirmaram o contrário. O universal não
passaria de um nome: não existiria em lugar nenhum. Essa
posição ganhou força no séc. XIV com Guilherme de Ockham.
Aristóteles questionou o realismo de Platão no livro Z de
sua “Metafísica”: “Então deve-se admitir que existe uma Esfe-
ra além das sensíveis, ou uma Casa além das de tijolos? Não,
porque, se fosse assim, essas Formas nunca se teriam tornado
algo determinado. Elas indicam, sobretudo, a espécie de algo
e não são algo particular e determinado.” Ele conclui, por fim,
88

que o que acontece é que uma forma de determinada espécie


se realiza na matéria. Eu e meu amigo Dario somos diferentes
pela matéria (ela é diversa nos diversos indivíduos), mas somos
idênticos pela forma. Como essa forma se realiza na matéria
de cada indivíduo já é outra história, que não contarei agora.
Mas, afinal, as formas existem independentemente ou não?
E se existem, onde é que existem? Foi Santo Tomás de Aqui-
no, com base aristotélica, quem matou a charada: os univer-
sais, enquanto tais, são produtos da mente. E não existem na
mente “do nada”, mas têm um fundamento in re, na coisa. Os
universais existem, mas não são res (uma coisa separada) —
como pensavam os realistas como Platão —, nem são apenas
uma palavra — como pensavam os nominalistas como Gui-
lherme de Ockham. Essa é a solução para o “Problema dos
Universais”.
Continuando, causa eficiente e causa final estão ligadas.
Qual a causa final de um cachorro? Para que serve um ca-
chorro? Aposto que você só consegue responder a essa per-
gunta quando relaciona o cachorro a você. “O cachorro existe
para me alegrar”, “O cachorro existe para proteger a minha casa”.
Bizarro, não é? Mas será que é isso mesmo?
Fichte descobriu que existe um eu e parece que tudo se refe-
re, de algum modo, a ele. Não é que seja de fato assim, mas essa
era a visão dele — e foi mesmo uma baita descoberta. Meu eu
engloba tudo — e isso não é auto-referência.
O problema na descoberta de Fichte é que, além do meu
eu, existem também o eu da minha irmã, o eu do meu amigo,
o eu do Fernando, o eu da Andressa, o eu do Leonardo... Não
há como ser auto-referente, pois existem outros eus. Resu-
mindo: o seu eu de fato engloba tudo, mas o mundo não gira
em torno do seu umbigo. A finalidade de todas as coisas não
depende de você. Você não é causa eficiente (agente) de todas
as coisas que existem e acontecem. Elas existem e acontecem
independentemente de você; o cachorro existe independen-
temente de você, outras pessoas existem independentemente
de você.
89 o mago

Qual é a causa final do homem? Seguindo nosso raciocínio, a


finalidade do homem é ser um tipo de universo. O homem tem
um eu, ele fala em primeira pessoa. Um gato não fala “Eu sou”.
Qual é a causa eficiente do homem? Quem é o artífice do
homem? O princípio de criação, o artífice do homem, é um
tipo de “Eu sou” universal, porque a finalidade do homem é
se distinguir maximamente, é dar uma resposta em primeira
pessoa para as coisas do mundo.
A estátua guarda em si um princípio do artífice. Se eu fosse
o escultor de uma estátua, ela teria algo de Italo. Eu seria a
causa eficiente dela.
Eis a sutileza da coisa: uma estátua não é dinâmica, ela já
está feita. A causa eficiente do seu artífice já está nela. Com o
cachorro não ocorre o mesmo, porque o cachorro é vivo; mas
ele também não fala em primeira pessoa. A causa eficiente vive
no cachorro de modo impessoal, pois ele não é uma pessoa. O
homem, por sua vez, tem um eu, é dinâmico e pessoal.
Há algo vivo e dinâmico na causa eficiente do homem, que
faz com que ele sempre possa dizer “Eu sou” e chegue a cumprir
a finalidade de ser um universo. É isso o que as religiões costu-
mam chamar de graça.
A graça a que as religiões costumam se referir é o princípio
de causa eficiente daquele que lhe criou e que é um “Eu sou”
maior do que você. Vou repetir: o princípio de eficiência no
homem (quem criou?), que faz com ele possa cumprir a sua
finalidade (para quê foi criado?), e isso é o que a religião chama
de graça. Logo, o homem só conseguirá chegar à sua finalida-
de se articular a graça em sua composição pessoal. O exercício
da plenitude humana é a docilidade a esse princípio eficiente
chamado graça.
Uma Psicologia que não fale sobre isso é charlatanismo.
Não é Psicologia definitivamente, porque não tem a visão do
todo nem sabe o que é o homem. E uma visão do todo não
pode desconsiderar nem a causa material, nem as sete faculda-
des de que é composta a causa formal do homem, nem a causa
eficiente, nem a causa final.
90

Um homem será tão mais homem quanto mais ele reco-


nhecer e acolher sua causa eficiente em si. Um psicólogo, um
terapeuta, uma mãe, um pai, um chefe, um amigo, quem quer
que não reconheça essa causa eficiente na operação humana,
não estimule o outro a acolhê-la e não consiga distingui-la
na operação diária do homem, não poderá ajudar esse outro a
cumprir a sua finalidade.
E aquele que não chega a ser aquilo que foi feito para ser
permanece na infelicidade. Pois de que serve uma estátua or-
namental que não ornamenta? De que serve uma oliveira que
não dá azeitonas? De que serve uma figueira que não dá figos?
Uma Psicologia que se pretenda ampla, total e eficaz, pre-
cisará olhar para esses quatro pontos articulados de maneira
integral.
Essa articulação é o chapéu do Mago, que nos protege da
maldição da finitude. O número quatro é símbolo de totali-
dade, então não é à toa que falamos em quatro causas. Se, ao
olhar para o homem, você não observar essa quaternidade, você
não estará olhando de fato para o homem, mas sim para uma
coisa que você inventou. Ao desconhecerem a causa final e a
causa eficiente do homem, é exatamente isso o que fazem as
Psicologias Contemporâneas.
A PAPISA
93

A
segunda lâmina do Tarô é a Papisa, uma espécie de
versão feminina do papa. Ela é geralmente represen-
tada sentada, segurando um livro aberto, apoiado em
seus joelhos, e inclinando levemente a cabeça na direção dele.
Traja uma túnica azul e uma capa pluvial de cor vermelha,
como o mantum papal. Uma fina faixa com cruzes bordadas
atravessa seu tronco: é um pálio, vestimenta eclesiástica que
até o séc. VI era usada exclusivamente pelo papa, como sím-
bolo da plenitude do ofício pontifical. Um véu cobre seus
cabelos. Por trás da cabeça e dos ombros, um outro véu parece
velar ou separar a Papisa do plano de fundo. Na cabeça, ela
traz uma imponente tiara com três coroas.
94

Você se lembra do chapéu do Mago, que o protege dos raios


da finitude? Se o Mago usa um chapéu leve, de abas largas, em
forma de lemniscata, a Papisa, por sua vez, tem na cabeça um
adereço mais pesado, com três círculos paralelos, que vão se
estreitando à medida que se distanciam da cabeça, até chegar a
um vértice, que aponta para o alto.
O que ela traz sobre a cabeça não é bem um chapéu, mas
algo que chamamos de tiara. Não uma tiara como aqueles en-
feites delicados que as meninas hoje usam, mas algo mais pró-
ximo de uma coroa.

Se você tiver alguma sensibilidade estética e conhecimento


de história, reconhecerá essa tiara. A última vez em que foi uti-
lizada no Ocidente foi na década de 1960, e quem por último
a utilizou foi o papa Paulo VI.
O uso da tiara papal de três coroas (triregnum) era tradição
na Igreja desde o séc. XIII — e antes disso foram utilizadas
tiaras com uma e duas coroas, que aparecem representadas nos
brasões papais desde Celestino III, papa de 1191 a 1198. Des-
de então, todos os papas usaram tiaras papais, ao menos em
suas cerimônias de coroação, quando ouviam do mais velho
dos cardeais palavras como estas: “Recebei a tiara adornada
com três coroas e sabei que vós sois o Pai dos Príncipes e Reis,
Governador do Mundo e Vigário de Nosso Salvador na terra.”
Enquanto os reis eram coroados apenas em um domínio —
o domínio do poder temporal — e por isso usavam uma coroa
simples, os papas portavam uma tríplice coroa, que representa
95 a papisa

sua soberania em três domínios distintos12 e que, além disso,


como a torre de uma catedral gótica, aponta para cima, como
para algo superior e mais excelso do que as coisas terrenas.
Essa tríplice tiara tem, na Igreja, uma simbologia própria,
mas nós a veremos aqui especialmente como símbolo de três
domínios dos quais temos de nos aproximar: os domínios mís-
tico, gnóstico e mágico.
De volta à tiara papal, vejamos o que aconteceu com ela.
Em 1964, o papa Paulo VI rompeu com a tradição ao depor
a sua tiara durante uma cerimônia na Basílica de São Pedro.
Seus sucessores também deixaram de usá-la, com uma única
exceção: o papa Bento XVI, que, embora não a tenha usado em
uma cerimônia de coroação (como era costume), usou-a em
outra ocasião — mas renunciou ao seu posto de papa.
Para onde a Igreja Católica foi desde a deposição da tiara?
O que aconteceu a ela? Bem, desde então, ela mergulhou em
abismo atrás de abismo. Quem, hoje, escuta um católico, falan-
do enquanto tal, e o leva a sério? Ninguém.
Quando o papa Paulo VI depôs a tríplice coroa, ele saiu dos
domínios místico, gnóstico e mágico, levando consigo a Igreja,
e desceu ao domínio do livro, no qual os protestantes já esta-
vam há vários séculos.

A velha tensão entre casta


sacerdotal e casta aristocrática
Quer saber como é que os protestantes caíram no domínio do
livro? Voltemos, então, a 1517, ano que se costuma apontar
como início da Reforma Protestante.
Naquele ano, Martinho Lutero pendurou suas noventa e
cinco teses na porta da igreja do povoado de Wittenberg, na

12  Além da simbologia sugerida nas palavras do cerimonial de coroação, há ainda


outras que costumam ser associadas à tríplice coroa papal: os três poderes do papa
(magistério, jurisdição e ordem), as três dignidades de Cristo (sacerdote, profeta
e
rei) etc.
96

Alemanha. Esse foi apenas o início de uma grande reação con-


tra o papado e o poder espiritual que ele representa — e contra
o clero em geral, que desfrutava de privilégios e riquezas cobi-
çados por muitos membros da nobreza.
Lutero fez cair a primeira pedrinha, mas, depois dela, cho-
veram pedras e pedregulhos cada vez maiores, em uma avalan-
che tremenda que tinha como alvo a casta sacerdotal, aquela
constituída pelos homens que se encarregam das operações do
espírito, das coisas mais elevadas.
Seja você religioso ou não, há de convir que estamos inse-
ridos em um ciclo cultural que, como vários outros, formou-se
com base em uma certa visão de mundo, em uma cosmovisão
fundamentada sobre uma idéia religiosa. O nosso ciclo cultural
é cristão e tem como base uma visão de mundo cristã — que
pode ter sido desvirtuada, esquecida ou enfraquecida ao longo
dos séculos, mas continua ali. Essa visão de mundo remonta a
Cristo, em torno de quem brotou uma série de homens hierá-
ticos, espirituais, que levaram adiante seus ensinamentos.
Nos mundos hindu, egípcio, chinês e muçulmano foi assim
também: houve, no início, uma visão de mundo ligada à crença
em uma divindade, e foi ao redor disso que esses ciclos cultu-
rais se desenvolveram. No Egito, por exemplo, houve um Thot
para dar a nova lei e a nova ordem que configuraram a nova
sociedade. Estruturou-se então uma ordem de homens sacer-
dotais que faziam cumprir essa lei.
Mas nem só de homens sacerdotais vive uma sociedade.
Ela precisa também dos tipos aristocrático (ou nobreza), em-
presarial (ou burguesia) e servidor (ou prestador de serviços).
É preciso gente para fazer o trabalho pesado e prestar serviços
básicos, gente para lidar com a economia e vender, e gente para
guerrear e defender.13

13  Essa divisão das sociedades em quatro estratos se faz sem prejuízo da enorme e
maravilhosa heterogeneidade humana e sem ignorância dos fatos de que cada indiví-
duo é único e cada cultura tem suas peculiaridades. A esses estratos sociais
correspon-
dem certos temperamentos e tipos caracterológicos, o que quer dizer que as pessoas
têm certas propensões ou tendências a participar de um desses estratos.
97 a papisa

Em uma sociedade sem castas formais, para um sujeito che-


gar a desenvolver uma atividade espiritual, ou seja, para chegar
à casta sacerdotal, ele precisa apenas cultivar os dois olhos. As-
sim ele desenvolverá o órgão específico que o permitirá apre-
ender realidades de um domínio superior. O tipo sacerdotal é
aquele que tende para o místico, que enxerga além e que tem
uma inclinação à virtude e ao ascetismo muito maior que a
dos outros. É aquele sujeito que pode até ter dinheiro, título
de nobreza, uma casa bacana e mulheres aos seus pés, mas ele
não liga muito para essas coisas e abriria mão delas facilmente,
como fizeram um São Francisco ou um São Bernardo.
Bem, pelo menos, é isso o que o tipo sacerdotal deveria ser,
mas nada impede que alguém que ocupe uma função como a
de sacerdote, monge, cardeal, ou mesmo papa, fuja à sua ten-
dência principal e seja motivo de vergonha para toda a casta.
“Na formação de um ciclo cultural o primeiro período é de
domínio dos sacerdotes, que participam deste poder em pro-
porção maior que a nobreza.”14 Veja o caso dos hindus. São
os brâmanes que fundam suas civilizações; e, assim fazendo,
ganham status.
No entanto, os membros da casta sacerdotal precisam ser
protegidos por alguém, já que a atividade deles volta-se para o
espírito. Os clérigos, em geral, não se dedicam às armas. Quem
se encarrega dessa defesa é a nobreza de espada, que compõe a
casta aristocrática.
Ao contrário do que muita gente pensa, o nobre não é um
sujeito gordo que fica sentado no castelo comendo asinha de
frango e cortejando as duquesas. Ele defende. Eventualmente,
se não estiver batalhando, ele se divertirá com as duquesas e as
asinhas de frango; mas, quando explodir uma guerra, ele será
um dos primeiros a colocar sua vida em risco. Esse nobre é o
tipo que valoriza muito a honra e o renome, empreende faça-
nhas, tem tendências agressivas e bélicas e se orgulha de sua
força e bravura.

14  SANTOS, Mário Ferreira dos. A Crise no Mundo Moderno. Palestra no Centro
Convivium (transcrição), 1964.
98

Como o nobre é o sujeito que morre por todos em uma ci-


vilização em guerra permanente, é natural que ele ganhe certa
superioridade hierárquica. É o que vemos em epopéias como a
“Ilíada”, a “Odisséia” e a “Eneida”, em que valorosos guerreiros
são louvados e premiados por seus feitos grandiosos e por se
arriscarem na defesa de suas famílias e de sua comunidade. É
também o que vemos quando um tipo como o Macbeth, de
Shakespeare, retorna da guerra como grande herói, e é premia-
do com um novo título de nobreza, os louvores de seus pares e
os mais altos elogios do rei. O raciocínio das pessoas é geral-
mente este: “Esse é o cara que nos defende. Aquele outro celebra a
missa que frequento aos domingos e é até boa gente, mas, quando
o bicho pega realmente, é o nobre quem nos garante. Se não fosse
por ele, estaríamos todos mortos ou seríamos escravos de um povo
estrangeiro, e nossas mulheres seriam estupradas ou levadas daqui.”
Mas o que é que aconteceu quando o valente Macbeth regressou
da batalha? Desejou ardentemente se tornar rei. E saiu matando
quem se pusesse em seu caminho. É verdade que o Macbeth de
Shakespeare é um homem muito peculiar, mas representa também
um tipo comum na história: o do aristocrata corrompido que cobiça
o poder político (ou deseja ampliar o poder que já tem).
Porém, quando o poder que está acima do nobre é exercido
não por um rei, mas por um sacerdote, um papa ou um grupo
inteiro de homens sacerdotais, é contra a casta sacerdotal que a
nobreza tenderá a se voltar. Seu grande desejo será subordinar
o sacerdócio para servir a seus interesses, ou até mesmo elimi-
nar essa casta que lhe parece um obstáculo.15 Quantas vezes
isso aconteceu na história da humanidade? Várias!
Nos séculos XI e XII, há o famoso caso das investiduras:
nobres se viram no direito de nomear bispos e até papas, e de
pilhar os bens do clero.

15  Para uma visão aprofundada da aplicação das quatro castas à história e à
dinâmica
dos ciclos culturais, ver SANTOS, Mário Ferreira dos, As fases cráticas na
História.
In: Filosofia da crise. São Paulo: É Realizações, 2017 (apresentação resumida da
tese) e
SANTOS, Mário Ferreira dos, Filosofia e História da Cultura. Volume III. São Paulo:
Logos, 1962 (apresentação detalhada da tese).
99 a papisa

Mais tarde, em 1302, o papa Bonifácio VIII, conhecido por


suas constantes interferências nos governos temporais, emitiu
a bula Unam sanctam, porque percebeu — sobretudo na figura
do então rei da França, Filipe, o Belo — a grave ameaça de reis
que não queriam se submeter à autoridade da Igreja.

É necessário, de fato, que uma espada esteja sob a outra espada e


que a autoridade temporal esteja sujeita ao poder espiritual. (...)
Com tanta maior clareza quanto as coisas espirituais sobressaem
às temporais, devemos afirmar que o poder espiritual supera, em
dignidade e nobreza, qualquer poder terreno. (...) Se o poder ter-
reno se desviar do reto caminho, será julgado pelo poder espiritual;
se um poder espiritual menor se desviar, será julgado pelo que lhe é
superior; se, porém, o poder supremo se desviar, poderá ser julgado
só por Deus, não pelo homem, como atesta o Apóstolo: ‘O homem
espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por
ninguém.’ (1Cor 2,15) 16

O papa tentou colocar os reis em seus devidos lugares, mas, pou-


co depois de emitida a bula, Filipe, o Belo mandou seu ministro-
-chefe ir atrás de Bonifácio, quando este se encontrava em retiro em
um lugarejo do Lácio. O papa foi espancado e preso, mas acabou
finalmente solto alguns dias depois, por pressão da população local.
Quando Lutero olhou para a situação da Igreja em sua épo-
ca, para toda a seqüência de papas dos séculos XV e XVI e
suas condutas nada exemplares, e disse: “Tirem-lhes a tiara”,
também havia ali por trás uma nobreza insatisfeita que queria
tomar parte na hierarquia sacerdotal.

Lutero: uma crítica razoável,


uma solução quimérica
A crítica de Lutero ocorreu em um momento de grande insta-
bilidade e despertou uma reação violenta contra a autoridade

16  DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral.


São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007, pág. 307.
100

de Roma por parte de grandes nobres e príncipes locais, que


viram uma oportunidade de se livrarem do jugo da Igreja e de
seus impostos e leis, e de saquearem suas riquezas. Sim: não
pense que aqueles que se voltaram contra o papa e a Igreja
eram uma massa de santarrões incomodados com problemas
doutrinais e revoltados com a imoralidade dos papas.
Havia muita gente cheia de interesses econômicos e polí-
ticos e disposta a matar quem quer que fosse para conseguir
o que queria, como se viu, mais tarde, na Guerra dos Trinta
Anos, nos diversos saques a mosteiros e a terras da Igreja em
toda a Europa, e no genocídio de católicos irlandeses promo-
vido por Oliver Cromwell.
Na Inglaterra, o rei Henrique VIII chegou ao extremo de
não só negar a autoridade do papa, como também de tomar
para si a autoridade espiritual suprema, fundando uma igreja
nacional cuja cabeça era o rei — e ainda coroou seu projeto
fazendo rolar a cabeça de um homem que ousou não o apoiar:
São Thomas More.
Por outro lado, temos de convir que a crítica de Lutero não
era infundada. À sua época, havia muitos abusos no alcance das
indulgências e confusão quanto à sua finalidade. A hierarquia
eclesiástica deixava as pessoas pensarem que podiam comprar
o perdão de seus pecados, e foram feitas verdadeiras campa-
nhas de arrecadação de fundos, com outorga de indulgências,
para custear obras da Igreja.
O nepotismo era prática comum entre os papas de 1447
a 1517. O papa Paulo II era sobrinho de Eugênio IV; Ale-
xandre VI era sobrinho de Calisto II; e Júlio II era sobrinho
de Sisto IV. Todos eles papas. Vários papas deram a parentes
uma quantidade vergonhosa de cargos eclesiásticos. Por muito
tempo, para chegar a ser cardeal, ter um vínculo de sangue com
um papa era condição quase que necessária; e ser membro da
nobreza era obrigatório — o que era francamente um absur-
do, pois a dignidade sacerdotal, especialmente do sacramento
da ordem em seus níveis mais elevados, não está vinculada ao
sangue, mas ao espírito.
101 a papisa

Os próprios papas acumulavam rendas de diferentes sés e


os mais diversos benefícios, provocando a cobiça de muitos e
a indignação geral. Nesse intervalo de tempo, houve ainda três
papas que tiveram filhos ilegítimos antes de se tornarem papas
(Pio II, Inocêncio VIII e Alexandre VI) e os favoreceram de
muitas maneiras.
Havia um abismo entre o que a Igreja oficial deveria ser e o
que realmente era. Isso deixou, com razão, muita gente chocada.
Lutero foi um desses que, olhando para essa realidade, ex-
clamou: “O papado está degenerado. Esses sujeitos não cultivam o
espírito. Esses papas não podem portar as sabedorias mística, gnós-
tica e mágica”. Ele viu na tiara papal um símbolo que, em uma
cabeça indigna, parecia não ter razão de ser.
O poder temporal e o poder espiritual estavam mesmo ba-
gunçados, tudo estava degenerado. A crítica de Lutero tinha
fundamento. Sua terapêutica, porém, foi um desastre, porque,
quando se retira a tiara, corta-se aquilo que há de mais próprio
ao ser humano: a conexão com sua causa eficiente.
Veja que nenhum protestante reclamou para si o exercício do
poder espiritual implicado no uso da tiara papal. Henrique VIII,
embora tenha se autoproclamado autoridade espiritual, cabeça
da novíssima Igreja da Inglaterra, não se proclamou papa. Ele
estava, na verdade, interessado no status e nas vantagens que a
supremacia em questões espirituais e temporais lhe dariam. Os
protestantes, enfim, descartaram a tríplice coroa e foram, por
isso, lançados no domínio do livro. Abraçaram a sola scriptura.
As atividades mística, gnóstica e mágica de que a tríplice
coroa é símbolo são próprias do ser humano; mas um protes-
tante, hoje, está incapacitado de exercê-las — assim como os
católicos “pós-queda-da-tiara” de maneira geral. Nenhum de-
les sabe realmente o que são as atividades do espírito, porque
estão no domínio do livro, em um plano inferior.
No que crê um protestante? “Na Bíblia!”, dirão. Sim, no Li-
vro — mas o católico também crê no que está escrito no Li-
vro. Então, o que diferencia protestantes de católicos? Em quê
crêem eles?
102

Um protestante se apressará em dizer: “Não sou católico, por-


que não creio nos santos, não creio na Virgem Maria, não creio nos
sacramentos”. Sim, mas estou perguntando em quê você crê, e
não em quê você não crê. Qual é a sua crença fundamental, e
em que ela se baseia? “É que os católicos são idólatras!” Eu sei
que é isso o que pensam dos católicos muitos protestantes, mas
isso não responde a minha pergunta.
Na verdade, a crença fundamental do protestante é: “Não
podemos usar uma tiara, somos todos indignos. Somente Cristo é
digno da coroa de Cristo.” Com base nisso, lançaram fora a tiara,
que é um domínio do espírito vertical, e é por essa razão que
não existe a figura do papa no protestantismo.
A crença fundamental do protestante — e isso quem diz
não sou eu, mas a própria teologia protestante — é a de que
a razão do homem está lesada desde o pecado original. Dito
de outro modo, as atividades mágica, gnóstica e mística são
inacessíveis ao homem e, portanto, não se consegue chegar ao
conhecimento de Deus por meio da observação e da contem-
plação da realidade. O protestante não crê, filosoficamente fa-
lando, em uma coisa chamada analogia entis, na analogia entre
os entes. Ele não crê que possamos limpar nossos olhos para
torná-los espelhos, para torná-los como que superfícies perfei-
tamente polidas, que refletem a Palavra.
Mas foi o próprio Cristo quem disse que é preciso limpar
os olhos, pois, se eles não estão limpos, nada dentro de si está
limpo. Foi o próprio Senhor quem deu a técnica da ascensão da
tiara. Você deve polir e limpar seus olhos, para que eles reflitam
a presença que vem do Alto, para onde a tiara aponta.
É nisso que o protestante não crê. Ele crê que o conhecimen-
to só pode ser adquirido por meio da Palavra de Deus, e que a
atividade da razão ou da contemplação está lesada. Ora, senhor
protestante, eu lhe pergunto: com que razão você crê nisso? Se
sua razão está lesada, com que razão você pôde conhecer isso?
“Ah, foi Deus quem disse.” Tudo bem, mas quem disse que foi
Deus quem disse? Ou você concluiu que Ele disse por meio de
sua razão, aquela mesma razão lesada?
103 a papisa

“Está na Bíblia, foi Deus quem disse.” Sim, mas como é que
você sabe, se não crê que o conhecimento é possível a partir da
analogia dos entes?
“Ora, Italo, eu percebo as coisas e chego lá.” Bem, se você perce-
be as coisas e chega lá, então você não é protestante de verdade.
Um protestante crê que sua capacidade de refletir a majestade
divina está lesada, e que ele, portanto, só pode receber o conhe-
cimento das coisas pela Palavra. Volto a perguntar: com que
razão você crê nisso?
O protestantismo é uma manifestação religiosa impossível,
é um edifício filosófico rompido na base. É óbvio que existem,
entre os protestantes, pessoas maravilhosas, muito boas, fazen-
do o bem, se ajudando, querendo até descobrir a religião e a
fé — mas as que de fato são assim não estão dentro do protes-
tantismo, mas fora dele. Estão no domínio da tiara, embora o
neguem com a boca. Sem sabê-lo, são católicos implicantes; e
digo isso com todo o amor do mundo. Estou dando a razão de
ser da religião protestante.
Protestantes não acreditam que é possível, através do poli-
mento dos olhos, refletir a presença do ente superior; e disso
deriva todo o seu conjunto de crenças. Toda a noção de hierar-
quia se perde, porque a hierarquia é a organização progressiva
do que está acima até o que está abaixo. É daí que vem, por
exemplo, a idéia protestante de que não existem santos.
Somente a razão dá conta de hierarquizar as coisas. Como
não há hierarquia no protestantismo, eles dizem: “Ou todo o
mundo é santo, ou ninguém é santo” (a depender da denominação,
é exatamente isso). É como se dissessem: “Ou somos todos iguais
à Virgem Maria, ou a Virgem Maria é igual a todo o mundo.” Para
eles, não há hierarquia na intimidade com Deus — mas buscar
a santidade é exatamente buscar ascender na hierarquia da in-
timidade com Deus.
Assim como existem os mais ágeis, os mais inteligentes, os
mais belos e os mais fortes — e isso ninguém nega —, existem
também os mais “místicos”, isto é, os mais íntimos de Deus.
O protestantismo, portanto, não tem razão de ser, ao menos
não fora do domínio da crítica social, porque, apesar de tudo,
104

sua crítica política é rigorosamente perfeita. “Arranquem a tiara


da cabeça daquele homem, porque ele não é digno”, dizem. Certo,
muitos papas de fato não o foram. O problema é que, quando
você arranca a tiara da cabeça de um papa, você a arranca da
cabeça do mundo inteiro.
A tiara papal é uma coroa hierarquizada. Como se vê pela
lâmina da Papisa, ela é composta de três círculos sobrepostos
que apontam para o alto. A tiara está acima de seus olhos; o
livro, porém, está bem abaixo deles.
Os olhos são a faculdade que nos permite enxergar. O olhar
do homem tem uma característica dupla — não é à toa que, sim-
bolicamente, temos dois olhos, e não apenas um. Assim como
temos apenas uma boca, poderíamos ter apenas um olho, como
um Ciclope, mas temos dois, porque tudo é presença. Seus olhos
são presença, sua boca e nariz são presença, até mesmo sua pele
é presença, e presença de uma realidade que está para além.

A articulação dos dois olhos


Os olhos estão presentes em toda manifestação mitológica,
em toda manifestação artística. As coisas entram pelos olhos.
Narciso pretendia olhar-se no reflexo da água. Quem contem-
plasse a Medusa com os olhos viraria pedra. A mulher de Ló
olhou para trás e se transformou em estátua de sal.
Os olhos têm uma presença simbólica importantíssima.
Como dizem por aí, eles são “as janelas da alma.” E são mesmo.
Se as suas janelas estiverem sujas, sua alma estará suja e você
não verá com clareza o que há lá fora. Cristo disse que “o olho
é a lâmpada do corpo. Se o teu olho for são, todo o teu corpo
terá luz.” (Mt 6, 22-23)
O homem tem dois olhos, não um; portanto, deveria culti-
var dois tipos de olhar. Esse duplo olhar está bem representa-
do em uma imagem do séc. VI, conhecida como Pantocrator,
uma das mais antigas do Cristo, na qual Ele aparece com dois
olhos bastante diferentes um do outro. É uma imagem pertur-
badora. À primeira vista, o ícone parece defeituoso, mal feito.
105 a papisa

Um dos olhos sugere calma, mansidão,


delicadeza e bondade; no outro, a íris está
envolta em um halo escuro e a sobrancelha
está erguida e arqueada, sugerindo agres-
sividade, dureza, gravidade. Se não fosse
uma imagem do Cristo, você diria que se
trata de um olhar maligno ou diabólico,
pois parece que ele o está julgando.
Porém, o que essa imagem sugere é a
necessidade de ter olhar de pomba e olhar
de serpente — dois animais-símbolo sem-
pre presentes nos textos sagrados. É como
se o Cristo nos dissesse: “Filho, seu olhar
não pode ser apenas manso e inocente.” É pre-
ciso cultivar essa dupla natureza para as-
cender ao domínio da tiara, e quem tem
apenas o olhar de pomba não chegará lá.
Quando eu era criança, ganhei uma
espingarda de chumbinho e passei a trei-
nar atirando em latas. Como latas não se
movem, eventualmente a coisa ficou fácil
demais, de modo que resolvi trocá-las por
pombos. Nisso, descobri um fato inte-
ressante: quando você dá um tiro em um
pombo, ele desvia, mas depois volta para o
mesmo lugar, e assim indefinidamente, até
que você o acerte. Basta oferecer um grão-
zinho de milho para ele regressar.
Se você atira em um lobo, porém, ele o
ataca. Se a matilha estiver por perto, ela o
cerca e o come vivo. Lobos são astutos; não
são inocentes como as pombas.
A maioria dos cristãos de hoje acha
que todo o mundo tem de agir sempre
como pomba — esse animalzinho tão dó-
cil e tão tonto. De fato, é preciso cultivar
a inocência para contemplar a realidade.
106
107 a papisa

O mundo não é mau, sombrio e cruel o tempo todo. Nem todas


as pessoas são perversas, canalhas e medíocres. E mesmo um
canalha tem em si coisas boas que somente um olhar de pomba
é capaz de captar. É preciso nutrir esse olhar inocente, passivo
e doce, sobretudo na relação com as pessoas que se ama. O
olhar do lado direito do Pantocrator, o olhar da contemplação
amorosa, o olhar da mansidão é realmente fundamental.
Mas existe um outro olhar também fundamental: ele é agu-
do, penetrante, esperto, astuto, dotado de certo ardil. É o olhar
da serpente.
Sem a articulação desses dois olhares, não é possível enxer-
gar com profundidade.
Farei uma analogia com uma disfunção oftálmica. Quando
uma pessoa tem um glaucoma ou tumor em um dos olhos,
pode perder a visão nesse olho. O que acontece depois disso é
que ela passa a ter uma visão monocular: seu campo de visão
é reduzido e sua noção de profundidade fica comprometida.
Isso se dá, porque cada olho vê desde um ponto de vista um
pouco diferente e, em nosso cérebro, aquilo que é captado por
cada olho passa por uma “fusão”, que garante a sensação tri-
dimensional, a percepção de profundidade e distância. É a vi-
são binocular que garante uma apreensão visual mais ampla e
completa, com sentido de profundidade e distância.
Há também casos em que a pessoa, embora enxergue com
os dois olhos, tem o olhar desalinhado, em níveis diferentes: ou
porque um olho tem um grau de miopia muito maior do que o
outro, ou porque é estrábica. É o que popularmente se conhece
como “olho preguiçoso”, mas que na medicina chamamos de
ambliopia. Nesses casos, os dois olhos não conseguem traba-
lhar muito bem juntos, e surgem dificuldades para distinguir
distâncias, ler, escrever, praticar esportes e fazer algumas tare-
fas básicas do dia-a-dia.
De modo análogo, se não houver, em nós, um olhar de pomba
e um olhar de serpente, e se não houver alinhamento entre esses
dois olhares, teremos um campo de visão mais limitado e perde-
remos a capacidade de “enxergar” a realidade com profundidade.
108

O número da lâmina da Papisa é o 2, que representa o que


é binário. O binário pode tanto ser legítimo quanto ilegítimo.
O dois é símbolo da divisão. Imagine que você tem uma uni-
dade e a divide em duas partes, em duas metades separadas,
sem ligação uma com a outra. Nessa divisão, o que temos é um
prejuízo, uma espécie de “redução” da unidade.
Pense, por exemplo, na crença maniqueísta de que existem
dois princípios, um bom e outro mau, espírito e matéria, que
se opõem e lutam entre si. Há muita gente que pensa des-
se jeito hoje em dia, mas essa mentalidade já existia antes do
séc. IV d.C., e foi combatida por Santo Agostinho, ele mesmo
um ex-adepto do maniqueísmo. Para o maniqueu, a matéria é
perversa e só serve para puxar o espírito para baixo, para pren-
dê-lo, para impedí-lo de subir. Ou seja, o maniqueísmo divide
a pessoa nesses dois princípios, reduzindo sua unidade a um
dualismo, a uma briga entre matéria e espírito.
Mas o dois nem sempre é um problema: ele é símbolo da
divisão, o ofício do diabo, mas também é símbolo do biná-
rio legítimo. No binário legítimo, duas substâncias separadas
unem-se em uma só essência. É como um matrimônio, em que
duas pessoas, embora conservando sua individualidade, unem-
-se, por livre e espontânea vontade, e se tornam una caro, “uma
só carne”. Elas se atam por força do amor, e é ele quem dá
legitimidade àquela união de dois. Se só existisse o um, não po-
deria haver amor, pois amar é sair de si, é servir, é entregar-se.
E, para haver amor, é preciso que haja, pelo menos, um amante
e um amado. Não há amor sem o dois.
Toda a realidade se nos apresenta em tensões, em polari-
dades. As quatro causas aristotélicas, que mencionamos no
capítulo anterior, também são a articulação de duas tensões.
Temos, por isso, que desenvolver esse olhar binocular para per-
ceber a tensão da realidade.
Uma pessoa pode chorar tanto por ceder à tensão do olhar
de pomba, quanto por ceder ao olhar de serpente. Se o sujeito
olha para o mundo somente como pomba, termina caindo em
um choro inconsolável quando é passado para trás. Em sua
109 a papisa

ingenuidade, ele não imaginava que alguém seria capaz de fa-


zer-lhe algo mau. “Nunca pensei que meu melhor amigo fosse ca-
paz de fazer isso comigo…” ou “Meu mundo caiu quando descobri
a traição da minha mulher.” são frases que se costuma escutar
com certa freqüência.
Por outro lado, quando se olha o mundo apenas como ser-
pente, o resultado é um choro de raiva ou de inveja — o choro
da pessoa que percebe que há no mundo gente muito melhor
do que ela.
O pranto está no olhar, afinal, é pelos olhos que vertemos
lágrimas. A maior parte do sofrimento das pessoas que chegam
chorando a um consultório, em regra, tem causa nesta cisão do
olhar. Elas não articularam as tensões dentro de si, não foram
como o Pantocrator. Se uma pessoa chega ao seu consultório
aos prantos, saiba que, provavelmente, ela está com um proble-
ma de articulação dos olhos. Um de seus olhos (ou o olho de
serpente ou o olho de pomba) está “preguiçoso”, ou mesmo cego.
Mas será que isso quer dizer que esse olho é, sempre e
em tudo, preguiçoso ou cego? Não! Essa “disfunção” não se
dá necessariamente em todos os campos da vida da pessoa.
Lembre-se: as lâminas do Tarô são símbolos de realidades com-
plexas, como o início, os desdobramentos, as dificuldades.
Uma pessoa pode chegar ao seu consultório aos prantos porque
está com um problema em um domínio específico da vida: ou
no trabalho, ou no casamento… Sabendo, portanto, que o pran-
to teve origem em um domínio específico, procure ali e você
encontrará: ela ainda não soube articular os dois olhares, ela
não poliu seus olhos naquele campo específico da sua vida. Ou
olhou apenas como pomba, ou apenas como serpente. A prática
do consultório constitui-se em fazer desenvolver no paciente o
olhar que lhe falta e buscar alinhar os dois olhos, os dois centros
de contemplação, naquele campo específico de sua vida.
Se você, psicólogo, notou que seu paciente está chorando por
inveja, por raiva, por ódio, então ele tem um olhar de serpente
melhor desenvolvido e faltou-lhe o olhar de pomba, o olhar de
inocência, de passividade, de bondade, de docilidade. Isso é o
110

que precisará ser desenvolvido (e há técnicas para isso). Se, po-


rém, ele chora porque está sendo feito de bobo, terá de desen-
volver o olhar de serpente, de proteção, de esperteza, de agudeza.
A serpente é um bicho que rasteja, que está com a boca co-
lada ao chão. Não é incomum que os contos de nossa tradição
que começam com uma serpente mostrem, no último capítulo,
um dragão. Volte ao conto simbólico que você mais conhece
dentro da tradição mítica semítica: o livro de Gênesis, do An-
tigo Testamento. O primeiro animal que aparece é uma cobra
que fala, é a serpente que dá a Eva a “brilhante” idéia de comer
do fruto proibido. “Sereis como deuses”, diz à mulher.
Agora, vá ao último livro da Bíblia, o Apocalipse do Novo
Testamento. Varrendo as estrelas do céu com seu rabo, desa-
fiando aquela que era a guardiã das estrelas, está um dragão,
subjugado por essa mesma guardiã. O dragão é uma evolução
da serpente; é uma cobra com asas que cospe fogo pela boca.
Simbolicamente, ambos são o mesmo bicho. O dragão é uma
serpente madura em sua maldade e astúcia, uma serpente que
comeu muita terra e cresceu.
“Comer terra” é estar bem “colado” a este mundo, vendo como
as coisas nele funcionam e tentando mexer com elas. Desenvol-
ver esse olhar de serpente é uma necessidade do ser humano.
Nós nos limpamos da terra que ingerimos, mas do olhar da
serpente não podemos nos limpar — pelo contrário, devemos
antes poli-lo, articulando perfeitamente a pomba e a serpente
dentro de nós. Quando não faz isso, você chora — ou porque
está com a barriga cheia de terra (ou seja, você é uma serpente
dura e pesada, que não consegue se mover), ou porque é uma
pombinha tonta que toma um tiro de chumbinho e volta ao
mesmo lugar para tomar mais tiros.
O choro é a imagem perfeita do elemento que lhe servirá
para polir. Ele é um tipo de água, e só colocamos água para
fora em dois momentos: quando nos esforçamos, por meio do
suor, ou quando choramos, por meio das lágrimas. Em ambos,
a água é símbolo de limpeza, de purificação.
Quando você se esforça e serve, você fica suado e, assim,
expurga seu egoísmo. O suor é símbolo de esforço e entrega.
111 a papisa

A atividade física nos deve ser um símbolo de esforço: “Estou


levantando algo mais pesado do que aquilo que pensei que pudesse
levantar”. Nós suamos quando ultrapassamos o limite do que
achávamos que poderíamos fazer.
Quando Adão caiu e foi expulso do Éden, foi-lhe dito: “Do
suor do teu rosto comerás o teu pão”. Pense um pouco nesse
símbolo. Quando você sua, não sua apenas no rosto, certo?
Esse suor do rosto não simboliza exatamente a mesma coisa
que o suor do corpo: aquele é composto também das lágrimas
que vertemos pelos olhos, e que representam um outro tipo de
purificação. Quando “suamos a camisa” (nos esforçamos, ser-
vimos, trabalhamos), nós nos purificamos. Quando choramos
(sofremos, padecemos, nos condoemos), também.
Não pense que o livro de Gênesis falava apenas de um “suar
a testa”, de um suor como mero símbolo do esforço — falava
também disso, mas não só. O suor do rosto que nos permite
comer o pão é o pranto.
No Éden, o homem tinha tudo à mão, em perfeita ordem.
Não havia razão para choro, não era preciso trabalhar para
conseguir pão, não era necessário sequer ter olhar de serpente
ou de pombo: bastava um olhar de gente. Deus passava como
uma brisa e Adão O ouvia... Mas ele teve de sair de lá.
Agora que estamos fora do Éden, precisamos trabalhar para
ganhar o pão e para articular os dois olhos — de serpente e
de pomba —, pois o próprio mundo tem natureza dupla, de
pomba e de serpente, angélica e demoníaca. Se não cultivar-
mos o duplo olhar dentro de nós, ficaremos completamente
desorientados aqui.
Estou usando uma linguagem simbólica — e, ao longo des-
te livro, voltarei repetidas vezes a lembrar o meu leitor disso.
Ainda que você não acredite em anjos e demônios, olhe para
o mundo e verá duas disposições: uma hierárquica, bela, dis-
ciplinada, harmônica, e outra degenerada, carente, dissonan-
te. Como, então, você pretende se orientar neste mundo sem
cultivar o duplo olhar e sem polir seus olhos? Como pretende
se orientar neste mundo sem alinhar e polir as janelas da sua
alma, seus dois centros de contemplação?
112

Ainda sobre a gramática simbólica


Antes de continuar falando sobre a Papisa, gostaria de fazer
algumas observações. Os versículos das Sagradas Escrituras, o
Vedanta dos hindus e o Hadiz dos muçulmanos (este em me-
nor grau) são como que lâminas do Tarô.
Não fique escandalizado.
Repito: uma passagem do Vedanta é como uma lâmina
do Tarô, e um versículo da Bíblia também o é. Pense em um
versículo como, por exemplo, este: “O espírito sopra onde
quer” ( Jo 3, 8). Você pode lê-lo e simplesmente pensar: “Ah,
é mesmo, o espírito de fato sopra onde quer.”, mas isso seria
extremamente raso. Na verdade, muitos hermeneutas fazem
algo parecido, debruçando-se sobre um versículo e vomi-
tando uma infinidade de irrelevâncias: “Onde isso aconteceu?
O Cristo estava falando da mesma água que havia lá? Havia
mesmo um poço em Sicar? Qual era a altura do Monte Hore-
be?”, isso quando não dizem: “Serpentes não falam, portanto
é óbvio que serpente alguma conversou com Eva.” Muitos reli-
giosos de fato pensam assim — chega a ser uma profanação
do texto sagrado.
Não quero com isso dizer que a Bíblia é simbólica como o
Tarô. Não! Ela é muito superior, pois as coisas que ali estão di-
tas, além de poderem ser lidas simbolicamente, também acon-
teceram realmente. Nunca houve uma Papisa com uma tríplice
coroa, ao passo que Moisés viu realmente a sarça ardente e real-
mente cruzou o deserto do Sinai com o povo hebreu. A Bíblia é
a realidade simbólica vertida em palavra. A Escritura tem essa
natureza: é ao mesmo tempo o que poderia acontecer e o que
de fato aconteceu (e, nesse sentido, é muito diferente do Tarô).
Se comparado às Escrituras, o Tarô é coisinha simples. O
astro é mais simples que o coelho, que é mais simples que o
Tarô, que é mais simples que o texto escriturístico. O proble-
ma é quando alguém incapaz de entender os símbolos mais
simples se acha no direito de interpretar o texto escriturístico
à luz da Ciência Contemporânea, e ainda pregá-lo do púlpito.
113 a papisa

Pastores e padres sem conhecimento simbólico algum sobem


em seus palanques para pregar — e que tragédia são seus ser-
mões! Profanam a atividade simbólica e a atividade espiritual
com seus olhares cientificistas.
A maioria dos religiosos de hoje não pode ouvir a palavra
“gnose” que já fica escandalizada. Abdicaram da tiara, mas in-
sistem em ocupar os púlpitos.
Ora, um dos círculos da tiara representa justamente a gnose,
de modo que não se pode ter medo dessa palavra. Ela só é um
problema quando isolada dos demais símbolos, porque ocupa a
posição do meio, entre a mística e a prática. A gnose pode, sim,
constituir uma heresia e uma lesão para o espírito quando iso-
lada das demais coroas da tiara; sem a coroa do meio, contudo,
não há coroação da majestade.

Pedro e Caifás
Queria ainda falar sobre um outro símbolo que a dupla nature-
za do olhar tem para nós, símbolo este preservado na tradição
simbólica da Escritura Ocidental.
Refiro-me a dois olhares rigorosamente distintos dirigidos a
uma mesma realidade, a dois olhares de duas personagens que
aparecem ao mesmo tempo, em uma mesma cena. São os olhares
de Pedro e de Caifás no momento da condenação de Jesus.
Cristo estava morrendo. Fora amarrado, maniatado e flage-
lado. A Verdade aparecia ali, rasgada, trucidada, dando indí-
cios de que morreria — como de fato veio a morrer, mas para
ressuscitar depois de três dias, pois a Verdade é indestrutível e
sempre vem à tona, mesmo quando nos parece absolutamente
morta.
Quando, então, a Verdade estava sendo trucidada, rasgada,
destruída, quando estava pronta para morrer, dois olhares di-
rigiram-se a ela: um olhar de pomba e um olhar de serpente.
O olhar de pomba era o de Pedro, o discípulo que herdou o
poder temporal da atividade do Cristo.
114

Pouquíssimos dias antes de sua paixão, Cristo disse a Pedro


que iria morrer, ao que ele respondeu algo como: “Não vai, não.
Não deixarei ninguém matá-lo. Estarei contigo até o fim.” Pedro
foi esse sujeito. Ali, com um olhar de pomba, ele não estimou
que a realidade era também cruel; afinal, pouco antes de a Ver-
dade ser trucidada, rasgada, cravejada, escorraçada, chicotea-
da e pregada, ela entrou lépida e fagueira em uma Jerusalém
triunfante. Montada em um jumentinho, ela foi recebida com
louvores e aclamações. Folhas de palmeiras eram agitadas no
ar. Mantos foram colocados no chão para que ela pisasse por
cima deles.
Pedro tinha essa cena muito bem guardada na memória, e
alegrava-lhe a idéia maravilhosa de ser discípulo daquele ho-
mem tão querido e adorado. Com seu olhar inocente de pomba,
ele julgava que estar junto do Cristo seria um contentamento
constante, que significaria apenas partilhar de momentos in-
críveis como aquele dia em que, no alto de um monte, apa-
receram-lhes Moisés e Elias, e Pedro, eufórico, disse a Jesus:
“Senhor, que bom é nós estarmos aqui! Se queres, farei aqui
três tendas: uma para Ti, uma para Moisés e outra para Elias”
(Mt 17,4). Naquele mesmo dia, pouco depois da Transfigura-
ção, Jesus revelou aos apóstolos que, assim como Elias tinha
vindo e sofrido perseguições e ataques, também o Filho do
Homem haveria de padecer nas mãos dos homens. Mas Pedro
— tal qual os demais discípulos que ali estavam — pensou que
Cristo estivesse falando não de si mesmo, mas de João Batista.
Em outro momento, quando Jesus disse que iria a Jerusalém e
lá padeceria muitas coisas nas mãos dos príncipes dos sacerdo-
tes, Pedro ficou indignado e não quis acreditar que fariam isso
com seu mestre: “Não Te sucederá isso!” (Mt 16,22)
Seu olhar inocente não lhe deixava enxergar o outro lado
da moeda: Cristo haveria de padecer; e estar junto de Cris-
to era também partilhar de seus sofrimentos, perseguições e
ataques. Pedro estava cego, inclusive, para a realidade nada
oculta de que havia muitos poderosos que não gostavam nada
de Jesus.
115 a papisa

Olhar completamente diferente era o do Sumo Sacerdote


Caifás que, do alto de sua posição, via todas as movimenta-
ções que aconteciam em torno do Cristo e, preocupado com
a ameaça que Ele representava, decidiu acabar com a brinca-
deira. Pensou, porém, em esperar o momento mais oportuno.
Quando Cristo chegasse enfim em suas mãos, ele o have-
ria de condenar e matar. Com seu olhar de serpente, Caifás
também olhava somente para um dos lados da Verdade, pois
estava acostumado a uma vida pregada ao chão, enchendo o
bucho de terra. Haveria de se tornar um dragão que subju-
garia todos os que estavam ali. A ele também poderiam se
aplicar as palavras de Jesus aos fariseus: “Serpentes! Raça de
víboras!” (Mt 23, 33)
Quando a Verdade se manifesta, ela não traz apenas vida,
mas também morte: ela mata o egoísmo, mata o desejo de po-
der desenfreado, mata a sensualidade, mata o fechamento em si.
Puxa-nos para fora de nós mesmos. Quando a Verdade aparece,
portanto, ela atinge ambos, tanto a pomba quanto a serpente.
No momento em que Jesus foi levado à casa de Caifás, onde
os príncipes dos sacerdotes e o Sinédrio procuraram arranjar
uma desculpa qualquer para incriminá-lo e condená-lo à mor-
te, estavam ali Pedro e Caifás. Nessa cena, presenciamos os
dois tipos de choro: o da pomba e o da serpente.
Quando Caifás, Sumo Sacerdote, perguntou ao Cristo
se Ele era o filho do Deus vivo, Jesus disse: “Tu o disseste.
Digo-vos mais, que haveis de ver o Filho do Homem senta-
do à direita do poder de Deus, e vir sobre as nuvens do céu.”
(Mt 26,64; Mc 14,62; Lc 22,69). Isso despertou o ódio e a in-
veja de Caifás, que, em um acesso de raiva, rasgou as próprias
vestes e se pôs a gritar: “Ele blasfemou! Ele blasfemou!” (Mt
26,65, Mc 14,63-64). Nesse gesto de Caifás está seu “pranto”:
um choro seco e carregado de ódio.
Pedro, por sua vez, estava sentado lá fora, no átrio, quando
foi abordado por uma criada, que lhe perguntou se ele não era
um dos seguidores de Jesus. Acovardado, ele disse que não, mas
logo se arrependeu e chorou amargamente.
116

Depois que Caifás disse que o Cristo blasfemou, imediata-


mente os que ali estavam passaram a humilhar Jesus e a tra-
tá-lo com todo tipo de violência. Daí em diante, Jesus sofreu
uma série de humilhações e agressões. “Cuspiram-Lhe no ros-
to e feriram-n’O a punhadas.” (Mt 26, 67)
Ali a Verdade foi rasgada, trucidada, estava prestes a ser
crucificada. Diante disso, o que Pedro fez? Ele se espantou,
se surpreendeu, recuou e chorou amargamente. Chorou de ar-
rependimento e de culpa, porque não teve coragem de revelar
que era amigo de Jesus; mas chorou também porque não podia
acreditar que algo tão terrível pudesse acontecer. Isso não es-
tava em seu horizonte de consciência. A seu turno, o que é que
Caifás fez? Rasgou suas vestes e “chorou” um choro falso, seco
como a terra árida.
Repare que o choro de serpente das pessoas que entram
no seu consultório — ou daquele seu amigo que vai desabafar
com você — é sempre um choro com o qual é difícil de lidar.
O choro de raiva, de ódio, de inveja, é o choro da serpente que,
tendo a cabeça tão colada ao chão, turva os olhos com aquela
terra, de modo que as lágrimas que lhe saem dos olhos logo se
ressecam e não são o bastante para poli-los.
O “choro” seco de Caifás não serve para grande coisa; o
choro de Pedro, porém, tem uma propriedade purificadora.
Sabemos disso porque, depois de chorar copiosamente, o após-
tolo voltou arrependido. Ele negou a Cristo por três vezes, mas
se arrependeu — e então aconteceram muitas outras coisas.
Na seqüência, a Verdade reapareceu viva. O texto sagrado
diz que ela ressuscitou; reapareceu e andou por aqui. Quando
surgiu a notícia de que a Verdade voltara, dois pássaros saí-
ram disparados à sua procura: a águia e a pomba. A águia é o
Apóstolo João (ele é assim representado na mística); a pomba
é o apóstolo Pedro, mas este mas não a encontrou de imediato.
Como uma pomba, sua corrida foi inútil, porque ele não era
uma ave ágil, mas lenta.
Toda a Tradição representa a visão de João sobre a Verdade
como a visão da águia, porque ela é a ave que consegue ver a
117 a papisa

Verdade de frente. O sol é símbolo da Verdade, e a águia é o


único animal que consegue voar em direção a ele olhando-o
diretamente; a todas as outras aves, o Sol é cegante.
O texto joanino fala sobre a natureza resplandecente dessa
Verdade, que requer também um olhar específico, do contrário
você poderá ficar cego.
Duas aves voaram para procurar a Verdade, mas uma delas
chegou antes: João. “Partiu Pedro com o outro discípulo e fo-
ram ao sepulcro. Corriam ambos juntos, mas o outro discípulo
corria mais do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro” ( Jo
20, 3). João correu rápido e, obviamente, chegou antes de Pe-
dro, porque era uma águia, enquanto Pedro era apenas uma
pombinha que não podia se locomover em alta velocidade.
Há um outro momento no qual a Verdade reaparece, desta
vez, à beira da praia. Os apóstolos estavam dentro de um barco,
pescando, e quando a Verdade reapareceu, a pomba inocente,
que é Pedro, jogou-se na água para nadar até ela.
O relato é muito interessante. Pedro estava em um barco.
Bastava-lhe remar para chegar aonde queria. Mas ele se atirou;
era ainda uma pomba inocente. Chegando à margem, ele en-
controu a Verdade e ali aconteceu o diálogo central de toda a
narrativa. Ali é que Pedro, pela primeira vez, ganhou o olhar da
serpente, perfeitamente ajustado ao da pomba. Ali encontrou
a Verdade já não mais como um caolho que vê o mundo sem
profundidade.
A Verdade perguntou três vezes à pomba: “Tu me amas?”
A primeira pergunta foi feita, mas a resposta que saiu, a prin-
cípio, ainda não era adequada, pelo que havia necessidade de lan-
çar a questão uma segunda vez. Aliás, não é que a resposta não
fosse adequada — a pomba, na verdade, ainda estava ajustando
seu olhar, vasculhando a maldade em seu espírito e a realidade
do mundo, buscando a articulação perfeita daquele olhar para
encontrar a Verdade e não se deixar cegar por ela nem a trair.
É tolice pensar que a Verdade dirigiu a pergunta à pom-
ba três vezes porque a pomba lhe havia negado três vezes...
Mas essa é a explicação que em geral se dá para a passagem:
118

“Pedro nega o Cristo três vezes antes que o galo cante, logo o Cristo
pergunta três vezes para zerar a conta.”
Essa é uma interpretação amputada, que carece de enten-
dimento dos símbolos e que não compreende a grandiosidade
do que estava acontecendo ali. Deus não calcula! Você acha
mesmo que Ele ficaria com continhas a essa altura do campe-
onato? Ele sabia que Pedro estava machucado, Ele sabia que
Pedro chegara a pensar que tudo estava acabado.
Estavam os dois discípulos andando no caminho de Emaús,
desiludidos, dizendo ao “forasteiro”: “Não sabes o que aconteceu
por aqui nestes dias? A razão da nossa esperança e do nosso amor
foi-se embora, morreu. Não acreditamos mais em nada.” Você acha
mesmo que Deus não sabia o que tinha acontecido? Não tenha
uma visão amputada do que aconteceu ali, naquela cena à mar-
gem do lago! Deus não calcula. Basta um único movimento de
arrependimento para que Ele nos cubra com seu manto de amor.
Na parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32), o filho que
retorna à casa do pai pensava em voltar na condição de mero
servo, mas é recebido calorosamente: recebe uma túnica e um
anel no dedo, põem-lhe sandálias nos pés e fazem para ele um
banquete com direito a um vitelo gordo. O amor de Deus ao
longo de toda a Escritura é sempre desproporcional, então não
me venha com essa de “foi para zerar a conta”.
Com Pedro também a recepção foi calorosa como aquela da
parábola do filho pródigo. Por que, então, Cristo fez a pergunta
três vezes ao reencontrar o discípulo?
Nesse momento, Cristo estava fazendo a alquimia perfeita,
como quem diz: “Vamos fazer um último ajuste, vamos terminar
de polir seus olhos para que você possa ascender.” O símbolo é per-
feito; tanto o é que, depois disso, Pedro recebeu uma tiara e foi
promovido a papa.
Como as coroas da tiara da Papisa, também três são as pergun-
tas que Cristo dirigiu a Pedro. Na primeira pergunta, o original
grego traz a pergunta Agapas me? (“Tu me amas?”). Cristo usou o
verbo agapao. O amor agape é um amor superior, transcendente e
divino. Portanto, na primeira pergunta, o que Cristo questionava
119 a papisa

era se Pedro O amava com esse amor agape, divino, como o amor
de Deus por nós. Mas Pedro respondeu meio sem jeito...
Então o Cristo perguntou mais uma vez: “Pedro, agapas
me?”, como se perguntasse: “Pedro, tens certeza de que és capaz
de me amar com um amor divino? Ora essa, ainda és um inocen-
te…” E Pedro uma vez mais não respondeu satisfatoriamente.
Ainda restava dúvida.
Por fim, o Cristo lhe perguntou: “Pedro, phileis me?” — e
essa é uma das perguntas mais bonitas de todo o simbolismo
dos versículos. Lembre-se de que um versículo é a condensa-
ção simbólica de uma realidade. Cristo empregou o verbo phi-
leo, que sugere um amor humano: “Tu, então, me amas com esse
amor humano, que é aquilo que me podes dar?” Ali, Cristo estava
perguntando a Pedro se ele tinha o olhar polido, pois somente
assim poderia receber a tiara.
Naquele momento, Pedro poderia ter se tornado uma ser-
pente como Caifás, poderia ter respondido “Não. Tu me aban-
donaste. Agora, não deixarei que ninguém mais faça isso comigo!
Abominarei a pomba que havia em mim e me converterei em ser-
pente!” Sabemos que, quando nos sentimos traídos ou aban-
donados, as dores podem nos transformar de pombas em ser-
pentes. Podemos ir da inocência à degeneração total, se não
articularmos as coisas no meio do caminho.
Isso poderia ter acontecido com Pedro. Naquele momento,
poderia ter ocorrido a perda total de sua inocência; ele poderia
ter saído do pólo da inocência e passado ao pólo de desespe-
rança, poderia ter se transformado em um outro Caifás.
Mas Pedro respondeu: “Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que
Te amo.” Naquele momento, houve um alinhamento: os dois
olhares polidos, de pomba e de serpente, foram perfeitamente
ajustados na alma daquele que virou o espelho do Cristo na terra.
A Verdade, em seguida, lhe disse: “Então vai e apascenta
minhas ovelhas”. O Pastor transfere sua autoridade para aquele
que, a partir de então, passa a deter o olhar capaz de enxergar e
distinguir as ovelhas dos lobos. Se o Pastor deixasse um sujeito
com olhar de pomba cuidar de suas ovelhas, correria um sério
120

risco, pois a inocência não permitiria ao encarregado perceber


a maldade dos lobos.
Ora, o mundo é composto de ovelhas e de lobos. Se você,
portanto, não tem ajustados os dois olhares (de pomba e de
serpente), das duas uma: ou comerá todas as ovelhas de que
deveria cuidar, ou deixará as ovelhas serem comidas pelo lobo
que deveria enxotar. Essa é a operação alquímica que temos de
fazer dentro de nós; é uma fusão perfeita dos dois olhares.
Se não tenho o olhar duplo, então não vejo a realidade como
ela é; se não posso vê-la como ela é, não posso refleti-la e, se
não a reflito, tampouco a imagem do ser está em mim.

Ajustar é a chave
Ajustar os dois olhos e poli-los é a primeiríssima etapa, mas
não se anime tanto ao conseguir fazê-lo, pois esse é apenas o
passo inicial sem o qual não se pode começar a refletir as reali-
dades superiores.
Uma vez de olhos alinhados e polidos, será possível dar iní-
cio ao processo de percepção dessas realidades superiores, re-
presentadas pelos círculos da tiara: as realidades mística, gnós-
tica e mágica. Antes de ajustar a visão, não há como enxergar a
realidade com profundidade e clareza; antes de polir os olhos,
não há como refletir essa realidade, fazendo-se espelho dela.
Quando, porém, você adquire um olhar polido e começa a ver
o mundo, surge uma primeira chance de alcançar esse patamar.
A realidade não é somente apreendida por seus olhos, mas tam-
bém refletida por eles — e uma reflexão especular só pode ocorrer
em superfícies lisas e polidas.Toda a atividade reflexiva só começa
a acontecer a partir daí. Até então, você está em um domínio infe-
rior, da confusão, da matéria, onde ainda não há reflexão.
Perceba que o olhar da Papisa fica entre o livro e a tiara. Ela
quer ver o que faz, como quem pega aquelas realidades da tiara
e as lança para o livro. O olhar dela está quase no livro, mas não
se fixou nele ainda. Está no meio do caminho, em movimento.
121 a papisa

Experiência mística,
a primeira coroa da tríplice tiara
O círculo superior da tiara da Papisa representa a experiência
mística, mas não se pode ter experiência mística lendo um livro
e tentando olhar para dentro de si. Para começar, livros não são
a realidade, são apenas registros de palavras que podem refletir
a realidade — isso se você tiver a experiência mística.
Se você não tem o duplo olhar, se não é uma superfície lisa,
se não articulou em si a pomba e a serpente, você olha para o
mundo, mas não o enxerga. O que você vê é uma outra coisa.
O mundo não é feito nem só de ovelhas nem só de lobos; mas
de ambos.
Se você olha para o mundo sem esse duplo olhar, aquilo que
você acha que vê é apenas fruto da sua mente. Sem uma super-
fície polida, o mundo não reflete em você; e, assim sendo, você
não capta o ser das coisas.
Imagine uma xícara. Alguém (causa eficiente) a fez, e a fez de
porcelana (causa material), com forma de xícara (causa formal) e
com a finalidade de acolher líquidos para que os bebamos (causa
final). Ela não existia, até que, em um dado momento, foi criada.
Uma vez que ganhou o ser, ela é, e nunca deixará de ser.
Você pode achar tudo isso muito lindo e interessante, mas
só será capaz de captar o ser da xícara se tiver os olhos alinha-
dos e polidos.
Sem o olhar ajustado e polido, ainda que você contemple uma
montanha por semanas, não terá a experiência mística dela —
o ser da montanha não ficará impresso em você. A experiência
mística é um dos sentidos; ela é o impacto do ser em você.
Estamos acostumados a ouvir “sentidos” e já pensar em
visão, olfato, paladar, tato e audição, que são nossos sentidos
externos; mas agora vamos falar de “sentidos” em uma outra
acepção. As coisas são conhecidas por quatro vias, por quatro
sentidos. O primeiro deles é o místico.
A experiência mística é o primeiro sentido do conheci-
mento, e é a mais alta das coroas da tiara; é o reflexo do Ser.
122

Veja bem: você não é o Ser, você é reflexo do ser daquilo que
está apreendendo. Não existe uma fusão do Ser em você, ao
contrário do que prega o panteísmo. A cosmologia panteísta
sintetiza-se na afirmação de que o Ser está fundido em tudo;
de que existiria apenas um Ser, e de que tudo teria esse Ser.
O panteísmo é uma visão cosmológica interessante, mas
que fica estagnada na primeira etapa da percepção das coisas;
não vai além disso. É insuficiente, pois não explica tudo — e
por isso dizem que ela está errada, mas não precisamos invali-
dá-la por inteiro.
“Tudo tem Deus”, afirmam os panteístas, e nisso estão certos.
Tudo tem Deus, mas tudo não é Deus, como eles dizem que
é. O problema do panteísmo é que não há uma passagem do
conhecimento para a prática e depois para a Filosofia (que é o
livro da Papisa).
Se você tiver a superfície polida, se tiver os dois olhos po-
lidos, conseguirá refletir o Ser dentro de si. Isso é experiência
mística — mas ela só acontece no silêncio. Este é outro motivo
pelo qual praticamente ninguém tem experiência mística hoje
em dia: ninguém fica em silêncio.
Você não abarcará as três etapas da coroa assistindo a uma
aula ou lendo um livro. Hoje em dia, toda experiência que o
pessoal pretende mística ou superior consiste na leitura de li-
vros. Mas enquanto você não tiver um olhar polido, a leitura de
livros não lhe dará tanto fruto.
No caso do exercício da Medicina, por exemplo, é necessário
ler alguns livros, como esses manuais de Fisiologia e Patologia,
mas, muitas vezes, os estudantes os lêem apenas para passar em
uma matéria. Um livro pode lhe passar um conhecimento ime-
diato de como prescrever um remédio, mas somente um pro-
fessor lhe ensinará a prescrever o remédio certo na hora certa.
Outras coisas, você só aprenderá no exercício da Medicina —
durante a residência, por exemplo —, no contato direto com
os pacientes, ao se deparar com a complexidade da realidade.
Não se aprende a consertar um motor de carro por meio da
leitura, aprende-se consertando-o. Medicina, nutrição e enfer-
magem são coisas aprendidas com a prática — e a prática já é
123 a papisa

a mágica da tríade mística-gnose-magia. Até mesmo algo sim-


ples como dar uma injeção requer aprendizado prático, e nem
qualquer um sabe fazê-lo. Pois bem: se algo tão fácil quanto
dar uma injeção não se aprende pela leitura, o que dizer de
coisas mais complexas e importantes?
“Ora, mas desde quando injeções não são importantes?”, alguém
poderia questionar. Dou graças a Deus por existirem as inje-
ções, mas o fato é que nossa civilização viveu sem elas durante
dois mil anos. A seringa foi inventada apenas no séc. XIX. Ci-
vilizações subsistiram, sobreviveram e produziram maravilhas
em um mundo sem injeções. Shakespeare escreveu tudo que
escreveu sem nunca ter tomado uma injeção na vida. Todas
as catedrais foram construídas por pessoas que não tomaram
injeções. As pirâmides do Egito foram erigidas por pessoas
que não tinham notícia de que era possível tomar uma injeção.
Nesse sentido, a injeção não é essencial — e mesmo ela conse-
gue ser meio mágica.
Muita gente acha que pode aprender qualquer coisa lendo
um livro. O maluco que se converteu ontem ao catolicismo já
sai bradando: “Vou ler São Tomás de Aquino, porque afastar-se
dele é perigoso.”
Bem, ele não está de todo errado, pois é mesmo meio peri-
goso afastar-se de São Tomás; mas, na melhor das hipóteses,
esse sujeito se tornará como o meu filho José, de dois aninhos:
uma criança, que ninguém respeita ou leva a sério, porque é
fraco, é o típico sujeito da religião que anda com o peito para
dentro e o crucifixo para fora. Religião de verdade é o oposto:
peito para fora e crucifixo para dentro.
Pense no seguinte: quantas pessoas há que leram a Bíblia e
não refletiram o que leram, porque não eram superfícies polidas?
A Teologia da Libertação é toda bíblica; contudo, não reflete
nada. É possível até mesmo basear todo um regime tirânico na
Bíblia. Por isso, repito que a primeira etapa é a mística, a refle-
xão, o reflexo do Ser em você; e essa etapa não deve ser pulada.
Quando eu peço a meu filho José, de dois anos, para buscar
um copo, ele consegue fazê-lo. Ele sabe mais ou menos como
é um copo e sabe também para que serve um. O José já viu e
124

tocou vários copos, já nos viu bebendo líquidos em copos, e já


bebeu ele mesmo de alguns copos diferentes, portanto tem um
certo conhecimento do que seja um copo, um conhecimento
prático que adquiriu por meio de sentidos externos, como a
visão e o tato. Ele distingue um copo de outros objetos que
não são copos (de uma mesa, um poste, uma cama, um prato
ou um livro). Ele consegue também pensar em um copo sem
estar vendo ou tocando um; e pode até, com sua imaginação,
pensar em um copo com asas ou com pernas — sem jamais ter
visto essas aberrações nem em desenho animado. Ele diferen-
cia o copo de vidro do copo de alumínio; o copo vermelho do
copo azul. E, associando a própria palavra “copo” àquela ima-
gem guardada em sua cabeça, ele é capaz de buscar um copo
quando lhe pedem.
E mesmo conseguindo fazer todas essas operações que aca-
bo de descrever, o José ainda não é capaz de me dizer qual a
“essência” do copo. Se eu lhe perguntasse: “José, o que é um
copo?”, ele travaria. Você já fez essa experiência com alguma
criança? Elas ficam absolutamente perdidas.
Repare se você e a maioria das pessoas que você conhece
não são todas como o meu José, principalmente no modo de
lidar com a religião. O pessoal que lê São Tomás de Aquino
como se estivesse consultando um manual de máquina de lavar
é assim. Alguns até conhecem realmente umas teses tomistas,
mas são uns loucos que não têm vida. Outros — a maioria —
apenas fingem saber, quando, na verdade, fazem uma confusão
danada e não conseguem diferenciar uma caneca de um copo.
Atualmente, a religião e a Psicologia estão repletas de pessoas
que leram muitas coisas, mas não fizeram o trabalho místico de
deixá-las refletirem em si.

A experiência mística e o silêncio


A experiência mística precisa ser feita em silêncio. E a quebra
do silêncio se dá pelo barulho — que pode vir de fora ou de
dentro (isto é, de sua própria mente).
125 a papisa

A coisa é mais simples do que parece. Em primeiro lugar,


não entenda “silêncio” figurativamente. Pense em silêncio mes-
mo. Uma pessoa que não dedica diariamente um pouquinho de
tempo ao silêncio e que não se recolhe, ao menos uma vez ao
ano, por 4 ou 5 dias, somente para ficar em silêncio, ainda nem
começou a viver; a vida, para ela, é barulho e confusão.
Para conseguir um pouco de silêncio no seu cotidiano, bus-
que um refúgio. Pode ser o seu quarto, o seu escritório, uma
poltrona na sala de casa, uma capela, o banco de uma praça
deserta, um canto tranqüilo em um parque ou algum outro
lugar em que você não será perturbado. Desligue o celular. A
princípio, cinco minutos de silêncio bastam, mas não vale ficar
“silenciosamente olhando o Instagram” por cinco minutos.
Não há mistério no silêncio: é calar a boca e a cabeça. Calar
a boca é fácil, basta tapá-la com silver tape. Mais difícil é calar
os pensamentos desgovernados, a imaginação, as lembranças...
O silêncio mental é, afinal, uma atividade a ser conquis-
tada. Só se adquire experiência mística ficando quieto, e ficar
quieto é adotar a posição da Papisa, que está sentada. Sente-se,
portanto. E só olhe de vez em quando para o “livro” (e com “li-
vro” me refiro a qualquer coisa que lhe aconteça, qualquer ex-
periência vivenciada), como que se deixando impactar por algo,
por alguma experiência que você teve na vida ou naquele dia
mesmo. E vale qualquer experiência — qualquer uma mesmo.
Suponha que você tenha tirado um tempinho durante a
noite para se recolher e fazer silêncio e, neste tempinho, venha
à sua mente o seguinte fato ocorrido naquela semana: você
deixou a cozinha uma zona, ou a toalha molhada em cima da
cama, e seu cônjuge reclamou disso.
O que geralmente acontece é que, ou você deixa aquele
episódio se acomodar em algum canto desconhecido da sua
mente, ou você acaba rebatendo a crítica e brigando com o seu
cônjuge. Não é assim?
Mas eu peço que, nesse momento de silêncio, tente ape-
nas se lembrar do ocorrido: “Meu marido disse que sou bagun-
ceira.” Antes de julgar se ele tem ou não razão e sair ensaiando
as verdades que você gostaria de jogar na cara dele ou, pelo
126

contrário, de começar a se condenar por ser a pior pessoa do


mundo, suspenda o raciocínio lógico e os monólogos interiores
por um tempinho. Experimente um silêncio interior e exterior
por cinco minutos.
Se você já trabalhou e poliu o seu duplo olhar de pomba e
serpente, então já tem uma superfície — mas será que ela é ca-
paz de refletir o ser das coisas? Para isso é que serve o silêncio.
O primeiro movimento, então, é a experiência mística, o ápice
da tiara, que só se adquire na quietude.
Quando falo “silêncio”, falo em calar a boca e a mente e
resvalar o olhar no livro (ou seja, pensar em alguma coisa que
lhe tenha acontecido), como o faz a Papisa.
Algumas pessoas, porém, têm a memória péssima e só con-
seguem levar para seu momento de silêncio episódios que
ocorreram há pouco, acontecimentos das últimas duas ou três
horas. Se estiver indo para seu momento de silêncio e der uma
topada com o dedinho no criado mudo, há quem leve para o
silêncio aquele caso e gaste seu tempo com algo irrelevante.
Se você for uma dessas pessoas, talvez seja o caso de recorrer
a um livro para ajuda; mas um livro real, de verdade, com pontos
para meditação. Como você vai se tornando aquilo que reflete, se
quiser ser reflexo de generosidade, ou de humildade, ou ainda de
temperança, busque uma leitura rápida sobre esses temas.
Imagine que sua vida esteja uma bagunça e você não tenha
horário para nada. Existem livros excelentes sobre a ordem
como virtude a ser cultivada. Procure-os e leve-os consigo em
seus momentos de silêncio.
Outras pessoas têm dificuldade para se lembrar das coisas que
lêem. Nesses casos, sugiro que o silêncio seja dividido em dois
momentos: um de leitura e um de reflexão daquilo que foi lido.
Para essas pessoas, cinco minutos não bastam, então que façam
seis minutos e meio. Não estou brincando, é isso mesmo: cerca
de um minuto e meio de leitura e cinco minutos de reflexão.
Veja bem: quando falo em “refletir”, não falo de ativida-
de mental, mas de deixar aquilo fermentar, crescer. O espe-
lho é símbolo desse aumento. Ao pôr um espelho em uma das
127 a papisa

paredes de uma sala, tem-se a impressão de que ela ficou maior.


Os arquitetos adoram esse truque; quando querem ampliar o
ambiente, põem espelhos por toda parte. Isso é justamente tra-
zer mais presença para o lugar a partir de reflexos. Com o espe-
lho interior acontece algo similar: ele amplia o espaço interior
e faz com que ali caibam mais coisas.
Todo o mundo que trabalha no agronegócio sabe que não
basta ter uma fazenda, é preciso também um espaço livre para
acomodar os frutos da plantação. Esse lugar no qual guarda-
mos os grãos se chama celeiro.
Com a alma, passa-se o mesmo. Você possui um espaço em
sua vida onde está crescendo trigo. Mas é preciso um “celeiro”,
um espaço vazio para armazenar as coisas que você colhe com
o passar dos anos. Quando pára e silencia, você está preparan-
do seu celeiro, onde o ser das coisas e a experiência mística do
mundo ficam armazenados.
Há quem pense que experiência mística é algo como ver an-
jos, ouvir a voz de Deus, operar milagres físicos; mas esse tipo
de coisa só se consegue no ápice da experiência mística. Se você
mal consegue perceber as coisas mais óbvias, que estão ao alcan-
ce dos seus olhos, que dirá ver anjos! Não queira algo que você
não pode ter. Se você ainda é um sujeito sem prática e não sabe
distinguir o que é bom do que é ruim, comece fazendo a expe-
riência mística que está à sua altura, com base nas coisas mais
palpáveis do seu dia: seu marido reclamando da cozinha suja, as
dificuldades do trabalho, o tapa que você deu injustamente em
seu filho... Com mil anos de prática disso, talvez você consiga
ter a experiência mística de ver um anjo — se isso lhe for dado.

As demais coroas da tríplice tiara:


gnose e magia
Eu disse há pouco que o mundo é composto de ovelhas e lobos,
significando coisas boas e coisas ruins, mas há ainda um outro
símbolo famoso para as coisas boas e ruins: o joio e o trigo.
128

Joio e trigo são plantas parecidas que costumam crescer jun-


tas, mas, enquanto a semente do trigo é usada na fabricação do
pão, a semente do joio não serve para nada, é imprestável.
O problema é que, enquanto estão jovens e crescendo juntos,
não dá para saber o que é joio e o que é trigo, pois ambos são
muito parecidos. Somente quando amadurecem é que algumas
diferenças começam a ser percebidas: a espiga do trigo adquire
uma coloração amarelada como a da palha, ao passo que o joio
se mantém verde, com espiga preta e mais fina que a do trigo.
O grão do joio também é diferente, tem uma coloração violeta.
Portanto, quem tenta arrancar o joio antes da hora, acaba arran-
cando muito trigo junto e pode acabar com o celeiro vazio.
A primeira tentação do agricultor é arrancar logo o joio, por-
que, além de não servir para nada, ele é uma erva daninha que
compete com o trigo por nutrientes. No entanto, arrancar o joio
antes da formação das espigas significa perder muito trigo.
Também na experiência mística, é preciso deixar que cres-
çam juntos joio e trigo, o que presta e o que não presta, o que é
justo e o que é injusto, o que é bom e o que é ruim. Enquanto
joio e trigo estão jovens, você não será capaz de distingui-los;
por isso, deixe que cresçam juntos; separe-os depois. Do con-
trário, você jogará o trigo fora junto com o joio e, mais tarde,
não terá matéria-prima para fazer pão.
Se agora você está tentando fazer atividade mística, não fi-
que com medo do que é mau, porque só aquilo que for bom
ficará registrado em você. Nada de mau pode vir da atividade
mística porque, metafisicamente falando, o mal não existe, ele
é ausência de bem, não tem substância em si, de modo que, no
final das contas, o que é mau não ficará guardado no seu celei-
ro; só restará aquilo que é, e o que é, é bom.
Depois de crescidos joio e trigo, é possível distingui-los. E o
sentido gnóstico é o que opera essa distinção entre joio e trigo,
entre bem e mal.
“Italo, isso é gnose! A gnose leva ao inferno. O conhecimento do
bem e do mal tirou Adão e Eva do Paraíso”.
129 a papisa

Há pessoas que não podem ouvir a palavra “gnose” que já


ficam arrepiadas, porque logo se lembram da árvore da ciência
do bem e do mal, no livro de Gênesis, a única árvore do jardim
do Éden cujo fruto Adão não poderia comer. “No dia em que
dele comeres, morrerás”, disse Deus ao primeiro homem (Gn
2, 17). No entanto, Eva foi seduzida e enganada pela serpente,
que lhe disse que, ao comerem do fruto, eles seriam como deu-
ses e seus olhos se abririam para o conhecimento. Adão e Eva
acabaram, portanto, desobedecendo a Deus e comendo do tal
fruto. E foram expulsos do Éden.
Essas pessoas que se assustam com a palavra “gnose” têm
pânico dessa árvore e desse fruto. E têm certa razão, porque foi
depois de comer dele que Adão e Eva perderam a chance de
continuar fruindo do estado perfeito de justiça original.
Porém, se Deus proibiu Adão de comer do fruto dessa árvo-
re, não o fez porque ele

fosse mau em si, mas para que o homem, ao menos, nesta pe-
quena coisa, obedecesse a uma ordem tão-somente por ser
dada por Deus. Assim é que comer do fruto da mencionada
árvore tornou-se um mal. Aquela árvore (...) foi chamada de
árvore da ciência do bem e do mal, não porque possuísse uma
força causadora de ciência, mas devido ao que aconteceu após
ter sido comido o seu fruto. Tendo-o comido, o homem apren-
deu por própria experiência a diferença que existe entre o bem
da obediência e o mal da desobediência. 17

Sabe quem disse isso? São Tomás de Aquino. Espero que


ninguém o tache de gnóstico.
Se você busca conhecer o bem e o mal do jeito que a serpen-
te sugeriu a Eva, o que você quer não é distinguir o que é bom
do que é mau. Na verdade, você é um soberbo que não sabe
seu tamanho, que quer ser como Deus e ter um conhecimento
muito além da sua capacidade. Isso é realmente uma desgraça!

17  AQUINO, São Tomás de. Compêndio de Teologia. Tradução de Dom Odilão
Moura. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1977, p. 111.
130

Mas não seja tonto de acreditar que buscar discernir bem


e mal é errado, pois isso é exatamente o que se faz na gnose.
A gnose é a tentativa de conhecer, de discernir o que é bom e
o que é mau, de separar o joio do trigo. Sem gnose, você não
conseguirá fazê-lo.
Simbolicamente, o dois serve a dois senhores: a quem está
acima e a quem está abaixo. A gnose é a segunda coroa da tia-
ra e, como tal, serve àquela que está acima de si (a mística) e
àquela que lhe está abaixo (a mágica).
Embora a gnose seja essa tentativa de conhecer, é na prática
que se distingue o que é bom e o que é mau. E é operando
com esse conhecimento no mundo que você conseguirá fazer
tal distinção. E isso se retroalimenta, porque você poderá levar
as conclusões a que chegou, na prática, para sua atividade me-
ditativa, em silêncio (mística). Veja, pois, como as três coroas
estão interligadas.
Na mística, você prepara o celeiro (faz silêncio) para guar-
dar os grãos (para apreender o ser das coisas), enquanto deixa
que cresçam juntos o trigo e o joio. Quando trigo e joio estão
maduros, você se torna capaz de ver as diferenças entre eles e
de separá-los (por meio da gnose, você aprende a distinguir o
que é bom e o que é mau). Por fim, você debulha o trigo, faz
a farinha e, com a farinha, o pão (você faz sua mágica: passa
a agir com base naquilo que aprendeu sobre o que é bom e o
que é mau). A magia é a depuração prática que se faz com o
conhecimento que se adquiriu. Você tem a experiência mística,
você conhece, e você pratica.
“Mas eu tomei uma decisão, vi que não era a melhor coisa a fa-
zer e, agora, não posso mais voltar atrás”. Claro! Você tem uma
vida, e não há como “voltar atrás” na vida.
“Poxa, eu não sabia dessas coisas... Eu me separei da minha mu-
lher há anos e já tenho uma outra família. Mas agora vejo que
não deveria ter me separado”. Tudo bem, mas agora você já tem
outra família. Seu primeiro casamento é apenas uma história
passada. Vai ficar se martirizando por isso pelo resto da vida?
Encare o que vier daqui para a frente, sem repetir esse erro
131 a papisa

que, no final das contas, se tornou algo com o que você pôde
aprender e refletir.
Trigo e joio cresceram juntos, você não soube diferenciá-los
e acabou fazendo uma farinha de joio com trigo, que ficou su-
per amarga (porque o joio é mesmo muito amargo). Ao inge-
rir um pão feito daquela farinha horrível, você vomitou, botou
tudo para fora, e obviamente ficou com um gosto horrível na
boca, pois todas as ações irrefletidas deixam um gosto amargo.
Quando você vomita, precisa comer alguma coisa para tirar
o gosto do vômito, o gosto da ação irrefletida. Essa outra coisa,
material e simbolicamente, é o pão. É o pão que irá nutri-lo
e limpá-lo ao mesmo tempo. Se você finalmente aprendeu a
separar joio de trigo, precisa agora pensar em como colocar em
prática esse aprendizado e conseguir, enfim, fazer um bom pão.

Espelhos quebrados,
sepulcros caiados
Um grande problema surge quando alguém abdica da tiara e
resolve se orientar somente — e prematuramente — pelo livro.
Sem o olhar ajustado, sem os olhos polidos, sem um celeiro
preparado, sem a mínima noção da diferença entre trigo e joio,
sem prática, de que servirão as palavras do livro?
Começar direto pelo livro é receita para uma jornada fracas-
sada. Se não percorrermos a mística, a gnose e a magia, as ver-
dades contidas no livro escaparão à nossa percepção. Sem esse
processo, nós nos cristalizaremos e haveremos de nos tornar
como que sepulcros caiados, apegados à letra da lei. Verdadei-
ros livros ambulantes, mas completamente desconectados da
Verdade e incapazes de bem interpretar situações concretas e
reais. Como espelhos quebrados, nada será visto refletido em
nós senão uns fragmentos desconexos da realidade.
Imagine um sujeito que leu alguns livros sobre Teologia Mo-
ral. Ele entende tudo sobre o assunto: sabe o que é pecado, o que
são erros, o que são virtudes morais... Ele é perfeitamente capaz
132

de fazer uma prova sobre o assunto e tirar uma boa nota; talvez
consiga até ser professor de Filosofia ou reitor de um Seminá-
rio. Ele entende dessas coisas, e por isso consegue escrever uns
textos bonitinhos na internet. Quando, porém, uma situação
concreta se lhe apresenta, ele apenas faz matar a Verdade no
coração das pessoas, porque está apegado à letra de uma lei
morta, tal como um fariseu hipócrita, e assim faz justamente
porque está descolado da mística, da gnose e da magia.
O sujeito que somente lê livros não quer saber sobre a re-
alidade, não se interessa por ela. Tem, ao contrário, receio de
sujar suas puras e limpas mãozinhas e seu livro caso dela se
aproxime demasiado.
Ora, o símbolo das mãos limpas já nos foi dado há dois
mil anos. Houve um sujeito na história cuja única intenção
de vida era lavar as próprias mãos: Pôncio Pilatos. Tendo
a Verdade à sua frente — uma Verdade chagada, aberta e
pulsante, uma Verdade viva que era, ela própria, o caminho
e a vida —, Pilatos não a quis defender nem condenar: lavou
as mãos.
No entanto, aquele era o sangue da Verdade, e quem limpa
suas mãos do sangue da Verdade realiza uma limpeza abomi-
nável, caricatural e cética, a limpeza daqueles que se trancam
em laboratórios e nada querem com a realidade da vida.
A segunda lâmina do Tarô mostra-nos, assim, o crime dos
sujeitos cujas principais preocupações são não contaminar as
próprias mãozinhas com o sangue da verdade e manter uma dis-
tância segura da realidade, tomando-a por um corpo pestilento.
Se você não suja as mãos com o sangue da verdade — e ele
se nos apresenta na vida —, você está preso à letra da lei: é um
fariseu hipócrita. Nenhum dos que forem lhe procurar sairão
vivificados. Sairão, antes, oprimidos por aquela assepsia de um
Pilatos que lava suas mãos.
Há muitas pessoas assim por aí, cujo único ofício é manter
as mãos limpinhas. Não caia nesse erro.
Repito para que você não se esqueça: dedicar-se ao “livro”
sem passar antes pelos três domínios da tiara (o místico, o gnós-
133 a papisa

tico e o mágico) é uma tremenda tolice. Só depois de todo esse


processo representado pelas coroas da tiara é que você poderá
chegar ao livro e começar a falar sobre o que esteve fazendo. Só
depois da mística, da gnose e da magia é que suas palavras terão
força e consistência. Portanto, se você não preparou o celeiro e
não sabe a diferença entre uma espiga de trigo e uma espiga de
joio, seja honesto consigo mesmo e admita que ainda está no
início do processo.

Os santos, livros vivos


São quatro os sentidos que só podem se alimentar pelo
pranto que limpa o espelho, que ajusta o olhar: o sentido
místico, o sentido gnóstico, o sentido mágico e o sentido
filosófico ou teorético — mas não se preocupe com este úl-
timo agora. Vá, antes, de sentido místico, gnóstico e mágico;
ou seja, de reflexão, de aprendizado e de prática. Só depois
você conseguirá, talvez, explicar suas reflexões para alguém
e para si próprio. Só então você passará ao domínio do livro,
ao domínio filosófico.
A vida dos santos vira tradição também, vira livro, e isso é
uma sabedoria muito grande da tradição mística católica. As
vidas dos santos são como livros em que está reunida uma sa-
bedoria enorme. Os santos são como aquelas “cartas de Cris-
to” de que São Paulo falou aos Coríntios. Ele os exortou que
fossem como cartas reconhecidas e lidas por todos os homens
e escritas “não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo,
não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos cora-
ções” (2 Cor 3, 1-3). Quando você contempla a vida de um
santo, logo entende o que é um celeiro, o que é trigo, entende
como é que se faz pão, como é que se limpa os olhos, como é
que se cresce, como é que se amadurece... Você simplesmente
entende!
A presença de um santo é a presença de alguém que fez as
operações mística, gnóstica e mágica. O santo é alguém que
134

está em tudo polido, em tudo alimentado, alguém que tem re-


serva de trigo. Ele tem a lei impressa em suas entranhas e ins-
crita em seu coração. Portanto, se você quer saber como polir
os olhos, como preparar o celeiro, como ter sua reserva de trigo,
como sair do domínio do livro, aprenda com os santos.
A IMPERATRIZ
137

A
terceira lâmina do Tarô é a Imperatriz. Com as duas
primeiras, ela forma um ternário, resumido na seguinte
fórmula (que você provavelmente já ouviu em algum
lugar): o caminho, a verdade e a vida.
138

A primeira delas, a lâmina do Mago, simboliza o início de


um caminho a percorrer, assim como a postura existencial ne-
cessária para captar as coisas superiores. Para percorrer esse
caminho, temos que nos munir do olhar perfeitamente desa-
tento do Mago e proteger-nos sob seu chapéu em forma de
lemniscata.
A segunda lâmina, a da Papisa, simboliza a verdade à qual
aspiramos chegar. No entanto, vimos que, para chegar à verda-
de, começar direto pelo livro é tolice. É preciso, antes, passar
pelas três esferas representadas pelas coroas da tiara (mística,
gnose e magia). Sem esse processo, as verdades contidas no
livro escaparão à nossa percepção.
A lâmina da Imperatriz, por sua vez, simboliza a vida tal
como ela se nos apresenta — não como mera operação mental,
desvinculada da realidade.
O número da lâmina é o três, segundo o qual a tríade mís-
tica-gnose-magia não pode ser separada, assim como as três
pessoas da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo)
são um só Deus.
A Imperatriz está sentada em um trono e tem uma coroa
sobre a cabeça. Em geral, ela aparece com um cetro em uma
mão e um escudo na outra. O cetro costuma figurar com uma
esfera no topo, tendo acima de si uma cruz.
A esfera é dividida em duas metades por uma linha, como a
linha do Equador divide o globo terrestre. Formam-se aí como
que dois copos, ligados pelas bordas: um cuja borda está vol-
tada para cima, tendo sob si o bastão, e outro virado de cabeça
para baixo, tendo a cruz como base.
O conteúdo do copo de cima (o da cruz) escorre para o copo
de baixo. Esses dois copos unidos pelas bordas simbolizam aqui-
lo que vem de cima e é vertido embaixo, tornado ação humana.
Já o escudo que ela segura com a mão direita é adorna-
do por um brasão de águia, ave de rapina que alça altos vôos.
A águia é também o arquétipo do líder, pois é o único animal
que consegue encarar o sol de frente. Ela simboliza a coragem
e a agudeza com que devemos encarar a vida. Por outro lado,
139 a imperatriz

essa águia — embora seja um animal incisivo, agudo — está


representada em um escudo, não em uma espada ou lança. Esse
escudo é, a um só tempo, arma e instrumento de defesa. Como
a articulação do olhar de pomba e de serpente, o escudo de
águia articula defesa e ataque, proteção e coragem para enfren-
tar o que quer que nos apareça à frente.

Somos livres!
Quando a criança ainda é muito nova, ela tem por operação
básica rejeitar o que lhe incomoda e aderir àquilo que não lhe
incomoda. Até os dois anos, a criança vive entre prazer e des-
prazer; tudo nela se baseia nisso. Esse par é a chave para en-
tender tudo o que ela quer e faz. Se há muito barulho, o bebê
se incomoda e chora; se tem fome, ele se incomoda e chora;
se a água do banho está muito fria ou muito quente, ele se
incomoda e chora; se nasce um dente novo, ele se incomoda e
chora. Quando cessam a dor e o incômodo, é comum que ces-
se também o choro. A vida infantil opera, enfim, no binômio
incômodo-prazer.
O sujeito freudiano não é muito diferente disso. Ele é um ho-
mem “deformado”, que é puro afeto, que está sempre fugindo da
dor e buscando o prazer. Para Freud, tudo se explica por pulsões
(uma pulsão sexual, uma pulsão de desejo, uma pulsão de pra-
zer). Contudo, meras pulsões não explicam como “funciona” um
adulto — ao menos, não um adulto maduro. Um adulto maduro
tem muitas outras motivações que transcendem a vontade de
transar, a vontade de ter muito dinheiro ou a vontade de comer
duas barras de chocolate de uma só vez.
Muita gente pensa que o homem é movido por pulsões ou
por instintos, mas, em geral, há grande imprecisão quando se
fala em “instintos humanos”. Enquanto nos animais o instin-
to é forte e imperativo, no homem, as tendências instintivas
são muito fracas e raramente se manifestam em estado “puro”
depois de passada a primeira infância.
140

Certa vez, eu estava nos Estados Unidos, em uma festa de vi-


rada do ano. Havia ali um cachorro que observava atentamente
a movimentação da criançada que estava ali pela sala. Em um
dado momento, ele começou a circular o recinto, em círculos
concêntricos cada vez menores, de tal modo que, depois de al-
guns minutos, as crianças estavam todas agrupadas no centro da
sala. Era um cão pastor.
Eu estava ali, comendo um cachorro-quente, conversando
com amigos e observando a cena, enquanto o cachorro fazia a
única coisa que poderia fazer: pastorear, ou seja, ser um cão pas-
tor. Ao receber um estímulo do ambiente, não lhe resta outra
opção senão agir — ele não tem liberdade de escolha. Isso é o
que nós chamamos de instinto, que é o sistema de orientação
dos animais no mundo.
A realidade se apresenta para o bicho como se entre eles
houvesse um contínuo, como se a realidade convocasse o ca-
chorro a agir de um único modo — ou até de dois, mas nunca
de quatro, cinco ou dez modos. Possibilidades incontáveis não
se abrem para os cães.
Diante de um chamado claro da realidade, o cachorro pode
apenas agir ou não agir. Um cachorro doente ou bem ades-
trado talvez não reaja, mas um cachorro são e não adestrado
necessariamente exercerá plenamente sua “cachorridade”; ele
fará aquilo para que foi feito: ser cachorro.
A realidade apresentou àquele cachorro umas criancinhas.
Um cão pastor pastoreia ovelhas e, bem, para ele, crianças e
ovelhas são mais ou menos a mesma coisa. Por isso, o cão se
viu impelido pela realidade a pastorear aquelas criancinhas. Ele
não tinha liberdade, mas somente agiu diante da realidade por-
que foi chamado a isso por uma faculdade sua, a que damos o
nome de instinto.
O ser humano, pelo contrário, não tem instintos como um
animal, porque não existe algo na realidade que nos chame e
que nos leve a agir necessariamente de certo modo.
Fala-se muito em instinto de sobrevivência. No ser humano, po-
rém, o instinto de sobrevivência é algo muito difícil de definir e
141 a imperatriz

localizar; e ele não determina nossas ações. Se o instinto hu-


mano de sobrevivência fosse de fato forte, ninguém faria jejum,
por exemplo; mas várias pessoas deixam de se alimentar orien-
tadas por um princípio religioso, moral, estético ou de outra
ordem. Um animal inferior jamais faria algo parecido. Isso
acontece porque a liberdade humana é superior aos instintos,
ela é o elemento que “costura” a nossa substância.
Se você pensar somente em pulsões, estará frito, pois a pul-
são da qual fala Freud aposta que o instinto está na dianteira
das nossas ações, quando, na realidade, não é isso o que ocorre.
Vejamos um caso bastante corriqueiro: se chego esfomeado à
casa da minha sogra para um almoço de domingo, mas a co-
mida atrasa, por que não meto logo a mão na comida crua para
me alimentar de imediato?
Essa espera é um elemento puramente humano. O homem,
como já disse um filósofo, é o homo gastronomicus. Nós prepa-
ramos a comida para comer; não comemos qualquer coisa, nem
comemos de qualquer jeito. Noutras palavras, o instinto de se
alimentar cede a alguma outra coisa (que tampouco é um outro
instinto). Nunca vi um cachorro fazer um molho bechamel ou
fritar um bife.
Outro exemplo. As companhias aéreas precisam avisar uma
coisa que, para bichos, jamais seria necessária: antes de ajudar o
viajante ao lado, primeiro ponha você sua máscara de oxigênio.
Isso não chama muito a atenção? Se houver uma pessoa amada
ao seu lado, seu primeiro “impulso” será o de colocar a máscara
nela primeiro! A liberdade que o amor nos confere leva-nos a
fazer exatamente o contrário daquilo que um instinto de so-
brevivência nos levaria a fazer.
É claro: embora haja quem pense em colocar a máscara pri-
meiro em si próprio, deixando que os outros se ferrem, a maio-
ria não pensa assim — e é por isso que as companhias aéreas
precisam dar o aviso. Sem ele, a maior parte das pessoas colo-
caria primeiro a máscara no viajante do lado. Veja, portanto,
como o instinto não está na dianteira: não é ele que “costura”
nossas ações.
142

Se você ainda não está convencido disso, pense então no fe-


nômeno dos mártires religiosos, que morreram por sua fé. Que
instinto de sobrevivência é esse, que permite que um garotinho
de catorze anos, como São José Sánchez del Río, mexicano
martirizado em 1928, prefira a morte a negar sua fé em Cris-
to? Ele não aceitou barganha alguma para que lhe poupas-
sem a vida; padeceu várias humilhações e sofrimentos físicos:
bateram-lhe, cortaram-lhe as solas dos pés, e obrigaram-no a
caminhar descalço sobre o sal, tendo já os pés em carne viva. O
tempo todo, ele se manteve firme, entoando hinos em louvor a
Deus. Morreu, por fim, com um tiro na cabeça, pouco depois
de ter dado seu último grito: “Viva Cristo Rei! Viva Santa
Maria de Guadalupe!”
Exemplos como esse bastam para que o “instinto de sobre-
vivência humano” caia por terra. O homem é livre mesmo em
situações extremas, mesmo diante do martírio, mesmo diante
da morte, para dizer: “Eu quero isso”, ou então: “Eu não quero
isso”. Ele escolhe livremente.
Outro instinto que se costuma atribuir ao homem é o ins-
tinto sexual, ou instinto de reprodução, mas qualquer pessoa que
olhe para sua própria vida com sinceridade saberá que ter re-
lações sexuais não é assim tão fácil — mesmo hoje, quando
parecem não haver tantos impedimentos.
O fato é que não somos coelhos nem cachorros. Se houver no
mesmo recinto um cão e uma cadela no cio, eles cruzarão. Não
há flerte, não é preciso “perder tempo” com a conquista, a cadela
não alegará estar com “dor de cabeça”... Diante de uma realidade
sexual, ou seja, de uma fêmea fértil e um macho viável, não há
complicações para os animais: eles se reproduzem e pronto — a
não ser que algum problema de saúde os impeça de fazê-lo. Isto
é propriamente o instinto: algo imperativo, necessário.
Basta, contudo, uma preocupaçãozinha (com os filhos, com
a casa, com o trabalho, com uma dívida), uma enxaqueca ou
o cansaço ao final de um dia cheio para que um ser humano,
embora em seu período fértil, perca completamente a vontade
de fazer sexo. Ora, se o instinto sexual fosse lá tão forte entre
143 a imperatriz

os homens, todos estariam transando o tempo todo, mas não é


bem isso o que acontece; pelo contrário, o problema de muitos
casamentos é exatamente a falta de sexo, o fato de um querer e
o outro não, de um estar pronto e o outro não.
Veja, portanto, como, mesmo diante daquelas motivações
que parecem instintivas, não estamos no império da necessida-
de absoluta. O homem sempre tem escolha.
Quando alguém lhe aparecer dizendo: “A minha vida aca-
bou. Não tenho escolha. Não há mais o que fazer”, não acredite.
Ser humano é poder escolher; e poder escolher é poder me-
lhorar, sair de um estado de miséria, de tristeza, de depressão
ou de agonia. E um sujeito com personalidade é plenamente
capaz de livrar outra pessoa de um estado como esses.
É a isso que Viktor Frankl se referia quando disse que a
única coisa que trata é o terapeuta com personalidade.
O terapeuta com personalidade não dá exemplo de nada:
ele vive de tal modo a deixar claro, para aqueles que estão à sua
volta, que é possível ser humano. Diante de um desesperado, o
sujeito com personalidade será aquele responsável por dizer:
“Não! Você está completamente errado! O mundo não é isso, a vida
humana não é isso.” E então aquele indivíduo padecente, que
estava cristalizado como um chihuahua, percebe que é possível
ser humano. E não há tesão maior no mundo do que ser gente.
Isso é fantástico! Nós precisamos amadurecer, por nós mesmos
e pelos outros.
Não amadurecer é levar a vida como um chihuahua; e ainda
que você queira muito viver assim, ao fim e ao cabo, não conse-
guirá, pois é impossível matar esse senso chamado liberdade. O
ser humano é ontologicamente livre. Ontologicamente — a li-
berdade está na sua essência, na sua constituição. O ser humano
é livre, seja em um campo de concentração, seja sob um regime
tirânico, seja em um restaurante badalado, seja no ambiente
familiar. Ele sempre terá a possibilidade de dizer sim ou não.
O que vemos, contudo, é uma grande parte dos seres huma-
nos que parece viver como chihuahua, mas nenhum deles o é de
fato. Em algum momento, todos são confrontados com certas
144

perguntas, são impelidos a amadurecer. Do contrário, jamais


serão felizes.
A tristeza surge precisamente do não-amadurecimento, do
mau uso da liberdade, da própria abdicação do uso da liber-
dade, da idéia tremendamente equivocada de que um homem
pode viver como um cachorro.
Você quer ser feliz? Então faça bom uso daquilo que está no
centro da sua humanidade: sua liberdade. Mas veja bem: para
nós, a liberdade não é um conceito abstrato; ela é uma escolha
que fazemos a cada instante, entre prestar e não prestar aten-
ção, entre amar e não amar, entre servir e não servir, entre estar
e não estar. Essa é a liberdade que nos é possível.
A humanidade, hoje, anda extremamente infeliz. Há um
desespero, uma desorientação, um não-saber-o-que-fazer ge-
neralizado, porque o homem atual não está sendo fiel à sua
própria natureza. Ele quer abrir mão da liberdade, sem a qual
não pode dizer que é mesmo um homem.
A lâmina da Imperatriz nos sugere uma solução para esse
problema: envergar o escudo e o cetro que são, afinal, símbolos
da instalação na vida. Desenvolvamos nossa vida neste mundo,
avancemos em nossos projetos. E não o façamos como crianci-
nhas que vivem de buscar o que é agradável e prazeroso e evitar
sempre o sofrimento e a dor, senão como adultos que somos,
livres e responsáveis.

A substância da vida humana


Porém, antes de sair por aí empunhando cetro e escudo, é
preciso entender uma coisa. A substância da vida humana é a
narrativa, pois a vida humana é uma história. Ela tem começo,
meio e fim, tem personagens principais e secundários, tem um
eixo narrativo, cenários, antagonistas, clímax, desafios a serem
enfrentados etc. Ela contém tudo o que as boas histórias con-
têm, mas isso não nos torna automaticamente nem bons vive-
dores nem bons contadores de nossas próprias histórias.
145 a imperatriz

Se não pararmos para pensar nesses elementos, e se não


tomarmos posse desta que é a substância da nossa vida (isto
é, se não aprendermos a contar bem nossa própria história),
continuaremos perdidos e sem ver sentido na vida. Seremos
perpetuamente jangadas à deriva, navegando para onde sopra
o vento, incapazes de escolher nossos próprios rumos.
É imediata a necessidade de encontrar seu argumento vital,
de modelar os elementos que compõem sua própria história,
levando em conta sua estrutura natural. Ao fazê-lo, você abre
para si a possibilidade de um “final feliz”, de um final à altura
da responsabilidade de escrever uma história, não com papel e
caneta, mas com ações concretas em um mundo real.
Você se lembra do que falei sobre as vidas dos santos, que
são como que “livros vivos”? Pense também na sua vida como
um livro vivo.

Contando a história dos outros, ou


Por que a grama do vizinho
é sempre mais verde
Muitas pessoas têm a impressão de que a grama do vizinho é
sempre mais verde, de que a vida dos outros é sempre mais in-
teressante. Isso acontece porque, olhando para a vida do outro,
essas pessoas contam a história dele segundo uma certa chave.
Elas escolhem um eixo narrativo, assim como as criancinhas
fazem quando estão brincando.
Quando você olha para a vida do vizinho e fala que a gra-
ma dele é mais verde do que a sua, você só o diz porque está
contando a vida dele sob a forma de uma história, e assim ela
parece fazer mais sentido do que a sua.
Pense, por exemplo, na história de Pablo Escobar. Ao ver
aquela vida contada no seriado Narcos, mesmo sabendo que o
sujeito foi um imoral, um bandido, um narcotraficante, um as-
sassino, você se vê tentado a pensar que, às vezes, a vida dele pa-
rece ter sido melhor do que a sua. Você se vê, inclusive, tentado a
querer ser como o Pablo Escobar foi. É verdade ou não é?
146

Nunca lhe aconteceu de olhar para um vilão do cinema e


pensar: “Que baita vida”? Ao fazê-lo, você não está simples-
mente sendo atraído pela maldade do personagem, mas está
se deixando encantar por uma grande história. É como se você
exclamasse: “Caramba! Isso é que é uma história de vida, que vale
a pena ser vivida. Eu também queria viver uma baita história!”
Quando não sabemos contar nossa própria história, até uma
história horrorosa como a do Pablo Escobar — um sujeito que
explodia carros e matava gente inocente, que morreu em cima de
um telhado, como um rato — pode parecer mais interessante do
que a nossa. Na verdade, como dizia Georges Gusdorf, qual-
quer história humana é interessante, desde que bem contada.
A vida do protagonista do filme O Lobo de Wall Street, um
viciado em cocaína, também parecerá melhor e muito mais
atraente do que a vidinha mixuruca de um sujeito que resume
a própria história a um “Nunca matei nem roubei, logo, sou um
homem bom”. Quando esse sujeito se depara com uma história
como a do Pablo Escobar, que roubou e matou, seu primeiro
impulso será pensar: “Isso sim é que é vida! A minha é apenas uma
vidinha.” Depois, no entanto, ele retoma um nível de consci-
ência de moralidade e pensa: “Não! Minha vida é melhor. Pelo
menos eu nunca fiz mal a ninguém”.
O problema é que essas pessoas nunca se convencem intei-
ramente disso. Fica-lhes na boca um gosto amargo.
Quando você pensa que o seu vizinho ou o Pablo Escobar
têm uma vida melhor do que a sua, o que acontece é que, sen-
do essas pessoas externas a você, ao tentar entendê-las ou falar
sobre elas, das duas uma: ou você fala sobre um aspecto externo
físico claro e muito marcado (“Meu vizinho é muito feio”, “Essa
atriz é muito bonita”, “Aquele influenciador digital tem uma voz
irritante”), ou você faz uma projeção narrativa.
Como o aspecto físico não consegue enganar por muito
tempo, você acaba criando alguma história mais ou menos
elaborada sobre aquela pessoa. É o que fazem comigo a todo
o tempo. Como apareço diariamente no Instagram para um
grande número de pessoas, sempre há gente tentando contar
147 a imperatriz

alguma história sobre mim, histórias essas que, no mais das


vezes, resumem-se a rótulos: “O coach católico”, “O charlatão”,
“O gênio salvador de almas”, “O guru”.
É um exercício imaginativo: elas tentam imaginar uma vida
muito diferente das suas próprias. Apegam-se àqueles símbo-
los e os projetam na vida dos outros — e está certo; o problema
é que a coisa pode ser feita de forma honesta ou desonesta;
motivada pela inveja, ou pela admiração; por uma curiosidade
sadia, ou por um desejo de destruir o outro. Se vou de um pos-
sível-futuro-santo até o crápula mais charlatanesco da face da
terra; de médico excelente a falsificador de diploma, há algo de
estranho nisso, e esse algo é a motivação das pessoas que estão
contando uma história sobre mim.
Quando falam muito sobre você, é preciso ter o cuidado de
não se deixar afetar demasiado por isso. A pessoa que se entris-
tece muito quando falam mal dela, em geral também se alegra
muito quando a elogiam. Quando ela se deixa levar por uma ou
outra coisa, ela permite que outros escolham o eixo narrativo
da sua própria vida. Não se lhe aplica a famosa frase do Dom
Quixote de Cervantes: “Yo sé quién soy” (“Eu sei quem sou”).
Enquanto você não souber declarar quem é, sua vida, de fato,
será uma caravela sem leme e você irá para onde o vento soprar.
Para evitar que sua vida se converta nesse barco desgover-
nado, tenha bem claro quem você é; e para isso, você precisa
dominar a arte de narrar a própria vida.

A arte de bem narrar a própria vida


Vou lançar uma pergunta agora, e quero que você reflita de
verdade sobre a resposta:
Qual é a sua história?
Pare de ler por um tempinho e tente contá-la.
Eu fiz essa pergunta porque, atendendo por tantos anos em
consultório, ouvindo tantas vidas, percebi que, ao contar sua
história, você escolhe um jeito específico de fazê-lo.
148

Veja bem: não é para repassar um filme dos seus tantos anos
de vida, com tudo o que lhe aconteceu, porque isso também
não seria a história da sua vida, senão apenas as coisas que lhe
aconteceram. É preciso saber selecionar o que incorporar ou
não ao seu eixo narrativo.
Em que medida seu almoço de hoje serve para contar quem
você é? Em que medida a dor de cabeça que você teve há três
horas entra na seleção da sua história? E quanto àquele moto-
boy que passou rápido pelo seu carro e arrancou seu retrovisor,
fazendo-o perder quatro horas do seu dia pensando só naqui-
lo? Em que medida esse evento tem a ver com quem você é?
Alguns responderão: “Italo, isso tem tudo a ver com quem eu
sou.” Outros, um pouco mais sensíveis, dirão: “Não sei se eu de-
veria escolher essas coisas para integrarem meu eixo narrativo, por-
que, afinal, não sei se elas importam ou não.”
Quem, então, é você? Conte-me sua história, conte-me
quem você é. Se você não for capaz de fazê-lo em poucas fra-
ses, então você ainda não tem eixo narrativo.
Pense bem. Aposto que você é capaz de narrar a vida de
outras pessoas em poucas frases. “Meu vizinho estava ferrado na
vida, entrou na Hinode e hoje tem um Land Rover.” Eis uma his-
tória curta, com começo, meio e fim, com personagens, clímax
e desafio: o sujeito estava ferrado, conheceu as testemunhas do
marketing multinível e ganhou uma Land Rover porque virou
“triplo diamante”. Isso de fato acontece.
Agora, se eu lhe pedisse para me contar a sua história, mais
ou menos como você contaria a desse vizinho, você provavel-
mente logo no início confessaria: “Desse jeito, eu não consigo. Soa
falso, artificial.” Aí é que está o ponto.
Você tem de achar a verdade da sua história e contá-la bem.
Não estou falando de achar o seu propósito, mas de tentar res-
ponder a perguntas como estas: quem você é? Quem são as
pessoas ao seu redor? O que você está fazendo? Aonde você
quer chegar? De onde você veio? O que está acontecendo com
você? Na sua vida, quais são as tramas principais e quais são as
periféricas? Quem são os personagens secundários?
149 a imperatriz

Não me venha, portanto, com peripécias do tipo “Sou um


filho de Deus!”. Isso não diz nada sobre você, pois há filhos bon-
zinhos, filhos doentes, filhos que ajudam os pais, filhos que
jogam videogame o dia inteiro, filhos que espoliam todos os
bens familiares... Resumir sua narrativa de vida a um “sou filho
de Deus” é uma peripécia, é um enquadramento externo. Você
pode pensar que ser filho de Deus é a coisa mais central da vida
de um ser humano — e eu entendo o que você quer dizer — ,
mas esse não é um argumento vital.
Serei duro agora, pois preciso me fazer compreender: se o
argumento da sua vida é “Quero me casar e ter quantos filhos Deus
me der”, minha única resposta possível é “Entendi, Senhor(a)
Urso(a).”
Se o seu argumento não serve para distingui-lo de um urso,
de um tatu-bola ou de uma samambaia, você terá uma vida
infeliz, porque ela não terá uma história. Ter filhos é o que um
casal de ursos ou de cachorros faz. Até uma samambaia se re-
produz — na verdade, o único “desejo” dela é se perpetuar, não
há outro. A samambaia não possui nada além disso. Tudo o que
uma planta faz é perpetuar sua espécie.
“Sou imagem e semelhança do Criador.” Sim, é verdade. Mas
isso também não é um eixo narrativo. Do mesmo modo, dizer
algo como “Quero ser bom” é uma peripécia.
Veja, com todos esses exemplos, como o sujeito religioso
tem dificuldade na hora de forjar um eixo narrativo. Eu en-
tendo que ele quer ser uma pessoa boa, mas, quando leio algo
assim, a única coisa em que consigo pensar é que ele quer ser
uma pessoa boa dentro da religião. O problema é que, como
não sabe contar a própria história, logo ele verá as vidas de
outras pessoas como mais intensas, mais interessantes, mais
gostosas — até aquelas que, segundo seu entendimento, são
imorais. Daí surgem as neuroses.
Por isso é que devemos parar de julgar os outros. Não co-
nhecemos a história das pessoas, sabemos pouquíssimo sobre
elas; não obstante, hoje, as pessoas religiosas, em sua maio-
ria, se entregam ao exercício diário de julgar os outros. Uma
150

senhora olha para a moça que usa decotes e roupas sensuais


e, internamente, narra a história dela com base nas poucas in-
formações de que dispõe. Depois de contada a história, aquela
vida passa a exercer certo fascínio sobre a senhora, mesmo que
esta se considere “a religiosa” e veja na outra “a imoral”.
É preciso matar esse julgamento interior, porque ele cria um
tipo de neurose, deixa as pessoas invejosas, secas, frustradas, sem
esperanças de que isto que pensam ser religião seja realmente
caminho de salvação. É o que acontece com 99% dos religiosos
hoje. Como não sabem o que é a história de uma vida humana,
de uma alma, eles se apegam a símbolos externos — que, embo-
ra não sejam ruins, também não são história. E quanta desespe-
rança brota da incapacidade de contar a própria história!

Largando as fraldas
Nossa vida cognitiva ativa tem duração muito curta. Ela não
começa aos dois ou três aninhos, quando começamos a con-
tar as primeiras historinhas, mas sim por volta dos treze anos,
quando, pela primeira vez, pensamos: “Caramba! Eu tenho uma
função no mundo. O que será que eu deveria estar fazendo?”.
Há um momento na puberdade em que o sujeito olha para
si e vê que tem uma história própria, que já não é mais a his-
tória do bandido, do mocinho, do astronauta, ou do jogador de
futebol das brincadeiras fantasiosas da infância.
O próprio “brincar de casinha” das menininhas nada mais
é do que inventar uma vida que não é a delas. Isso é muito
importante para as crianças — na verdade, é só o que importa
em termos de educação infantil. A criança brinca de casinha,
de polícia e ladrão, de boneca, de super-herói, de mocinha, de
médico, de bruxa, de professora, até que chega um momen-
to em que ela começa a notar que as brincadeiras já não lhe
preenchem mais, que ela já não consegue (nem quer) brincar
como antes — e então ela cai em uma espécie de limbo, em um
grande vazio.
151 a imperatriz

Por que nós, adultos, não brincamos mais? Quando éramos


crianças, adorávamos brincar, mas em certo momento da vida
deixamos as brincadeiras de lado e passamos a considerar que
servimos para alguma coisa, e que deveríamos contar uma his-
tória própria, escrever o nosso livro.
A questão é que crianças e adolescentes já não são mais
ensinados a contar histórias. Como, então, serão capazes de
narrar suas próprias vidas? Cobra-se de um adolescente que
protagonize a própria vida, sem contudo dar-lhe os instrumen-
tos necessários para tanto. O adolescente não sabe sequer quais
os eixos narrativos possíveis, e por isso então começa a querer
“inventar moda”, ou a seguir imitando os trejeitos e compor-
tamentos dos outros — agora não mais dos pais, professores e
personagens dos contos de fada, mas das celebridades, dos fal-
sos heróis do mundo moderno, dos anti-heróis e demais perso-
nalidades especialmente atraentes para os jovens.
É bem nessa fase, dos quatorze aos dezesseis anos, quando
tateia em meio a seus pequenos conflitos, que chega ao jovem
uma questão mortal, castradora: “Marque um X no curso para o
qual você pretende prestar vestibular. Você será contador, advogado,
administrador, bioquímico, geógrafo, psicopedagogo, jornalista, de-
signer industrial ou técnico em eletrotécnica?”
As profissões do nosso tempo não são cristalinas, não têm
em si um argumento vital. Nossa sociedade pós-industrial “in-
ventou” tantas profissões desconectadas do pólo de possibilida-
des de realização do espírito e de realização da biografia, que
aderir a uma carreira em nada tem a ver com o desenvolvimen-
to argumental da sua vida.
O que, então, acontece ao jovem?
Lá pelas tantas, ele escolhe uma carreira. E não importa o
que o leva à escolha: ou ele escolhe um curso porque passou em
uma prova específica, ou escolhe outro porque não passou, ou
faz um curso técnico porque a mãe o inscreveu.
De qualquer modo, esse jovem um dia se pergunta pela pri-
meira vez: “O que eu deveria ser? O que eu deveria fazer? Só sei
que não brinco mais de casinha.”
152

O jovem então nota que não tem mais uma vida ficcional e
infantil, e que precisa contar uma história real. Mas ele se frustra
no primeiro dia, porque não sabe se fez ou não o que tinha que
fazer. Frustra-se também no segundo. Até que, no terceiro, ele não
completa mais essas micro-vidas chamadas dias, não perfaz a vida
cotidiana, porque não sabe que história é essa que está contando.
Mesmo o jovem mais ou menos bem educado, que escolhe
ser bom, que tem religião e que deseja viver eticamente, acaba
se apegando a símbolos externos, a peripécias, e vai pautando
sua vida em alcançar essas coisas externas, pois tudo assume
um sem-sentido monstruoso e interminável. Não basta querer
ter virtudes de maneira genérica; virtudes, em si e tomadas
genericamente, não são nada. Há virtudes que, para uns, serão
mais fáceis de cultivar, para outros, mais difíceis; no caso con-
creto do nosso rapazinho, será preciso dedicar mais atenção
a certas virtudes que a outras. E há alguns vícios e defeitos
contra os quais ele terá de lutar por toda a vida, porque, do
contrário, eles poderão destruí-lo.
Ele poderá, afinal, chegar ao final de um dia e dizer: “Eu fui
muito pontual hoje. Estou de parabéns.” Beleza, mas o que isso
tem a ver com tudo o mais? Em tese, ser pontual é melhor do
que não ser, mas, dependendo do caso, apegar-se demasiado
à pontualidade é péssimo, porque significa matar vários ele-
mentos de caridade, de atenção ao outro, de relaxamento, de
“presença” em dado lugar. Na maioria dos casos, cinco ou dez
minutos para cá ou para lá não fazem qualquer diferença. Lu-
tar para “ser pontual” pode significar lutar por algo que, talvez,
não tenha nada a ver com a pessoa.
E para saber quais dessas coisas têm maior ou menor rele-
vância em sua história, a primeira pergunta que você deve se
fazer é: “Qual é o meu eixo narrativo?”
Uma vez que a substância da vida humana é a narrativa (a
história que se conta a respeito de si próprio), o sujeito que não
tiver um eixo narrativo claro nunca será bom, mas, no máximo,
bonzinho. Quer dizer, dentro da normalidade humana, ele não
será bizarro, não será um monstro. Mas “não ser bizarro” não
preenche ninguém, e todos sabem disso.
153 a imperatriz

Ao chegar aos vinte e poucos anos, o jovem — aí incluído


também o bonzinho com o nobre desejo de ser virtuoso — já
terá experimentado uma década de frustrações diárias e de
um pensamento constante de não saber o que veio fazer neste
mundo. Aos vinte e cinco, ele empurra a vida com a barriga:
“É... Dá para viver. Não vou me matar, mas já sei o que so-
brou para mim: evitar a dor.” Com essa atitude, ele regressa aos
dois anos de idade! Embora tenha vinte e cinco, ele não acre-
dita mais em uma coisa chamada “narrativa”; ele perdeu sua
capacidade de narrativa ficcional, porque não é mais o Batman,
o mocinho, o bandido, o arquiteto ou o médico de que brinca-
va quando criança. Assim é que ele recua para aquela vidinha
de bebê, orientada pelos pólos de prazer e dor. Volta a chorar
quando a barriguinha está vazia, quando está frio, quando está
calor, quando o brinquedo quebra...
E essa tragédia se dá justamente dos vinte e cinco aos trinta
e cinco anos, a década na qual tudo acontece: a consolidação
da carreira (ou a mudança de profissão), o casamento, a vinda
do primeiro filho, uma separação, a vinda dos outros filhos, a
descoberta de uma doença.

Uma vidinha gourmetizada


Precisamente nessa fase em que deveriam amadurecer, nossos
jovens insistem em se comportar como crianças. O grande fe-
nômeno da “gourmetização” é uma boa ilustração disso. Diante
de uma falência narrativa, resta-lhes apenas gourmetizar tudo,
para tentar fazer com que a história não doa tanto; porque, se
doer, todo o mundo quebra, se deprime, fica ansioso e desiste.
Se o sujeito entra na vida adulta com algum dinheirinho e
não experimenta esse tipo de gourmetização, ele sente como se
a vida tivesse acabado, porque está há dez anos tentando contar
uma história e não consegue — e, nesse sentido, o sofrimento
não ajuda em nada.
Alguns dirão: “Esse pessoal tem a vida muito fácil. Queria ver
se sofressem mesmo.” Que nada! Pense em muitos dos jovens da
154

favela. Materialmente falando, não há muitas coisas boas em


suas vidas. Suas casas não têm espaço, a água que bebem não é
muito boa, têm de pegar quatro ônibus todos os dias e, ainda
assim, quantos deles não se esforçam por mostrar que têm rou-
pas boas? Mas o resultado é todo meio desconjuntado, e eles
sabem disso. Ostentam tênis caros e o boné da moda, enquanto
pegam um ônibus lotado. A pobreza não leva ninguém auto-
maticamente ao amadurecimento.
A doença tampouco é uma cura milagrosa para a pessoa
imatura e que não vê sentido na vida. Quantos doentes só fa-
zem reclamar e reclamar! Sofrimento não é cura milagrosa.
Uma doença pode levar alguém a ver sentido na vida, mas tam-
bém pode torná-lo mais amargo.
Mas voltemos ao sujeito que, tendo passado dez anos
questionando-se sobre sua história, chega aos vinte e cinco
anos em uma desesperança brutal. Não a declara, contudo,
porque os prazeres do mundo gourmetizado servem-lhe de
anestesia. “Este mundo não é tão ruim. Dá para aproveitar. As
meninas estão todas querendo dar, há muitas comidas gostosas,
boas bebidas e posso sempre tomar um banho quente para relaxar
à noite. Quando estiver muito calor, posso ir ao shopping curtir
um ar-condicionado. Juntando algum dinheiro, posso fazer algu-
mas viagens, conhecer o mundo… Não tenho razão para reclamar.
A vida não deve ser tão ruim, eu é que não devo estar sabendo
fazer as coisas direito.”
Ele fica constrangido em declarar sua desesperança, por-
que olha para o mundo externo e vê que nele está tudo orga-
nizadinho, e que o mundo é muito mais generoso do que ele
poderia pedir. A Segunda Guerra Mundial ocorreu há menos
de setenta anos. O mundo ruiu, foram cinquenta milhões de
mortos e barbárie para tudo que é lado; tudo destruído, a es-
perança em um saco... Mas está tudo de pé de novo.
Ao olhar o mundo e dizer que ele não é tão ruim, cria-se
outra dissonância: este mundo não parece ser tão ruim, mas,
ainda assim, as pessoas não sabem o que estão fazendo aqui.
155 a imperatriz

Caindo na real
Mas a anestesia de um mundo gourmetizado não dura muito
tempo. Uma pessoa que vive de buscar prazer e conforto e de
repelir dor e sofrimento é presa fácil para as frustrações. Eis
que o rapaz — que já não é mais tão jovem assim —, con-
quistando seu dinheirinho, decide curtir as férias de verão nas
praias da Indonésia. Se a sua narrativa vital for encontrar pra-
zer e repelir incômodos, ele será acometido pelo fenômeno que
atinge a classe média em geral, qual seja: suas viagens serão um
porre.
Mesmo que ele se hospede em um hotel 5 estrelas, não terá
ali o aconchego de um lar. E o hotel provavelmente estará em
manutenção (porque eles sempre estão). A água do chuveiro
não estará suficientemente quente, a bagagem será extraviada,
a carne não virá no ponto desejado, a comida não agradará
muito, ele brigará com a namorada por causa de uma boba-
gem…
Suas férias asiáticas serão um porre, seu dia-a-dia lá será um
inferno e, no entanto, ele precisará voltar ao Brasil fingindo que
tudo foi uma maravilha, porque gastou um dinheirão e esteve
em um lugar paradisíaco que muitos sonham em conhecer.
Ele pode, então, desejar ardentemente ter um carrão, e pode
até acabar arranjando um. Ao cabo de uns meses, porém, já não
gostará mais tanto do veículo. O possante não será tão bom
quanto ele pensava que seria, o seguro será mais caro do que
ele imaginava e a franquia, então, será um absurdo. Ele logo se
arrependerá de ter gastado tanto dinheiro.
Isso acontece, porque essa forma de viver e contar a própria
história não é decente, não é digna, e é incapaz de dotar uma
vida de sentido, porque é simplesmente impossível. Viver a vida
na base do comer, beber, trepar e repetir tudo de novo é uma
grande enganação que não preenche a vida de ninguém.
Sempre haverá água gelada no chuveiro, um criado mudo
para dar uma topada com o dedo, um sinal vermelho quando
se está atrasado, um extravio de bagagem com todas as suas
156

compras, uma carne nada barata fora do ponto, uma briga de


namorados, um funcionário de má vontade, uma infecção in-
testinal, uma tempestade, uma multa de trânsito…
Este mundo, por definição, não oferece elementos para que
se articule uma história nessa base simplória. Se o argumento
de sua vida for “aproveitar o que é gostoso”, sua história se
frustrará dia após dia. Por essa e outras razões, não me canso de
repetir a máxima: “trabalhe, sirva, seja forte e não encha o saco”.
Aqueles que são ou tentam ficar fortes fisicamente, por exem-
plo, sabem que o processo não é nada gostoso. Não é gostoso ir
para a academia, não é gostoso fazer dieta, não é gostoso gastar
dinheiro com suplementação...
Servir também não é gostoso. Servir exige abrir mão da pró-
pria vontade, sofrer um pouquinho (ou muito), gastar tempo,
doar-se… Noutro dia, cheguei à casa da minha irmã e ela tinha
acabado de fazer uma sopinha. Eu estava com fome e ainda
passaria algumas horas sem comer por conta de gravações, en-
tão ela me ofereceu o prato. É óbvio que ela também queria
comer a sopa que ela mesma tinha preparado, mas não havia
o suficiente para nós dois. Ainda assim, ela generosamente me
cedeu a sopa e procurou outra coisa para comer. Essa atitu-
de tão simples aponta para outros valores mais altos do que a
mera busca por prazer.
A maior parte dos conflitos domésticos acontece por causa
de coisas tão pequenas como uma maldita sopa da qual não se
quer abrir mão. É o marido que quer o ar-condicionado a 21°C
enquanto a mulher o quer a 24°C, mas só um dos dois terá a
temperatura desejada; são os irmãos que discutem porque cada
um quer assistir a um programa diferente e só há uma T.V.
disponível; é o homem que quer dormir enquanto a mulher
quer conversar...
Quase todas as brigas familiares e conflitos domésticos sur-
gem pela escolha de um eixo narrativo impossível de se viver.
Todo o mundo quer o prazer e o conforto para si e não está
disposto a abrir mão de nada, mas é impossível conseguir uma
vida absolutamente privada de dor, sofrimento e frustração.
157 a imperatriz

É por isso que hoje existem uns estabelecimentos malucos que


servem, ao mesmo tempo, pizza, comida japonesa e churrasco.
Esses locais foram pensados para evitar conflitos familiares,
porque as pessoas já não conseguem abrir mão de suas vonta-
des. E, se abrem, o fazem pensando em cobrar “seus direitos”
na próxima oportunidade: “Podemos comer a pizza que você quer
hoje, mas, na próxima, comeremos o churrasco que quero.”
Ora, minha irmã não me deu a sopa para ter um direito na
próxima. Não haverá próxima, porque eu não cozinho sopa.
Ela deu porque quis; não por educação, mas por generosidade.

Diários, memórias, auto-retratos,


crônicas e autobiografias
Acredito que, agora, você tenha consciência da importância de
saber narrar bem a própria vida. Todo o mundo deveria saber
contar sua história, e não há vaidade ou egocentrismo nisso.
Trata-se, antes, do domínio da autodescrição. Espero que você
também já saiba que não deve escolher como eixo narrativo a
busca de prazeres e a fuga dos sofrimentos.
Mas, afinal, como é que se conta a própria história?
Quando pensa em narrar sua história, aposto que a primeira
coisa que vem à sua cabeça é escrever um diário, mas essa não
é a única forma possível. Há também outras ferramentas que
podem ser utilizadas: os auto-retratos, as memórias, as crônicas
e as autobiografias. Todas elas têm em comum o seguinte: são
escritas em primeira pessoa.
Não sei se você alguma vez já prestou alguma prova para
ingresso em curso superior (vestibular ou ENEM), mas, se
já, então você sabe que havia uma regra de ouro para fazer
uma redação: jamais deixar escapar um “eu”, um “eu acho”,
um “eu penso” nos textos. A impessoalidade era obrigató-
ria: “pensa-se”, “especula-se”, “convencionou-se”. Qualquer
tese, história ou idéia deveria sair da boca de uma “terceira
pessoa”.
158

Seu professor de redação, o sujeito que deveria ter lhe en-


sinado a contar uma história, a descrever pessoas, animais,
paisagens e cenas, a comunicar-se por meio de uma carta, pro-
vavelmente não lhe ensinou a escrever fábulas, contos, crônicas,
relatos ou diários, mas apenas a escrever em uma única moda-
lidade: o texto dissertativo-argumentativo.
Sinto-lhe informar, porém, que, se você não sabe escrever
em primeira pessoa, você não sabe escrever definitivamente.
Hoje em dia, em tempos de e-mail e WhatsApp, escrever
uma carta para alguém é absolutamente anacrônico. Nem di-
ário se escreve mais, porque este foi substituído pelos pseudo-
-registros no Instagram e no Facebook.
O desejo de manter uma memória (de contar uma história)
permanece, contudo, de modo forte e fecundo, pois é um instin-
to humano. As redes sociais, além de se prestarem a outros fins,
são registros da história das pessoas, mas registros fragmentados,
muitas vezes desconexos e sem qualquer fio narrativo. O Face-
book permitia textos maiores, mas foi desbancado pelo Instagram,
que tem como foco fotos e vídeos. O Instagram por vezes permite
que os usuários façam ali uma espécie de crônica, onde contam as
coisas que estão acontecendo à medida que elas acontecem; mas
contar como se está vendo as coisas não é contar a sua história.
Há uma série de autores que contam suas próprias histórias
sob a forma de memórias. Já adianto: isso pode ajudar a dar
alguma clareza, mas não funciona com tanta eficácia. Há, além
disso, coisas a respeito da memória que podem ser grandes
vilãs em nossa tentativa de instalação em um eixo narrativo,
como, por exemplo, os esquecimentos e as obsessões.
Conforme progredimos na arte de narrar memórias, nos
aliviamos um pouco do peso do esquecimento, porque esta-
mos fazendo um registro, um esforço de lembrança. Quanto
às obsessões, muitas pessoas vivem assim, obcecadas; seja com
algum trauma, seja com alguém que falou alguma coisa ruim a
respeito delas. A vida contada na base de um trauma é a vida
de um sujeito sem memória. Ele não se lembra de que outras
coisas também lhe aconteceram, pois fixou sua memória em
um único evento passado: “Fui abandonado”, “Fui abusada” etc.
159 a imperatriz

A memória, se isolada, não serve para nada, é quase um


troféu. Algumas pessoas se acham superiores por se lembrarem
de coisas de quando eram bem pequenininhas. Francamente,
que diferença faz você se lembrar da cor da parede da casa da
sua avó, de quando você tinha três anos? Só em vidas vazias,
desprovidas de sentido, é que isso parece muita coisa.
É importante fazer um registro de memórias em algum mo-
mento da vida, porque elas serão combustível para nos integrar-
mos ao nosso eixo narrativo — mas só para isso. Isoladamente,
memórias servem de muito pouco (isso para não dizer que não
servem de nada).
O auto-retrato é um outro jeito de contar a própria história.
É como que uma foto sua, tirada no dia de hoje. Ele pode ser
cômico e/ou real. Vou lhe dar um exemplo: Graciliano Ramos
fez um auto-retrato, a que chamou “Auto-retrato aos 56 anos”.
Começa-o com informações básicas, como ano e local de nas-
cimento, sua altura, número do sapato, número do colarinho.
Segue elencando gostos e preferências pessoais: “Não gosta de
vizinhos. Detesta rádio, telefone e campainhas. (...) Odeia a
burguesia. Adora crianças. Romancistas brasileiros que mais
lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis,
Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.” Acres-
centa a isso outras informações e fatos. Finaliza dizendo que
espera morrer com 57 anos.
É cômico, porque, tendo-o escrito aos 56 anos, ele diz es-
perar “morrer com 57”. E apresenta detalhes completamente
desnecessários: colarinho 39, sapato 41, altura 1,75m... Tudo
isso seria muito útil, se lhe quiséssemos dar um presente, mas
dados tais não dizem muito sobre quem é ele. Eu rio toda vez
que leio esse texto, porque é de uma tremenda sutileza cômica.
Nesse auto-retrato, ou ele fala sobre coisas externas (“altura
1,75”, “sapato n.º 41”, “colarinho n.º 39”, “usa óculos”, “meio
calvo”, “só tem cinco ternos de roupa, estragados”) ou faz peri-
pécias. Diz que, “quando [foi] prefeito”, “soltava os presos para
construírem estradas”. Beleza, mas onde isso se encaixa? An-
tes ainda, ele fala: “Sua leitura predileta: a Bíblia”, mas logo
em seguida manda um “É ateu”. As idéias não se concatenam.
160

Seria como dizer: “Sou filho de Deus, mas me masturbo nas horas
vagas”, ou então “Sou filho de Deus e quero servir a boa Igreja,
mas gosto de fazer umas fofoquinhas, afinal ninguém é de ferro”.
Ora, Graciliano, então você soltava presos, mas tentemos
ser um pouquinho mais precisos. Por que raios você os soltava?
Quais pontos de sua história estão integrados, e quais estão
desconexos? Não é à toa que você, aos 56, escreveu que queria
morrer aos 57. Até eu desejaria morrer logo se, a essa idade,
não soubesse contar minha história, se tivesse um auto-retrato
fragmentado e sem argumento como esse.
Mas esse é o ponto mais alto a que as pessoas chegam hoje
quando se dispõem a contar sua própria história: a tentativa
de um auto-retrato. Provavelmente é como você começará, e
então verá que sua história ainda está muito fragmentada. Por
isso é que eu recomendo, em meus cursos, o diário de situação
— um diário de auto-retrato, que tende, contudo, a uma certa
integração.
Outro modo de contar uma história, não raro escolhido por
pessoas obsessivas, é a crônica, uma narrativa curta, cujos te-
mas são situações e fatos do cotidiano, muitos dos quais corri-
queiros. Há uma crônica genial de Machado de Assis, na qual
ele noticia a morte do sineiro João, que repicava os sinos da
Glória. Faz então, uma breve nota biográfica do falecido:

04 de novembro de 1897

Ouvi muita vez repicarem, ouvi dobrarem os sinos da Glória,


mas estava longe absolutamente de saber quem era o autor de
ambas as falas. Um dia cheguei a crer que andasse nisso eletri-
cidade. Esta força misteriosa há de acabar por entrar na igreja
e já entrou, creio eu, em forma de luz. O gás também já ali se
estabeleceu. A igreja é que vai abrindo a porta às novidades,
desde que a abriu a cantora de sociedade ou de teatro, para dar
aos solos a voz de soprano, quando nós a tínhamos trazida por
D. João VI, sem despir-lhe as calças. Conheci uma dessas vo-
zes, pessoa velha, pálida e desbarbada; cantando, parecia moça.
161 a imperatriz

O sineiro da Glória é que não era moço. Era um escravo,


doado em 1853 aquela igreja, com a condição de a servir dois
anos. Os dois anos acabaram em 1855, e o escravo ficou livre,
mas continuou o ofício. Contem bem os anos, quarenta e cin-
co, quase meio século, durante os quais este homem governou
uma torre. A torre era dele, dali regia a paróquia e contemplava
o mundo.
Em vão passavam as gerações, ele não passava. Chama-
va-se João: Noivos casavam, ele repicava as bodas; crianças
nasciam, ele repicava ao batizado; pais e mães morriam, ele
dobrava aos funerais. Acompanhou a história da cidade. Veio a
febre amarela, o cólera-mórbus, e João dobrando. Os partidos
subiam ou caíam, João dobrava ou repicava, sem saber deles.
Um dia começou a guerra do Paraguai, e durou cinco anos;
João repicava e dobrava, dobrava e repicava pelos mortos e pe-
las vitórias. Quando se decretou o ventre livre das escravas,
João é que repicou. Quando se fez a abolição completa, quem
repicou foi João. Um dia proclamou-se a República, João re-
picou por ela, e repicaria pelo Império, se o Império tornasse.
Não lhe atribuas inconsistência de opiniões; era o ofício.
João não sabia de mortos nem de vivos; a sua obrigação de
1853 era servir a Glória, tocando os sinos, e tocar os sinos,
para servir a Glória, alegremente ou tristemente, conforme a
ordem. Pode ser até que, na maioria dos casos, só viesse saber
do acontecimento depois do dobre ou do repique.
Pois foi esse homem que morreu esta semana, com oitenta
anos de idade. O menos que lhe podiam dar era um dobre de
finados, mas deram-lhe mais; a Irmandade do Sacramento foi
buscá-lo a casa do vigário Molina para a igreja, rezou-se-lhe
um responso e levaram-no para o cemitério, onde nunca ja-
mais tocará sino de nenhuma espécie; ao menos, que se ouça
deste mundo.18

Machado de Assis conta uma história, e não é qualquer


história, mas a de João, o sineiro da Glória, personagem com
quem convivia em seu dia-a-dia. Morador do Cosme Velho,
Machado estava sempre andando pelo Largo do Machado e
ouvindo os sinos da Glória repicarem nas bodas, nos batizados
e nos funerais.

18  ASSIS, Machado de. Crônicas Escolhidas. Seleção, introdução e notas de John
Gledson. São Paulo: Penguim, 2013.
162

Esse é o segundo modo de contar uma história, análogo


ao que se vê hoje no Instagram. Essa rede social serve, para a
maior parte das pessoas, como um caderno onde elas escrevem
pequenas memórias e crônicas do dia-a-dia, com óbvia pre-
ponderância de registros fotográficos e em vídeo. Ali, elas tam-
bém retratam seu sineiro João: ele é a academia, os livros lidos,
a comida fit, a sobremesa elaborada, o passeio com os amigos,
o look do dia, o penteado... “Estou comendo uma comidinha fit ex-
celente. Vocês deveriam experimentar, pois é fácil de fazer, não custa
muito caro e tem nutrientes.” Como os escritores de Instagram
não são o Machado, obviamente não se expressam tão bem
como ele; e, além disso, esses breves textos ainda não chegam a
ser um argumento vital: são recortes, impressões, fragmentos.
Não tenho nada contra o Instagram. Ele serve como um exer-
cício, como um treinamento para o instinto narrativo. Ao escre-
ver posts para o Instagram, você tenta contar uma história — e
as pessoas desorientadas desejam, em algum grau, conhecê-la.
Já vimos, então, que as memórias, os auto-retratos e as crô-
nicas não são as formas mais adequadas para que você construa
seu argumento vital. Vimos também que um diário ajuda bas-
tante. Mas a melhor maneira de narrar sua própria história é
por meio da autobiografia.
Há, obviamente, autobiografias boas e ruins — muitas de-
las, aliás, embora recebam esse nome, não são de fato autobio-
grafias, senão memórias ou crônicas. O que define uma boa e
legítima autobiografia é sua capacidade de captar o argumento
vital do biografado. Ao final da leitura, o leitor terá de ser ca-
paz de responder às perguntas: “Quem era essa pessoa? Para que
viveu? Em torno de que essa vida se articulou?”.
Se Napoleão Bonaparte tivesse escrito uma autobiografia e
apresentado como argumento vital sua pretensão de subjugar
a Europa e tornar-se imperador do mundo, teríamos ali uma
legítima autobiografia. Todos os atos dele giraram, de fato, em
torno desse argumento. E, bem, ele teve um argumento de vida.
Quem dirá o contrário?
Se você apresentar como seu argumento vital algo como:
“Serei um sujeito honesto e só falarei a verdade diante do observa-
163 a imperatriz

dor onisciente”, eu não poderei pensar senão que você é Santo


Agostinho, pois essa é a autobiografia dele.
Quem já leu as Confissões, há de lembrar que, nesse livro, o
bispo de Hipona conta seus crimes praticados desde o berço.
Sem mentiras, falseamentos ou lavagem de mãos, ele apresenta
uma história estranha, cheia de podres e falhas, mas maravi-
lhosamente articulada. Uma pessoa que não sabe o que é uma
vida poderá julgar que alguns elementos não cabem ali, mas
ela estará errada. A vida dele é realmente aquela, aquele é seu
argumento vital.
São quatro os argumentos possíveis ao homem, e apenas
três os decentes que lhe permitem concluir um dia e ver nele
algum sentido. Após viver alguns anos com um desses três ar-
gumentos, você será capaz de dar início a uma autobiografia.
No início, porém, o máximo que você conseguirá escrever será
um diário, pois verá sentido apenas em um ou outro dia.
Uma autobiografia, por outro lado, só se pode iniciar depois
de mil dias vividos com sentido, quando se tem uma persona-
lidade madura e viva, que torna possível contar uma história
coerente, de quem encontrou seu argumento vital, de quem
atrai, convence, muda a vida dos outros.

Vitimismo: a postura que ferra


com qualquer narrativa
Todo ser humano tem um desejo profundo de dizer “eu”, de vi-
ver e contar a própria história — e não a do vizinho, a da mãe, a
do personagem da novela. Esse desejo não deve ser entendido
como uma forma de egoísmo, pois é legítimo e necessário ao
amadurecimento.
Quando uma pessoa não sabe qual seu argumento vital, ela
não consegue dizer “eu”, não vive a própria vida e segue sendo
personagem secundário da vida dos outros. Ela se coloca na
periferia de si e da sua existência, quando deveria estar no cen-
tro. E a primeira e óbvia conseqüência disso é passar a achar
que todo o mundo lhe deve tudo.
164

Eis o diagnóstico da nossa geração: ela se sente injustiçada e


vitimizada. Vivemos em um mundo no qual impera o discurso
vitimista. Vá a uma universidade, seja ela pública ou particular:
todos ali acham que o mundo inteiro lhes deve tudo. O grande
movimento das minorias, inclusive, também se baseia na cren-
ça de que o Estado e a sociedade lhes devem tudo. Que tipo de
loucura é essa?
Sempre que transferimos a culpa para o outro — para os
pais, para o professor, para o Estado, para a sociedade, para
Deus, para o mau tempo, para o calor — comportamo-nos
praticamente como a criança que chuta a porta e exclama:
“Porta boba!”. E, o que é pior, abrimos mão da única potência
que temos neste mundo, que é a personalidade.
Sei que é muito mais confortável colocar a culpa no outro,
dizendo coisas como “não nasci em berço esplêndido”, “meus pais
não me davam atenção”, “estudei em escola pública”, “meu professor
é um carrasco”, “os cuidados da casa e com os filhos não me permitem
cuidar de mim mesma”, mas essa maneira de ver as coisas dá-
-nos somente um breve conforto psicológico. Para amadurecer,
é preciso abandonar o vitimismo, assumir as próprias culpas e
fracassos e tomar as rédeas da própria vida.
Olhe para sua história. Se você reclama o tempo todo, se
sente que o mundo lhe deve tudo o tempo todo, se acha que as
coisas que lhe acontecem são injustiças, se espera que o Estado,
a Prefeitura, seu pai ou seu patrão lhe resolvam todos os pro-
blemas, então você não tem um argumento vital.
Muitas das pessoas que procuram psicólogos, psiquiatras, con-
selheiros, sacerdotes e pastores, chegam até eles com a mesma re-
clamação: “Não sei o que fiz da minha vida. Perdi o controle, não sei
mais o que estou fazendo. Não vejo sentido em nada.” Quando per-
guntada sobre o que está acontecendo concretamente, a maioria
responde com uma narrativa predominantemente vitimista — e o
faz exatamente porque não tem um argumento vital.
É preciso, portanto, abandonar essa narrativa de vítima. De
que adianta reclamar e culpar os outros?
165 a imperatriz

Se não tivermos a responsabilidade com a nossa história, se


não refletirmos profundamente sobre a maneira como estamos
contando as coisas que nos acontecem, e se não tratarmos de
encontrar nosso eixo narrativo em primeira pessoa, abando-
naremos a nossa história. E assim fazendo, seremos sempre
infelizes e fracos. Ninguém poderá contar conosco, pois não
se pode contar com alguém que tem pena de si o tempo todo.
Enquanto continuarmos contando a nossa história de modo
vitimista, continuaremos a nos sentir à margem da ação huma-
na, à margem da conversa dos adultos. Em suma, seremos uns
verdadeiros fracotes. É isso o que você quer para si? É isso o
que você quer para seus pacientes e seus entes queridos?

As quatro narrativas
possíveis ao ser humano
Novamente o tamanho do mundo
Para entendermos o enquadramento das quatro narrativas pos-
síveis, voltaremos a um assunto do qual já tratei anteriormente:
o tamanho deste mundo no qual vivemos.
Muita gente entende este mundo como sendo meramente
material. Talvez você seja uma dessas pessoas — ou conheça
algumas dezenas delas. Elas pensam nas situações comuns de
seu cotidiano e enxergam ali apenas a materialidade das coisas.
“Quando vou almoçar, coloco comida no prato, pego os talheres, corto
a carne e como. Aquilo é comida, é matéria.” Tudo bem. Isso é uma
parte da realidade. Mas será que a realidade se limita a isso?
Não podemos ser triviais e vulgares quanto ao tamanho do
mundo, porque estamos diante de vidas. Atendemos pessoas em
consultório, lidamos com nossos amigos, com nossos filhos, com
nossos cônjuges, com nossos pares, com a nossa própria vida.
Imagine que tenho um charuto em minhas mãos agora. E
que estou prestes a acendê-lo com um isqueiro, mas isso ainda
166

não aconteceu. O charuto ainda não está queimado e o isqueiro


nem sequer está com a chama acesa.
Analisemos com calma essa operação.
Ao olhar para o isqueiro, capto, pelo sentido externo da vi-
são, a sua materialidade: seu tamanho, o material de que é feito,
sua cor etc., mas, como este não é o primeiro isqueiro que vejo
e utilizo, eu já sei como isqueiros funcionam, sei que eles têm
determinada função. É por conhecer essa função que, quase
automaticamente, pego qualquer isqueiro, aciono-o e acendo o
charuto, sem precisar ficar pensando em cada etapa do proces-
so. Mesmo que eu veja um isqueiro sem a chama acesa, sei que,
se o acionar, a chama se acenderá. Ora, a presença do isqueiro
não é somente sua materialidade, mas também a função que
ele exerce.
Quando quero entrar em algum cômodo, minha mão vai
direto à maçaneta para abrir a porta. A maçaneta não está gi-
rando ainda, mas há algo em mim que me permite olhar para
as coisas materiais e captar a essência, a natureza delas. Como
vimos anteriormente, ao tratar da lâmina do Mago, além de
sua “causa material”, uma maçaneta tem também uma “causa
final” (serve para abrir portas), uma “causa eficiente” (quem fez
a maçaneta) e uma “causa formal” (uma essência, algo que a faz
ser uma maçaneta e não outra coisa qualquer).
Um texto genial começa com a seguinte afirmação: o ente
e a essência são aquilo que o intelecto do homem concebe
em primeiro lugar19. Não captamos a materialidade das coi-
sas em primeiro lugar, porque a materialidade é somente uma
informação de que elas estão ali presentes e de que são algo.
Em outro lugar, São Tomás explica melhor como isso se dá:
“O intelecto humano não adquire imediatamente na primeira
apreensão um conhecimento perfeito da coisa, mas primeiro
apreende algo dela, por exemplo, a quididade (ou essência) da
própria coisa, que é o objeto primeiro e próprio do intelecto;

19  AQUINO, Santo Tomás de. O ente e a essência. Tradução de Mário Santiago de
Carvalho. Covilhã: LusoSofia, 2008. (Segundo o doutor angélico, Avicena teria dito
o mesmo no início da Metafísica.)
167 a imperatriz

depois intelige as propriedades, os acidentes e as referências


que acompanham a essência da coisa.”20
Pense em qualquer coisa material — um livro, um copo, um
celular, um isqueiro, uma mesa, uma parede. O que primeiro
captamos dessas coisas é sua essência, quer tenhamos consci-
ência disso ou não.21
O professor Olavo de Carvalho explica isso magistralmente
quando fala de um conceito seu chamado “círculo de latência”.
Círculo de latência é o conjunto de possibilidades de um ente.
Um pássaro não é apenas um bichinho alado dotado de bico e
coberto de penas. Um pássaro é também as suas possibilidades:
ele pode voar, pode se reproduzir, pode cantar, pode pousar em
um galho de árvore, pode se banhar nas águas de um riacho;
mas não pode latir, parir um esquilo ou escrever um livro.
Se você está andando no meio do mato e vê uma cobra-co-
ral logo à frente, seu primeiro movimento é afastar-se, não é
mesmo? Se a cobra fosse apenas um pedaço de carne coberto
de escamas, não haveria razão para você se afastar. A coral é,
portanto, aquele animal colorido rastejando no meio do mato;
mas é também a possibilidade de lhe picar e inocular uma

20  AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica, Questão 85, Artigo 5.
21  Então quer dizer que quando vejo, por exemplo, um poste na rua, eu imediata-
mente reconheço sua essência (ou quididade) e guardo esse conceito geral e abstrato
em uma realidade paralela, em um mundo das idéias? Não! Quando reconhecemos a
essência (ou quididade) de uma coisa material, o que apreendemos não é um conceito
geral que não tem correspondência alguma na realidade sensível. Se assim fosse, nós
teríamos uma dificuldade tremenda para abstrair o universal da matéria individual,
para reconhecer que aquela longa coluna de concreto é um poste e compartilha com
outros postes algumas características e possibilidades. Na realidade, não existe
uma
essência separada das circunstâncias concretas.
Ao ver um cachorro na rua, não abstraio dali uma mera idéia geral de cachorro,
separada da realidade concreta e individual; o que acontece é que eu percebo uma
“es-
sência” (nesse caso, uma cachorridade) naquele ente concreto e particular. Posso
apon-
tar para o animalzinho e dizer a meu filho: “Veja, filho, isto é um cachorro.” Ao
fazê-lo,
estarei dizendo que esse cachorrinho em particular compartilha com todos os outros
cachorros uma série de possibilidades; que ele tem uma “essência” que não é apenas
uma fórmula lógica, mas uma fórmula que faz parte da própria existência daquele cão
em particular — e de todos os outros cães; e que ele é o que é, e não é uma outra
coisa
(ou seja, não é um elefante, nem uma espada, nem um bicho de pelúcia).
168

peçonha neurotóxica que poderá levá-lo à morte em poucas


horas. Se não fosse isso, não seria uma cobra-coral.
Em suma, tudo quanto é, é aquela presença material ime-
diata somada a tudo aquilo que lhe é possível. Aquilo que é
material é mais do que material. Um copo, além de sua presença
física, é também a presença de sua função — e é por isso que
podemos utilizá-lo para beber. Se o copo não tivesse essa fun-
ção, então ele não seria um copo, mas outra coisa.
A realidade não pode ser apenas material; ela é tudo quanto
você está vendo que é, e tudo quanto poderia ser.

Como não contar a sua história:


a narrativa súdrica
Mas voltemos à sua história. Se você pretende contá-la, precisa
pensar no cenário no qual se desenvolverá a narrativa. Se não
conhecer os cenários possíveis, perderá de vista as várias vidas
que lhe são possíveis.
Para descobrir qual seu argumento vital, qual sua vocação
neste mundo, é fundamental conhecer os cenários possíveis
para a sua história. De que cenários estou falando? Você logo
verá.
Seu argumento vital será escrito em algum lugar, que é
onde sua história se desenrolará. Você quer que ela aconteça
no mundo material ou no mundo de significados espirituais?
Pensemos em quatro cenários possíveis. No esquema abai-
xo, cada cenário é representado por um dos quadrantes separa-
dos entre si por dois eixos perpendiculares, em forma de cruz.
O eixo vertical representa o mundo (material ou espiritual) e
o eixo horizontal, o tipo de olhar que a ele lançamos (objetivo
ou subjetivo).
Uma vida que tem como cenário o quadrante inferior es-
querdo, ou seja, o quadrante do mundo material e do olhar
subjetivo, é a vida daquele primeiro eixo narrativo imoral e in-
digno de que já falei. Para a pessoa que nele vive, o mundo não
169 a imperatriz

tem um valor objetivo, só importa como o mundo lhe afeta.


Todos os desejos que surgem quando você escolhe viver nesse
quadrante resumem-se a evitar o sofrimento e procurar o prazer.
Isso acontece porque, para esse sujeito, a consciência do
mundo material, em si, não é nada; é algo sempre em referência
a ele, é como aquilo o está afetando. E o mundo material não
tem solidez nem estabilidade, então tudo sempre vai afetá-lo
de modo diferente, a depender de um monte de fatores, de
modo que construir um ambiente estável para desenvolver sua
história se torna impossível.
Farei uma analogia com as castas hindus que, embora re-
presentem uma organização da sociedade indiana, podem ser
também compreendidas como possibilidades humanas, que
variam conforme as motivações centrais da vida de cada um.
Se as motivações centrais de um sujeito são o prazer, a diversão
e a auto satisfação, podemos dizer que ele é um sudra. Os su-
dras são massa de manobra, estão sempre acuados, com medo e
infelizes, deixando-se afetar pelo mundo.

Função
Presença
Fundo Espiritual

Olhar Olhar
objetivo subjetivo

Mundo material
170

Mas não façamos confusão: não é que os prazeres e a satis-


fação pessoal sejam coisas execráveis e o mundo material seja
ruim em si mesmo. O problema surge quando eles se tornam
a razão da vida de alguém, e o que vemos hoje é uma maioria
de pessoas cujas motivações principais são essas. Uma maio-
ria de sudras, entre ricos e pobres, letrados e iletrados, jovens
e velhos.
O eixo narrativo súdrico é o único indigno, pois o argu-
mento da vida de um sudra é evitar a dor e encontrar o prazer
neste mundo. E com “prazer” me refiro a uma série de coisas,
dentre as quais: querer que as pessoas falem bem de si, querer
comer coisas gostosas, querer dormir em boas camas, querer
ter sempre uma pessoa cheirosa ao seu lado... Como já vimos,
os prazeres não nos dão senão satisfações momentâneas —
eles não trazem felicidade —, e não há vida que escape com-
pletamente à dor e ao sofrimento. Logo, a aspiração do sudra
é irrealizável e ele jamais alcançará a felicidade.
Se você se identificou como um sudra, não se desespere.
Não é difícil sair desse quadrante, e o ajuste pode ser feito em
um dia. Basta reconhecer que seus objetivos principais são in-
dignos de um homem e decidir contar uma história diferente.
Você é um ser humano, dotado de intelecto, e portanto
plenamente capaz de deixar para trás a vida súdrica. Dar um
pouco de atenção a isso que expus aqui pode ser o suficiente
para entender que a “vida” centrada nos prazeres não é de fato
uma vida, mas um conjunto de reações orgânicas.

A narrativa dos vaixás


É possível, porém, que uma pessoa goste dos prazeres des-
te mundo, da boa comida, de uma casa bacana, de carrões,
e que veja isso a que chamei de “mundo espiritual” como
uma coisa muito distante, tudo isso sem, contudo, levar uma
vida indigna. É o caso daqueles que têm como cenário para
suas narrativas de vida o quadrante inferior esquerdo, o do
171 a imperatriz

mundo material sob um olhar objetivo. Nesse caso, trata-se


de uma vida decente e digna, uma vez que o indivíduo olha
para as coisas deste mundo objetivamente, com consciência
de que elas têm valor em si mesmas e não na medida em que
o afetam.
O desejo do sujeito que vive essa narrativa é o de prospe-
ridade. Ele deseja ter sucesso, riquezas, poder, ser eficiente,
adquirir muitas das coisas possíveis deste mundo, mas não
para mera satisfação pessoal. Seu objetivo é colocá-las tam-
bém à disposição dos outros, sua finalidade é servir.
Este segundo eixo narrativo é o eixo dos serviçais, dos
vaixás. Com serviçais não me refiro a profissões específicas
como garçom, doméstica, engraxate ou camareira. E com
vaixás não me refiro à casta dos comerciantes — lembre-se
de que estou fazendo uma analogia com as castas hindus.
Refiro-me, antes, a quem quer que tenha como motivação
principal de vida a prosperidade e dedique-se a servir os outros
e ser-lhes útil de alguma forma.
Se você olha para o mundo material objetivamente, se
está neste que é o eixo narrativo vaixá, só há um tipo de coi-
sa a ser feita. Comece por aprender a ser útil. Se você é um
arquiteto, organize a disposição arquitetônica dos projetos
que faz; se é um médico, cuide de seus pacientes; se é mãe
de família, cuide da casa e sirva sua família.
Se você está “colado” a este mundo, precisa aprender a
fazer alguma coisa direito. E não algo que lhe sirva apenas
para satisfação pessoal, mas que faça bem para outras pes-
soas. Só então é que a estabilidade deste mundo começará a
aparecer diante de seus olhos, e só então será possível com-
pletar um dia — pois o serviço tem um valor em si mesmo.
Todo vaixá deve se perguntar constantemente: “Como
vou servir as pessoas neste mundo?” Ao final de cada dia, se ti-
ver conseguido servir alguém com o seu trabalho, com o seu
amor, com o seu olhar, com o seu ouvido, com o seu ofício
ou com o seu engenho, ele poderá dizer (e dirá): “Tive um
dia completo. Meu dia fez sentido.”
172

Função
Presença
Fundo Espiritual

Olhar Olhar
objetivo subjetivo

VAIXÁS SUDRAS

Mundo material
Se, ao final do dia, ele não tiver conseguido servir ninguém,
ainda assim aquele dia terá feito sentido, porque o vaixá sabe
que está vivendo uma história possível. Ao final do dia, ele ao
menos terá sobre o que falar, seja de um sucesso, seja de uma
tragédia. Refletindo sobre as experiências bem ou mal sucedi-
das, terá meios para operar melhor no dia seguinte.
O problema de viver uma vida apegada ao mundo material é
que você pode confundi-la com a vida de um bicho. Pode pen-
sar: “Vou expandir território, fazer um ninho e cuidar dos filhotes.”
Isso é o que ursos e cães fazem.
“O sentido da minha vida é cuidar da minha família”, dizem
alguns. Certo, mas uma abelha também cuida da sua família.
Ao final da sua vida, você poderá fazer a terrível constatação
de que viveu como uma abelha, embora seja um ser humano.
(E, ainda assim, esse apetite meio animalesco já é melhor do
que o do sudra.)
Se, portanto, você vive no quadrante do olhar objetivo e do
mundo material, poderá tender a buscar as mesmas coisas que
um animal (expandir território, proteger a família e conseguir
alimento para si e para os seus, ou seja, a prosperidade de seu
173 a imperatriz

clã ou família). Mas é possível acrescentar algo de propriamen-


te humano ao seu serviço: orientá-lo ao desenvolvimento da
pessoalidade dos outros. Para tanto, é preciso ter sempre em
conta que você é um eu e que está lidando com outras pessoas
que, por sua vez, também têm seus eus.
A mãe que acha que está servindo muito bem um filho mi-
mando-o, está, na verdade, prestando-lhe um serviço anima-
lesco. Está transformando-o em um gatinho. Se sua ação ao
servir o filho não é orientada para que ele consiga falar “eu”, ela
não está fazendo um serviço humano, mas um serviço animal.
Animais também servem uns aos outros, mas com um serviço
que não orienta o outro a dizer “eu”.
Quando, por exemplo, recebi a sopa de minha irmã, eu me
senti amado e cuidado. Ela prestou um serviço orientado a um
tipo de pessoalização — fui conquistado com amor. Eis um ato
de serviço claramente humano.

As narrativas xátria e brâmane


Há, também, um outro cenário, no qual o serviço já é fronteiro
entre este mundo e o outro. Os olhos estão postos não só na
realidade deste mundo, mas na finalidade dele. Vê-se valor nas
coisas que se faz, e esse valor é subjetivo; ou seja, há um desejo
de ser justo, nobre, leal, honrado. Trata-se de uma subjetivida-
de espiritual e, por isso, estável, não volúvel como a subjetivi-
dade do materialista sudra.
Certa vez, quando eu era adolescente, em um dia ale-
gre, entrei em um ônibus lotado, com muita gente em pé, e
senti um delicioso cheiro de tutti-frutti. Lembro-me de ter
pensado: “Nossa, que cheiro bom de tutti-frutti!” Como ainda
avistei um assento vazio, pensei: “Este dia está tão bom, que
achei um lugar vazio em um ônibus cheio cheirando a tutti-
-frutti!”. Quando fui me sentar na cadeira, vi que ela estava
toda vomitada. Imediatamente aquele aroma de tutti-frutti
foi se convertendo em um odor azedo de vômito, e percebi
174

que esse era o cheiro que eu estava sentindo desde o início.


Então tive ânsia.
O que eu quis dizer com essa história é que, no seu mundo
afetivo, as coisas todas mudam. Nem sempre o cheiro de tutti-
-frutti é realmente de tutti-frutti.
O mundo material parece mudar conforme a nossa sensibilida-
de. Era bonito, fica feio; era cheiroso, fica fedido; era confortável,
fica desconfortável. Já reparou que, na hora de escolher seu sofá na
loja, eles são todos excelentes? É porque, tomado pela euforia de
montar uma casa nova, você acaba confundindo o bonito com o
confortável; mas, depois de chegar em casa e ter gastado dinheiro,
percebe que o modelo escolhido não era tão gostoso assim.
Já no mundo espiritual, as coisas são estáveis. Estamos fa-
lando de valores mais duradouros e menos suscetíveis a os-
cilações, tais como lealdade, honestidade, nobreza e justiça.
Há quem deseje articular sua vida em torno de valores tais
— esse também é um argumento. A vida de um sujeito que
está nesse quadrante se baseia em desenvolver seu argumento
dentro da dignidade. O sujeito é digno, pois encontrou um
princípio que o move. É o quadrante no qual, nas civilizações
tradicionais, se desenvolvia a nobreza.
Um rapaz do medievo poderia pensar: “Não me basta ter bens
aqui. Isso não faz sentido. Quero ser um cavaleiro, um nobre.” Ele
então se inscreveria na escola de cavalaria, onde seria testado e
treinado por cerca de dez anos, carregando armaduras e espa-
das para um cavaleiro. Ao cabo desse período, se tornaria ele
próprio um cavaleiro e iria para a guerra, sacrificando-se pelos
demais. Depois de dez anos desenvolvendo seu argumento vi-
tal, ele teria uma autobiografia: “O objetivo da minha vida é ser
leal, nobre, justo e digno.”
Como o vaixá, o homem que vive no quadrante subjetivo
imaterial também presta um serviço, mas não somente por sua
família, senão por uma família maior: a sua comunidade, a sua
pátria. E o serviço que presta é diferente. Neste quadrante, não
importa o que aconteça, pode-se dizer: “ Yo sé quién soy”. Em
tese, seria esse o argumento vital dos bombeiros e policiais:
oferecer a própria vida em prol dos outros (na maioria das ve-
175 a imperatriz

zes, completos desconhecidos). Contudo, hoje podemos nos


deparar com muitos policiais e bombeiros sudras ou xátrias,
pois nas sociedades atuais tudo anda misturado.
A realidade dos vaixás está muito distante daquela dos su-
dras. Se passar de sudra a vaixá não exige muito mais do que
um movimento da vontade, passar de sudra ou vaixá a xátria é
um salto tremendo — é saltar de um quadrante material para
um imaterial, transcendente. Está pensando em dar a vida por
alguém agora? Bem, se quiser tentar, mande brasa, mas se você
não estiver, por exemplo, na Academia das Agulhas Negras
ou no Corpo de Bombeiros, não tente fazê-lo. (Estou falando
sério. Essa é uma recomendação clínica.)
Um xátria faz o que faz mesmo que isso lhe traga mui-
tos prejuízos. Ele leva uma facada, perde o sossego, aceita que
todos falem mal de si, mas continua cumprindo seu dever
transcendente, vivendo por um ideal elevado.
Quem não consegue dar esmola ou fazer jejum, por exem-
plo, jamais poderá estar nesse quadrante. O xátria faz jejum e
dá esmola tranqüilamente, porque entende que essa é a pauta
de sua vida. Um sudra, porém, vê nessas práticas somente so-
frimento e dor (deixar de comer e esvaziar o bolso são, para ele,
coisas repulsivas). O serviço, a doação, a abstinência e o jejum
doem, e é por isso que o sudra os evita.
Se você olha para o pedinte na rua e pensa imediatamente
“Não dou esmola nem se me obrigarem”, então você é necessaria-
mente um sudra, alguém desprovido de argumento vital. Não
importam as desculpas que arranje para se justificar (“O sujeito
vai fumar maconha com o dinheiro que eu lhe der”, “Ele está contan-
do uma mentira para conseguir o que quer”, “Ele vai gastar tudo em
cachaça”). Meu amigo ou amiga, não é por isso que você não dá
esmola! Você não o faz simplesmente porque é mesquinho(a).
E a mesquinhez será sempre um espinho que o(a) impedirá de
sentir-se em paz e de ter boas relações com os outros.
Para o vaixá, a esmola também pode representar um pro-
blema, pois significa dar a um estranho um dinheiro que po-
deria servir para alimentar seus filhos ou proporcionar mais
conforto, prazer ou segurança para os seus.
176

Cabe lembrar que, embora aqueles que não praticam a es-


mola e o jejum com certeza não podem estar nos quadrantes
superiores, nem todos os que dão esmola e fazem jejum estão
nesses quadrantes. Ser um xátria também não significa abrir
mão de quaisquer prazeres e confortos deste mundo ou deixar
absolutamente de buscar o bem da própria família ou clã. O
que diferencia o xátria dos demais é ter como motivação princi-
pal, como argumento vital, esses ideais elevados que mencionei.
Se você quer saber o que é ser um xátria, leia uma obra
como a “Ilíada” de Homero, que está repleta deles: Diomedes,
Ulisses, Aquiles, Ájax, Heitor e tantos outros heróis homéricos
são xátrias.
A “Ilíada” nos mostra ainda como um xátria pode estar cer-
cado de bens materiais, privilégios e regalias, embora não seja
isso o que o define. Os lícios Glauco e Sarpédon, por exemplo,
têm clara consciência de que, se têm os privilégios que têm,
devem se empenhar com valentia e dignidade no cumprimento
de sua obrigação: “Por que somos ambos honrados na Lícia
com os primeiros lugares nas festas, assados e vinho sempre
abundante, e os do povo nos vêem como a deuses eternos? (...)
Por isso tudo nos cumpre ocupar na vanguarda dos Lícios o
posto de honra e estar sempre onde a luta exigir mais esforço,
para que possa dizer qualquer Lício de forte armadura: ‘(...)
É bem grande o vigor que demonstram, quando na frente dos
nossos guerreiros o imigo acometem.’”22
Em outro momento da epopéia, quando alguns soldados
gregos, antes mesmo de o combate ter terminado, começam a
pilhar os cadáveres dos adversários derrotados, o sábio ancião
Nestor brada que parem de o fazer, pois, para o guerreiro, o
dever deve vir em primeiro lugar: “Que ninguém se retarde
pilhando os espólios para levar às naus o quanto possa. Vamos,
primeiro, liquidar o inimigo. Depois, com calma, despiremos,
no plaino, os cadáveres jacentes.”23

22  HOMERO, Ilíada, XII, 310-321, tradução de Carlos Alberto Nunes.


23  HOMERO, Ilíada, VI, 66-71, tradução de Carlos Alberto Nunes.
177 a imperatriz

Este tipo de homem, regido por valores como a nobreza, a


dignidade, a justiça e a bravura, é o mais raro nos dias de hoje,
uma vez que a cultura, a educação e até mesmo as pregações es-
pirituais tiraram tais valores do alto da hierarquia, rebaixando-os
e colocando outros em seu lugar. Os xátrias são hoje, por incrível
que pareça, um tipo ainda mais incomum e desconhecido do que
aquele do quadrante superior esquerdo, o objetivo imaterial.

Função
Presença
Fundo Espiritual

BRÂMANES XÁTRIAS

Olhar Olhar
objetivo subjetivo

VAIXÁS SUDRAS

Mundo material

No quadrante superior esquerdo encontram-se aquelas pes-


soas que entendem que existem a nobreza, a verdade, a lealdade
e a justiça em si mesmas, embora não as tomem como motiva-
ções centrais de suas vidas. O argumento da vida desses sujei-
tos é entender as coisas. Eles desejam conhecer objetivamente a
Beleza, a Verdade e a Bondade. Eles têm vocação intelectual ou
sacerdotal. Dedicam-se, pois, a lançar um olhar objetivo para o
mundo espiritual. Na analogia com as castas hindus, seria este
o eixo narrativo dos brâmanes.
178

O argumento vital do brâmane é entender e explicar. Se não


for possível explicar, ao menos ele terá de entender, pois tem
uma inquietação que o leva a buscar sempre o que é belo, bom
e verdadeiro e a não ficar satisfeito enquanto não o conhece.

A não-narrativa dos párias


Existe, ainda, uma quinta possibilidade. É a dos coitadinhos, a
dos que não têm sequer um eixo narrativo; são aqueles a quem
chamamos párias. Eles não são os narradores de suas vidas,
nem sabem de onde vem a própria história.
Aonde quer que chegue um pária, ele queimará tudo; é um
lumpen. Mal podemos dizer que são loucos — embora os lou-
cos graves, que têm uma lesão na citoarquitetura cerebral, se-
jam todos párias.
O pária é aquele sujeito de quem você precisa cuidar. Não
dá para levar em consideração o que ele diz e tudo o que ele faz
é uma bagunça sem fim, porque não tem nada na cabeça. Se-
quer se pode dizer que ele faz as coisas por prazer ou conforto.
O Brasil é um lugar onde o número de párias está muito
alto. A taxa de pessoas que vivem de benefícios da previdência
social, afastadas por laudos de doença mental, é muito alta. São
brasileiros que não conseguem tomar conta da própria vida,
que vivem de pensão e precisam de alguém que lhes preste
cuidado, pois onde chegam, viram tudo do avesso.
Em uma sociedade normal, organizada, os párias estão na pe-
riferia, sendo cuidados ou pelo Estado, ou pelas igrejas, ou pelos
homens e mulheres caridosos e de boa vontade. Mendigos, em
geral, são párias, já que estão à margem da narrativa vital possí-
vel. Não são como os sudras, cuja vida pode até ser narrada com
base na busca pelo prazer (encontrar a felicidade sendo sudra é
que é impossível). O pária de fato não tem narrativa, não entende
o que está acontecendo, a vida dele é uma loucura.
No nosso tempo, porém, há muitos párias que, curiosamente,
são tomados como modelos e que ocupam cadeiras no parlamento.
179 a imperatriz

Quantos deputados e senadores não há que, tendo sido elei-


tos por uma base, ao tomar posse do cargo, começam a fazer
tudo ao contrário do que haviam prometido, porque em reali-
dade não têm a mínima idéia do que estão fazendo? Ao olhar para
a história de sujeitos como esses, vemos que nunca deram certo
em nada, destruíram tudo. Párias têm uma inconsistência bio-
gráfica do início ao fim. Uma sociedade organizada tradicional
daria a essa gente os cuidados de que precisam, mas, como
nossa sociedade é uma loucura, pessoas como Alexandre Frota
ocupam cadeiras no parlamento.
Um dia descreverão a história do nosso tempo com um tí-
tulo como “Os párias ilustres” — porque temos vários deles
hoje. É uma loucura, uma brutal falta de eixo central. Está tudo
desorganizado. As pessoas de boa vontade, os pais de família,
os professores, aqueles que levam uma vida normal, como não
têm esse conceito claro em mente, não entendem que a maio-
ria dos sujeitos que aparecem na T.V. não deveriam nem ser
ouvidos, porque suas biografias não têm pé nem cabeça. Eles
não têm de ser levados a sério, têm de ser cuidados.
Hoje temos párias dentro de casa, no Senado, na Câmara,
nas empresas... Isso é a total inversão da normalidade, de modo
que nossa visão começa a enlouquecer. Passamos a tomar por
normais certos tipos humanos (que existem e sempre existirão)
que só deveríamos conhecer por contraste e jamais deveríamos
querer imitá-los.
Certa vez uma pessoa me disse que queria ter o dinheiro
do Michael Jackson. Então eu lhe perguntei se ela queria ser o
Michael Jackson. Veja bem, não estou dizendo que o Michael
Jackson era um pária, mas a vida dele foi uma vida de soli-
dão, de abandono, de exploração, uma tristeza do início ao fim.
Eu sei que ele tem fama, que todo o mundo o conhece — tal-
vez tenha sido o artista mais famoso do mundo —, que ele foi
um sucesso do início ao fim da vida, que dançava e cantava
incrivelmente bem e que lançou vários hits de sucesso.
Porém, não se pode olhar para um aspecto isoladamente
e dizer “Eu queria somente ter o dinheiro do Michael Jackson.”
180

Não devemos querer ter o dinheiro dele, porque não podemos


querer ser como ele.
Não se confunda: nada na vida de um pária é desejável. Ele
pode ter dinheiro e ser mais bonito que você, mas — pelo amor
de Deus! — pare de admirar a biografia de um pária — do
contrário, por desejar o que é periférico nele, você acabará se
“transformando” nele. Lembre-se daquele que é um dos ver-
sos mais altos de toda a poética mundial: “Transforma-se o
amador na cousa amada”, de Luís de Camões. Aquele que ama
se transforma naquilo que ama. Se você ama a roupa, a posição
social, a aparência de um pária, você se “transformará”, de certa
forma, nesse pária.
A biografia desses atores hollywoodianos, ou mesmo bra-
sileiros, é uma das coisas mais tristes do mundo. Abandono,
traição, abusos, tentativas de suicídio, overdose, tristezas sem
fim. Isso não é um estereótipo, é o que é — e é muito grave.
Ainda assim, eles estão expostos o tempo todo, e são modelos
para a maior parte da população.
Outro exemplo é o de jogadores de futebol. Não conheço
tantos assim, mas sei que muitos deles têm uma vida triste e
solitária. Formam uma família atrás da outra, não pagam pen-
são para os filhos que têm... Isso é muito comum nesse meio.
Imagine: o menino pobre tinha uma vida normal e, de repen-
te, mergulha em rios de dinheiro, tem milhares de mulheres a
seus pés, viaja para Tóquio, para Paris, sua imagem está nos co-
merciais de T.V., nas revistas, nos outdoors... Parece tudo muito
legal, mas ele acaba perdendo o centro, seus valores e ideais;
afinal, uma bela mulher, um bom prato de comida, a fama e os
aplausos estão bem ao alcance dos olhos, ao passo que os valo-
res e os ideais estão mais longe, mais acima. Abandonar estes
por aqueles é muito fácil.
Jogadores têm dinheiro e fama, e você de fato se “transfor-
ma” um pouco neles ao desejar suas vidas, mas se transforma
apenas na parte ruim. É possível fazer algumas das coisas que
um jogador faz, porque basta fazer; é possível querer o que ele
quer, porque basta querer; mas isso não acontece com o que
181 a imperatriz

ele tem. Ninguém consegue dinheiro pela força de sua inveja,


então você terá de trabalhar, porque ele não lhe dará o que é
dele. Transforma-se, então, o amador na coisa amada — mas só
na parte ruim da coisa amada.
Você não será milionário como um jogador de futebol por
admirar um, nem ficará famoso como um artista por gostar
dele. Você não terá os glúteos da Anitta só porque os ficou
admirando. Já o conjunto de desejos e ideais da Anitta e de um
jogador de futebol, estes, sim, você acabará tendo. Mas é isso
mesmo o que você quer?
Se você é desses que fica acompanhando o Instagram da
fulana famosinha o dia todo, porque quer ser como ela, ter o
corpo dela, comprar as roupas dela, você se transformará na-
quilo que ela é, mas somente na parte ruim, sem os bônus que
ela tem. Se, por outro lado, você olha para uma pessoa ideal,
excelente, e quer se transformar naquilo que ela é — e não ter
aquilo que ela tem —, então você quer ser, e não ter, e esse é um
desejo genuíno e benéfico.
Parece clichê o que vou dizer, mas é um bom clichê: quan-
do você deseja ter o que a pessoa tem (materialmente falan-
do), você se transforma naquilo que ela é (sem ter o que ela
tem!), de modo que, idealmente, você deveria olhar para pes-
soas que são o que você quer ser, e não que têm o que você quer ter.
Não é pelo olhar que se conquista o que se quer.

É possível ter
mais de um argumento vital?
Há quem, não tendo ainda clareza quanto ao próprio argu-
mento vital, sinta que tem dois ou três argumentos dentro de
si. Há quem se sinta, por exemplo, simultaneamente brâmane
e xátria. Isso é de fato possível. Entretanto, é um problema.
Se você tem em si todos os argumentos, provavelmente os
tem desarticulados e, portanto, terá uma vida desequilibrada e
inclinada ao fracasso.
182

Pode ser que seu argumento vital seja conhecer a Beleza e


a Verdade e, ao mesmo tempo, expandir território para fazer
ninho e ganhar fama e notoriedade. Nesse caso, você é um
provável artista. Artistas são, de certo modo, desequilibrados,
porque têm em si duas motivações centrais.
O artista é alguém que tenta articular a vida em dois qua-
drantes. Não tenho a mínima idéia de como ele consegue fazer
isso. O que sei é que, para ter algum equilíbrio, é preciso esco-
lher um dos argumentos. Ou ele tira da cabeça essa loucura de
“a minha arte” e vai expandir território, ou esquece o território
e vai encontrar a Verdade das coisas.
O artista tem um segundo problema: ninguém o valoriza,
porque, provavelmente, ele não tem o talento e a genialidade
de um Shakespeare ou de um Villa Lobos, não irá descobrir a
verdade de muitas coisas e não será um grande intelectual nem
um gênio da humanidade. Muitos artistas acreditam que serão
os novos gênios da humanidade, que descobrirão tudo e ainda
ficarão ricos e famosos com isso. Mas, na maioria das vezes,
não é o que acontece. Pode até ser que sejam muito bons em
suas artes, mas o reconhecimento e o dinheiro não são conse-
qüências necessárias.
Raros são aqueles que conseguem desenvolver dois argu-
mentos — e raríssimos os que desenvolvem três. Buscar fama,
dinheiro, conhecimento e ainda ter disposição para a dignida-
de e a nobreza é para pouquíssimos homens, como o rei Sa-
lomão. Mas não recomendo a ninguém que comece pensando
na possibilidade de ser um novo rei Salomão. Recomendo, ao
invés, a escolha de um único argumento.

Como saber qual


o meu argumento vital?
Já falei algumas vezes que é preciso escolher seu argumento vi-
tal. E muitos devem estar se perguntando se é de fato possível
escolhê-lo, ou se seriam as circunstâncias ou algo muito maior
183 a imperatriz

do que nós mesmos o que nos daria esse argumento. Na ver-


dade, não há como ter certeza absoluta. Descobrir a própria
vocação e o próprio argumento é um processo complexo. Há
tanta confusão nesse campo, que você terá de escolher o que
lhe parece fazer mais sentido e tentar viver certo tempo nele.
Talvez sua primeira escolha seja ter sucesso, expandir terri-
tório e ter um ninho. Ser a abelha inferior já é melhor do que
ser um sudra: há bastante dignidade em cuidar da família, do
território e servir aos seus — ainda que com um serviço que
não é tão distintamente humano.
Se você escolher esse argumento e desenvolvê-lo por cer-
ca de cinco anos, terá aprendido a servir. E aprender a servir
bem é a base para ascender às castas superiores, a xátria e a
brâmane (a abraçar a vocação nobre ou a intelectual), pois elas
têm um elemento de serviço muito preponderante. Caso você
tenha realmente uma vocação intelectual ou à nobreza, já terá
cumprido os requisitos mais básicos.
Eu acredito que este é o caminho mais seguro. Pois um su-
dra que julga ter vocação intelectual não conseguirá nada se
começar por buscar as coisas mais altas. O sujeito que acha
que tem vocação intelectual e ainda não é capaz de comprar
as próprias cuecas, de pagar as próprias contas, de sacrificar
seu tempo e gastar seu dinheiro em favor de outra pessoa, não
tem vocação intelectual coisa nenhuma, pois ela está atrelada
ao serviço.
Escolha, portanto, um argumento vital que não seja o de um
sudra. Uma vez escolhido, desenvolva uma técnica para saber
se você está dentro dele, desempenhando-o ou não. Faça um
diário e, depois de dez anos, arrisque uma autobiografia.
Com dez anos de diário, você entenderá quais são os su-
cessos e as tragédias do seu argumento. Você poderá ter, por
exemplo, uma autobiografia com uma vocação intelectual frus-
trada, mas estará alegre dentro da sua frustração, porque você
tem um argumento vital e tem uma noção de qual ele é.
Recapitulando: o mundo não é só esta materialidade. Exis-
te o mundo da função, e sua história se desenvolve nele. Parta,
184

portanto, do princípio de que você não sabe contar sua história.


Comece com perguntas como: “Quem sou eu? Qual é a minha vida?”
Fiz questão de dividir os eixos narrativos em quatro qua-
drantes e mostrar as diferenças entre eles, porque é muito di-
fícil contar a própria vida sem ter uma noção dos possíveis
argumentos vitais. Eu sinceramente me pergunto como é que
psiquiatras, psicólogos, coaches, sacerdotes, diretores espirituais
etc., atendem gente sem ter esses conceitos na cabeça clara e
cristalinamente. Se não há eixo, não há núcleo no atendimento,
e a terapia tende a tornar-se um enxugar de gelo, um tapar de
buraco com peneira.
Sem esse conhecimento, uma pessoa com um pouco de ta-
lento fará de si, no máximo, um auto-retrato como o de Graci-
liano Ramos, repleto de peripécias e elementos desarticulados.
Uma autobiografia integrada é o ponto em que você deverá
chegar no devido tempo. Se você ainda não tem uma história
integrada não é possível escrevê-la agora.
Por isso, minha recomendação é que você comece escolhen-
do um dos três argumentos dignos e desenvolvendo sua vida
dentro dele, pacientemente, durante cinco anos. Não se afobe
para que tudo “dê certo” logo, pois só quem obtém resultados
rápidos são as abelhas e os sudras.
Saiba que, para o ser humano, ”dar certo” é ter a substância
da vida desenvolvida — e a substância da vida humana é a nar-
rativa, que, por sua vez, precisa de um argumento. E quando
você tem um argumento desenvolvido, você já deu certo, por-
que articulou tudo dentro de si.

Os cinco
tipos humanos
Vimos anteriormente que há vários argumentos vitais possí-
veis e que cada um se identifica por uma busca distinta: o eixo
brâmane busca sabedoria e conhecimento, o eixo xátria busca
honra e glória, o eixo vaixá busca prosperidade e o eixo sudra
185 a imperatriz

busca prazer e conforto. Agora introduziremos um novo ele-


mento na construção da narrativa da própria vida.
Um filme tem uma história, e essa história é encenada por
personagens com características intrínsecas. Assim como os
personagens estão em algum dos quatro eixos narrativos, eles
próprios também podem ser de tipos intrinsicamente diferentes.
Se você, por exemplo, é alguém que quer servir, esse é o seu
argumento, a estrada que você deve percorrer — mas quem será
você percorrendo essa estrada?
Na “Ética a Nicômaco”, Aristóteles nos fornece alguns tipos
de qualidades possíveis, as quais devemos desejar adquirir para
progredir.
O crítico literário canadense Northrop Frye escreveu um
livro chamado “Anatomia da Crítica”24, no qual transforma em
tipos humanos possíveis aquilo que Aristóteles fala ao descre-
ver o homem (e como ele pode ser feliz, o que se deve querer, o
que não se deve querer etc.). Abordaremos cada personagem-
-tipo, e descobriremos como nos converter de um em outro.

O tipo irônico
(e uma pergunta necessária)
O primeiro personagem possível é o tipo irônico. Ele está sem-
pre abaixo da situação. Ele não é um pária, até porque o pária é
uma das narrativas possíveis (e não um dos personagens possí-
veis, não confundam as duas coisas). O irônico é sempre o mais
burro da roda, aquele que não está entendendo nada.
É um tipo muito presente nos romances de Franz Kafka,
por exemplo. O personagem K., protagonista de “O Processo”,
é um tipo irônico: chegam a sua casa e o prendem, mas ele não
sabe por que está sendo preso, não sabe o que está acontecendo,
é um perdido.

24  FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução de Marcus de Martini.


São Paulo: É Realizações, 2014.
186

Preciso, agora, que você reflita sobre a sua posição. A par de


sua narrativa vital, pense nos ambientes que você frequenta (a
igreja, o clube, o trabalho, as casas de seus familiares) e pergun-
te-se sinceramente: “Estou entendendo o que está acontecendo com
a minha família? Estou à altura das coisas que estão acontecendo
na minha igreja? Estou mesmo habilitado a fazer o que faço no
meu trabalho?”
As igrejas são alguns dos lugares onde personagens irôni-
cos abundam. A maior parte dos sujeitos que têm religião não
entende nada do que está acontecendo ali: não sabe o que é
religião, não está interessado em saber quem é Deus, não per-
cebe qual é a autoridade real de seu pastor ou sacerdote, não se
pergunta o porquê de suas práticas religiosas...
Você, que tem uma religião, em que espera se transformar
ao cabo de dez anos?
Se você nunca se fez essa pergunta honestamente, e se não
consegue dar uma resposta honesta a ela, então não sabe o que
você está fazendo na sua religião. Se não sabe o resultado, o
efeito, o que esperar, a quem tem de obedecer, a quem tem
de agradecer, não faz idéia do que está fazendo. Constatá-lo é
desesperador, mas necessário.
“Sou bem frequente na minha igreja, inclusive inscrevi meus
filhos na escola bíblica dominical. Vou à igreja todo domingo e toda
quarta-feira para ouvir a Palavra e pregar o evangelho com a mi-
nha própria vida.” O que deveria acontecer com alguém que se
submete a essa rotina ao longo de dez anos? Você tem isso claro
em si? Em que você se transformará com essa prática? Muitas
pessoas simplesmente não sabem responder, porque não têm
noção do que estão fazendo — pertencem ao tipo irônico.
Por outro lado, dificilmente um tipo irônico estará na acade-
mia fazendo musculação. Lá, são mais comuns os personagens
dos tipos imitativo baixo e imitativo elevado. Não há persona-
gens irônicos na academia, porque todos (quase) sempre sabem
o que fazer por lá, sabem no que se transformarão — e é fá-
cil saber, porque os modelos exemplares (fortes, magros, ágeis
etc.) estão por ali mesmo, transitando pela própria academia.
187 a imperatriz

Na academia, você geralmente sabe aonde quer chegar, e


sabe claramente o que precisa fazer para chegar lá. Sabendo
como desejar seu objetivo, você pode ordenar sua ação para o
conquistar.
Já em outros ambientes, como uma igreja, será preciso um
pouco mais de honestidade. “Italo, vou à Missa todo domingo e
participo da Pastoral da Acolhida na minha paróquia.” Legal, mas
em quem você se transformará depois de dez anos frequentan-
do a igreja?
Uma primeira dificuldade está em que não temos mode-
los exemplares nas igrejas, porque o modelo exemplar de uma
religião é um santo — e dificilmente vemos santos andando
por aí. Há sim um santo ou outro, mas não estão presentes na
maioria das igrejas — e muitos deles não são sequer pessoas de
destaque.
Acaba, então, que um sem número de pessoas freqüenta as
igrejas sem saber que resultados alcançar nem como alcançá-
-los. Elas pertencem ao tipo irônico e, mais do que fracas, são
pessoas impotentes.
O que fazer para abandonar o tipo irônico e passar a um
tipo mais elevado? Em primeiro lugar, é preciso deixar de ser
um idiota. Uma boa receita é ler sobre algum assunto e acom-
panhar alguém que o domine. Pronto! Basta uma fagulha de
luz para iluminar o intelecto e fazer um tipo irônico passar ao
tipo seguinte, o imitativo baixo.

O tipo imitativo baixo


O segundo tipo de personagem possível dentro de uma narra-
tiva é o imitativo baixo. Ele já compreendeu mais ou menos a
situação em que está; não é, portanto, um completo impotente
— e não o é justamente porque entendeu a situação. Ele só não
entende direito como fazer e como agir, então segue por tentativa
e erro. Chama-se imitativo baixo, porque está abaixo da situa-
ção, embora já entenda como ela funciona.
188

Ainda no nosso exemplo da religião, o tipo imitativo baixo


já sabe o que quer se tornar na religião: um santo. Ele já sabe
aonde quer chegar, só não sabe bem o que fazer para chegar lá.
Em geral, nos ambientes que frequentamos, somos do tipo
imitativo baixo. Suponha que você tenha se casado recente-
mente. Você se casou porque tem um ideal na cabeça, um mo-
delo daquilo que quer ser como pai, marido etc., Mas como
você fará isso acontecer? Ou melhor: como você tem feito isso
acontecer? Aposto que está indo por tentativa e erro.
No trabalho, não é diferente. A maioria das pessoas reclama
do chefe, quando deveria reclamar de si, porque o fato de saber
o que precisa ser feito não quer dizer que saiba fazê-lo.
A única coisa que faculdade faz por você, genericamente
falando, é o elevar do tipo irônico ao imitativo baixo. Se antes
de você entrar no curso de Engenharia lhe jogassem em um
pátio de obras, você não teria idéia do que fazer, porque não
saberia sequer o que é, por exemplo, uma laje protendida (e, se
soubesse, então não saberia como a fazer).
Todo recém-formado sai da faculdade um tanto inseguro,
pensando: “Sei do que se trata, mas não sei muito bem como fazer
isso”. Eis um perfeito exemplo do tipo imitativo baixo, daquele
que já tem uma intelecção da coisa, sabe como ela deveria ser,
mas não tem idéia de como fazê-lo na prática. O recém-forma-
do, portanto, segue tentando (ora errando, ora acertando) com
muito esforço, pois ainda não domina a técnica. Precisa estar
sempre muito concentrado em tudo o que faz, pensando e cal-
culando cada passo; do contrário, só cometerá erros.
Acontece, porém, que muitas dessas pessoas de tipo imita-
tivo baixo, pelo simples fato de terem feito uma faculdade e de
serem as digníssimas portadoras de um diproma, julgam estar
no mesmo patamar daqueles que, de fato, têm o domínio de
certa arte ou técnica. É assim que o moleque que leu uns dois
ou três livros e assistiu a 60 horas/aula se mete a discutir com
o profissional experiente como se estivesse dialogando com um
coleguinha. Essas pessoas não raro são as que mais desprezam e
censuram os outros: o fracasso lhes sobe à cabeça.
189 a imperatriz

Vou dar um exemplo que o professor Luiz Gonzaga de


Carvalho Neto deu em uma de suas aulas. Imagine a seguinte
situação: você é a pessoa mais religiosa e mais cristã do mundo
e não mente jamais, porque sabe que mentir é pecado. E você
também mora na Alemanha nazista e tem vizinhos judeus,
com quem cresceu, brincou etc., são seus amigos, então você os
escondeu em um quartinho no sótão da sua casa. Eis que um
policial nazista lhe bate à porta e pergunta: “Há judeus nesta
residência?”
Você, como um cristão exemplar, como uma pessoa moral,
que não mente nunca porque mentir é pecado e pecado leva ao
inferno, o que faria nessa situação? O policial lhe fez uma per-
gunta objetiva: você esconde judeus na sua casa? Sim ou não?
Essa questão não está aberta a discussão e você obvia-
mente falaria: “Não. Não há judeu nenhum na minha casa. Pode
olhar! Você está louco, acha que vou esconder judeus aqui? Eu sou
alemão!”, e poderia inclusive fazer um teatro, uma reverência
nazista para o policial.
Isso não seria uma mentira, um tipo de relativismo moral.
Não o seria, porque o policial nazista não está realmente lhe
perguntando se você esconde judeus na sua casa. A pergunta
do policial nazista é: “Você vai me ajudar a cooperar com a prisão
e o assassinato de judeus inocentes?”. Essa é a pergunta que ele de
fato lhe fez, então você pode responder “Não.” sem risco para
sua alma.
Isso é o caso concreto, é entender o que de fato está acon-
tecendo, é o que dá vida àquela realidade bidimensional e
chapada do livro que você leu na faculdade. Mas um imitati-
vo baixo, que se prende à letra da lei e não sabe aplicá-la aos
casos concretos, facilmente censuraria aquele que “mentiu”
para o policial. Ele lhe diria: “Você deveria ter dito a verdade e
contado onde estavam os judeus que escondeu. Assim você poderia
ir para o céu.”
É por essa razão que sacerdotes de tipo imitativo baixo te-
rão muita dificuldade em exercer seu sacerdócio. Como é que
orientarão seus fiéis, suas ovelhas, sendo imitativos baixos? Eles
190

retiraram a tríplice-tiara, estão presos ao livro, portanto não


têm nenhuma capacidade de conexão com a transcendência.

O tipo imitativo elevado


(e ainda o ócio e o negócio)
Existe, ainda, o tipo imitativo elevado, que é outro personagem
possível. O imitativo elevado não apenas conhece algo pelos li-
vros, como também tem um domínio da sua vontade. Ele sabe
pegar o que leu e, com sua vontade, reunir ferramentas para
atuar de modo a dominar as situações nas quais está situado.
O irônico não entende nada do que está acontecendo, por-
que está abaixo da situação; o imitativo baixo leu ou ouviu
alguma coisa sobre o assunto e sabe do que se trata, mas não
sabe fazer e julga todo o mundo que faz, porque não consegue
entender que a realidade prática nunca é perfeitamente igual
ao que está no livro.
O imitativo elevado, por outro lado, entendeu a dinâmica da
vida, entendeu que existem dois lugares nos quais sua vida se
desenvolve, e que ambos precisam ser cuidados.
O primeiro desses lugares se chama negócio (negotium) e re-
presenta as coisas que você faz para se sustentar e as ferramen-
tas que você reúne dia após dia para trabalhar bem. “Negócio”,
nesse sentido, não é uma franquia da Cacau Show, mas o que
você faz na sua vida prática.
Dominando sua vida prática, você sai do imitativo baixo e
vai para o imitativo elevado. Mas comece por baixo: não parta
do princípio de que você já é um imitativo elevado, porque,
ainda que o seja, achar que é o imitativo baixo é melhor para
você no início.
Instale-se, portanto, no seu negócio por cinco anos, seja você
fotógrafo, contador, mãe de família, engenheiro ou funcionário
público. Domine o seu negócio, transforme aquilo que o seu
intelecto um dia aprendeu na faculdade em operação prática
da sua vontade, do seu engenho, da sua arte. Fique por cinco
191 a imperatriz

anos trabalhando naquilo, sem reclamar, sem querer mudar de


lugar. Sua vontade será progressivamente dominada por tudo
aquilo que você viu, porque você sabe fazer coisas, então você
quer fazê-las.
Suponhamos que você seja um contador. Escolha um argu-
mento vital qualquer, como o do serviço, por exemplo. O argu-
mento é serviço, o ambiente é o escritório de contabilidade, o per-
sonagem é imitativo baixo querendo se tornar imitativo elevado.
Para ascender na escala, você deverá servir (argumento),
dentro do seu escritório de contabilidade (lugar), por cinco
anos, transformando-se assim em uma pessoa excelente (imi-
tativo elevado).
Assim você vai transformando sua incontinência em con-
tinência. Você contém aquele ofício, e aquele ofício o contém.
É assim que se sai de um imitativo baixo para o imitativo ele-
vado, não há outro jeito. Não é com operação mental, não é o
“basta querer” de alguns coaches. É trabalhando, dia após dia,
durante cinco anos, sem mudar de lugar.
Acontece que, ao se tornar adulta, a pessoa perde a capacida-
de de fazer coisas iguais por muito tempo. Durante a vida toda
você foi ao colégio todos os dias, até que, do nada, você vira
adulto e não faz mais isso, então perde-se mesmo um pouco da
capacidade de perseverança. Se isso acontecer, volte, restabele-
ça-se no seu lugar anterior, pratique seu ofício e vá cuidar do
seu negócio, que é o primeiro lugar de que falavam os romanos.
O segundo lugar, igualmente necessário para se tornar um
imitativo elevado, é o ócio.
Existem dois lugares na vida de todo o mundo: um de ócio
e um de negócio. Você tem de cuidar dos dois igualmente, por
cinco anos, muito bem cuidados, do contrário você nunca se
tornará o imitativo elevado.
Já sabemos que o negócio é o domínio da técnica do seu
ofício. E quanto ao ócio? “Italo, esse eu domino que é uma bele-
za, deito na rede com os pés para cima e f ico só no ócio”. Bem, esse
é mesmo um tipo de ócio.
192

O ócio é o que determina aquilo que você é. Se o seu ócio é


descansar, você não se tornará um imitativo elevado, mas ape-
nas uma pessoa descansada. Fazer uma outra coisa que não
aquela que você faz quando está no seu negócio já é descansar.
Não estou dizendo que você nunca precisa descansar, mas
você já descansa de seis a oito horas por dia quando vai dor-
mir. Você quer descansar acordado também, é isso?
“Italo, mas eu f ico muito cansado”. Ora, então durma dez
horas por noite, pare de ficar olhando o Instagram e vá dor-
mir. No tempo em que está ocioso, você não está descansan-
do, está moldando a sua vida para um certo lugar.
Pegue um dos quatro argumentos vitais válidos, de que
falei anteriormente e descubra qual é o seu lugar, qual é a sua
ambiência no trabalho, na família etc., e desenvolva seu per-
sonagem imitativo baixo ou imitativo elevado.
Certa vez, quando perguntei a alguns alunos qual era
seu eixo vital, um deles respondeu: “Sou um filho de Deus”.
Legal, mas isso não é argumento. E se você gosta da sua re-
ligião e realmente ama a Deus, então aproveite seu ócio para
rezar, fazer jejuns, dar esmolas, ir à igreja com maior freqüên-
cia, ler os textos sagrados e estudar coisas relacionadas a sua
religião. Se o seu ócio se resume a fazer nada e ir à Missa aos
domingos, então você não quer realmente ser religioso.

Os tipos romanesco e mítico


(e o arranjo de tudo)
Até então, vimos os tipos irônico, imitativo baixo e imitativo
elevado, mas existe também o tipo romanesco, ou lendário. É o
cara tão, mas tão bizarro, que parece ter uma assistência divina.
O intelecto desse sujeito já viu, sua vontade já foi con-
formada e ele tem tanto domínio do que faz que mal pre-
cisa olhar o próprio trabalho. Ele tem a posição e o olhar
do Mago da primeira lâmina do Tarô, aquela atenção quase
desatenta, em que trabalho e jogo se identificam.
193 a imperatriz

Na vida do tipo romanesco, o ócio e o negócio existem de


modo tão ordenado e bem cuidado, que ele domina aquilo que,
no linguajar técnico-filosófico grego, chamamos “paixões”.
Hoje, nos acostumamos a ligar paixão a amor romântico. Sob
certo aspecto, é um empréstimo de significado muito pre-
ciso, porque dizer que está apaixonado por alguém é dizer
que tudo em você se ordena a esse alguém: sua cabeça, sua
vontade, seu corpo. Você está todo dominado por aquele
alguém.
No relacionamento entre pessoas, a paixão não necessaria-
mente está ordenada pelo intelecto e pela vontade. É possível
estar apaixonado apenas com o seu corpo, com a sua “vontade
inferior”, sua paixão. No tipo romanesco, é outro caminho:
o intelecto viu, a vontade quis e fez, e a paixão foi englobada.
Jogo e trabalho, ócio e negócio, estão perfeitamente fundidos.
Se por anos você for um imitativo elevado, cuidar do seu
ócio e do seu negócio, você poderá se tornar um tipo roma-
nesco, de tal modo que os seres humanos normais o olharão e
dirão “Deve ser um E.T, parece que veio de outra galáxia”. Esse
é um tipo humano possível, mas não é “pra já”, não. A grande
maldade do nosso tempo é que a maior parte das pessoas são
imitativas baixas e querem passar imediatamente a romanes-
cas; ou pior, são irônicas e querem passar imediatamente a
romanescas, pulando o imitativo elevado.
Veja o seguinte esquema:

Imitativo Imitativo
Irônico Romanesco
baixo elevado

Paixão Desordenada Desordenada Desordenada Ordenada

Vontade Desordenada Desordenada Ordenada Ordenada

Intelecto Desordenado Ordenado Ordenado Ordenado


194

No tipo irônico, a paixão, a vontade e o intelecto estão de-


sordenados; ele não sabe seus ideais. No tipo imitativo baixo,
paixão e vontade estão desordenados, mas o intelecto está or-
denado. No imitativo elevado, a paixão está desordenada, o su-
jeito ainda não é um só com aquilo, mas a vontade e o intelecto
estão ordenados.
Apenas para completar a explicação, existe um último tipo
de personagem, que é o mítico. Ele não nos importa muito.
O mítico é aquele que já “veio pronto”, como uma espécie de
semi-deus. Ele vence tudo, entende tudo, acerta tudo desde
sempre. É alguém como o Padre Pio, por exemplo, muito fora
da nossa realidade.
Eis a nossa história: argumento (um dos quatro possíveis),
lugar (onde você está) e progressão dos personagens. Se você
está aqui lendo este livro já não é do tipo irônico, porque re-
cebeu uma luz e entendeu que há mais coisas entre o céu e a
terra do que supõe a nossa vã filosofia. Mas provavelmente é
do tipo imitativo baixo, de modo que recomendo que estude,
leia atentamente e procure pessoas que tenham conhecimento
e experiência no assunto que você estuda.
Entenda ainda que sua vida se dá em dois lugares interiores,
negócio e ócio, que terão ambos de ser cuidados. Não adianta
trabalhar bem e não fazer nada no ócio. Existe já um momento
em que não fazemos nada mesmo, e ele chama-se sono. Mas
não confunda ócio com descanso: não viva uma vida de so-
nâmbulo, de quem mal nota a vida acontecendo.
Quando você resume seu ócio a dormir, tem uma vida de
“sonhos”, sem substância real. Já quando você trata do seu ócio
e do seu negócio por anos, você evolui do imitativo baixo para
o imitativo elevado. E depois de passar anos operando no imi-
tativo elevado, você se torna o tipo romanesco: converte-se no
Mago da primeira lâmina do Tarô, para quem o trabalho flui
como um jogo.
Ora, a primeira lâmina do Tarô é o caminho, a segunda é
a verdade e a terceira é a vida. Quando o ternário da paixão,
inteligência e vontade estão ordenados em você, fecha-se então
essa primeira trinca do Tarô.
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
197

A mentira cientificista

M
uitos esperam de mim, como médico que se dispôs
a ensinar Psicologia, uma abordagem majoritaria-
mente cientificista. Esperam que eu trate de temas
da neurociência, que fale de neurotransmissores, que recomen-
de artigos científicos de publicações internacionais e aborde
linhas terapêuticas validadas por estudos científicos contem-
porâneos. Na cabeça dessas pessoas está o seguinte juízo: só
há validade naquilo que tem comprovação científica. Ao que não
tem comprovação científica dariam um rótulo como macumba,
magia, esoterismo ou pseudociência.
Eu poderia perfeitamente encher as notas de rodapé deste
livro de indicações de artigos científicos. Porém, não o fiz e o
porquê disso precisa ser esclarecido.
Qualquer pessoa que trabalhe em laboratório, ou que te-
nha passado por um mestrado ou doutorado, sabe que existe
198

certo rigor acadêmico para o tratamento de algumas questões.


Isso faz com que ditas questões aparentem ser mais confiáveis,
sólidas, quando tratadas pelo método científico contemporâ-
neo. Darei um exemplo.
Se alguém pretende, suponhamos, tratar pessoas com fo-
bia, então esse alguém deve verificar os métodos disponíveis,
escolher um deles (e provavelmente será um antigo, da década
de 50, oriundo da Terapia Cognitivo-Comportamental, como o da
dessensibilização sistemática) e aplicá-lo a certo número de pa-
cientes relevantes, dando um tratamento estatístico para aque-
le experimento, de modo que ele tenha uma validade científica
e, a depender do resultado, possa-se dizer que o método tem
condições de ser replicado e que tem um intervalo de confiança
ideal, sendo, portanto, eficaz (ou ineficaz).
É mais ou menos assim que as coisas funcionam na Ciên-
cia Contemporânea — e é exatamente assim que elas devem
funcionar. A Ciência Contemporânea é muito útil e não a po-
demos desprezar.
O problema surge quando o cientista contemporâneo ou o
clínico — como também a mãe, o pai, o esposo ou mesmo a
pessoa que está lidando com a própria vida — tem apenas e
tão somente os recursos da Ciência Contemporânea na cabeça.
Atualmente, o cientista contemporâneo elabora uma per-
gunta dentro de um recorte da realidade e a submete a respos-
tas que, em geral, são validadas em experimentos — tudo isso
sem investigar a fundo a origem da pergunta, sem investigar
de onde vêm os métodos, sem investigar aonde se quer chegar
com aquilo tudo.
Voltemos ao exemplo da fobia. Imagine um paciente com
aracnofobia, ou seja, com medo de aranhas. Esse paciente será
submetido a um processo de dessensibilização sistemática para
deixar de ter tal medo — e há vários outros métodos excelentes
da Terapia Cognitivo-Comportamental que podem ser utili-
zados num setting terapêutico para essa finalidade, mas é só isso.
A Ciência Contemporânea quer saber apenas qual é o
melhor e mais rápido método para que um sujeito perca seu
medo, seja ele de aranhas, de agulhas, de aviões ou de palhaços.
199 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

E ela responderá o mais rápido possível. Se você busca somente


isso, não há problema algum. No entanto, ela jamais conseguirá
lhe responder a perguntas como estas: Por que existem ara-
nhas? Qual é a relação de um sujeito com as aranhas? Por que
o medo de aranhas deixa a vida disfuncional? O que se perde
ou ganha com o medo de aranhas?
Esse exemplo do medo de aranhas pode ainda estar muito
distante, mas basta substituí-lo por um mais próximo, como o
medo de aviões (ptesiofobia). Para quem costuma viajar a tra-
balho, a ptesiofobia é um grande empecilho, e a Terapia Cog-
nitivo-Comportamental possui métodos eficazes e validados
cientificamente para tratar o problema.
Há mesmo questões que devem ser abordadas assim, sem
qualquer pergunta de fundo. Isso, porque são algo secundário
na vida das pessoas. Para quem não viaja tanto assim de avião,
tampouco vive em ambientes em que há muitas aranhas, essas
fobias são disfuncionais, mas apenas sob certo aspecto.
Os métodos científicos contemporâneos, sobretudo em Psi-
cologia, são perfeitamente capazes de abordar questões perifé-
ricas da vida, como uma aracnofobia ou uma ptesiofobia. No
entanto, são insuficientes quando se trata de questões centrais.
A primeira dessas questões centrais não abordadas pelos
métodos científicos contemporâneos é o seu olhar para o mun-
do, e aqui recorro àqueles versos do poema Paixão, de Adélia
Prado, os quais não me canso de repetir:
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.

Faço um empréstimo desses versos para descrever a Ciên-


cia Contemporânea, que tira toda a poesia da vida e pretende
olhar a pedra e investigá-la sob certos aspectos: de que miné-
rio(s) é feita, qual o seu peso, qual o seu volume. A Ciência
Contemporânea dá respostas muito precisas sobre tais realida-
des. Afinal, é para isso que serve: recortar a realidade, isolar um
aspecto — em regra, limitado ao material — e dar respostas
precisas sobre ele.
200

A Ciência Contemporânea jamais perguntará à pedra, co-


nosco e com a Adélia Prado: Você é presença de quê? Por que
você aparece mil vezes na mitologia grega, na constituição do
mundo, nos versos dos poetas? Por que nós a evocamos a todo
tempo, pedra? Você é símbolo de quê? É presença de quê?
A pedra — como qualquer coisa que é e nunca deixará de
ser — não nos aparece apenas em sua materialidade. Ela não se
limita a sua causa material. Ela é também a presença de algo.
Enquanto a realidade não lhe obrigar a declarar isso, você não
entrará na vida real, mas estará limitado às aparências. O lugar
onde você está neste mundo é lugar de presença — entenda isso
de modo poético.
Adélia Prado nos ajuda muito quando faz poesia sobre a
crise da percepção. Naqueles versos do poema Paixão, é como
se ela olhasse para as coisas e dissesse: “Às vezes Deus me tira a
poesia. Eu olho para uma pedra e não vejo mais o verbo. Eu a olho e
vejo bauxita, ametista, pirita... Meu olhar é incapaz de descobrir o
véu da matéria.” O pensamento cientificista faz algo semelhan-
te conosco: impede-nos de ver as coisas que se escondem sob
o véu da matéria.
Se eu fizesse aqui uma revisão bibliográfica, comentando os
mais recentes artigos científicos do PubMed, as metanálises,
os estudos duplos-cegos, randomizados, eu estaria cumprindo
a profecia da Adélia Prado e, com isso, tiraria o último fio de
esperança da poesia que existe no coração de cada um. Eu não
estaria cumprindo a minha função, que é, de certo modo, pro-
porcionar uma abertura poética.
Você pode estar se perguntando: mas precisamos ter poesia
na vida para quê?
Não falo da poesia dos poetas, mas da poesia do coração do
homem vulgar, que somos eu e você. Não somos Shakespeare,
nem Dante, nem Camões, nem Baudelaire, nem Yeats; somos
homens da máquina, do campo, do computador, da cozinha,
somos homens que se acham entre coisas e outras coisas, e
nada mais.
201 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

Para entender a Psicologia Contemporânea, é preciso en-


tender — além das lâminas do Tarô, como já vimos anterior-
mente — também um pouco de mitologia grega. Seus pais
fundadores não se basearam em artigos científicos, mas em mi-
tos. A Psicanálise freudiana é desenvolvida com base no mito
fundacional de Édipo, e a Psicologia junguiana tem como fun-
damento os arquétipos, que evocam muitos mitos (inclusive de
diferentes civilizações). E os mitos são uma narrativa poética
da vida, assim como o Tarô. Por essa razão, dedico este capítulo
aos mitos gregos.

O simbolismo mitológico
na teogonia grega e seu
fundo psicológico
Quando olho para uma pedra, penso em algo estático, presen-
te, estável. A pedra não tem uma narrativa, não tem um drama.
É um factum, não um faciendum.
O mito grego, ao contrário, é um faciendum, é um gerúndio.
O mito conta uma história, e essa história é um verbo no ge-
rúndio, pois expressa algo que corre, como a minha vida e a sua.
Essa foi a grande sacada de Ortega y Gasset. Foi ele quem
disse que a grande virada de chave acontece quando descobri-
mos que nossa vida não é um verbo estático, mas uma narrati-
va, um faciendum, algo que está acontecendo. “A vida é um ge-
rúndio e não um particípio: um faciendum e não um factum.”25
E os mitos servem justamente para entendermos melhor nossa
vida acontecendo.
Toda Psicologia que se preste a ir ao fundo da questão, em
vez de olhar para o homem como para uma pedra, volta-se
para os mitos, porque eles — sobretudo os gregos — são a

25  GASSET, J. O. História como sistema. Tradução de J. A. G. Sobrinho & E. H. C.


Costa. Brasília: UnB, 1982.
202

Ciência Psicológica por excelência. Quando você olha para um


mito grego, ele ilumina os seus movimentos e você se entende
melhor. Ele não o livrará da sua aracnofobia ou da sua ptesio-
fobia, porque não é essa a função deles. Se, porém, você quiser
entender certos movimentos da sua alma, o mito é a ferramen-
ta para isso.
Na escola, aprendemos mitologia como uma história quase
infantil, que os gregos utilizavam para explicar certos movi-
mentos da natureza, no estilo “Ah, como não tinham a ciência
da meteorologia e não conheciam os movimentos das marés, os gre-
gos colocavam tudo na conta de Poseidon.” Isso não poderia estar
mais distante da realidade.
Esse já é um pensamento cientificista, que levou muitos a
acreditarem que a única realidade relevante do mundo é aquela
passível de abordagem pela Ciência Contemporânea, como as
leis da meteorologia. E, pior, não só os alunos, mas também
os professores que explicam dessa forma (praticamente todos)
passam a vida inteira sem jamais saber que, na verdade, existem
movimentos psicológicos muito profundos que explicam a ra-
zão de ser de divindades marinhas como Poseidon.
A teogonia grega, ou seja, a explicação grega para a origem
do cosmos, dos deuses e dos homens é riquíssima. O mito cos-
mogônico grego não é um conto da carochinha. Não é que os
gregos, desconhecendo a teoria cosmológica do Big Bang, in-
ventaram uma historinha em que Gaia (Terra), uma das divin-
dades primordiais e originárias, gerou Urano (Céu) e uniu-se
a ele, gerando os doze titãs. Eles estão, na verdade, falando que
existem dois princípios no ser humano, um material e outro
imaterial.
Ninguém é louco de dizer que não somos compostos de
matéria, porque temos carne e osso; mas todo ser humano (até
mesmo o pouco sensível) nota que há algumas coisas em nós
que não são exatamente carne e osso. Peguemos como exem-
plo a vontade de comer. A fome está relacionada à matéria,
ao estômago, mas, às vezes, mesmo depois de comer, surge
em nós um processo que não tem muito a ver com matéria.
203 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

Não estamos mais com fome, nossa barriga já não dói, enfim,
já comemos... Mas ainda queremos comer. É a tal “vontade de
comer”.
Outro exemplo: quem nunca, em algum momento da vida,
teve vontade de ser bom, de ser justo, de ser fiel, de fazer o
certo, de ensinar alguém, de aprender? Nenhuma dessas coisas
acontece na matéria. Neste presente momento, em que lê este
livro, em que busca aprender, você está contrariando um prin-
cípio de Gaia na Teogonia.
Para os gregos, no início havia uma primeira terra — sel-
vagem, cheia de erupções vulcânicas, regida pela força bruta
da natureza material e ainda não havia vida. Esse é o reino de
Gaia, constituído por um princípio de matéria natural selva-
gem. Quando sente vontade de aprender, você contraria esse
princípio material, que preferiria que você estivesse dormindo,
comendo ou fazendo qualquer outra coisa mais propriamente
material. Quando estamos fazendo algo chato, mas importan-
te, e bate aquele cansaço, aquela vontade de jogar tudo para
os ares e descansar, está agindo em nós esse mesmo princípio
bruto da matéria.
Assim sendo, é claro que deve existir um outro princípio,
que rege essas outras vontades imateriais; um princípio espiri-
tual. Não entenda “espiritual” no sentido religioso. Não estou
falando de Deus, estou falando de você. Existe, em você, um
movimento que não é bem da matéria, mas vem de outro lugar.
Ora, no princípio da Teogonia grega, conforme a versão que
nos deixou Hesíodo, primeiro havia o Caos, ou seja, o que pri-
meiro havia é um grande mistério, que está além da compre-
ensão do homem. Depois do Caos, o que aparece então é Gaia,
Terra de amplo seio, princípio material, de Mãe e de Terra.
Esta, desejando ter alguém que a cobrisse totalmente, gerou
Urano (Céu), princípio espiritual, de Pai e de Espírito.
Urano então passou a cobrir Gaia com sua chuva torren-
cial. E Gaia não o aceitou senão passivamente. Como veremos
melhor adiante, trata-se de uma união, mas também de uma
oposição. Gaia (princípio material) desejava ser coberta ou
204

penetrada por Urano (princípio espiritual), mas logo teve iní-


cio uma série de resistências e querelas.
Se você está achando tudo isso irrelevante, eu lhe digo que
não o saber é justamente o motivo pelo qual sua vida está do
jeito que está; sem rédeas, sem sentido, sem norte. Tenho certeza
de que, se eu lhe perguntasse o que ocorreu no seu dia de hoje,
você não saberia me responder, exceto se tivesse sido assaltado,
ou demitido, ou traído, ou qualquer uma dessas coisas “marcan-
tes” (de que você só se lembra por dois dias, na verdade).
Isso acontece porque existe um princípio de banalização
que todo ser humano carrega dentro de si; princípio de ba-
nalização do espírito, de banalização da própria biografia. O
ser humano carrega dois princípios que o jogam para baixo:
o nervosismo e a banalidade. São duas tentações do homem,
que está sempre tateando as coisas, nervoso, porque está cego
e nada parece ter sentido — e não falo do sentido último (para
que fomos criados, de onde viemos, para onde vamos etc.), mas
de um sentido muito mais baixo. O que aconteceu no seu dia
entre as oito horas da manhã e as dez horas da noite? Quais
princípios foram os regentes dessa parte da sua história?
Eu já sei a resposta: 90% dessas quatorze horas úteis da sua
vida foram regidas por dois princípios: nervosismo e banalida-
de. Não estou dando uma de profeta, de guru ou de adivinho. É
que esses são os princípios que regem o homem cego, que não
reconhece os princípios simbólicos (ou, em nosso caso aqui,
mitológicos) dentro da própria história. Ele olha para a pedra
e não vê nada além de pedra. Ele olha para a própria vida e não
vê nada além de nervosismo e banalidade.
Isso é princípio de anamnese. Enxergue-se e analise sua vida
no dia de hoje: 90% dos seus atos ou foram banais ou foram ner-
vosos. Essas duas coisas são resposta para a pergunta que você se
teria feito, houvesse prestado atenção no que estou dizendo, que é
a seguinte: “De que me interessa saber de mitologia? Comecei a ler este
livro porque achei que você trataria de ciência, de técnica.”
Eu lhe digo: você está lendo este livro exatamente para que
esses princípios de nervosismo e banalização, que regem todo
205 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

o mundo, sejam atenuados; e isso acontece quando você se per-


mite olhar a vida de modo poético.
Há um modo poético por excelência que lhe ajudará: a mi-
tologia grega. Outro modo é a narrativa do Tarô e seus 22
Arcanos Maiores, que contam a história da vida humana.
Quando contamos a história do ser humano a partir de um
princípio mitológico, de um simbólico poético, escapamos da
banalização.
Pense em si próprio quando está nervoso. Há várias formas
de pensar sobre isso, e uma delas é o não pensar absolutamen-
te, mas apenas reagir, como um bicho nervoso (que é em geral
como as pessoas fazem). Você, porém, pode pensar que existe
em seu peito um princípio terreno, de Gaia: uma matéria bru-
ta, uma natureza selvagem que pede para se revoltar contra a
chuva que emana do céu de Urano, princípio espiritual.
No dia em que você se irar e olhar para a sua cólera com es-
ses outros olhos — notando que dentro de si está acontecendo
algo similar ao que foi descrito na teogonia grega —, sua vida
ganhará poesia. Veja bem: não quero que você se torne um cara
chato e pedante e saia por aí dizendo que está nervoso porque
o princípio de Gaia está agindo em você. Pelo amor de Deus!
Não é para falar, mas apenas para perceber isso em você.

Os frutos da união
entre Gaia e Urano
Mas voltemos à narrativa da Teogonia. Imagine a união entre
céu e terra que se dá quando Urano cobre Gaia com sua chuva
torrencial. No mito semítico, judaico-cristão, temos o mesmo
princípio: o vento sopra do alto, inflamando a lama, o barro,
e, da conexão entre barro e vento, o homem é formado. Ora,
o barro é o resultado de uma terra cujo princípio inferior foi
moldado por um princípio superior, que o vento se encarregou
de terminar de animar, formando então Adão. Há muitas se-
melhanças nos simbolismos dessas duas narrativas, mas o mito
206

grego é mais completo, uma vez que, da união entre Urano e


Gaia, surgem diversos desdobramentos.
Fecundada e devastada a Terra, numa violenta união com o
Céu, pariu ela os doze titãs (Crono, Oceano, Céos, Crio, Hipé-
rion, Jápeto, Réia, Memória, Tétis, Têmis, Febe e Téia). Dessa
união surgiram ainda os ciclopes (monstros de um olho só)
e os hecatônquiros (gigantes de cem braços). Esses filhos de
Urano e Gaia personificam as forças selvagens da natureza que
nascia. São uma primeira e turbulenta etapa na preparação da
terra para a expansão da vida.26
Na seqüência, como Urano viu que lhe nasciam filhos “os
mais temíveis”, que tenderiam a revoltar-se contra ele e que o
poderiam destronar no futuro, “detestou-os desde o começo”.
Logo que um filho nascia, ele o lançava na cova da Terra. Mas
a Terra gemia e se doía. Ela conclamou, assim, os filhos a se
voltarem contra o pai.
Quem se apresentou para investir contra o pai foi o ousado
Crono, “o mais temível”. A própria Gaia escondeu o filho e
disse a ele tudo o que deveria fazer. Quando Urano surgiu na
noite à procura de Gaia, “da tocaia o filho alcançou com a mão
esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice longa e denta-
da. E do pai o pênis ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo para
trás.” (Hesíodo, Teogonia, v. 178-182)
Uma das etimologias do nome “Crono” remete a um termo
grego que designa o tempo (o prefixo crono-, em língua por-
tuguesa, aparece em palavras como “cronômetro” ou “crono-
logia”). O tempo é, pois, o que marca a sucessão da matéria.
A matéria, já um pouco mais organizada, não mais a massa
caótica do princípio, vai se decompondo com o tempo. Fora da
realidade material não existe tempo, porque ele é justamente o
que marca a passagem da matéria.

26  DIEL, Paul. O simbolismo na mitologia grega. Tradução de Roberto Cacuro e


Marcos Martinho dos Santos. São Paulo: Atar, 1991, p. 110-111. (Para um estudo
mais aprofundado sobre o rico simbolismo presente na mitologia grega, recomendo a
leitura integral desta obra, cujas “traduções psicológicas” dos mitos muito me
valeram
na elaboração deste capítulo.)
207 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

Na Teogonia, como vimos, Urano soube que poderia


ser destronado por um dos filhos. E isso de fato aconteceu:
Crono o destronou. Ou seja, aquele princípio de espiritualiza-
ção, aquela chuva que vem do alto (Urano) e dá forma à maté-
ria bruta (Gaia), em algum momento veio a perder seu império
para o tempo (Crono).
Nossa vida está acontecendo, temos uma história para con-
tar. Precisamos comer, tomar banho, ganhar dinheiro, amar
— e precisamos fazer isso dentro do tempo, enquanto ele está
correndo. Pode ser que, com a passagem do tempo, você seja
atropelado por ele e perca a visão do princípio espiritual.
O tempo passa e você fica nervoso, pois o mês está acaban-
do, e seu dinheiro acabou antes; o prazo está acabando, e você
não entregou seu trabalho. É o tempo passando, o império de
Crono. Quando você se distrai com esses nervosismos, afasta-
-se do princípio espiritual, a visão da chuva que vem do alto e
enforma a matéria no início.
Veja bem: Crono pega uma foice e corta os órgãos genitais
de seu pai. Urano continua vivo, mas agora está castrado. O
princípio fecundante de Urano foi tirado. Ele segue vivo, mas
é um rei impotente. O princípio da espiritualidade está aí, mas
sua possibilidade fecundante foi perdida pelo tempo.
Urano então pega os órgãos genitais de seu pai, sacode-os e
os joga ao mar (aliás, é da espuma da inseminação dos órgãos
castrados com o mar, que nasce Afrodite, a deusa do amor).
Crono tem uma esposa, uma das filhas de Urano e Gaia, sua
irmã Réia. Réia simboliza uma terra cheia de vida, não mais
aquela terra turbulenta do início, mas um princípio de matéria
organizada, em que se consegue observar a passagem do tem-
po: uma árvore que cresce, um cachorro que nasce e morre...
Ora, nós também temos dois princípios materiais. Um deles
é muito bruto, muito desorganizado, como o de Gaia; o outro
não foge tanto do controle, tem certa uma organização, como
o de Réia. Há movimentos brutos da nossa matéria, como
quando você está com olhos pesados de tanto sono, ou quando
sente uma fome dos infernos, mas também há movimentos a
208

que você cede apenas se quiser, porque eles estão de certa for-
ma organizados, como a vontade de dormir com a mulher do
próximo, ou de tomar um sorvete fora de hora. Há quem ceda
logo a movimentos como estes, mas eles não são tão urgentes,
fortes e “primordiais” como os primeiros. Dito de outro modo:
há níveis de materialidade.
De volta à Teogonia, temos uma história que se repete: to-
dos os frutos da união entre Crono e Réia são devorados por
Crono. Pois, como Urano, ele também temia ser destronado
pelos filhos. E não é assim? Podemos mesmo dizer que o tem-
po devora seus filhos, que aquilo que é gerado no tempo even-
tualmente acabará, será comido, irá se decompor. Tudo o que
está no tempo se decompõe. Achar que o que fazemos nesta
terra perdurará é uma esperança vã. Não permanecerá; será de-
vorado. Mas que isso não nos arranque a esperança — a razão
para não perder as esperanças, eu a dou evocando novamente
o exemplo da pedra.
A pedra é presença de uma estabilidade, de algo que perma-
nece; ela aparece e reaparece milhares de vezes na mitologia,
nos textos sagrados e nos textos poéticos. Já diziam as Escritu-
ras: “Aquele que não tiver pecado, que atire a primeira pedra.”
Em lugar de pedra, as Escrituras poderiam ter apresentado ou-
tra coisa, como areia ou cuspe. Mas a escolha foi a pedra.
Nós só nos mantemos de pé em um chão sólido, de pedra.
Ora, se você perde seu tempo, arrancando as pedras sob seus
pés — que são aquilo que o faz ficar de pé — para atirá-las ao
outro, perderá o chão. Se você perde o tempo que deveria usar
para construir solidamente seu caminho biográfico neste mun-
do, julgando os outros, você será o primeiro a cair.
O símbolo da pedra não foi evocado à toa naquela passa-
gem. Pedra é símbolo de solidez, de constância, de durabilida-
de e, de algum modo, de esperança — também não é à toa que
Réia fez o que fez ao olhar a brutalidade de Crono com seus fi-
lhos, devorando-os todos ainda bebês, logo após o nascimento.
Eventualmente, ela resolve dar um basta àquela conduta.
Nasce um novo bebê, mas ela diz: “Este não.” Pega uma
209 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

pedra, envolve-a em paninhos macios e a dá para Crono


devorar.
Crono não distingue a natureza de seus filhos, não distingue
a natureza daquilo que é material. Seu império é implacável: o
tempo enferruja o ferro, decompõe o minério, mata seus filhos
de carne, resseca seus filhos vegetais. Para Crono, tudo tem o
mesmo sabor, por isso ele devora a pedra dada por Réia como
se filho fosse, enquanto o verdadeiro bebê cresce escondido na
natureza selvagem. O nome desse bebê é Zeus.
Réia retira a criança do reinado de Crono e a leva para o rei-
nado caído de Gaia e Urano — ainda vivo, mas impotente —,
para um domínio anterior, uma terra bruta e indiferenciada,
repleto de uma expectativa de chuva que vem do alto e nunca
termina de dominar a terra (lembre-se de que Urano havia
perdido seu poder). Nessa terra, esse pequeno deus fica amigo
de alguns dos ciclopes.
Os ciclopes eram, como os titãs, filhos de Urano e Gaia.
Eles olharam para esse bebê e viram nele a esperança de reto-
mada do império espiritual de seu pai Urano, razão pela qual
passaram anos e anos forjando uma arma para que a criança,
no futuro, a utilizasse para enfrentar Crono. Os ciclopes nota-
ram que Crono, que não distingue matéria, só pode ser vencido
por um princípio superior ao da matéria. Se alguém o tentasse
enfrentar com pedras, lanças ou paus, ele o devoraria, porque é
o que faz com tudo quanto é material.
Esse bebê, portanto, precisava crescer dominando uma
arma imaterial. E, entre os elementos deste mundo (Ar, Água,
Terra e Fogo), qual deles aponta para um princípio imaterial?
O fogo! A própria Física veio confirmá-lo posteriormente,
quando descobriu que a luz tem um princípio corpuscular e
um imaterial, comportando-se ora como partícula, ora como
onda. Além disso, dos quatro elementos, o Fogo é aquele que
tem luz.
Os ciclopes então forjaram uma arma a partir da lava, ex-
traindo o fogo daquela pedra incandescente para construir um
cetro em forma de raio. Deram-na a esse bebê chamado Zeus.
210

A arma de Zeus é um raio, porque somente a luz da inteli-


gência consegue acessar princípios que estão fora do tempo,
que não são do domínio de Crono. Se Crono é na Teogonia
descrito por Hesíodo como ankylométes (“de astúcia torta ou
distorcida”), Zeus é dito metíeta (“de astúcia perfeita, plena-
mente capaz de discernir”).
Como Crono destrói tudo quanto é matéria, se você lhe
apresentar um princípio superior à matéria, ele não terá dentes
para o morder. Os princípios da Beleza, da Verdade, da Unida-
de, da Justiça e da Lealdade cegam Crono; ele não os consegue
devorar.
Naquele mundo caótico, no qual Réia tentava dar à luz seus
filhos e Crono os devorava, não havia ordem propriamente;
não havia uma forma final, inteligível, porque ele não permitia
que houvesse. Então Zeus, filho de Crono, com sua arma for-
jada no reinado de Urano e Gaia, ou seja, forjada no mundo
do princípio de tudo, tocando naquilo que é imutável, destrona
seu pai, subjuga Crono — e por isso se torna o rei do Olimpo.
Zeus é o maior dos deuses, embora não seja o primeiro na ori-
gem. Ele é rei porque foi aquele que venceu Crono: ele venceu
o império do tempo e da matéria.
Em cada um de nós existe, dentre muitos outros, um prin-
cípio de Urano, um princípio de Gaia, um princípio de Crono
e um princípio de Réia. Se não cultivarmos as armas dos ci-
clopes, ou seja, se não houver um esforço intencional, paciente,
calmo, para, a partir da confusão deste mundo, tentar pegar a
lava (aquilo que brilha na matéria), estaremos fadados a tatear
no escuro de nossas vidas.
A lava incandescente de um vulcão é símbolo dessa pedra
que brilha, uma pedra derretida, que pode ser moldada e da
qual podemos extrair luz. Quando Adélia Prado diz que Deus
lhe tira a poesia e ela só vê pedra, é como se dissesse: “Não há
ciclopes aqui. Não consigo voltar para o reino de Urano e Gaia,
para aqueles princípios, para extrair o verbo das coisas.”
Não interessa de que a pedra é feita. Ela pode ser diamante
ou basalto. O que interessa é que ela é também algo a mais: um
211 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

verbo, uma presença, algo que permanece. A partir da pedra,


podemos (e devemos) fazer o ofício dos ciclopes para contar
nossa história.
Continuando a narrativa teogônica, Zeus domina Crono e
o obriga a vomitar todos os filhos que ele engolira. Assim rea-
parecem os irmãos de Zeus, dentre eles Hades e Poseidon que,
junto com ele, são o ternário dos princípios superiores.
Talvez você esteja pensando: “Hades é o irmão mau, não é?
Não era o pai dos infernos?” Bem, pode-se entender assim, mas
tente imaginar o inferno como um mundo espelhado: a ordem
do mundo superior espelhada na ordem do mundo inferior.
Tal como Zeus rege o mundo superior, Hades rege o mundo
inferior; logo, ele também é um princípio de ordem. Poseidon,
por sua vez, é o elemento selvagem desse ternário. A água está
entre o céu e o inferno, e Poseidon é o deus que a rege. Há ain-
da outros princípios, representados pelas irmãs de Zeus.
Foi ele quem organizou tudo, fazendo Crono regurgitar
seus irmãos e distribuindo a regência do mundo entre eles: um
para cuidar do mar, outro da guerra, outro da beleza, outro das
estações do ano… Ele aprisionou os titãs no Tártaro e destro-
nou Crono. Foi somente com Zeus que, finalmente, o mundo
ficou organizado.
Aqui, ainda estamos no domínio da terceira carta do Tarô,
falando da vida humana, que é esse conjunto narrativo. Se não
tivermos intelecção sobre nossa narrativa pessoal de cada dia,
seremos regidos por aqueles dois princípios que dominam o
homem desatento: o nervosismo e banalização.
A banalização é maximamente representada por um sujeito
que aparece — adivinhe — na mitologia. Veremos quem é o
homem mais banal da história do mundo — e, pior, veremos
que precisamos nos reconhecer nele.
212

Midas,
um homem banal
Refiro-me ao rei Midas, famoso por seu toque de ouro. Há
várias versões do mito, mas uma das mais conhecidas está no
livro XI das Metamorfoses do poeta romano Ovídio.
A narração do mito tem início quando Dionísio (ou Baco,
para os latinos) e seu cortejo seguem para os vinhedos, mas ele
se dá conta da falta de Sileno, sátiro que fora seu preceptor.
Sileno tinha se embriagado de vinho e sido levado por cam-
poneses frígios até o rei Midas, que o recebeu como hóspede
durante dez dias. Ao cabo desse período, Midas levou Sileno
para Dionísio.
O deus do vinho, dos prazeres e do excesso — mas também
o deus da piada e da zombaria — ofereceu-lhe uma recompen-
sa. Ele poderia escolher qualquer coisa. O desejo de Midas era
tornar-se rico, muito rico. Tudo o que queria eram riquezas.
De modo que pediu a Dionísio que tudo o que tocasse se con-
vertesse em ouro. “Com tantas maravilhas no mundo, esse imbecil
quer dinheiro!”, é o que o deus deve ter pensado. Embora per-
cebesse a tolice do pedido, Dionísio o concedeu. O escárnio
do deus estava justamente nessa concessão: “Quer que tudo vire
ouro? Tudo bem. Tudo quanto você tocar se tornará ouro.” Midas
julgava estar pedindo uma bênção, mas recebeu uma maldição.
Em dado momento, ele se deu conta de que havia sido víti-
ma de uma galhofa de Dionísio, pois absolutamente tudo que
tocava se tornava ouro. Tocava um pão e ele se convertia em
ouro. Mas de que serve um pão de ouro, quando se está com
fome? Comida é o que sacia a fome, não o dinheiro. Tampouco
se dorme com dinheiro, mas com um outro ser humano. O
dinheiro é o símbolo da banalização total, porque, no fim das
contas, é algo que não serve para nada. O que é bom no mundo
não é o dinheiro. O dinheiro é apenas uma das formas de con-
quistar certas coisas, mas há outras.
Quando, pois, viu seu palácio, sua comida e sua própria fi-
lha transmutados em ouro, Midas clamou por Dionísio. Nesse
213 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

momento, poderia ter ocorrido uma ruptura da banalização. Mi-


das poderia ter se arrependido de seus erros e entendido como
o mundo funciona. Ele poderia ter se dado conta de que o ouro
não é o que há de melhor. Há coisas que estão acima dele.
Um sapo tem um verbo próprio, uma pedra tem um ver-
bo próprio, sua mulher tem um verbo próprio. Quando você
banaliza tudo com ouro, o sapo perde seu verbo e assume o
verbo do ouro, a mulher perde seu verbo e assume o verbo do
ouro, o pão perde seu verbo e assume o verbo do ouro. O di-
nheiro banaliza tudo.
Midas poderia ter entendido isso, tivesse ele olhos para ver.
Já se vendo desesperado, prestes a morrer de fome, ele deveria
ter dito a Dionísio: “Eu perdi o verbo do mundo. O mundo não
conversa mais comigo, eu não o escuto mais. Perdi toda a poesia da
vida, só porque quis ouro. O que faço para converter essa minha
vida banal em algo melhor?” Mas não foi isso o que aconteceu.
Dionísio deu a Midas uma segunda chance: aconselhou-o
a se lavar num determinado rio, quebrando assim a maldição
para que Midas transformasse em ouro somente aquilo que
desejasse. Mas, depois, fazendo uma espécie de teste, o deus
levou o rei avaro a uma competição musical entre Apolo e Pã.
De um lado, Apolo com sua lira — o deus da ordem, da per-
feição, da música, da beleza sublime, que eleva. Do outro lado,
Pã, com sua flauta, que atiça os movimentos mais inferiores do
homem. Pense num salão em que houvesse Bach tocando de
um lado e Anitta tocando do outro.
Dionísio então pediu que Midas julgasse qual o melhor
músico. Midas fitou Apolo e pensou: “Essa música não seduzi-
rá ninguém, não conseguirei levar ninguém para a cama com isso.
Já com a música de Pã, se eu a dominar, seduzirei todas as donzelas.
Fico com Pã.” Mais uma vez, o rei se deixou levar pela estupi-
dez: à vida sublime ele preferiu a perversa.
Dionísio olhou novamente para Midas com desprezo absolu-
to, pois viu que ele não conseguia extrair o verbo das coisas, pois
estava demasiado preso à materialidade. Midas é o sujeito mais
imbecil e banal do mundo: não aprendeu nada com a lição
214

anterior. Escolheu de novo a matéria, desdenhou dos sublimes


dons de Apolo porque umas breves noites de lascívia lhe pare-
ciam melhor negócio.
Indigno até mesmo da ira de um deus, o que Midas recebeu
foi um castigo zombeteiro de Apolo, que lhe pôs na cabeça duas
enormes orelhas de asno. O rei, além de precisar usar luvas, passou
a ter duas orelhas de animal. Imagine a figura desprezível em que
se transformou. E era de fato um asno, um homem banal, entre-
gue à luxúria e à avareza, alguém que não sabe fazer escolhas.
Na seqüência, envergonhado por conta das orelhas, Midas
as tentou esconder. Vestiu um capuz típico do povo frígio, co-
nhecido por suas orgias. Ora, quis esconder o sinal de um vício
(as orelhas que representavam sua cobiça e avareza) com o em-
blema para outro vício (a tiara frígia representava a perversão e
luxúria daquele povo).
Acontece que Midas certo dia foi cortar os cabelos. E o es-
cravo que lhe cortava os cabelos viu as orelhas que ele escondia
de todos. O capuz não foi capaz de esconder a vergonha de Mi-
das por muito tempo… Isso acontece com todos nós. Tentamos
esconder a vergonha, mas uma hora ela aparece. Tentamos ocul-
tar os vícios que nos envergonham, mas uma hora eles surgem.
Como não conseguiria manter o segredo, o barbeiro con-
fiou-o à terra: fez um buraco no chão e sussurrou que viu as
orelhas de burro do seu senhor. Tampou o buraco e foi-se em-
bora. Mas ali cresceu um junco, que, agitado pelo vento, re-
velou o que o rei não queria que os outros soubessem: “O rei
Midas tem orelhas de asno.”
O junco é uma árvore flexível, que vai para onde o vento
sopra. Aquele junco específico ecoou, desde o fundo da terra,
excitado pelo vento, a banalização de uma vida que não tinha
um centro, a qual, como ele próprio, vai para o lado que o ven-
to sopra. Essa é a vida do homem banal, que não confessa as
orelhas de asno que tem, mas tenta escondê-las a todo custo.
O homem banal tem uma vida que se agita com o vento.
Midas era um desses homens banais, homens-junco, porque,
em primeiro lugar, não viu a diferença entre pedra e pedra de ouro,
215 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

entre mulher e mulher de ouro; depois, não viu a diferença entre a


lira sublime de Apolo e a flauta perversa de Pã. E, ainda por cima,
não foi homem o suficiente para confessar que era um asno.
Midas poderia ter dito: “Dionísio, sou um asno. Não sei esco-
lher. Envie, por favor, alguém com quem eu possa conversar, con-
tar-lhe minhas misérias, para que me ajude a enxergar e corrigir
meus erros.” Ele poderia ter buscado o conselho de um homem
sábio, a quem confessaria seus erros. Poderia até mesmo ter
confessado seus erros a um homem não tão sábio, mas de sua
confiança. Mas o fato é que ele nunca se confessou. E não se
confessou porque jamais se arrependeu verdadeiramente: ja-
mais se converteu em um homem novo. O que teve foi somen-
te vergonha de suas orelhas e de seus vícios. Mas não adianta
envergonhar-se de seus vícios, de seus pecados, de seus crimes.
Isso não basta.
O mito de Midas vem nos mostrar que aquele que esconde
suas misérias viverá para vê-las todas reveladas. O sujeito que
não se confessa para alguém nunca melhora, nunca escapa à
banalização. Somente quem pede ajuda é capaz de ascender.
O vaidoso, que não conversa com os outros, que não pede
ajuda quando necessário, que não elogia o bem que o próximo
faz, que não tem relação humana, que esconde todas as suas
mazelas sob um capuz frígio, ele se torna um homem banal. O
nervosismo e a banalização são os frutos da falsidade. Midas é
falso; não é um homem de verdade.
A banalização é o inimigo da minha e da sua biografia. Ela
acontece quando você olha para as coisas e só vê pedra; tudo
tem o mesmo símbolo — ou, como simbolizado na narrativa
de Midas, tudo é ouro.
Um sapo de ouro e um pingente de ouro não têm muita di-
ferença entre si, porque ambos têm o verbo do ouro. Faça esse
exercício meditativo. Já um sapo vivo em nada se parece com
um sapo de ouro: eles têm verbos completamente distintos.
A banalização ocorre quando olhamos para as coisas e acha-
mos que é tudo a mesma coisa. Isso é Midas agindo.
216

Zeus derrota Tifeu


A mitologia grega apresenta-nos ainda outras expressões da
banalização. Lembra-se de que Crono e os titãs haviam sido
vencido anteriormente por uma nova geração, encabeçada por
Zeus? Essa vitória inicial do espírito sobre a matéria, do que
é mais elevado sobre a animalidade, não foi uma vitória de-
finitiva. “O ser humano pode, num certo sentido, retornar à
animalidade.”27 Ele pode se render no meio do caminho e con-
verter-se numa besta. Quando isso acontece, ele se banaliza.
Ele se torna uma espécie de Midas, e acha que o que há de
melhor no mundo é o ouro, ou umas noites de lascívia ao som
da flautinha de Pã.
Na Teogonia de Hesíodo, vemos que, logo que Zeus expul-
sou os titãs dos céus, Gaia gerou de Tártaro um monstro ter-
rível, de nome Tifeu. Foi uma espécie de vingança ou revolta
de Gaia contra o espírito. Tifeu tinha cem cabeças de serpente
e dos olhos de cada víbora saltava fogo. As cabeças ora fala-
vam com voz de touro, ora com voz de leão, ora como cadelas,
ora emitiam assobios altos que ecoavam pelas montanhas. Não
houve quem não tivesse medo de o enfrentar: somente Zeus,
pois tinha o trovão, o relâmpago, o raio flamante e a luz da
inteligência.

Tifeu é o mais temível de todos os monstros, inimigos do espíri-


to. Ele simboliza a possibilidade de banalização do ser conscien-
te, a mais decisiva oposição ao espírito evolutivo: o recuo em di-
reção à imediatidade dos desejos característicos da animalidade.
Com Tifeu, a criatura mais monstruosa da terra-matéria Gaia,
renasce, concentrado num único símbolo, o perigo antes repre-
sentado pelos Titãs vencidos, perigo que permanece, no entanto,
insuficientemente domado pelo espírito.28

27  DIEL, Paul. O simbolismo na mitologia grega. Tradução de Roberto Cacuro e


Marcos Martinho dos Santos. São Paulo: Atar, 1991, p. 117.
28  Idem, ibidem.
217 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

Ao final da batalha contra o monstro, o deus saiu vitorio-


so. Se Zeus não se tivesse erguido contra ele, o monstro teria
reinado sobre mortais e imortais e a animalidade teria voltado
a reinar. Porém, vemos na versão da história contada por Pseu-
do-Apolodoro em sua Biblioteca (1. 6. 3), que, antes de vencer
Tifeu, Zeus levou uma coça. O monstro cortou seus tendões
com uma foice.
Na mitologia grega, o tendão é símbolo da alma. Essa noção
permaneceu enterrada por 2.600 anos, até que Ortega y Gas-
set e Julián Marías a escavassem e, sem se referir à mitologia
grega, dissessem que a alma do homem é a história que ele
conta. E como é que fazemos nossa história? Ora, fazendo-a.
Caminante, no hay camino, se hace el camino al andar. “Cami-
nhante, não há caminho; o caminho se faz ao caminhar.”29 E o
que se usa para caminhar senão os pés? Para a mitologia grega,
o símbolo da alma são os tendões exatamente porque são os
músculos que nos fazem andar. Nossa alma é, enfim, a história
que nós contamos, é a história de nossa vida.
Felizmente, Zeus conseguiu se recuperar do ferimento e, fi-
nalmente, derrotar o monstro. Tifeu morreu. Mas, antes disso,
já se havia unido a Équidna (monstro metade mulher, metade
serpente) e gerado uma descendência funesta: Ortro, Cérbero,
Hidra de Lerna e Quimera. Outro monstro perigoso descen-
dente de Tifeu é a Esfinge (segundo Hesíodo, ela teria sido
gerada por Quimera e Ortros; segundo Pseudo-Apolodoro, di-
retamente por Tifeu e Équidna). Esses são os monstros que os
heróis gregos, os filhos do espírito, deverão combater. E esses
combates abundam na mitologia grega.

Édipo, o nervoso
Um dos frutos da união de Tifeu e Équidna foi a Esfinge, figu-
ra de que você deve se lembrar por conta da história de Édipo,

29  MACHADO, António. Proverbios y cantares XXIX.


218

mito fundador da Psicanálise. Édipo é o cara que vence a Es-


finge, pois consegue decifrar seu enigma. É isso o que lhe per-
mite matar o pai, tornar-se rei e ter uma vida marital com a
mãe — embora ignorando que ela fosse sua mãe.
O desejo do parricídio e do incesto, recalcado por um tabu,
não é o centro mesmo da Psicanálise? Por essa razão, repito
que, se você não conhecer a história de Édipo, e não tiver claro
em sua cabeça que essa vitória de Édipo sobre a Esfinge foi o
que possibilitou que ele fizesse o que fez, você não entenderá
nem essa psicologiazinha vulgar chamada Psicanálise, muito
menos as psicologias mais profundas, como a apresentada na
obra já citada de Paul Diel.
Mas recuemos um pouco na história de Édipo para com-
preender melhor o que aconteceu. Édipo era filho de Laio, rei
de Tebas, e Jocasta. Como um oráculo anunciou a Laio que seu
filho o iria matar, logo ao nascer Édipo, o rei amarrou seus tor-
nozelos e mandou Jocasta entregar o bebê a um pastor de seus
rebanhos. A tira com que os tornozelos foram apertados aca-
bou ferindo os tendões do menino. Seus tendões foram feridos
para que ele não pudesse ter uma história. Não ter história é
como morrer.
Mas o pastor não teve coragem de abandonar o menino no
monte Citéron e deixá-lo ali para morrer, conforme a ordem
da rainha. Deixou-o então com um outro pastor, que traba-
lhava para o rei de Corinto, Políbio, e para esse rei entregou
o bebê. Políbio e a esposa criaram-no como filho, pois não ti-
nham descendência. O nome dado ao menino foi Édipo, por
causa de seus pés inchados. E a marca deixada em Édipo pelos
pais verdadeiros não se apagou: por causa dos pés amarrados
com tanta força, ele permaneceu coxo por toda a vida. E não
só coxo fisicamente, mas também coxo psiquicamente. Era um
homem nervoso, vacilante, inseguro, que não conseguia dar
passos firmes e decididos. Nunca foi de aceitar críticas, desa-
foros, ofensas, nem mesmo um empurrão — esse tipo de coisa
sempre abalava sua segurança. A deficiência física, ele a tentou
compensar com um cajado que utiliza para se manter de pé.
219 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

A alma ferida, ele tentou compensar com uma busca constante


e agressiva pelo domínio.
Criado em Corinto, um dia Édipo foi abordado por um bêba-
do que o insultou e disse que ele era filho adotivo. Ele ficou com
a pulga atrás da orelha e resolveu consultar o oráculo de Delfos. A
resposta do oráculo foi trágica: Édipo estava destinado a matar o
pai e desposar a mãe. Com medo de que a profecia se realizasse,
abandonou Corinto e saiu por aí, guiado pelas estrelas.
Nessa viagem, acabou topando com Laio, seu verdadeiro
pai, e um grupo de viajantes. Quando alguém empurra um ho-
mem vaidoso e agressivo, esse homem, em geral, revida com
socos e pontapés. Foi o que aconteceu ali. Empurraram Édipo
na estrada e ele, que não levava desaforo para casa, revidou
violentamente. No fim da briga, com o cajado que usava para
se apoiar, matou Laio e quase toda a comitiva.
Ele não sabia que Laio era seu pai.Também não sabia que o
homem que matara era o rei de Tebas. Mas o fato é que usou
como arma mortal aquela “muleta”, que corrigia apenas par-
cialmente a doença dos pés que seus pais haviam provocado. A
muleta de um homem nervoso como Édipo é a vaidade. Ele só
fica “de pé” psicologicamente falando se se apoiar na sua vaida-
de. E ela é também sua expressão de agressividade e violência:
com ela, mata o pai.
Depois desse incidente, seguiu perambulando até dar com
as portas de Tebas, onde encontrou a Esfinge, monstro que
devorava todo aquele que dela se aproximasse e não decifras-
se o enigma proposto. O enigma que propôs a Édipo era o
seguinte: “Que animal caminha de manhã com quatro patas, ao
meio-dia com duas e à noite com três?” Édipo respondeu corre-
tamente: “O homem. Eu. Ao amanhecer, no início da vida, ele
engatinha em quatro patas; ao meio-dia, no meio da vida, ele
anda com as duas pernas; e ao anoitecer, ou seja, na velhice, ele
anda com suas duas pernas mais o apoio de um cajado”. Ele foi
o primeiro a decifrar um enigma da Esfinge. Com isso, salvou-
-se a si mesmo da morte e à cidade de Tebas, constantemente
ameaçada pelo monstro.
220

A recompensa que recebeu pelo ato de aparente heroísmo


foi o título de rei de Tebas e a união marital com Jocasta, sua
mãe. Esse é o centro da Psicanálise. Sem o simbolismo do mito
de Édipo na cabeça, é impossível entender bem essa corrente
da Psicologia.
Mas veja, essa recompensa que parece ser seu grande suces-
so, é também a sua derrota, a sua ruína. E é também a ruína
da cidade: enquanto Édipo reinava, Tebas foi tomada por uma
grande peste, da qual só haveria de se livrar se dali fosse banido
o ser impuro que matou Laio.
Voltemos ao enigma da Esfinge: “que animal caminha de
manhã com quatro patas?” No enigma, o homem é reduzido à
condição de animal, de besta. E Édipo não tem dificuldade
nenhuma para reconhecer o homem como aquela besta que
caminha sobre quatro patas, pois ele mesmo passou a infância
se arrastando como um animal, por conta de sua enfermidade.
Depois, passou a andar de pé, mas apenas com o apoio de um
cajado.
Mas Édipo não é um homem tipicamente banal, como Midas
ou Laio. Ainda que ele se veja, em certo momento da vida, abra-
çando os prazeres terrestres na figura de sua mãe e seja seduzido
pelo poder, pelo desejo de ser rei, ele é um banalizado diferente
— ele é o homem nervoso que nunca fica em paz porque, no
fundo, no fundo, sabe que não é inocente. Ele é constantemente
atormentado por um conflito que nunca se resolve.
Quando começam a aparecer os indícios de sua culpa, ele
vai sofrendo cada vez mais. Sofre e fica desesperado principal-
mente porque percebe que fez, por vontade própria, exatamen-
te aquilo de que tinha mais horror: matou o pai e desposou a
mãe.
Ao final da história, quando não há mais como negar a pró-
pria culpa, Édipo arranca os olhos. Essa resolução pode signi-
ficar duas coisas: ou ele continuou sendo um vaidoso e preferiu
arrancar os olhos para não ver a própria culpa; ou ele realmente
se arrependeu do que fez e se cegou para evitar ser seduzido
pelas coisas mundanas e, assim, conseguir exilar-se dentro de
221 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

si mesmo e, finalmente, conhecer-se. “Conhece-te a ti mesmo”,


diz a inscrição no Templo de Apolo em Delfos.
Mesmo o homem vaidoso, inseguro e nervoso tem saída.
Mesmo um homem cujos pais o tentaram matar, um homem
que matou o pai e se casou com a mãe — até esse desgraçado
tem cura. É preciso, em algum momento, “cegar-se” para certas
coisas do mundo, ou seja, afastar-se de certas distrações ou se-
duções que nos atrapalham a descobrir quem de fato somos. A
cura para Édipo, como também para mim e você, está no exílio.

O raio de Zeus e a cura pelo exílio


Ninguém enxerga no escuro. Precisamos de luz, porque olhos
já temos.
Quem dá essa luz é o raio de Zeus, que nos permite ir até
as coisas e extrair delas — não projetar nelas — o que elas são.
Esse é o princípio com que conseguimos escapar da banaliza-
ção. Como fazer isso é a grande questão da vida, cuja resposta
está dada no próprio mito de Zeus.
Nosso remédio contra a banalização é a prática da meditação
sobre a realidade. A meditação sobre a realidade é um processo
terapêutico válido para mim, para você e para todo o mundo.
Para praticá-la, há várias técnicas.
Mas lembremo-nos primeiro como foi a vida de Zeus em
seus primeiros anos. Ele foi escondido numa gruta, “sob o covil
da terra divina no monte das Cabras denso de árvores” (Teogo-
nia, v.484-485), onde teve uma vida quieta e oculta. Ali ficou,
e cresceu com rapidez e vigor, sem ser notado.
Alguém tomou conhecimento de sua vida enquanto os ci-
clopes forjavam a arma que ele usaria para destronar seu pai
Crono? Não.
Zeus estava em silêncio e quieto no mundo bravio, selva-
gem, natural — no reino exilado de Urano e Gaia. Essa é a po-
sição existencial de quem quer extrair a luz do mundo, extrair
a luz das coisas. É a meditação em exílio.
222

A meditação em terras exiladas da nossa alma é o que faz


com que consigamos extrair a luz, para que fabriquemos essa
arma que vence a tirania do tempo, aquele deus mau que de-
vora nossos filhos.
Nossos filhos devorados por Crono são os nossos propó-
sitos. Todas as pessoas normais têm bons propósitos na vida:
“Hoje começo a dieta”, “Hoje trabalharei bem”, “Hoje ligarei para a
minha mãe para me reconciliar com ela”. Esses são os bons filhos
do nosso tempo na terra — que esse mesmo tempo se encarre-
ga de devorar. Quem não teve a experiência de ter parido bons
filhos, bons propósitos, bons afetos, boas inspirações, que fo-
ram caindo por terra dia após dia, devorados tão logo nasciam,
ante a tirania do tempo banal?
Você não emagrece, não permanece em um emprego, não
fica muito tempo em um relacionamento, não é chamado para
as festas de família, não consegue conviver direito com seu ir-
mão, porque seus bons propósitos, seus bons afetos, suas boas
inspirações, foram devorados pelo tempo banal. Você não con-
segue manter a luz dessas coisas viva em você. Isso é princípio
da vida, e nos dá uma intelecção maior sobre nossos movimen-
tos diários.
Zeus é símbolo da alma humana, de uma alma que não se
esquece. Lembre-se de que somos o “ser esquecente”, por defi-
nição. Esquecemo-nos de tudo — ou melhor, não de tudo, mas
apenas do essencial.
Até ver forjada sua arma contra o tempo, contra a banaliza-
ção, Zeus ficou em silêncio, nas terras de Urano e Gaia, que são
uma terra de exílio. Se você nunca marchou voluntária e cons-
cientemente até lá, talvez não reconheça isso em si; não agora.

Cristo no exílio
Essa terra de exílio foi frequentada por todos os sujeitos ar-
quetípicos que são exemplos para nós. O próprio Cristo ficou
em uma terra de exílio até os doze anos; depois, ficou em outra
223 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

terra de exílio até os trinta; por fim, teve um terceiro exílio de


quarenta dias no deserto.
Ele nasceu, e em sonho seu pai foi avisado de que deveria
exilar-se com a família. Ele então levou a esposa e o bebê até o
Egito, onde ficaram por quase doze anos, até serem chamados
novamente. No exílio, o Cristo estava numa terra como aquela
que Zeus frequentou.
O Cristo de fato teve sua primeira aparição aos doze anos,
no templo, dando lições para os sábios, que se surpreendiam
com a sabedoria de alguém tão novo, quando aquilo nada tinha
de surpreendente — era o Cristo, mas mesmo que não fosse,
ainda seria alguém que passou doze anos no exílio, ao passo
em que aqueles fariseus estiveram esse tempo todo no meio da
banalização.
Depois, o Cristo voltou para o exílio, e sumiu por mais de-
zoito anos. Seu segundo exílio foi na Palestina; não em uma
terra estrangeira, não mais no Egito, mas ainda assim, tratava-
-se de um exílio interior — em que ele se abstém de falar. Não
se sabe o que disse o Cristo dos doze aos trinta anos, porque
isso não está escrito.
Esse silêncio é muito eloquente na vida do Cristo. Ele rea-
pareceu aos trinta anos, na vida pública, e dos trinta aos trinta e
três pregou e fez milagres. São três anos, e já vimos que o três é
símbolo de totalidade. Mesmo em meio a essa vida pública, ele
se exilou novamente, nos quarenta dias que passou no deserto.

O nosso exílio
O exílio voluntário para a terra de Urano e Gaia é necessário
para vencer a banalidade, mas pode ser que esse seja um do-
mínio desconhecido do seu espírito, da sua vida. Lembre-se
de que você ainda não tem uma autobiografia, porque sua vida
ainda não tem uma unidade. Isso quer dizer que, no seu caso,
tentar fazer um exílio como o de Zeus ou os de Cristo (ou
seja, por trinta dias, por seis meses, por um ano, por dez anos)
224

não funcionará. Fazê-lo seria afetação, pois você não sabe o ta-
manho da sua vida, não sabe qual é a sua história. E se ela durar
só mais seis meses? Então, por definição, você não conseguirá
completar esse seu ano sabático, esse seu exílio de um ano.
O exílio não é algo que faremos em bloco, porque não temos
uma autobiografia. Se você não souber contar sua história em
duas linhas, não souber qual é o seu argumento vital, então sua
vida não tem uma unidade, é tudo uma confusão.
Uma coisa, porém, você tem: um dia. Você tem hoje, e tem
amanhã. Sem esse papo de “Não sei se tenho amanhã, só Deus
sabe.” É óbvio que você terá, sim, amanhã, até o dia em que
estiver errado, mas até lá você terá acertado todos os outros
dias em que disse “Eu tenho amanhã.” Na média das apostas, se
você tem menos de noventa anos, a chance de acertar é grande.
Um dia ao menos você tem, então vá para o exílio, para a
terra de Urano e Gaia, para o deserto do Cristo, para os anos
ocultos Dele, cada um desses dias. Do contrário, você não forjará
a arma de Zeus, não terá o raio, e acabará por cair no mundo
de Midas, da banalização.
Midas é um rei, e um rei nunca vai para o exílio, a não ser
que seja destronado. Essa é a nossa vaidade; nós achamos que
somos reis: das nossas idéias, das nossas opiniões, dos nossos
relacionamentos, das nossas empresas, da nossa família; quan-
do a verdade é que ninguém nos presta ouvidos, porque somos
como Midas.
Poderia ser qualquer outro sujeito a falar com Dionísio: um
camponês, um guerreiro, um outro deus, mas era um rei, com
um reinado próprio. Era alguém que nunca está em exílio. E
Dionísio, sendo um deus, olha para aquele rei com desprezo,
tal como olharia para qualquer rei da terra: “Você é rei de quê?
Dessa meia dúzia de hectares aí? Dessas pessoas que não servem
para nada? Desse gado que vai morrer? Você é rei disso? Banal.”
Midas somos eu e você, que nos pensamos reis das coisi-
nhas que temos. No seu reinado, você tem domínio de tudo.
Todo o mundo tem seu controlezinho sobre alguma coisinha,
ainda que somente sobre os próprios pensamentos. Se não
225 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

formos voluntariamente e diariamente para o exílio, teremos o


destino do Midas, as orelhas de asno.
Para evitar isso, você terá de marchar para um território qua-
se que inconsciente de sua alma (com inconsciente, refiro-me
a um território do qual você não tem domínio). Isso é estar em
exílio.
Para se exilar, você ficará quieto, de manhã e à tarde, ou em
algum outro momento que escolher. Exílio não se faz em agi-
tação. É preciso querer. Você ficará quieto como Zeus ficou
naqueles seus anos, enquanto seus tios ciclopes tomavam uma
realidade material e dela extraíam um princípio de luz.
Só temos informações de um dos três exílios do Cristo, qual
seja, o exílio dos quarenta dias. Durante esse exílio, em cer-
to momento ele sentiu fome, e houve uma tentativa diabólica
de mudança do verbo da pedra (e ela voltou a aparecer como
símbolo). A presença diabólica soprou no ouvido do Cristo:
“Vê, é pão. Come. Vou transformar estas pedras em pão”, o que era
uma mentira, porque o diabo não tem poder sobre a matéria,
não pode transformar o verbo da pedra em verbo de pão. Ele
pode somente, e tão somente, banalizar a percepção do homem
sobre o verbo — e isso é algo que acontece conosco o tempo
todo. Em vez de enxergarmos o verbo da coisa, enxergamos o
verbo da nossa cabeça. Fazemos uma projeção: “Se estou com
fome, então aquilo é pão”, “Se quero me satisfazer, ela vai topar”,
“Se quero dinheiro, posso roubar”. São operações banais, porque
deturpam o verbo da coisa, tal como fez Midas. Banalizar a
visão é transformar uma coisa em algo que ela não é, segundo
aquilo que você deseja ver.
No deserto, Cristo não estava em seu domínio, em seu ter-
ritório. Isso fica claro no segundo movimento, quando o de-
mônio leva o Cristo para o alto de uma montanha e fala: “Vê.
É tudo meu”, como que dizendo: “Tu realmente não estás no teu
reino. Estás em exílio e, se de joelho me adorares, dar-te-ei todos os
reinados desta terra”.
O Cristo estava forjando suas armas (não que precisasse delas,
afinal era o Cristo, mas estava nos dando exemplo), e é por isso
226

que, ao olhar para a pedra, ele diz que aquilo não é pão, senão
pedra. E que não o comerá, pois quem come pedras é o tempo.
Foi Crono quem comeu uma pedra pensando ser seu filho.
O tempo não distingue o que é metal, o que é pão, o que é pe-
dra — ele tudo consome. Se for para o império do tempo, você
será saciado com pedras, que encherão seu estômago.
Cristo, todavia, estava no exílio, e meditou: “Estou em exílio.
Se adorar esse sujeito e ele me der este domínio, eu me tornarei rei
deste terreno; logo, sairei do exílio.” O Cristo compreendeu as
palavras do demônio e percebeu que ele, na verdade, queria
dizer que faria com que Cristo reinasse sobre um reino que era
seu convertendo-o a um rei medíocre como Midas. O ato da
meditação só pode acontecer no exílio. Ele não pode ser feito
em um reino próprio; por isso, tornar-se “rei do exílio” foi a
segunda das três tentações do Cristo.
Na seqüência, temos o terceiro movimento da tentação do
Cristo, que é óbvio. Se você transforma pedra em pão, e se é
rei deste terreno todo, inclusive do exílio, nada mais lhe fal-
ta. Francamente, você já pode até se jogar do pináculo — é o
terceiro sopro demoníaco, dizendo para que Ele se jogasse do
alto, pois certamente seus anjos o salvariam. Mas não: quem se
joga do alto cai em um buraco de terra, onde poderá confessar
que é um asno, que está destruído, que não tem mais uma bio-
grafia, que é um junco cuja história vai para onde sopra o vento.
Nada disso aconteceu com o Cristo, porque ele estava em um
ato meditativo no exílio, então pôde resistir.
Para nós, esse exílio deve acontecer não durante um ano,
não durante a quaresma, não durante dezoito anos, não du-
rante um final de semana de retiro. Você não sabe o tamanho
da sua história; o que você por certeza tem é um dia. Em um
dia, portanto, você marchará para o deserto e extrairá da pedra
aquilo que ela é: pedra.
Para fazer isso na prática, você deve separar dez minutos do
seu dia para ir ao exílio. Não é um exílio radical, é um exílio
diário, porque não sabemos o tamanho da nossa vida. Nesse exí-
lio diário, vá pegando “pedras” (entre aspas, não pedras reais)
227 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

e meditando sobre elas, num terreno onde você não está acres-
centando nada, porque não tem domínio sobre ele. Simples-
mente fique quieto, feito Zeus. Quem fez a arma do deus olím-
pico não foi ele próprio, mas outros, que estavam lá há mais
tempo. Zeus deixou que a sabedoria deles o iluminasse.
Precisamos nós também forjar as armas de Zeus para fugir
do domínio de Crono. Pegue uma idéia, um parágrafo sobre
um assunto excelente, leia-o por dois ou três minutos, e fique
sete minutos em exílio, fermentando, fazendo nada, deixando
que aquele “princípio de lava” o ilumine sozinho.
De início, por ser matéria bruta, você não distinguirá nada,
apenas se queimará. Não fará nada com aquilo e o ato será
cansativo. Porém, com o tempo e a prática, a lava irá lhe dando
luz e as coisas irão se esclarecendo.
Faça isso dez minutos por dia, todos os dias. Se ficar com
sono, não tem problema; o sono pode ser sua terra de exílio, o
sonho é que não. Basta não dormir. Meditar com sono funciona
do mesmo jeito, porque assim você não tem perfeito controle
sobre seus pensamentos — lembre-se de que você é rei de seus
pensamentos, que ou são ridículos, ou se voltam para alguma
utilidade. Nesse caso, as duas coisas são ruins.
Utilidade serve para fazer café, para ganhar dinheiro e para
um monte de outras coisas, mas não para acessar um certo lu-
gar de iluminação do seu espírito, onde você vira uma espécie
de Zeus. O reino da utilidade é o reino do dinheiro, é o reino
de Midas.
Portanto, vá para o território de exílio, fique quieto, e deixe
aquilo fermentar em você. Não é para “se esvaziar” e “não pen-
sar em nada”. É o contrário. Você deve se preencher. Com a
prática, a coisa vai encaixando no lugar certo.
Os textos excelentes, que serão suas pedras, são os que ex-
traem a luz das coisas, que não deixam você se confundir na
matéria. Busque textos sobre Justiça, sobre Caridade, sobre
Lealdade, sobre Fortaleza, sobre Trabalho, sobre Honra, sobre
Família etc., que são as operações básicas, a substância mesma
da nossa vida.
228

Ortega y Gasset já dizia: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si


no la salvo a ella no me salvo yo”. Você é você e suas circuns-
tâncias, de modo que ganhar luzes sobre elas é, de algum
modo, ganhar luz sobre você. Isso o fortalece ao longo do
tempo.
Um detalhe. Tudo isso deve ser feito em segredo. Esta-
mos falando de um processo de fermentação, de uma se-
mente que se planta. Não é lícito remexer muito a terra;
basta plantar a semente, regá-la, deixá-la em um lugar em
que haja luz e se esquecer dela, que logo ela brotará. Mesmo
com o vinho ou com o bolo não é diferente. Se você teima
em abrir o forno antes da hora para conferir, ele sola; se abre
o barril de vinho repetidamente antes da hora, ele se enche
de ar, oxida e avinagra.
O processo alquímico da nossa alma é muito semelhan-
te a esse. As coisas que importam crescem no silêncio, na
calma, no exílio. Se mexermos demais, elas morrem, solam,
avinagram.

Eu sou eu
e minhas circunstâncias
A vida de muita gente acaba não dando certo por conta disso;
ou, mesmo quando dá certo, ainda é possível melhorar em al-
gum ponto importante. Isso ocorre porque, quando as pessoas
pretendem um autoconhecimento, elas ficam muito focadas na
parte “Eu” da equação “Eu e minhas circunstâncias”, ou seja,
estão muito interessadas em saber sobre si mesmas e pouco
interessadas em saber sobre suas circunstâncias.
Sejamos um pouco mais poéticos e profundos para che-
garmos mais perto do que importa. Não podemos entender
por “circunstância” somente o território no qual nos movemos
(nosso emprego, nossa família, nossa aparência). Sua circuns-
tância é muito superior a isso; ela é composta pelos seus dese-
jos, pelas suas aspirações, pelos conceitos que lhe aparecem e
229 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

que você precisará articular com a sua vida. Nobreza, Lealdade,


Justiça, Traição e Vilania também são circunstâncias da nossa
vida. Se não conhecer essas coisas com a luz de Zeus, com a
luz indestrutível, você se tornará pedra e será devorado pelo
tempo, por ter articulado em si somente a parte material da
realidade.
Muito se fala hoje sobre o autoconhecimento, mas a ver-
dade é que, se não tiver essas circunstâncias claras, iluminadas
pela luz do cetro olímpico, então você, no final das contas, não
se conhece. Eu = Eu + Minhas circunstâncias, e Ortega y Gas-
set completa: “Eu sou eu e minhas circunstâncias, e se não as salvo
a elas, não me salvo a mim.”
Salvar sua circunstância é tratá-la desse modo meditati-
vo no exílio. Zeus salvou seus irmãos, já devorados, somente
quando pegou o raio, o fogo, a luz, e subjugou Crono, aquela
divindade que não distingue verbos, para a qual pedras, filhos,
pães e ferros são a mesma coisa.
Após os salvar, Zeus ordena o mundo, distribuindo uma cir-
cunstância a cada irmão: há o território da Guerra, o território
da Agricultura, o território da Beleza, o território do Amor... E
esses irmãos regurgitados por Crono, agora salvos e iluminados
pelo intelecto, tomam parte na ordem do mundo. Assim foi
que Zeus salvou suas circunstâncias.
Esta é a explicação da frase de Ortega, encaixada na sua
vida e na minha; é ir ao exílio e forjar as armas de Zeus. Faze-
mos isso deixando às claras nossas circunstâncias, que levamos
conosco para o exílio.

As armas da Imperatriz
Ninguém vai para o exílio sem bagagem ou descalço, à toa.
Veja o Mago, a Papisa ou a Imperatriz — todos eles carregam
algo. O Mago tem seu chapéu e seus itens sobre a mesa. A
Papisa tem seu livro e sua tiara. A Imperatriz tem seu escudo e
seu cetro, que são símbolos da vida acontecendo.
230

Não poderíamos percorrer o caminho que percorremos hoje


com base em um artigo científico. Ele não serve para isso; serve
para um monte de outras coisas boas, mas muito pequenas em
comparação. Sob certo aspecto, até mesmo inúteis.
Até cem anos atrás, a civilização não conhecia artigos cien-
tíficos, nem injeção, nem micro-ondas, nem foguetes para a
lua. É bom que a Ciência Contemporânea exista, mas, do pon-
to de vista da evolução do espírito, ela de nada serve.
Precisamos marchar nesta terra munidos do escudo e do
cetro da Imperatriz. O cetro dela é um bastão dividido em
duas partes. São dois copos, um virado para cima e outro para
baixo, ambos fechando uma esfera, simbolizando que um cetro
é próprio deste reinado próprio, e outro é próprio do exílio.
Veja que curioso: a Imperatriz tem um escudo, mas não uma
espada; e nesse escudo está a imagem de uma águia. A águia
é o arquétipo do líder, porque é o único animal que consegue
encarar o sol de frente — e não estamos indo ao exílio para
contemplar a luz? Pois bem. O escudo da Imperatriz carrega
esse olhar de águia, simbolizando o animal que consegue olhar
a luz de frente. Nós temos dois olhos, um de pomba e um de
serpente, um de luz e um de trevas. Nosso olhar funciona por
contraste. O dois é símbolo de divisão, de oposição, que sempre
lutaremos por articular.
Nossos olhos são preparados para luz e para trevas; são
pomba e serpente, boi e jumento. O ciclope tem apenas um
olho, e é por isso que ele só vê luz e consegue ficar perto da lava
sem se cegar, para extrair dali a luz.
Como nós não somos ciclopes, precisamos nos armar com
o escudo da Imperatriz, que nos protege da cegueira. Nesse
sentido, ele é uma arma. A águia é um animal incisivo, agudo
— e, no entanto, ela está retida em um escudo, que não é nada
incisivo, mas sim obtuso, como um pombo.
A águia voa em direção ao sol; ela tem natureza de espada,
mas está inserida num escudo. É a articulação perfeita. Para
nós, esse escudo é o silêncio. Marchemos até a forja dos ci-
clopes armados daquela que é a postura existencial do exílio:
231 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

o silêncio. Deixe que a luz o ilumine. Enquanto o ciclope forja


a arma, você assiste, quieto, portando o escudo que lhe permite
enxergar, o escudo que é, ao mesmo tempo, defesa e arma para
o exílio.
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
233

J
á abordei as três primeiras lâminas que compõem o nos-
so eixo condutor do Tarô. Tratarei agora de um assun-
to acessório ao nosso eixo e, no entanto, essencial em
termos de ajuste de narrativa: a culpa. Ela é causa de um
grande desajuste biográfico, porque pode tanto lhe paralisar
quanto acelerar sua ida para um lugar para onde você não
deveria ir.
Não gostaria de começar conceituando “culpa”, uma vez
que a culpa é uma percepção interna muito difícil de definir
universalmente. Dito isso, iniciarei abordando a culpa a partir
de um lugar que você reconhece como próprio. Mais adiante,
tratarei sobre um lugar da culpa que, embora você até possa
reconhecer, não o consegue nomear (e, geralmente, os fracassos
biográficos vêm desse segundo lugar).
Vimos anteriormente que há quatro narrativas possíveis
para desenvolvermos nossa vida. Dentro de uma dessas narra-
234

tivas, será preciso “encenar” um tipo de personagem específico,


com uma força específica.
Percebemos também que o motivo pelo qual não consegui-
mos levar a cabo nossas pretensões biográficas é justamente a
falta de força interior.
Fizemos também alguns ajustes de percepção do mundo e,
por fim, falamos das ferramentas a que chamamos “armas de
Zeus” a partir da teogonia grega. A teogonia grega é mais com-
pleta do que a teogonia judaico-cristã (ao menos, no que diz
respeito à origem do mundo), pois aquela traz mais elementos
que nos ajudam a compreender simbolicamente onde estamos
inseridos — e aliás uma das primeiras grandes questões de
ajuste biográfico é esse “onde estamos inseridos”, que chama-
mos de circunstância.
Feita essa retrospectiva, voltemos à culpa. A realização bio-
gráfica plena possui alguns inimigos; dentre eles, está um certo
peso que as pessoas carregam dentro de si. Esse peso é como
que um peso de balão de ar: é importante num certo momento,
para fins de calibragem e ajuste, mas eventualmente o balão
terá de se livrar dele para alçar vôo, adquirir a velocidade de-
sejada e assim cumprir sua meta. Esse peso é o peso da culpa.
O psicólogo austríaco Igor Caruso, falecido há algumas dé-
cadas, dizia que a gênese dos sintomas depressivos, histéricos,
ansiosos e, sobretudo, neuróticos, não era exatamente a luta
mal travada entre o Superego e o Id, como pretendia Freud,
mas sim uma outra coisa.
Freud dizia que, quando o Superego não tem capacidade
de recalcar os complexos, sobretudo na gênese dos complexos
fundamentais, como do parricídio e do incesto, surgem os sin-
tomas neuróticos.
Para Freud, o Superego é, na verdade, um tabu cristão: você
só não mata seu pai e só não dorme com sua mãe, por conta do
tabu. Portanto, das duas, uma: ou seu recalque é perfeito e você
não terá sintomas, ou esse tabu deverá ser desfeito para que você
consiga tocar os sintomas e revertê-los. Essa é uma das preten-
sões da psicodinâmica desenvolvida na psicanálise freudiana.
235 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

De um lado, Freud falava sobre a formação do inconsciente


individual; do outro, Jung falava sobre a formação do inconsciente
coletivo. Igor Caruso olhou para ambos e teve uma outra vi-
são, como que dizendo: “Bem, parece-me não ser bem de nenhum
desses lugares que vem a formação dos sintomas neuróticos”.
Houve um outro teórico que também elaborou uma expli-
cação extensa sobre a formação dos sintomas: Léopold Szon-
di, um psiquiatra húngaro. Ele também discordou de Freud
e Jung, considerando que não se trata nem de inconsciente
individual, nem de inconsciente coletivo; pareceu-lhe que a
formação dos sintomas vinha de uma pulsão que todos temos
dentro de nós e que se origina de um inconsciente familiar,
como se tendêssemos, numa linha de ancestralidade, a repetir
os sucessos e as tragédias de nossos antepassados. Eis, portan-
to, um ternário: inconsciente individual, inconsciente coletivo e
inconsciente familiar.
É possível compreender a psicodinâmica humana à luz da
contemporaneidade sem precisar necessariamente de estudar,
digamos, a Ética de Aristóteles ou a escolástica medieval; mas
será muito difícil compreendê-la sem fazer uma articulação
entre os três inconscientes mencionados. E mais: todo psicó-
logo que se cristalizar em apenas um dos vértices do triângulo
terá uma dificuldade enorme em sua pretensão de entender o
homem de modo mais completo. O inconsciente individual
articula-se com o inconsciente coletivo e é permeado pelo in-
consciente familiar. Somente pensando-os nessa integração é
possível alguma compreensão contemporânea mais profunda
do homem, ainda que carecendo das bases da Antropologia
Tradicional Escolástica e do fundamento ético grego.
Se tencionarmos olhar o homem só por um dos lados, fa-
zendo um recorte, faltarão muitíssimas coisas. Seria de um
anacronismo absurdo analisar a Ética aristotélica e pretender
abordar o homem “aristotelicamente” sem o auxílio de outras
ferramentas. Aristóteles não tinha por ofício observar pesso-
as em sofrimento psíquico; por conseguinte, por mais preciso
que seja esse recorte, faltarão elementos e ferramentas práticas
236

para tocar homens e mulheres concretos — sobretudo da con-


temporaneidade. O mesmo se aplica à Psicologia desenvolvi-
da na Escolástica, no período conhecido vulgarmente como
“Idade Média”.

Um parêntese sobre a chamada


Idade das Trevas
Sobre isso, gostaria de abrir um breve parêntese. Recorramos
ao nosso imaginário.
Por que você acha que a Idade Média é uma época sombria?
Seja honesto consigo mesmo. Você já leu algum livro sobre esse
período histórico, ou você só sabe aquilo que aprendeu com seu
professor de História no Ensino Médio? O que você realmente
conhece sobre o poderio da Igreja Católica naquela época, ou
sobre a Inquisição? Quando pensamos em Inquisição, vem-
-nos à mente imediatamente a tal “queima de bruxas” — mas
você conhece os números? Sim, eles estão documentados.
Se for honesto, você admitirá que não conhece sequer um
escritor da Idade Média. Nunca ouviu falar em Duns Scott,
Guilherme de Ockham, Bernardo de Claraval — e, se ouviu,
não os leu. Você não tem idéia da literatura que tem em mãos,
mal conhece um livro escrito naquela época. Qual era o expe-
diente no tribunal de ofício da Inquisição da Igreja Católica?
Havia inquérito, ou era uma coisa mais sumária? Você sabe se
há conexão entre as práticas de inquérito do FBI e as práticas
de inquérito da Inquisição? Sabe se havia diferença entre uma
inquisição civil e uma inquisição religiosa? Provavelmente não,
certo? Pois bem.
Esses questionamentos são uma lembrança de que exis-
te uma ignorância habitando nossa cabeça que nos faz puxar
idéias sabe-se lá de onde. Provavelmente reagimos com base
em preconceitos alimentados pelo professor de História, pela
matéria da revista sensacionalista, pelo post no blog do fula-
ninho, por aquele filminho de época feito sem uma pesquisa
histórica razoável.
237 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Não há razão para torcer o nariz quando lhe disserem que a


Filosofia Escolástica é uma filosofia medieval. A primeira quebra
a ser feita é na idéia de que “medieval” é sinônimo de algo ruim.
Você já foi a Nice, à Toscana, a Madrid, a Lisboa ou a Barce-
lona? São cidades iluminadas, perfumadas, de arquitetura ma-
ravilhosa, é uma coisa incrível, poética. Não é? Imagine esses
lugares, fisicamente, hoje. Desde aquela época, o sol continuou
lá, o eixo da terra continuou o mesmo, as árvores provavelmen-
te eram até mais frondosas e belas. Por que diabos, então, você
acha que na Idade Média todos esses lugares eram escuros,
sombrios e tudo o que havia eram ratos mortos pela rua?
Na Idade Média, a geografia era a mesma, a luminosidade
era a mesma, as pessoas andavam pela rua, elas igualmente to-
cavam suas flautas e violões. Sim: já havia música! As famílias
voltavam da colheita e conversavam, tocavam viola, comiam,
iam à praia, se divertiam, jogavam bola. Todas essas coisas tam-
bém aconteciam na Idade Média. As pessoas viviam em uma
certa harmonia, assim como viviam na Grécia antiga, assim
como viviam na Idade Moderna renascentista, e assim como
vivem na contemporaneidade.
Ocorre que os preconceitos do cinema entraram na nossa
cabeça, e aprendemos que Idade Média foi uma época em que
pessoas encapuzadas queimavam bruxas. O curioso é que, em
toda a Europa, em sete séculos de inquisição, foram executadas
3000 pessoas — e nem todas foram queimadas. Não estou dis-
cutindo se isso é muita ou pouca gente; é apenas um número,
e quero que você o confronte com o que achava sobre o que
ocorria na Idade Média, porque a idéia que nos foi vendida é a
de que havia fogueira, forca e guilhotina todas as semanas para
executar alguém que discordasse da Igreja Católica.
Ao pensar em Filosofia da Idade Média, em Psicologia e
Antropologia Medievais, portanto, a primeira coisa que deve
surgir na sua cabeça é um desmonte dessa falsa idéia implan-
tada na sua cabeça. A verdade é que boa parte das neuroses,
das pretensões e das crenças que as pessoas têm, não vem da
realidade, mas de uma fantasia, de um preconceito, de um “ouvi
falar”, de uma idéia forjada.
238

De modo semelhante, o ciúme que corrompe e destrói re-


lacionamentos familiares e empresariais é totalmente baseado
em crenças fantasiosas, em indícios de realidade — que, por-
tanto, não são realidade por definição, mas fantasias que habi-
tam nossa cabeça.
No ofício do consultório, no aconselhamento, na amizade,
ou mesmo na pretensão autobiográfica, é essencial fazer um
inventário de coisas que fundamentam o nosso “conjunto de
crenças”, porque o seu pode muito bem estar moldando sua
vida de um modo destrutivo: caso não seja calcado no real.
Afinal, a vocação biográfica se desenvolve dentro da realidade,
entre o chamado e a circunstância.
Prefira sempre estar fundamentado na circunstância real a es-
tar fundamentado na circunstância imaginária, porque esta é
má pagadora. O combinado não sai caro, mas a imaginação
não tem tamanho, não tem peso, não tem volume, não tem me-
dida, então tudo o que se combina com ela acaba saindo caro.
Como dizia santa Teresa, ela é a “louca da casa”. É necessário
ter uma imaginação pautada na realidade, com profunda raiz
no real, porque a que se desloca disso é má pagadora.
Para se basear na realidade, é necessário, em primeiro lugar,
uma noção da concretude do real, que só se adquire observando,
conversando, tendo calma, lendo, investigando e, sobretudo, se
acalmando. Pessoas muito ansiosas padecem de uma tremenda
fabulação imagética. Por exemplo, certa feita eu estava em uma
casa numa região na qual há desmoronamentos, e começou a
trovejar e chover. Logo comecei a ficar ansioso, e teve início
uma fabulação imagética. “Meu Deus, serei soterrado aqui. Te-
nho de ir embora”. Imediatamente, porém, fiz o exercício de me
calcar em dados, de me basear na realidade, e pensei: “Estatis-
ticamente falando, morros não desmoronam assim tão fácil, e, na
verdade, não está chovendo tanto. Isso é neurose, é loucura. Melhor
ficar aqui. Sair de carro nessa tempestade é muito mais perigoso.”
Naquele momento, minha imaginação baseava-se em certos
elementos da realidade, mas era amplificada por todas as his-
tórias que conheço de gente cuja casa desmoronou. Na prática,
239 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

era muito mais perigoso sair de carro na madrugada e na chuva


do que ficar ali.
Quantas condutas biográficas não adotamos com base nes-
se tipo de operação de fábula narrativa? Para citar uma só: a
do psicólogo que rechaça todo o conteúdo medieval por causa
do mero nome “medieval”, que, hoje, ecoa “trevas” e “ignorân-
cia” em 98% das cabeças viventes. Que tragédia seria, para um
psicólogo, ignorar todo o corpo antropológico oferecido por
aqueles sujeitos do Medievo! E esse é apenas um exemplo do
ponto de vista intelectual; em nossa vida prática, acontecem
coisas parecidas o tempo todo.

Culpa enquanto sintoma,


culpa enquanto sinal
e culpa existencial
Entender, pois, a Psicologia Contemporânea desarticulando o
inconsciente individual de Freud do inconsciente coletivo do
Jung e do inconsciente familiar do Szondi, é o mesmo que
não entender a psicodinâmica do homem à luz da contempo-
raneidade. E essa psicodinâmica ainda pode — e deve — ser
completada com a contribuição dos medievais, dos gregos — e,
por que não, de Igor Caruso.
Caruso olha para aquela dinâmica freudiana-junguiana e
pensa: “Existe ainda algo mais profundo e mais fundamental na
gênese dos sintomas neuróticos”.
A todo momento volto-me à gênese dos sintomas, porque
“sintoma”, para nós, é sinônimo de pedra de tropeço, de difi-
culdade, de peso na nossa escrita biográfica. Igor Caruso olha
para o ser humano e considera que, na gênese dos sintomas, na
dificuldade de desenvolver uma biografia, está a repressão da
consciência moral. Quando um sujeito reprime ou recalca — a
nomenclatura muda, mas a psicodinâmica é a mesma — sua
consciência moral, quando recalca aquilo que ele sabe ser certo
e segue fazendo o errado, ele padecerá dos sintomas neuróticos.
240

Existe um sintoma fundamental, que aparece no início da


repressão da consciência moral, chamado culpa. Ela é, portan-
to, um símbolo, e um símbolo, via de regra, possui duas faces;
é como o deus romano Jano. Jano é aquele ente mitológico de
duas faces, sempre olhando para a frente e para aquilo que já
passou, na interseção dessas duas realidades. Daí o nome “Ja-
neiro” que, no calendário romano, é o mês situado entre o fim
do ano anterior e o início do seguinte.
A culpa pode ser percebida como algo real, mas também
como algo simbólico, de duas faces. Uma delas é a que olha
para baixo e pesa gravemente; a outra é a que olha para cima e
permite acesso à redenção, como um sinal positivo, um alerta.
Se você não percebe culpa interiormente, ou seja, se não se
sente culpado, então das duas, uma: ou você tem uma consci-
ência muito deformada, ou você passou anos praticando aquilo
a que podemos chamar vício. Você reprimiu sua consciência
moral de tal modo, e por tanto tempo, que lhe aparece um
sintoma ao qual você já não consegue mais dar nome, na forma
de alguma questão interior; alguma lentidão, alguma preguiça,
alguma instabilidade, alguma inconfiabilidade, alguma injusti-
ça, algum nervosismo, alguma ansiedade...
Por uma repressão da sua consciência moral, você talvez já
não saiba mais a origem do problema, não consiga mais inves-
tigar onde ele está. Isso se atinge com anos de prática repri-
mindo o que se acha certo e fazendo o errado (sabendo que
é errado). A culpa, então, já não tem mais aquela face, aquele
sinal positivo de alerta; ela é algo que mira para baixo. Quando
chega a esse ponto, você não vê mais nada do que está acima,
você simplesmente segue agindo como já vinha agindo, cerca-
do por sintomas de desvio biográfico.
Essa é, em linhas gerais, a idéia de Igor Caruso. Como, en-
tão, agir diante disso?
Bem, se ainda há uma clara culpa em sua cabeça, você não
precisa fazer um inventário de consciência, de conduta. Se ain-
da tem noção do que é certo e do que é errado, esse é um
ótimo sinal, quer dizer que você só não está conseguindo agir
241 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

de acordo. O problema maior surge quando você agiu errado


por tanto tempo que já não sabe mais o que é agir certo. Nesse
caso, Caruso propõe que se faça uma formação da consciência;
é realmente voltar ao bê-á-bá para formar a consciência nova-
mente — que é parte do que estamos fazendo aqui.
A formação da consciência, portanto, é parte do método
terapêutico proposto por Igor Caruso. É preciso formar sua
consciência mais uma vez, e o procedimento para isso engloba
o acesso à Beleza por vias como a literatura (poesia, romances,
etc.), e o cinema. A boa arte, especialmente a cinematográfica,
ao explicitar a conduta de seus personagens, pode ajudar no
processo.
Um remédio é assistir a bons filmes de super-heróis, em
que a pretensão do ser humano enquanto narrativa xátria está
muito clara. O protagonista sempre faz o bem e vence o mal.
Assista aos filmes do Batman ou do Homem-Aranha — não é
preciso ficar assistindo a filmes cult. Você não é o Homem-A-
ranha nem o Batman, mas vê-los é uma forma de reacender em
você princípios ocultos da sua biografia.
Outra forma de formar a consciência moral é a meditação
de que falei anteriormente. Levar para seu exílio interior ques-
tões de Justiça, Nobreza, Temperança, de Valentia, também vai
reacendendo sua consciência moral.

A culpa do fracasso: o que acontece


quando escolhemos um modelo
biográfico inalcançável
As pessoas sentem-se “nobremente” culpadas, na melhor das
hipóteses, porque sabem que estão fazendo algo que é errado.
Você deu um tapa em alguém, furtou, mentiu, e veio aquela
culpa. Se ficar agindo assim durante muito tempo, você poderá
reprimir sua consciência moral, aquilo se tornará um hábito e
você terá sintomas. Esse é um dos princípios da culpa sobre o
qual precisamos agir. Existe, porém, outra dimensão da culpa,
242

esta, sim, mais endêmica e mais profunda, e, no entanto, des-


conhecida pela maior parte das pessoas. Quando eu começar a
descrevê-la, você logo a reconhecerá.
Um sociólogo australiano com alguns estudos sobre a cul-
pa descreveu perfeitamente esse movimento. O nome dele é
John Carroll. Um de seus livros chama-se “On Guilt: The For-
ce Shaping Character, History, and Culture”, mas é no livro
“Guilt: The Grey Eminence Behind Character, History, and
Culture”, de 1985, que ele descreve bem o fenômeno.
Carroll diz que há todas essas culpas que comentamos e
que, em geral, confessamos. São as culpas morais, das quais
também fala Caruso; mas Carroll alega que há também, no
fundo de toda vida, uma culpa mais fundamental, que ele não
chega a descrever ou nomear exatamente, mas que parece ser
geradora dos sintomas de desvios biográficos profundos. É a
culpa do fracasso.
Quando você está se desculpando por uma culpa moral, em
regra, você está revoltado porque fracassou. Quando pede des-
culpas por ter roubado, por ter mentido, esse pedido brota de
uma culpa que você teve por fracassar em algo específico: você
tinha um modelo na sua cabeça, mas fugiu dele.
Veja que coisa terrível: você não está se culpando por um
mal que fez; está se culpando porque projetou algo sobre sua
vida e falhou — não porque errou moralmente, mas porque
você é ruim e fraco. É uma culpa insidiosa, sem esperança,
egoísta.
Carroll diz que a formação dessa culpa específica ocorre a
partir da escolha de modelos impossíveis de serem concreti-
zados. Existe uma culpa que advém do fato de que você quer
ter sucesso — portanto, quando faz alguma coisa errada no
trabalho, você é tão canalha, que não sente um arrependimento
moral. Você está frustrado consigo mesmo, porque é egoísta e
porque tinha na cabeça um modelo de sucesso irrealizável.
A criança sempre começa a pensar no que deseja ser quan-
do crescer: médico, bombeiro, astronauta. Depois, ela vai fa-
zendo ajustes: “É, ser astronauta era só uma idéia que eu tinha
243 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

quando criança, mas isso não tem nada a ver comigo; além do mais,
é muito difícil chegar a ser astronauta. E, pensando bem, a vida
de um astronauta deve ser muito triste. O que quero mesmo é ser
médico (ou arquiteto, ou cineasta, ou engenheiro, ou contador).”
Quantas pessoas não andam culpadas hoje por modelos de
sucesso irrealizáveis? Pensemos, por exemplo, na idéia de “ficar
rico”. Antes de mais nada, guarde bem isto: não estou dizendo
que não é possível ficar rico, mas apenas que ficar rico não de-
pende só de você. Isso é muito esquisito, porque vai contra uma
idéia burguesa estúpida, mas que parece absolutamente correta
e moral hoje em dia, chamada “meritocracia”. Por ela, ascende-
-se pelo “mérito”: se você trabalhar duro, chegará lá, ficará rico
e prosperará. Isso é coisa de gente que nunca percebeu como
a vida funciona. Há muitas pessoas obstinadas, que trabalham
duro a vida inteira e jamais ficam ricas. Não é assim que se fica
rico, e, sinceramente, “ficar rico” não é algo ensinável ou que
tenha um método certo. Existem tantas variáveis sobre as quais
não se tem controle, que enriquecer é um processo irreprodu-
zível — e qualquer rico com um mínimo de honestidade vai
lhe dizer isso.
“Italo, isso não é verdade. Eu sei como ficar rico definitivamente.
Basta fazer o que fiz: estudar tudo sobre a bolsa de valores, sobre de-
rivativos, renda fixa, opções de venda, opções de compra etc., e aplicar
seguindo o método.” Certo, mas você, que enriqueceu assim, pro-
vavelmente tomou conhecimento sobre a bolsa a partir de um
princípio que não controla: alguém por acaso lhe contou, e você
por acaso estava com disposição para ouvir naquele dia, e assim
pôde pesquisar mais a fundo depois. Calhou ainda de ter algu-
ma sorte, pois você poderia ter perdido todo seu dinheiro ou,
pior ainda, ficado devendo muito dinheiro. Sei que pode parecer
frustrante, mas a verdade é que ninguém sabe como ficar rico.
O modelo que as pessoas têm na cabeça é: “Ficarei rico e
terei muito sucesso, basta eu ser uma pessoa esforçada”. De fato, à
exceção dos sortudos e dos herdeiros, só ficará rico quem se
esforçou muito, quem trabalhou muito. Mas não seja estúpido:
existem pessoas que trabalham muito mais do que você, que
244

são muito mais capazes, muito mais comprometidas e, ainda


assim, não ficaram nem ficarão ricas.
O sujeito que chegou lá no topo dirá: “Você precisa ter mérito,
trabalhar dia e noite, se esforçar, servir, não encher o saco”. Certo,
mas será que esse sujeito já se deu conta de que existe muita
gente pobre ou na classe média que faz exatamente isso, e ain-
da muito melhor do que ele — gente com talento — mas que
não enriqueceu? Ora, “ficar rico” não depende só da pessoa. Há
um imenso número de variáveis incontroláveis.
Vou dar exemplos mais concretos, que podem parecer cho-
cantes. Pense num rapaz que quer apenas ser médico, sem
pretensão de ficar rico. Se esse rapaz estiver em Cuba, talvez
seu sonho não se realize, pois uma regulação estatal sobre a
profissão só permite a titulação de médicos se o país estiver
precisando de médicos. E mesmo no Brasil o rapaz poderia se
frustrar com facilidade. Suponhamos que ele tenha estudado
horrores, mas não tenha conseguido uma nota no vestibular
que lhe permitisse ingressar numa universidade pública. Se a
família dele não tiver dinheiro para pagar a faculdade, ele não
será médico, simples assim.
Mesmo o rapaz que quer ser contador poderá encontrar di-
ficuldades que o impedirão de chegar a seu objetivo. Suponha-
mos que ele tenha estudado bastante para se tornar contador,
mas seu pai morreu, e eis que ele, do nada, vira arrimo de famí-
lia e precisa ganhar dinheiro imediatamente. Ele vai se tornar
motorista de aplicativo, caixa de supermercado, qualquer coisa
que lhe garanta o sustento da família, e já não poderá mais se
dedicar à faculdade. Ao menos temporariamente.
E o rapaz que quer ser comerciante e já tem uma loja pron-
ta? Parece que tudo está a seu favor. Mas pode ser que a loja
pegue fogo e ele não tenha seguro. Ou que aconteça como
aconteceu atualmente a tantos lojistas que haviam acabado de
montar seus empreendimentos: surja uma pandemia e o pre-
feito da cidade mande fechar todos os estabelecimentos por
tempo indeterminado, ele não consiga transformar sua loja
física em e-commerce e acabe falindo.
245 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

E o rapaz que quer ser bailarino, tem dinheiro e estuda na


melhor escola de balé do país? Não há chances de dar errado,
certo? Ora, ele pode sofrer um acidente de carro e perder as
duas pernas.
Mesmo a mocinha que julga ter pretensões mais humildes
e, no entanto, mais nobres, pode se ver frustrada. A mocinha
que quer apenas ser mãe pode se deparar com a triste realidade
de ser infértil. Ou pior: pode ser mãe e perder todos os filhos
num acidente. Ou ver todos os filhos virarem bandidos, dro-
gados, cafetões, ou qualquer coisa de que não gosta. “Ser mãe”
também não depende só da pessoa. Por mais primorosa que
seja a educação recebida pelo filho, por mais amor, carinho e
valores cristãos que a mãe lhe transmita, cada filho ainda terá
uma coisa chamada liberdade.
Todos esses modelos de vida citados conduzem a uma cul-
pa existencial, invariavelmente. Quando essas idéias são postas
como ideais de realização biográfica, só uma coisa acontecerá
dentro de você: culpa atrás de culpa, porque você vai fracassar.
Mesmo que tenha ficado rico, será que você ficou rico tanto
quanto queria? Mesmo que tenha se formado médico, será que
você está na clínica que queria? Mesmo que tenha se tornado
mãe, será que teve a quantidade de filhos que gostaria, ou será
que seus filhos se tornaram o que você desejava? Quando a
resposta é “não” (e a resposta sempre é essa), surge um pen-
samento que sintetiza essa conexão entre Igor Caruso e John
Carroll: “As coisas estão dando errado na minha vida porque sou
imoral. Foi um erro que cometi lá atrás, foi minha preguiça que me
levou ao fracasso; foi a mentira que contei no aniversário de três
anos da minha sobrinha e acabou repercutindo mal na família que
fez com que eu fracassasse”.
Não estou dizendo que você deva ser imoral; sustente por
um momento a idéia de Igor Caruso, porque ela não será der-
rubada, mas precisa estar profundamente articulada. Se estiver
isolada, você pensará que tem de ser bom e fazer a coisa certa;
mas isso não basta. Não basta ser bom e agir moralmente. Se
seu modelo biográfico for inadequado, você estará projetando a
246

realização da sua vida em algo que não depende de si, de modo


que ainda haverá culpa.
Além disso, você não sabe de onde vem essa culpa. Sua vida
será vazia, pesada e dramática, sob certo aspecto, e eventual-
mente você poderá pensar que, apesar de ser bom, de ter uma
vida de oração, de buscar agir sempre moralmente, de ter luta-
do contra suas más inclinações, há algo que não está andando.
Essa é a culpa de que John Carroll falou. É uma culpa de for-
mação, quase que estruturante, que surge a partir da escolha de
um modelo biográfico inalcançável.

Enfim um modelo biográfico


realizável: Breve introdução
às Doze Camadas da Personalidade
Quando a pessoa escolhe um modelo biográfico inalcançável,
ou seja, que não depende dela, um modelo-idéia, como, por
exemplo, uma carreira, ela sentirá essa culpa. Também são mo-
delos biográficos inalcançáveis o veganismo, o comunismo, o
esquerdismo, o direitismo, o bolsonarismo e tudo quanto for
ideologia.
Essas idéias são discutíveis, afinal, nem todo o mundo é
comunista, mas ao tentar discutir com alguém que aderiu a
esse tipo de eixo biográfico, na tentativa de convencê-lo de
que o eixo é ruim, só haverá uma reação possível. A pessoa
não entenderá que você está falando do comunismo, criticando
a coisa, mas achará que você está falando dela, criticando-a.
Quando esse é o eixo biográfico da pessoa, ela reagirá como se
você estivesse fazendo-lhe uma ofensa pessoal, porque é pesso-
al mesmo, e tratando-se de ofensa pessoal, já não estamos mais
no nível de uma discussão racional lógica.
Isso vale para o veganismo, mas também para o tomis-
mo. Pois certas operações fogem à pretensão de escolas filo-
sóficas ou teológicas, bem como de determinadas ideologias.
Como ter uma relação sexual homossexual ao modo vegano?
247 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Como pagar uma conta no banco ao modo tomista? Como


fazer uma oração a Deus ao modo vegano? Não dá. Logo, ve-
ganismo e tomismo não podem ser eixos biográficos.
Embora a ideologia vegana seja certamente muito mais ras-
teira e limitada do que a extensíssima e abrangente obra do
Aquinate e possa parecer descabido colocar tomistas e veganos
lado a lado, quando o tomismo se torna o eixo biográfico de
alguém, a coisa também fica feia.
Tanto o vegano quanto o tomista poderão julgar os outros
como imperfeitos e imorais se notarem que estão diante, res-
pectivamente, de não-veganos ou não-tomistas. Assim, não é
incomum que olhem com desprezo para os não-veganos ou
não-tomistas, pois eles mesmos amputaram várias dimensões
das próprias vidas.
O primeiro movimento de quem está sentindo culpa é de-
fender-se com unhas e dentes. É preciso ser muito humilde
para assumir a culpa de cara. O tomista e o vegano se sen-
tem culpados, pelo princípio de culpa de John Carroll, porque
acreditam que sua vida fracassará, ou mesmo que ela já é um
fracasso, tendo em vista que inúmeros movimentos dela não
podem ser tomistas nem veganos. Não se pode beijar na boca
ao modo tomista, não se pode fazer um relatório ao modo
vegano.
A vida dessas pessoas será um fracasso sempre, exceto quan-
do estiverem estudando São Tomás de Aquino ou quando al-
gum ponto do tomismo for aplicável (no caso dos tomistas),
ou quando estiverem comendo (no caso dos veganos). O pro-
blema é que essas atividades ocupam um período ínfimo do
dia. Em todo o resto, em todos os outros domínios da vida do
sujeito, haverá um fracasso biográfico.
A escolha de um eixo biográfico desses lhe impõe um peso
de culpa, você se torna hiper-reativo diante do mundo e se
sente culpado por estar fracassando. É o princípio da crise de
base, de que fala John Carroll.
“Italo, mas eu sou uma blogueira fitness em tempo integral”. Só
é possível ser fitness quando você está fazendo exercícios ou
248

comendo. Em todo o resto da vida, você não poderá ser fitness.


Como cortar o cabelo ao modo fitness? Como ir ao hospital
operar apêndice ao modo fitness? Não dá. É óbvio que sua vida
será permeada por esse fracasso existencial que inscreve em
você o peso da culpa. Sua vida não andará, embora possa pare-
cer andar. É aí que o sujeito começa a extrapolar e tenta levar a
coisa fitness para todos os âmbitos da vida, e começa a falar em
assuntos fitness em todas as rodas de conversa e a vestir-se com
roupas fitness em praticamente todas as ocasiões. Mas nem isso
é possível fazer sempre. Eu nunca vi ninguém com roupa de
academia em um casamento, por exemplo.
Sua vida se tornará uma coleção de fracassos acumulados que
não têm a ver com a moralidade de certo ou errado. Você pode
ser um sujeito fitness, vegano ou tomista, do modo “certo” (do
ponto de vista de Igor Caruso). Você pode não cometer crimes,
não roubar, não mentir. O problema é que o certo e o errado
estão na base. Não é que seja melhor ser um sujeito relaxado e
displicente do que ser fitness, ter saúde e força. O ponto é que
estamos falando de certo e errado, e da impossibilidade de ter
uma biografia completa e ampla, porque o modelo é insuficiente.
É como a escolha do “ser rico”. Não dá para objetivar uma
biografia com esse modelo, porque a realização dele não de-
pende de você. Deixar de comer carne e estudar São Tomás de
Aquino são coisas que até dependem você; o que não depende,
nesses casos, é a realidade da vida, que é mil vezes mais ampla
do que uma academia e até mesmo do que a obra inteira de
São Tomás.
A escolha de um modelo biográfico correto é fundamental.
O problema é que o homem não inventa modelos biográficos,
está sempre imitando alguma coisa. Precisamos, portanto, en-
tender o que é o modelo biográfico possível, porque esses todos
são irrealizáveis por definição.
Já se perguntou por que é que existe um pessoal religio-
so, de igreja, com anos de prática religiosa, que mesmo assim
não consegue progredir na vida, não fica mais inteligente, nem
mais caridoso, nem mais humilde? Isso acontece porque eles
249 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

têm, na base, a imoralidade contra a biografia, traduzida em


um modelo de vida estruturalmente impossível, em um eixo
biográfico impossível de ser realizado. São esses os indivídu-
os que começam a culpar Deus de modo sutil e a buscar em
si próprios os motivos pelos quais não têm sucesso, quando a
verdade é que o sucesso não depende só do indivíduo.
O fetiche da meritocracia humana precisa acabar na cabeça
de todos. O mundo não é meritocrata! Qualquer um que tenha
de escolher entre alguém da própria família e alguém desco-
nhecido, escolherá alguém da família, a não ser que a diferença
de competência seja avassaladora. Essa escolha será baseada
puramente no amor, e não há mérito nenhum nisso. É assim
e pronto. De modo semelhante, pessoas feias são preteridas
todos os dias em prol de pessoas bonitas e jogadores mais altos
serão escolhidos antes para ingressar nos times de basquete.
Para ter uma vida com sentido, livre de culpa, não basta
ser bom; mas isso não quer dizer que devamos ser maus. Essa
culpa estruturante não exclui as necessidades conceitualmente
elencadas por Igor Caruso — o problema é quando só elas
aparecem na sua história.
Já vimos os eixos narrativos, e agora entendemos que certos
modelos de vida não podem funcionar por definição — e, infe-
lizmente, são esses os modelos que estão em voga hoje.
A verdade é que o único lugar biográfico no qual é possível
encontrar um modelo moral para o desenvolvimento da sua
biografia é na formação do seu eu. Somente um sujeito que está
comprometido em falar “eu” entra no fio da biografia própria
possível de ser realizada. Isso é muito profundo e prático ao
mesmo tempo.
O que me diferencia de você, no final das contas, é que,
quando eu falo “eu”, não é você quem está falando. É só isso.
A única coisa que se pode controlar nesta vida é o lugar a partir
do qual se fala “eu”, é o testemunho solitário que se dá diante
da vida. Todo o resto está fora de controle. Controlar este lugar
é a única maneira de sair dessa culpa de base, desse fracasso
necessário.
250

A descrição das Doze Camadas da Personalidade Humana


do professor Olavo de Carvalho é o único modelo de realização
biográfica possível. Lá está descrito o itinerário de realização
pessoal; as doze camadas são o eixo biográfico — veja bem, o
eixo biográfico, não o eixo narrativo. Você pode contar qualquer
história: a dos brâmanes, dos xátrias, dos vaixás e dos sudras,
mas, ao fim e ao cabo, se a história contada não for a sua, se
você não for escalando as camadas, você terá fracasso na base. As
doze camadas são a história da conquista de um “Eu”. São mo-
tivações que vão se personalizando, tornando-se cada vez mais
pessoais, camada a camada.
A motivação da Primeira Camada é ser, aparecer, existir. Essa
é uma motivação maximamente impessoal, totalmente passiva e
inconsciente, igual para todo o mundo . Sequer é preciso consci-
ência para tê-la. A única intenção do feto no ventre da mãe é ser,
existir, não se desintegrar. Não é uma intenção consciente, uma
vez que o feto não tem consciência, mas uma tendência. Na pri-
meira camada temos, portanto, não uma psique do modo como
a entendemos, mas aquele ente já tem o desejo de permanecer.
A motivação da Segunda Camada, por sua vez, é ser, mas
ser na história. Lembre-se do inconsciente familiar de Szondi.
Na Primeira Camada, você aparece, adquire presença metafísica;
na Segunda, você se faz de carne e osso, você aparece na história
— e história é família. Rebenta em você o sangue de seus pais.
Isso também é pouco diferenciado, pouco pessoal, porque, que-
rendo ou não, muita gente apareceu nessa sua família; esse san-
gue vem sendo carregado há milênios. Não existe ainda propria-
mente um eu individual na Segunda Camada, portanto.
Depois vem a Terceira Camada, cuja motivação é aprender.
Quem está aprendendo, porém, é um ser ainda pouquíssimo
pessoal. Não é um aprendizado intelectual, e sim mais básico,
de estar no mundo, calculando-o. Na Terceira Camada, você
aprende que as coisas têm unidade, são separadas, existe distân-
cia; você aprende, basicamente, a se instalar no mundo, e todo
ser humano adulto vivente está instalado neste mesmo mundo
e aprendeu sobre ele. Logo, essa camada ainda é pouco pessoal.
251 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

As dificuldades de aprendizado da Terceira Camada são aqui-


lo que o impede de continuar progredindo. O autismo grave, o
retardo moderado, as lesões neurológicas, o impedem de calcular
as organizações das letras, das frases, das unidades narrativas.
Existe dificuldade até em compreender um pedido simples, por-
que ele nada mais é do que pequenas historinhas conectadas,
como em “Você pode pegar aquela xícara, colocar nela um pouco de
café e depois adoçá-lo com açúcar, por favor?”. Por isso é que, com
o autista grave, é necessário falar uma coisa de cada vez, calma-
mente e olhando para ele. Ele não calculou o mundo direito, e
tem essa dificuldade de aprendizado.
A Terceira Camada é pouco personalizada, porque todo o
mundo aprendeu ou está aprendendo este mesmo mundo. O
que está entrando em você é compartilhado com muita gente;
não existe um eu interior ainda.
Na Quarta Camada, temos a formação do mundo afetivo.
Você começa a ter um eu mais pessoal, mas ainda é um eu passi-
vo, porque o território interior é de uma matriz comum a todos
os seres humanos, antropologicamente falando.
O território a ser conquistado na Quarta Camada é o da se-
gurança, e isso vale para todos. A pessoa na Quarta Camada
só quer dizer: “Eu fechei um contorno interior de segurança”. Sim,
ela já tem eu, mas ainda é pouco personalizado, pois é muito
semelhante a todos os outros. Mesmo os sofrimentos de Quarta
Camada são iguais para todo o mundo, e isso já é indício de que
há pouco eu ali.
Já a motivação da Quinta Camada é testar forças e vencer, é
autodeterminar aquele eu que foi formado e fechado interior-
mente na Quarta Camada. Aqui já há um eu mais bem deli-
neado, porque sua ação no mundo é sua, já começa a ser mais
pessoal. Você quer agir no mundo e vencer.
Nenhum adulto deveria ficar aprisionado na quarta camada,
pois ela não é senão uma etapa de transição. Mas há hoje muita
gente que insiste em não amadurecer, em não abandonar a quar-
ta camada. No consultório, faço uma progressão congruente para
tirar o sujeito da quarta e jogá-lo na quinta ou na sexta camadas.
252

É preferível um sujeito brigão e forte (de quinta camada) do que


um coitadinho. É bom ser alguém brigão e forte? Não. Mas já
é melhor do que um coitadinho que não faz nada e sempre se
coloca como vítima. O sujeito de quinta camada já reconhece, de
algum modo, que há um mundo fora de si. Quem está na quarta
camada acha que o centro do mundo é o seu umbigo; quem está
na quinta acha que o centro do mundo é o seu braço — o que
é melhor, pois um braço pode derrotar um inimigo, limpar uma
pia, embalar um bebê, dar pão a quem tem fome, ao passo que
um umbigo só o que faz é juntar sujeira.
Na seqüência, existe a motivação da Sexta Camada, que é agir
no mundo, vencer e recolher benefícios de utilidade com aque-
la ação. Nesta camada, começa-se de fato a ser adulto. Nela en-
contramos o sujeito que, embora não seja propriamente altruísta,
reconhece que precisa de outros e que precisa fazer algo pelos
outros; do contrário, não ganhará nada. É o sujeito que sabe
que precisa trabalhar, produzir, ajudar - ser útil de algum modo.
Veja a complexidade de realização que já temos. A história das
Doze Camadas da Personalidade é a história da conquista de um
eu. Este é o único eixo biográfico possível para todo o mundo.
Dito de outro modo, os sofrimentos e culpas que aparecem, no
final das contas, são culpa por não amadurecer. Amadurecer é con-
quistar um eu cada vez mais individualizado; e isso, que é uma poe-
sia compreensível, mas abstrata, torna-se cristalino no itinerário das
doze camadas. Elas são o remédio para a falsidade biográfica.
Um mesmo objetivo pode ser alcançado por mais de uma mo-
tivação, a depender da pessoa. Você pode, por exemplo, querer ga-
nhar dinheiro para ser útil (Sexta Camada), mas também pode
querer ganhar dinheiro para se sentir amado por seus pais (Quarta
Camada). Nesse último caso, ganhar dinheiro não resolverá nada
desse fracasso que você tem por dentro, porque seu fracasso real
não é a pobreza, mas a imaturidade latente da Quarta Camada.
Todos esses modelos biográficos (ser médico, ser mãe, ser
rico...) acabam caindo em alguma camada. Ganhar dinheiro e
ter sucesso é uma motivação característica da Sexta Camada, mas
ainda é uma motivação pouco personalizada. Acima dela, exis-
te uma série de outras necessidades do eu, e o sujeito que ganha
253 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

muito dinheiro e de fato está na Sexta Camada eventualmente


acaba notando que ele não serve para nada além de fazer dinheiro
— como tantos outros no mundo (daí a falta de personalização).
Não à toa, a motivação da Sétima Camada é servir, e seu re-
presentante teórico é Alfred Adler, que diz que os sintomas apa-
recem a partir de uma coisa chamada complexo de inferioridade.
E é verdade: enquanto não entender que seu eu aparece no con-
fronto de serviço para a comunidade, você será inferior.
Ainda faltam coisas, mas Adler já conseguiu ver mais lon-
ge do que seus colegas. Não adianta autodeterminar o seu eu
interiormente, como Freud propõe, ou projetá-lo no mundo,
diante dos arquétipos, como Jung pretende. Adler é quem diz
que, acima de todos esses eus, existe um eu mais poderoso (mais
personalizado, portanto), que é o eu que aparece no confronto de
serviço para a comunidade.
Esse eu é mais poderoso, porque o serviço já começa a, de
fato, depender de você. Ganhar dinheiro não depende somen-
te de você, mas de outras mil circunstâncias que fogem ao seu
controle. Numa situação de guerra ou de penúria, onde faltam
recursos materiais, você nunca ganhará dinheiro (a não ser que
seja dono de uma indústria bélica). Numa sociedade cibernéti-
ca, em que a tecnologia tomou conta de tudo, só sobrarão três
profissões: TI, metalúrgico e pedreiro. Não dá para se realizar ali
ganhando dinheiro ou sendo médico ou bailarino; mas mesmo
em uma sociedade dessas, onde falta a possibilidade do sucesso
profissional, é possível desempenhar o eu da Sétima Camada,
que é o papel social do serviço, como vemos com Adler. O papel
social não é uma máscara que diminui ou que anula o indivíduo.
Pelo contrário, se estiver na sétima camada, o papel social faz
com que você seja mais você. Chega uma hora em que você per-
cebe que sua motivação é entregar e servir. Você é mais quando
entrega para o outro aquilo que corresponde à expectativa dele.
Todo ser humano normal deveria chegar à sétima camada, de
algum modo. Ao longo da vida, se você aprende a fazer mui-
tas coisas úteis, alguma comunidade terá uma expectativa sobre
você, e o que você tem de fazer é cumprir esse dever.
254

Por fim, na Oitava Camada (só comentarei até ela), aparece


um eu que fica. É uma força que independe até mesmo da co-
munidade; é um eu que apareceu na linha metafísica (Primeira
Camada), que se concretizou com sangue de seus antepassa-
dos (Segunda Camada), que aprendeu a se instalar no mundo
(Terceira Camada), que contornou seus afetos no mundo interior
(Quarta Camada), e que, por ter uma unidade interior, pôde testar
forças no mundo (Quinta Camada). Essas forças passaram a ser
úteis e a trazer recursos de sucesso (Sexta Camada), e ele agora
as põe a serviço da comunidade (Sétima Camada) e transcende a
conquista material (Oitava Camada). É o itinerário de personali-
zação do eu; a cada vez que você fala eu perpassando as camadas,
esse eu se torna mais seu e mais indestrutível.
Não se trata do papel social prestado, do dinheiro desejado, do
estilo de vida vegano ou tomista, do ser fitness, ou do ser médico.
Essas coisas são a impossibilidade mesma da realização biográfica.
Assim não dá para ser, e, se tentar, você carregará uma frustração
de base que o levará para uma culpa existencial e, por conseguinte,
para uma tristeza.
Na Oitava Camada, a motivação já é a aquisição de um eu que
independe de comunidade, de dinheiro, de força, de um mundo
afetivo. A Oitava Camada é a resposta de um eu diante da morte,
porque, na comunidade, ainda há muita gente, mas, no fim, quem
morre é o indivíduo.
Ninguém morre acompanhado. Isso é algo sobre o qual preci-
samos meditar. Você ganha força na comunidade, adquire dinhei-
ro na sociedade, testa sua força num grupo, é validado afetivamen-
te por alguém de fora. Os eus, até a Sétima Camada, são sempre
compartilhados, logo, são pouco eus.
Na Oitava Camada, por outro lado, é você e mais ninguém.

Metafísica e esterilidade:
o eu diante da morte
As Doze Camadas da Personalidade são uma tecnologia muito
profunda. Subindo, de camada em camada, vamos aos poucos
255 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

conquistando o eu, a pessoalidade. Como vimos anteriormente,


o eu da Primeira Camada é pouquíssimo pessoal. É a partir da
Sétima Camada que ele começa a se personalizar mais.
Mas por que diabos você precisa se preocupar com essa pes-
soalidade, com dizer eu? Ora, porque absolutamente tudo o que
fazemos, fazemos diante de um eu: eu acordo, eu preparo meu café
da manhã, eu sirvo minha empresa, eu ganho dinheiro, eu sonho
meus sonhos, eu enterro meus entes queridos, eu gero vida no meu
ventre, eu gero vida intelectual.
Esse eu ativo é contrário ao eu egoísta, egocêntrico. Aliás, as
pessoas sem conhecimento de Psicologia geralmente associam o
ego a algo ruim, quando, na verdade, seu ego é tudo o que você
tem. O importante é construir um ego pleno e que faça senti-
do. Que, no leito de morte, você possa dizer diante de sua vida:
“É, fui eu quem vivi”. Esse ego pleno é um ego particularizado.
Uma pessoa em sofrimento, seja ela sua amiga ou paciente,
muito provavelmente está com grande dificuldade para dizer eu.
Há uma espécie de falha em algum lugar de sua personalidade,
que a faz mover-se como tudo o mais se move, sem questionar
o motivo pelo qual vem fazendo isso. Ela não se faz as pergun-
tas fundamentais. Esta é a grande tragédia do ser humano que
a teoria das Doze Camadas da Personalidade busca solucionar,
lançando luzes no processo de amadurecimento.
Amadurecer nada mais é do que tomar posse daquele domínio es-
piritual que apenas o homem tem. Por mais que você ame seu bicho
de estimação, ele jamais poderá dizer “eu”; ele nunca poderá mar-
car um compromisso com você, ou ainda dizer “Eu te amo”, pois
não há eu ali. Há, sim, um indivíduo que pode ser amado, que
aceita afeto, que até manifesta afeto, mas que o faz tal como todos
os demais bichinhos de estimação. Seu bichinho é, no final das
contas, indistinto, como um folião de carnaval. Não existe nele
um princípio de personalização, que é justamente o que distingue
o homem dos demais animais, dos minerais e dos vegetais. Temos
uma condição esquisita dentro nós, que é a capacidade de fazer um
ato pessoal. Seu gatinho também age, mas segundo a espécie dele.
O ato do gato é um ato da espécie, já o ato humano é pessoal — e
pode ser pouco ou muitíssimo pessoal.
256

Todo e qualquer amadurecimento consiste em fazer com que os


nossos atos sejam pessoalíssimos, e um ato pessoalíssimo é um ato
sem esperança. Parece um grande paradoxo, não?
O ato humano sem esperança vem de um lugar que nos amarra
ao Ser, dentro do qual vivemos. Esta é a síntese de toda a filosofia
de Louis Lavelle, segundo a qual, no fundo de tudo, domando
tudo, penetrando tudo, existe um Ser, e não o nada. Isso deveria
ser bastante óbvio: basta respirar, basta um abraço, basta ver uma
criança, basta dar uma esmola, basta ver uma flor germinando,
basta contemplar o sol que nasce e se põe diariamente. Tudo isso
é presença de algo, e não presença de nada. Não se pode ter presença
de nada; nem mesmo a mentalidade mais tacanha pode negar essa
verdade. O que existe é o Ser, e não o nada, e isso se constata pela
própria autoridade da realidade, que é profundamente presente.
O ato humano se distingue dos demais atos. Um obje-
to também “age”, mas chamamos seu agir de padecer. Quando
você segura uma pedra com as mãos, ela fará peso, afinal, tem
volume, matéria, dimensões. Ela age, portanto — mas é uma
ação passiva. A ação de um cachorro, pelo contrário, é ati-
va (como uma ação pretende ser), mas ainda não é pessoal.
Animais não agem em primeira pessoa, segundo o indivíduo, mas
sim segundo a espécie.
O ser humano é o único que age pessoalmente, e por isso nosso
ato se parece muito com o ato primeiro, criador, do Ser em Ato
Puro, e disso deriva que todos os atos do ser humano são ab-
solutamente dignos — até os mais imanentes, como escovar os
dentes, passar uma blusa a ferro, apertar o botão do elevador. No
homem verdadeiramente maduro, que foi ascendendo as camadas
da personalidade, mesmo esses atos cotidianos (que, via de regra,
não preenchem nossa vida de história) compõem profundamente
a biografia. Isso acontece, pois o ato humano tem comunhão com
o Ser em Ato Puro, que é Aquele que nos sustenta na realidade,
que é o fundamento mesmo da realidade.
Todas essas coisas de que falamos ou são transformadas em
linguagem vulgar por uma religião mal compreendida, ou são
desconhecidas pelo homem contemporâneo. Explico.
257 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

O homem de hoje vive entre máquinas e telas, entre preocu-


pações financeiras e afazeres, entre doenças e egoísmos, então é
perfeitamente compreensível que o desconhecimento seja uma
das dinâmicas mais preponderantes do nosso tempo (ainda que
seja uma tragédia). Por outro lado, existem homens que vivem
revestidos de uma religião mal compreendida e atribuem tudo
a Deus, quando há coisas que absolutamente não são de Deus.
Na verdade, a maior parte das coisas que os religiosos atribuem
a Deus alegando ser “matéria de fé”, são simplesmente uma
abdicação da inteligência humana.
O Deus metafísico, o Ser em Ato Puro, é um ente de razão
absolutamente demonstrável, e, mais do que isso, ele é percebido
sem a mínima necessidade de que haja fé. Portanto, esses reli-
giosos postiços que se dizem profetas, que dizem ter visões, in-
terceder etc., estão profanando não a religião, mas a humanidade
mesma, aquilo que há de mais íntimo no ser humano: o ato.

A tragédia de uma existência


sem metafísica
O ato é o tecido que compõe a trama da nossa existência, e
há diferença na qualidade dos tecidos. Existem tecidos escu-
recidos, aqueles atos que são como trevas, que vão compondo
uma existência nebulosa, sombria — ou, como diria Álvaro de
Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, no poema “Tabaca-
ria”, uma existência “sem metafísica”.
Tudo o que falamos aqui já foi registrado na poesia contem-
porânea inúmeras vezes. Benedetto Croce já dizia que a poesia
serve para registrar impressões, e claro está que a falta da meta-
física é uma impressão do espírito do homem contemporâneo.
O homem contemporâneo, vagando sombriamente pelo
mundo, não consegue encontrar o sentido mesmo desta vida. Ain-
da que reconheça que seu eixo narrativo é o de servir, ainda
que saiba em que precisa melhorar, ainda que saiba que precisa
deixar de ser um personagem imitativo baixo para se tornar
um imitativo elevado, ainda que saiba que precisa ascender nas
258

camadas da personalidade, o homem contemporâneo não con-


segue encontrar o sentido da vida. E, ao não encontrá-lo, já não
consegue mais acreditar numa existência para além do mundo
material. Há como que uma sombra que enforma não só os
olhos, mas todo o ser, há algo que amputa e deixa lesões pro-
fundas no homem, como se fôssemos bonecos de vudu na mão
de demônios malignos que nos odeiam e nos querem controlar.
Essa é, em geral, a conversa do homem contemporâneo.
Que tragédia é a vida sem metafísica!
O convívio com pessoas excelentes, a meditação e o exílio
diário são o que nos ajuda a reter essa metafísica que é o apon-
tamento para o sentido último da existência. Pela leitura do
poema “Tabacaria”, você entenderá o que estou dizendo. Nele
existe um niilismo, ou seja, uma visão de mundo de alguém
para quem, ao fim e ao cabo, não há nada, não haverá nada,
nunca houve nada.
No poema, o eu lírico está tomado de uma angustiante dú-
vida metafísica. Ele diz que não é nada, nunca será nada e não
pode querer ser nada; no entanto, tem em si “todos os sonhos
do mundo”. Em sonho, em hipótese, em segredo, ele fez mais
que Napoleão, apertou ao peito mais humanidades que Cristo e
fez mais filosofias que Kant. Mas na realidade o que é que fez?
Falhou em tudo, pois que “o mundo é para quem nasce para o
conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo”.
Revela, assim, suas tristezas e demônios interiores num
queixume sem fim, que lhe serve de resposta diante da morte:

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade


Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
259 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.


Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

(...)

Não, não creio em mim.

(...)

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.


Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.


Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma
parede sem porta.
(v. 25-60)
260

É a triste confissão de um homem que não crê em si mesmo,


não sabe o que é e não vê sentido na própria vida. Como resultado,
olha também para o mundo exterior, para as ruas da cidade, para
o campo, para onde quer que seja, e não vê senão coisas banais,
indistintas e desprovidas de sentido: árvores, ervas, pessoas iguais
a todas as outras. Não vê graça alguma no mundo, quando poderia
ter percebido o alegre canto dos pássaros, o sopro gostoso da brisa,
o precioso dom do sol que não deixa de nos dar luz e calor um só
dia ou a sinceridade do sorriso desdentado de uma menina de rua.
Esse homem esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma
parede sem porta. Esperou e esperou... Mas o que é que ele fez?
De que adianta ficar cabisbaixo, cruzar os braços e ficar esperando
(desesperançosamente)... sem fazer absolutamente nada?
De fato, ninguém vive só de “aspirações nobres, altas e lúcidas”
— é preciso convertê-las em atos. Pode ser que essas aspirações
não cheguem aonde pretendíamos, mas isso de nunca verem a luz
do sol real nem acharem ouvidos de gente é, além de um pessimis-
mo extremado, uma grande falsidade.
E ele segue:

Crer em mim? Não, nem em nada.


Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(v. 63-72)

“Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da


cama”?! Em sonhos, talvez. Mas antes de levantar da cama, o
que fazemos é uma oração ao Bom Deus, para que Ele nos guie
no caminho e não nos deixe esmorecer diante das adversidades,
e para que possamos bem servir aos outros, que são esses que
261 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

estão ao nosso lado. Só conquistamos o mundo depois que nos


levantamos da cama, inspirados e embalados por um ofereci-
mento de obras — não antes de nos levantarmos, mas depois.
É óbvio que o mundo é opaco para um “escravo cardíaco das
estrelas”, para alguém cujo coração bate na prisão de uma cons-
telação distante, e não na constelação de amor daquele que está
ao seu lado — que mora consigo, que precisa de seu beijo, de seu
abraço, de seu cuidado, de seu dinheiro, de seu serviço.
O que um homem como esse não consegue entender é que a
metafísica não está distante, nas estrelas, mas sim num olhar de
amor, no serviço ao outro, no cumprimento de um dever, na re-
tificação de um erro, no pedido de perdão para quem magoamos
e traímos, para quem esteve ao nosso lado nos suportando em
nossas falhas e misérias.
Aqui está o delírio de quem não entende que esta vida se dá
neste mundo. Parece que o céu e a terra se tocam lá longe, no
horizonte, na Via Láctea, no Indefinido, mas não é assim: o céu
e a terra se fundem no coração de cada ser vivente, e é a partir
desse lugar que um ato criador emerge.
Quando se pensa que religião, transcendência, amor e huma-
nidade são coisas tão distantes de nós quanto as estrelas, nada
mais natural do que considerar que religiões não ensinam mais
do que a confeitaria e que não há mais metafísica no mundo
senão chocolates:

(Come chocolates, pequena; Come chocolates!


Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
(v. 73-76)

Pouco depois, no verso 83, o eu lírico diz o seguinte: “ao me-


nos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas”. Mas
um homem que não chora não é verdadeiramente homem e
uma mulher que não chora não é verdadeiramente mulher. Cho-
rar é profundamente humano. Chorar diante de uma realidade
262

de perda, de uma alegria, da beleza das coisas simples do mun-


do, que está aí para nós gratuitamente, é profundamente hu-
mano. As lágrimas servem-nos de polimento para os olhos. E,
como vimos no capítulo dedicado à lâmina da Papisa, quem
não tem os olhos polidos, não tem neles refletido o mundo.
E se não o tem, não é capaz de captar o ser das coisas.
Apesar dessa incapacidade, ele diz “ver a rua com uma nitidez
absoluta” (v. 98). Sim, vê lojas, passeios, carros, “entes vivos que se
cruzam” e “cães que também existem”: mas não capta o ser de nada
disso, pois não tem os olhos polidos. Apenas constata que aquelas
coisas existem, pois seus olhos não podem estar lhe enganando.
“E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, / E
tudo isto é estrangeiro, como tudo.” Para o homem que não chora
e não se emociona diante da realidade da beleza da vida, tudo
“pesa como uma condenação ao degredo”, “tudo isto é estrangeiro,
como tudo”. As lojas, os passeios, os carros, as pessoas, os cães:
tudo lhe parece estrangeiro. De fato, tudo quanto existe e é ma-
terial, é estrangeiro como tudo. É como se vivêssemos em uma
terra de exílio; vivemos aqui, mas não somos daqui. No entanto,
estamos domiciliados no sentido metafísico do mundo, não nas
estrelas ou em outro lugar distante. E aqui devemos amar e servir.
No verso 111, deparamo-nos com um grande drama:

Fiz de mim o que não soube


E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
(v. 111-121)
263 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Ele tentou contar uma história que não era a dele, vestiu
o traje errado, deixou que a máscara se colasse em sua cara.
Quando finalmente arrancou a máscara, viu que já tinha enve-
lhecido e já havia se esquecido como vestir aqueles trajes — e
acabou como um cão tolerado pela gerência. Todo o esforço
do ser humano consiste em não deixar com que essa máscara
se cole em sua cara e a vida passe sem que você a tire. Consiste
em não deixar de fazer de si o que poderia fazer.
“Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
tirado.” O dominó é um tipo de roupa. Veja o drama: ele não o
sabia mais vestir, mas tampouco o tirou. Ele queria ter vestido
esse dominó, mas alguém o vestiu nele, de modo que agora já
não sabe mais como desfazer a situação, porque foi privado de
uma vida de atos.

Essência musical dos meus versos inúteis,


Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.


Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
(v. 122-131)

Veja, pelos versos acima, como eu lírico trata de temas da


Oitava Camada. Ele faz um inventário de sua vida diante
da morte; é disso que trata o poema “Tabacaria”. De início,
o tema da morte não aparece senão de passagem. Mas ago-
ra é chegada a hora da constatação fundamental, da lem-
brança de uma verdade a que ninguém pode se esquivar:
“Ele morrerá e eu morrerei.”
264

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.


A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas
como tabuletas,
(v. 132-138)

Diante da morte, o poeta busca entender o sentido daquilo


que ele faz — escrever versos. Pois hoje o que ele produz são
versos, e versos como uma pretensão sublime, mas um dia o
mundo há de acabar, e com ele perecerão o poeta, seus versos
e a própria língua em que foram escritos. Sua obra morrerá.
Para quê, então, fazer versos? Em sua reflexão, escrever torna-
-se algo inútil diante da morte.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),


E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
(v. 143-145)

Uma pessoa entra. Os devaneios do cardíaco das estrelas, de


quem quer alcançar mundos e Vias Lácteas, e tudo aquilo que
paira abstratamente sobre a cabeça perturbada do poeta, que
quer entender o que é a sua vida diante da morte, é interrom-
pido pela grande maravilha que há neste mundo: uma pessoa.
Surge um universo real, profundamente real: entra na tabacaria
alguém que quer comprar tabaco. Há, finalmente, esperança.
Ele então acende um cigarro e saboreia nele a libertação de
todos os pensamentos e especulações que antes o atormenta-
vam (v. 147-151). Contudo, conclui erroneamente que a meta-
física é uma “conseqüência de estar mal disposto”. E, assumin-
do novamente a postura letárgica e abstendo-se dos atos, ela
se deita na cadeira e continua fumando. Fumando e esperando.
Fumando e deixando a vida passar.
265 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Deus sabe quantas oportunidades não teve este poeta de dar


sentido a esta vida sem sentido. Sabe o que quebraria a mal-
dição desse escravo cardíaco das estrelas? Olhar para aquela
pessoa que entrou na tabacaria, sorrir-lhe e oferecer-lhe um
cigarro — e quem sabe convidá-la a se sentar, perguntar de que
tabaco mais gosta etc. Mas ele preferiu desperdiçar mais uma
chance de fazer algo para continuar fumando e divagando.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).


Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria
sorriu.
(v. 159-164)

Por que você imagina que, para o poeta, esse tal Esteves
não tem metafísica? Em primeiro lugar, porque o poeta não
tem os olhos polidos e não consegue captar o ser das coisas.
Na verdade, todo ser humano tem “metafísica”, pois todo ser
humano tem um sentido que não está limitado à realidade ma-
terial. Toda vida humana tem sentido e é interessante se for bem
contada.
Se o poeta diz que Esteves não tem metafísica, é porque ele
próprio está contando sua vida sem metafísica, como já vimos
nos versos anteriores.
O poeta está no drama terrível da Oitava Camada, percebe?
“Ele morrerá, eu morrerei”. É um diálogo terrível, e ele aposta
no cavalo que vai perder, em uma vida sem ato, em uma vida
de quem se reclina para trás e segue fumando enquanto lhe for
concedido fumar.
266

Drummond
e a máquina do mundo
“Tabacaria”, contudo, é um poema muito pesado e um tanto
exagerado para o gosto do brasileiro, que não é nem tão ufanista
nem tão desesperançoso quanto Álvaro de Campos. Lembre-
mo-nos de que Fernando Pessoa estava imerso em uma atmos-
fera ocultista e vivia numa Europa decadente. Na voz deste seu
heterônimo, vemos a disputa incrível entre ser filho do admirá-
vel povo português (que rasgou oceanos, cruzou mares, enfren-
tou dragões dos horizontes, inflou velas com a esperança de seu
coração e de sua fé e desbravou o mundo, levando o Cristo e a
cruz para além-mar) e ser nada (ser aquele homem da mansar-
da, aquele gênio que se concebe gênio para si mesmo, mas cuja
genialidade talvez jamais encontre a luz do dia).
Nós não somos assim. Somos apenas “mineirinhos”, como
nos retrata Drummond em “A máquina do mundo”, um de seus
ápices poéticos. No poema, ele canta uma das nossas maiores
tragédias, a saber, a do homem que olha para as doze camadas
e quer nelas ascender, que entende que precisa se pessoalizar,
que conhece as quatro narrativas possíveis e, embora sabendo
de tudo isso, tem trespassada em seu espírito uma espada ne-
gra, envenenada, a qual mina sua energia e arranca a esperança
mesma que o habita.
É um poema razoavelmente grande e de leitura difícil, que
dialoga — apenas pela estrutura — com a “Divina Comédia”
de Dante. Gostaria de comentar alguns de seus versos. Mas
peço que você o leia integralmente três ou quatro vezes antes
de passar aos meus comentários.
O eu lírico começa o poema dizendo que caminhava lenta-
mente, como bom mineirinho, por uma estrada pedregosa, sob
um céu escuro e sombrio, que só não era mais escuro do que
os montes e seu “próprio ser desenganado”. Ele caminhava por
uma espécie de “selva escura”, como aquela de Dante. Mas aqui
o homem viu escuridão fora e dentro de si. Estava cansado e
sem esperança.
267 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Foi quando se deu uma aparição: “a máquina do mundo se


entreabriu” (v. 10). Abriu-se majestosa, de modo calmo, sem
fazer muito barulho nem emitir uma luminosidade que feris-
se os olhos sensíveis daqueles que andam no deserto. O que
aconteceu foi uma espécie de revelação, uma oportunidade de
ouro, que é descrita do verso 10 ao 69. Foi um convite a abrir
o peito e contemplar aquilo que ele havia sempre procurado
em si mesmo ou fora do seu ser, mas que nunca havia desco-
berto: uma riqueza, uma ciência sublime, porém hermética, a
total explicação da vida. Tudo se lhe apresentou naquele re-
lance e a máquina o “chamou para seu reino augusto” (v. 68).
Que convite!
E qual foi, afinal, a resposta a um convite dessa magnitude?
O caminhante relutou em responder, porque sua fé era fraca e
a esperança estava morta; parecia-lhe que quem dominava sua
vontade era outro ser, não mais aquele que ele já fora um dia.
E rejeitou o convite, como quem diz: “Obrigado, mas esse convite
me chegou tarde demais. É um dom tardio.”
Veja então o que fez o caminhante: “baixei os olhos, incu-
rioso, lasso, / desdenhando colher a coisa oferta / que se abria
gratuita a meu engenho.” (v. 88-90). Recusou a oferta gratuita
e o confessa.
Essa máquina do mundo também se abre para todos nós.
Mas não se abre só uma vez na vida, quando já estamos can-
sados e sem esperança na estrada pedregosa da vida. Ela está
aberta para nós, gratuitamente, todos os dias. Como uma flor
perenemente aberta, ela perfuma nosso ser, alegra nossos dias,
exibindo toda a sua vivacidade e cor.
Temos nós, homens, uma irmandade com um Ser que não
se abre e fecha malignamente e se fecha como em uma comé-
dia tirânica. A imagem do caminho percorrido descrita por
Drummond é sombria e triste: a estrada de Minas é pedrego-
sa — um chão de desamor —, o céu é de chumbo, as aves são
pretas, agourentas, e as montanhas, escuras. Mas quem quer
que tenha visitado Minas não costuma ter essa impressão: pelo
contrário, vê um céu bonito, cheio de andorinhas, e um chão
268

maravilhoso, vermelho como o sangue que jorrou da Cruz e


pelo qual fomos redimidos, num ato máximo de amor. Esse
sangue é fonte da vida.
O que havia em Drummond, para que o mundo se lhe fe-
chasse diante da morte? Por que Drummond nos conta sobre o
chão pedregoso de Minas, sobre essas aves negras que voam no
céu como se prenunciassem um fim trágico e desolado?
Esses versos são meus e seus; são nossos. Não são aquela
cena distante de “Tabacaria”, pois, no fundo, todos temos algu-
ma metafísica — ninguém há como o Esteves. O que acontece
no poema de Drummond é a história de muitos de nós: de
sujeitos que olham para baixo e enxergam um chão pedregoso
e infértil, que nos dificulta a caminhada e donde vida alguma
poderá brotar; de sujeitos que, em certos momentos da vida,
perdem a capacidade fecundante.
Há, de fato, em todo homem a possibilidade de um ato “sem
esperança”, no sentido de que se faz sem esperar nada. Nesse
sentido, o ato “sem esperança” é o pólen fecundante da vida.
Não porque seja “desesperado”, ou aberto à falta de esperança
— não se trata disso. Mas porque a ela sobrepõe-se a caridade,
o amor. E o ato perfeito é aquele movido pelo amor, em que se
constrói e edifica sem esperar nada em troca nem como resul-
tado. Apenas um ato irmanado ao Ser pode ter essa força, e por
isso a tragédia de Drummond.
Contemplando a máquina, o eu lírico diz ter baixado os
olhos, “incurioso, lasso”. Incurioso, pois já não havia mais o fogo
do primeiro amor, aquela chama que brilha em nossos olhos e
faz com que queiramos desfrutar, entender, dominar, desejar,
consumir, beijar a boca da realidade.
Esse é um poema que retrata alguém na Oitava Camada, al-
guém que está se vendo diante de um destino último e buscan-
do responder à pergunta: “O que sou eu, neste mundo, diante
do Ser, diante da morte?”.
Isso significa que a realidade se oferta ao nosso engenho
todo santo dia, desejando ser fecundada por nossos atos, e um
ato fecundo é um ato sem esperança.
269 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

No dia de amanhã, aja sem esperar, e você verá que toda a


realidade brota num manancial sereno. O ato sem esperança
não é o ato de um homem covarde, de alguém que abdicou de
ser humano; pelo contrário, é o ato daquele sujeito que se agar-
rou à única realidade que vai permanecer: a caridade, o amor.
Se você age, se beija um filho, se vai ao trabalho, se faz as pa-
zes com quem está de mal, você o faz para servir, por amor. Se,
um dia, todos na face da terra agissem profundamente, inten-
samente, sem esperar nada, só movidos pela caridade, imagine
a qualidade desse dia! Como seria perfeito esse dia, não? Isso
porque ele seria o reflexo do ato do Ser em Ato Puro, daquele
que é a fonte mesma da nossa existência.
Entramos na existência porque ganhamos o ser do Ser em
Ato Puro, que só nos ama, ou seja, não espera nada de nós —
até porque, se esperasse, não nos criaria, porque sabe que ire-
mos frustrá-lo. O ato fundacional de todo o cosmos, e mais, da
nossa vida, é um ato de amor, não um ato de esperança.
A pergunta que se abre na Oitava Camada é precisamente
essa; é olhar para o poema “A máquina do mundo” e dar-lhe
uma resposta pessoal: “Vou aderir a essa desesperança? Verei o
mundo tal como o eu lírico o está vendo, desdenhando colher a coisa
oferta que se abre gratuitamente para mim?”
O problema é que ninguém desdenha da coisa oferta impu-
nemente, e o eu lírico sabe disso, porque conclui: “eu, avaliando
o que perdera, / seguia vagaroso, de mãos pensas”. É um des-
tino óbvio.
Esse poema é uma versão terrível daquilo que pode aconte-
cer ao sujeito de Oitava Camada. Desdenhar do fato de estar
vivo, de acordar ao lado de alguém que abre os olhos e o pro-
cura, desdenhar do fato de que você é responsável pela vida de
tantas pessoas, desdenhar do fato de que tem essa vida, esse
lugar, esse emprego (por mais imanente que ele lhe pareça), é
dar um tapa na cara do Cristo, na cara da Verdade, na cara do
Ser em Ato Puro.
Cada vez que você reclama da realidade, você está dando
um tapa na cara do Cristo, porque ele é o Logos, e a realidade
270

é o Logos. É claro, portanto, que você perde força e não conse-


guirá dar uma resposta à pergunta da Oitava Camada: diante
da morte, o que você faz? Diante da morte, essa sua vida con-
tinua tendo sentido?
O “sentido” cobrado na Oitava Camada é ratificar ou retifi-
car; é encarar estes versos do Drummond, tristes, terríveis, que
são meus e seus, pois os temos pulsando em nosso ventrículo
esquerdo, diuturnamente, dia e noite: “desdenhando colher a
coisa oferta / que se abria gratuitamente ao meu engenho.”

Metafísica possível
Retificar não é trocar de cônjuge, de profissão ou de país; é
transformar os versos de Drummond e de Pessoa nos versos do
grande espanhol Antonio Machado.
Toda a obra dos espanhóis do início do século XX revolve a
morte, revolve isso de que estamos tratando aqui. Quando, en-
tão, Pedro Salinas, por exemplo, inaugura seus poemas de amor
e de romance, ele não está simplesmente querendo ficar com
certa dama por um ou dois dias, ele a está querendo para sem-
pre, não como uma possessão humana, mas como quem quer
conviver com ela na mesma casa no céu.
Em “Antropologia Metafísica”, Julián Marías diz que o des-
tino do homem se faz ao responder a uma pergunta dupla em
que, quando uma aparece, a outra se anula. Quando me per-
gunto “Quem sou eu?”, esqueço-me para onde vou. E quando
intento responder “Para onde vou?”, já me esqueço de quem
sou. É o equilíbrio da vida que tende para algo. Ou, ainda,
quando Gustavo Adolfo Bécquer, em um versinho tão podero-
so e rápido como um trovão, nos diz: “Al brillar un relámpago
nacemos / y aún dura su fulgor cuando morimos; / ¡tan corto es el
vivir!” (“Ao brilhar de um relâmpago nascemos, e ainda dura
seu fulgor quando morremos: tão curto é o viver.”, você deve
se perguntar: “Diante dessa realidade, sou como o eu lírico do po-
ema de Drummond, ou como o do poema de Antonio Machado?
271 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Será que abaixo minha cabeça, olhando as pedras pelo caminho do


chão pedregoso de Minas, de céu escuro e aves negras?”
Veja a diferença da força dos versos de Machado, um es-
panhol, aquele sujeito que, ao contrário de Drummond e do
heterônimo de Pessoa, olha para a vida desde a sua infância e
traça uma linha tentando encontrar um sentido até o dia da
sua morte. Machado faz parte da escola dos espanhóis: Ortega,
Julián Marias, Pedro Laín Entralgo, Ramón Gómez de la Ser-
na etc. São homens que estavam se fazendo a mesma pergunta
que Pessoa se faz: Eu morrerei? Tu morrerás? É a pergunta
diante da morte, é a pergunta da Oitava Camada.
Esses versos de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de
Andrade são muito lidos em colégios, o que é uma pena, pois
são versos que enfraquecem. Veja a diferença entre eles e um
terceiro poema, todos profundíssimos, e representantes da ar-
ticulação entre a imanência e a transcendência.
O contraponto vem pela força de um espanhol, vivo dentro
de uma tradição que olhava para a razão vital, inaugurada por
Ortega em seu livro “Meditações do Quixote”, no qual ele fala
a memorável frase: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não
salvo a ela, não me salvo a mim”.
Antonio Machado dá à luz esse poema fortíssimo, chamado
“Retrato”. Nele há um confronto verdadeiro, sem fuga; Macha-
do não foge da tensão em momento algum. Não é um poema
açucarado, como aqueles versinhos gospel que dizem “Encon-
trarei Deus quando morrer”. Ninguém pode ter certeza de que
isso vai acontecer. Esses poeminhas pretensamente místicos
e religiosos, que açucaram tudo, que transformam Deus num
pirulito, um algodão doce, que tornam a religião um mundo
de fantasias, não nos interessam nem convencem, porque aqui
sabemos que a vida não é assim. Eis a tensão da vida:
272

Retrato

Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla,


y un huerto claro donde madura el limonero;
mi juventud, veinte años en tierras de Castilla;
mi historia, algunos casos que recordar no quiero.

Ni un seductor Mañara, ni un Bradomín he sido


—ya conocéis mi torpe aliño indumentario—,
más recibí la flecha que me asignó Cupido,
y amé cuanto ellas puedan tener de hospitalario.

Hay en mis venas gotas de sangre jacobina,


pero mi verso brota de manantial sereno;
y, más que un hombre al uso que sabe su doctrina,
soy, en el buen sentido de la palabra, bueno.

Adoro la hermosura, y en la moderna estética


corté las viejas rosas del huerto de Ronsard;
mas no amo los afeites de la actual cosmética,
ni soy un ave de esas del nuevo gay-trinar.

Desdeño las romanzas de los tenores huecos


y el coro de los grillos que cantan a la luna.
A distinguir me paro las voces de los ecos,
y escucho solamente, entre las voces, una.

¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera


mi verso, como deja el capitán su espada:
famosa por la mano viril que la blandiera,
no por el docto oficio del forjador preciada.

Converso con el hombre que siempre va conmigo


—quien habla solo espera hablar a Dios un día—;
mi soliloquio es plática con ese buen amigo
que me enseñó el secreto de la filantropía.
273 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Y al cabo, nada os debo; debéisme cuanto he escrito.


A mi trabajo acudo, con mi dinero pago
el traje que me cubre y la mansión que habito,
el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.

Y cuando llegue el día del último vïaje,


y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,
me encontraréis a bordo ligero de equipaje,
casi desnudo, como los hijos de la mar.30

Perceba a diferença entre os três poemas. Machado não é


um “cardíaco das estrelas” nem está fingindo andar por um chão
pedregoso. Enquanto Drummond olhava para o chão pedrego-
so, quando havia tantas coisas para olhar no caminho — car-
valhos, camponeses, nuvens — , Machado opta por começar
do lugar perfeito — a infância. E por ela passa rapidamente,
porque já passou. Sua infância são recordações de um pátio
de Sevilha e de um horto claro onde amadurece o limoeiro.
Esse pátio provavelmente era um lugar onde brincou com seus
irmãos, e do qual deve ter lembranças gostosas. Mas é só isso.

30  “Minha infância são recordações de um pátio de Sevilha / e de um jardim claro


onde madura o limoeiro; / minha juventude, vinte anos em terras de Castela; / minha
história, alguns casos que recordar não quero. // Não fui um sedutor Mañara nem um
Bradomín, / - já conheceis meu torpe alinho indumentário -, / mas recebi a flecha
que me destinou Cupido, / e amei quanto elas possam ter de hospitaleiro. // Tenho
nas veias gotas de sangue jacobino, / mas meu verso brota de manancial sereno; / e,
mais que um homem ciente de sua doutrina, / sou, no bom sentido da palavra, bom. //
Adoro a beleza, e na moderna estética / cortei as velhas rosas do jardim de
Ronsard;
/ mas não amo os unguentos da atual cosmética, / nem sou uma ave dessas de novo
gay-trinar. // Desdenho as romanças dos tenores ocos / e o coro dos grilos que
cantam
para a lua. / Ponho-me a distinguir as vozes dos ecos, / e escuto apenas, entre as
vozes,
uma. // Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar quisera / meu verso, como o
capi-
tão deixa a espada: / famosa pela mão viril que a brandira, / não orgulhosa pelo
douto
ofício do forjador. // Converso com o homem que sempre vai comigo / - quem fala
sozinho espera falar com Deus um dia -; // meu solilóquio é conversa com esse bom
amigo / que me ensinou o segredo da filantropia. // E ao fim, nada vos devo;
deveis-
-me quanto escrevi. / A meu trabalho recorro, com meu dinheiro pago / o traje que
me cobre e a casa em que habito, / o pão que me alimenta e o leito em que durmo. //
E quando chegar o dia da última viagem / e estiver de partida o navio que nunca há
de
voltar, / me encontrareis a bordo de bagagem leve, / quase nu, como os filhos do
mar.”
274

O poeta não se demora em descrições empoladas nem em elo-


gios saudosistas da infância saídos da pena de uma alma que se
recusa a amadurecer.
Nos versos seguintes ele passa à mocidade, dizendo que sua
juventude foram vinte anos nas terras de Castilha, e sua histó-
ria, alguns casos que não quer recordar — afinal, para que dar
voltas com as faltas de atos? Disso, ele não quer se lembrar, e é
justamente assim que a vida deve ser levada. De que serve ficar
relembrando aqueles cinco reais que sua irmã lhe deve desde
quando você tinha doze anos de idade? É a Oitava Camada,
afinal. Lembre-se de que estamos falando da história diante da
morte, daquilo que vale e daquilo que não vale.
O poeta continua sua história, narrando que não foi ne-
nhum “Don Juán”, embora estivesse inserido nessa tradição.
Não viveu muitos amores, mas tampouco foi um bobo. Ele
amou. E amou porque é gente.
Segue, então, revelando que, embora tenha no sangue traços
de ira jacobina, de revolta, é um homem equilibrado e tranqüilo,
porque sabe o que importa. Não lhe importa, por exemplo, ser
reconhecido como clássico ou romântico. Só deseja que seu ver-
so seja como a espada do capitão: famosa pelo braço viril que a
empunha, não pelo ofício de quem a forjou. Essa é sua pretensão
enquanto poeta, essa é a marca que deixará no mundo.
Entra então toda a força da Oitava Camada:

Converso con el hombre que siempre va conmigo


— quien habla solo espera hablar a Dios un día —;
mi soliloquio es plática con ese buen amigo
que me enseñó el secreto de la filantropía.

Veja como ele não tem afetações de religião. Não diz conhe-
cer tudo sobre a Trindade nem se jacta de que Deus lhe fale
intimamente em orações demoradas e profundas. O que diz
é que conversa com o homem que segue sempre com ele. Ele
sabe que, em seu peito, existe essa conexão entre ele e o Ser em
Ato Puro, mas não se exibe como quem já chegou aos píncaros
da glória.
275 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

Machado está apenas contando a história do homem que


aposta na metafísica real. Ele não distingue muito bem se esse
homem que o acompanha é Deus, ou se é ele próprio; sabe ape-
nas que está falando sozinho, pois espera falar com Deus um dia.
Esse solilóquio, esse falar sozinho, essa tentativa de oração (se
quisermos falar desse modo), é uma busca de intimidade com o
bom amigo que vai lhe ensinando os segredos do amor.
Repare a diferença entre as aspirações dessa última estrofe e
as aspirações abstratas presentes nos citados poemas de Pessoa
e Drummond, os quais conceberam idéias que jamais verão a
luz do dia. Machado fala de uma vida concreta, ele conta uma
história, como eu e você deveríamos fazer também.
Ao fim e ao cabo, aquele amigo que lhe ensinou o segredo
do amor foi quem o conduziu para essa vida pegada ao chão.
Como já disse, parece ser no horizonte que o céu e a terra se
unem, mas não é; isso acontece no coração do homem que
trabalha. O ofício de Machado é ser escritor; portanto, diz que
nada deve; é seu leitor quem lhe deve pagar pelos escritos. Com
esse trabalho, ele compra suas roupas (“el traje que me cubre”),
paga o aluguel da casa em que mora (“la mansión que habito”),
compra a comida que come (“el pan que me alimenta”) e compra
a cama em que dorme (“el lecho en donde yago”). É aí que se dá
a vida humana.
A resposta diante da morte, portanto, diante do “Retifico
ou ratifico?” que aparece no centro da Oitava Camada, é esta:
ou eu retifico, porque tem sido tudo vão, ou eu ratifico, porque
já venho vivendo assim, já venho tendo essa conversa com esse
bom amigo — uma conversa de quem fala sozinho, porque
deseja falar com Deus um dia.
A fraude vital da qual falava John Carroll, sociólogo austra-
liano citado anteriormente, está exatamente na culpa existen-
cial, central na nossa vida, que é a culpa de sermos “escravos
cardíacos das estrelas”, como o poeta da tabacaria. Essa é a
traição existencial da qual falava Carroll.
Assim é que aquilo que parece belíssimo, transcendente, fi-
losófico, espiritual, é na verdade uma vida de traição, porque
276

o nosso ato acontece no mundo. Quando o deslocamos para a


mente, usurpamos o lugar daquele único sujeito que pensa e
cria. Só há Um que pensa e cria, que diz “Fiat lux” e a luz de
fato se faz, que separa o material enxuto do material úmido,
que cria os luminares celestes, que cria as bestas,e as árvores, e
as plantas. Esse sujeito pensa e seu pensamento realmente faz,
cria.
O ato humano é como o ato de Machado: um ato de quem,
no final das contas, não deve (“ Y al cabo, nada os debo”). Não
deve, porque age livremente, não é um escravo; e quando você
vira um escravo cardíaco das estrelas, como o poeta da taba-
caria, alguém tem de lhe sustentar. Embora quisesse, ele não
sabia sequer vestir o próprio dominó, alguém precisou fazer
isso por ele — ele não servia para nada.
Enquanto está reclinado para trás na cadeira, fumando e
observando a fumaça, divagando sobre as estrelas e sobre o seu
fracasso nesta vida, alguém está pagando as contas dele. Ele é
um peso. E quem quer que assuma essa mesma postura é tam-
bém um peso para os outros, um traidor existencial e carrega
dentro de si a culpa existencial de que falou John Carroll.
O segredo de Machado, por outro lado, é deslocar sua vida
para o trabalho, para coisas concretíssimas como o traje que o
cobre, a casa em que habita, o pão que o alimenta e a cama em
que dorme. São coisas que parecem maximamente imanentes,
e lhe parecem imanentes porque são. Ao mesmo tempo, pratica
um solilóquio, esperando um dia falar com Deus.
O segredo do amor, da filantropia, é esse trabalho abnegado,
é não pesar para ninguém, é ser você o ato fundacional, é agir com
amor, servindo aos demais e não esperar que façam todo o servi-
ço em seu lugar: nem os outros, nem as estrelas, nem Deus.
Isso se completa na última estrofe do poema — belíssima,
talvez alguns dos versos mais belos já escritos. Machado põe a
morte no lugar certo: no último lugar, na última estrofe, pois a
morte é o fechamento de qualquer história. Ele começa o po-
ema na infância, nos pátios de Sevilha. Depois, diz que traba-
lhou, que praticou o exílio e a intimidade com esse bom amigo,
277 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

que ele ainda não sabe quem é, e que bem pode ser ele próprio
(embora espere falar a Deus um dia). E termina com seu últi-
mo dia.
Um dia será certamente o seu último dia. Pode ser que seu
último dia seja amanhã; pode ser que seja hoje mesmo. E se An-
tonio Machado fosse tomado de assalto por esse último dia, veja
como ele seria encontrado: “ao chegar ao último dia de viagem,
me encontrareis a bordo do navio que nunca há de regressar, com
uma bagagem leve, quase nu, como os filhos do mar.” Quando o
último dia chegar (e ele chega para todos, sem exceção), Macha-
do será encontrado como aquele sujeito que agiu.
Você acaso já se fez essa pergunta? Quando seu último dia
chegar, como você será encontrado? E você, psicólogo, já fez
essa pergunta a seus pacientes?
O ato humano é o ato de quem não fica esperando: não entu-
lha sua mochila de quinquilharias, ou seja, de esperanças malfa-
dadas. E não nutrimos muitas vezes esperanças que se frustram
a todo o tempo? “Vou agir assim, e espero que...” “Espero que me
reconheçam...”, “Espero que batam palmas...”, “Espero que minha
poesia seja sublime e alcance leitores e ouvintes atentos...”, “Espero
que meu filho não seja um drogado...”, “Espero ficar rico...” Esse “es-
pero que”, é justamente o inverso do “ligero de equipaje”. “Ligero
de equipaje” significa “com bagagem leve”. Para a última viagem,
não devemos levar malas pesadas. Tudo quanto levamos está
dentro do nosso peito, em nossa biografia. Você pode e deve ser
encontrado de peito aberto, como os filhos do mar.
Imagine um bom navegante que sai em uma perigosa e de-
morada viagem e então retorna. A bagagem dele é um coração
que viveu intensamente. Machado é perfeito quando diz que,
chegando o dia de sua morte, o navio que partirá sem jamais
regressar o encontrará pronto, leve, quase nu, como os filhos do
mar. Pois, como lembrou Jó (um homem a quem praticamente
tudo foi tirado), saímos nus dos ventres de nossas mães e nus
também haveremos de perecer.
Essa é a resposta que deveríamos dar diante da morte.
278

Confissão
John Carroll é muito preciso quando fala de culpa existencial,
aquela que você sente ainda quando faz tudo de modo “corre-
to”. Em “A máquina do mundo”, o eu lírico não fala nada acer-
ca de seus erros; ele pode muito bem ter vivido “bem”, como
um rapazinho muito bem comportado.
No poema “Retrato”, por outro lado, Machado confessa seus
erros: “mi historia, algunos casos que recordar no quiero”. Ele as-
sume que, embora não tenha sido nenhum Don Juán, o Cupi-
do lhe deu algumas flechadas e, aquelas que podiam recebê-lo
em suas casas, estas ele amou.
Por isso é que aquela moral kantiana, do certo e do errado, é
uma primeira coisa a ser quebrada. Francamente falando, todo
o mundo sabe diferenciar o que está certo do que está errado.
Machado não quer se recordar de sua juventude, mas se gaba
de ter conhecido algumas garotas. Isso, para a moral da época,
é algo extravagante.
Quando diz, em seguida, que é “bom, no bom sentido da
palavra”, em que sentido ele o está dizendo, se acabou de con-
fessar que, na juventude, se deitou com mocinhas? Segundo a
moral de nossos tempos, parece não haver nada de errado em
ter relações sexuais antes do matrimônio, mas à época dele
não era assim. Mas a questão é simples: ele é bom, porque não
nega sua vida, não nega seus erros, mas antes se põe diante
deles.
Machado diz que tem sangue jacobino, o que quer dizer
que poderia ter “tocado o terror”. Mas seu verso brota de um
manancial sereno, porque sabe o que quer da vida, e ele não irá
se trair.
Mas o caminhante da “Máquina do mundo” não aponta
nada que tenha feito de errado: ele falseia a própria história.
Mesmo diante de sua própria morte, ele não consegue elaborar
uma confissão clara, concreta e concisa, como fez Machado
nas duas primeiras estrofes do “Retrato” — observe como Ma-
chado confessa rapidamente, sem dar voltas ou tentar justificar
más condutas do passado.
279 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

No poema de Drummond há um medo do escurecimento


que só a luz de um ato poderia romper. Quando agimos com
amor, somos reflexo do Ser em Ato Puro, e um ato de amor,
de entrega, dissipa todas as trevas. Um serviço em casa, uma
ajuda no trabalho, uma ligação despretensiosa para alguém que
já está velho, são atos que dissipam as trevas. Aqueles pássaros
que se confundem na noite de chumbo somem, e os raios de
sol voltam a brilhar. Assim nos livramos da maldição presente
na “Máquina do mundo” e na “Tabacaria”.
Não andemos por aí deitando fora a vida como aquela pe-
quena suja que deita ao chão as folhas de estanho do chocolate
que come. Saibamos perceber que não é verdade que exista mais
metafísica na confeitaria do que na religião; há muito mais
metafísica em uma vida entregue ao serviço do outro.

Que postura adotar diante


das pedras no caminho?
Nem todos nós temos a postura de um Machado. Pelo con-
trário, o mais comum é que nos confundamos quando encon-
tramos pedras do caminho. Assim foi com o caminhante do
poema de Drummond. Não nego que existam pedregulhos no
caminho. Há dificuldades, tristezas, agruras, traições, impre-
vistos... às vezes mais, às vezes menos. Mas no caminho não há
só pedregulhos e aves negras, senão também flores, brisa fresca
à sombra de uma árvore carregada de frutas, um regato, um
viajante que nos estende a mão quando precisamos....
O caminhante de “A máquina do mundo” só via, fora de si,
pedregulhos, escuridão, deserto e dor. Dentro de si, também:
seu próprio ser estava “desenganado”, suas pupilas se gastaram
com a inspeção contínua e dolorosa do deserto e sua mente es-
tava “exausta de mentar”. Que mente exausta de mentar é essa?
Que “pupilas gastas” são essas? Que deserto é esse, Drum-
mond? Quanta diferença de força, de instalação vital, para o
poema de Machado! De um lado, a força de vida bem vivida;
de outro, a traição biográfica.
280

Quando a máquina do mundo se abriu ao caminhante,


ele já tinha perdido todos os “sentidos e intuições” de tanto
os ter usado. É claro! Todos os sentidos se perdem e trazem
desesperança profunda quando o que se busca e cultiva são
exclusivamente bens deste mundo. Se tudo quanto você vê
é aquela pedra no meio do caminho, esse é o seu único fim
possível.
Essa mesma pedra no meio do caminho, porém, já foi a
pedra no caminho de uma outra pessoa: um jovem pequeno,
que liderou um exército minúsculo e pretendia enfrentar um
gigante chamado Golias; esse menino a recolheu.
Se esse jovem franzino olhasse a pedra só com os sentidos
e intuições que lhe restavam, se ele estivesse cansado da vida e
do deserto, jamais teria vencido. Acontece que essa pedra, que
para uns é tropeço, para outros é sinal de vitória — como o foi
para o jovem Davi, que não se deixou confundir pelos sentidos
gastos, pelo cansaço, pelas adversidades. Ele viu além.
Diante das pedras no caminho, temos duas opções: ou não
agimos — e então tropeçamos e caímos — ou fazemos nosso
dever, que é agir. Mesmo inexperiente e contra todas as ex-
pectativas, Davi pegou a pedra, rodou-a e a lançou. Ele come-
teu um ato “sem esperança”, e por isso venceu. O caminhante
diante da máquina do mundo, por outro lado, baixou a cabeça,
recusou o convite e seguiu de mãos pensas.
Diante da pergunta da Oitava Camada, do “Retifico ou ra-
tifico?”, ou olhamos para as pedras e as lançamos, ou tropeça-
mos e caímos.
O caminhante de Drummond tropeçou e caiu na treva mais
estrita. Mas não o fez sem antes ser brindado com a chance
tremenda de ver que há algo além da escuridão e da tristeza:
há algo que se abre para ele. Ele foi chamado a entrar no “reino
augusto”, a contemplar “verdades altas mais que todos monu-
mentos erguidos à verdade”.
Quando o caminhante de Drummond se viu diante do “so-
lene sentimento de morte, que floresce no caule da existência
mais gloriosa”, ele talvez tenha se lembrado de um santo, de
281 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

um mártir ou de um herói; talvez tenha se lembrado de uma


avó que sacrificou a vida — enfim, ele vislumbrou uma existên-
cia gloriosa. Isso se apresentou num relance, naquele instante
em que a máquina se abriu. Mas foi em vão, pois ele não estava
atento nem disposto; estava cansado demais, amedrontado de-
mais diante da máquina do mundo.
Ele diz que vai pelos caminhos, e é como se outro ser (não
mais aquele habitante de si há tantos anos) passasse a comandar
sua vontade. Noutras palavras, ele abdicou de ser gente, abdicou
do ato. Puxa vida! Se não eu, quem? Se não agora, quando? Se
não se escreve a própria história, quem a haverá de escrever?
Gusdorf diz que a história humana é escrita a três mãos:
um terço é escrito por Deus, um terço é escrito pelo diabo e
o outro terço nós é quem o escrevemos. Com o seu terço, o
caminhante do poema fez o que quase 100% das pessoas fa-
zem no nosso tempo: entregou-o deliberadamente para que o
escrevessem as aves negras — seriam elas demônios? Daí vem
a percepção de que alguém tomou o controle de sua vontade.
Na verdade, ninguém o tomou: seu próprio eu abriu mão dele.
Faça você também, meu leitor, este exame: a pena do seu
terço, a pena que definirá a sua história, os seus amores, as suas
aventuras e os seus atos sem esperança, você a está entregando
para essas aves negras? E a você, psicólogo ou psicoterapeuta,
cabe auxiliar seus pacientes a fazerem o mesmo exame.
Pois quem entrega às aves negras — ao demônio, ao acaso,
ao nada — a caneta com que deveria escrever a própria história,
não sendo mais o autor de seu próprio roteiro, terminará por
baixar os olhos, incurioso e lasso. A esse alguém nada mais ape-
tecerá: nem trabalho, nem comida, nem dinheiro, nem sexo, nem
amizades, nem amor, absolutamente nada. A um homem nesse
estado, podem acontecer as coisas mais extraordinárias, centenas
de milagres podem se lhe apresentar diante dos olhos todos os
dias, que ele sempre desdenhará colher a “coisa oferta” que se
abria gratuita ao seu engenho. Ele sempre repelirá a máquina
do mundo. Se o próprio Deus lhe aparecesse, ele diria: “Não...
É tarde demais. Já estou velho. Estou no entardecer da vida.”
282

Mas, mesmo para quem já está adiantado na estrada e vê a


treva mais estrita pousando sobre si, não é tarde demais. Não
foi tarde demais para Édipo, não é tarde demais para a mulher
de trinta anos — ao contrário do que Freud disse —, não é tar-
de demais para o caminhante desenganado. Enquanto o navio
não vier lhe buscar para a última viagem, ainda não é tarde.
É possível arrepender-se, mudar, evoluir, tomar a sua pena e
escrever a própria biografia.
Um ato profundamente humano é o do arrependimento e
da humilhação que um arrependimento exige. Não há nada
que dissipe mais as trevas ou ilumine mais o mundo do que o
arrependimento, do que o arrepender-se verdadeiramente, do
que o confessar-se e voltar ao eixo. São esses os verdadeiros atos
humanos — não se trata de dar voltas nas galáxias e tornar-se
um escravo cardíaco das estrelas.
Retificamos ou ratificamos? Viveremos a vida da “Máquina
do mundo” e da “Tabacaria”, ou viveremos a vida do “Retrato”,
de Machado? Adotaremos a posição existencial de quem es-
colhe um enredo impossível, uma narrativa que sempre trará
frustração? Viveremos uma vida carregando quinquilharias, ou
seja, atos “cheios de esperança”, no sentido de cobrar tudo dos
outros o tempo todo? Carregaremos a vida toda o peso da cul-
pa e o levaremos conosco para o túmulo? Ou viveremos uma
vida entregue, uma vida de trabalho, uma vida de serviço, uma
vida de amor, uma vida de religião, uma vida de culto a Deus,
uma vida de oração, uma vida de esmola?
Só isso tem sentido mesmo diante da morte, porque só isso
tem a consistência de um ato, e só o ato permanece. Aquilo que
é, nunca deixará de ser. Um ato é eterno: o cair de uma folha é
eterno, o beijo roubado é eterno, o perdão requerido é eterno,
ao passo que as mirabolações do pensamento são como a fu-
maça da “Tabacaria”. Elas não têm metafísica, não têm consis-
tência, não ficam, não têm substância.
É por isso que, para nós, no dia de hoje, entrar na vida é
agir; agir diante de quem amamos, cumprir o nosso dever.
Só assim é que se encontra a própria vocação.
POSFÁCIO
285

A
s lâminas do Tarô e a mitologia têm ainda a nos ofere-
cer muito mais do que apresentei aqui. Porém, o esco-
po deste livro não me permitiu avançar mais na análise
de outros mitos e de outras lâminas do Tarô além daquelas do
Mago, da Papisa e da Imperatriz. Desejo futuramente dar con-
tinuidade a este trabalho, bebendo do riquíssimo simbolismo
presente nos demais arcanos do Tarô (e em outros mitos de
civilizações antigas), chaves de compreensão para outras reali-
dades complexas e difíceis, com as quais nos deparamos cons-
tantemente na prática clínica e na vida cotidiana.
Espero ao menos que, ao final desta leitura, tenha fica-
do claro para você que a Psicologia não é uma caixa de fer-
ramentas que se procura no almoxarifado da clínica ou na
despensa de casa, em busca de uma chave com que apertar
meia dúzia de parafusos soltos na cabeça de alguém. Em pri-
meiro lugar, porque as cabeças das pessoas não têm parafusos;
286

em segundo lugar, porque ferramentas com essa pretensão me-


canicista não existem. O que há é toda uma linguagem e per-
cepção simbólicas e filosóficas, das quais busquei tratar aqui.
Se propus algumas “ferramentas fundamentais”, foram elas
o chapéu do Mago e seu olhar perfeitamente desatento, a trí-
plice tiara da Papisa, o cetro e o escudo da Imperatriz, o raio
de Zeus, o exílio interior e a bagagem leve do poema de Ma-
chado – acrescidas de algumas teorias como a das quatro nar-
rativas possíveis ao ser humano, a dos cinco tipos humanos e a
das doze camadas da personalidade. Sem meios como estes, o
psicólogo, o terapeuta e o psiquiatra, munidos daquilo que lhes
oferece a Ciência Contemporânea (com seus medicamentos,
suas técnicas e seu arsenal de artigos científicos), serão capa-
zes de tratar de questões periféricas da vida, mas verão que
seus instrumentos ainda são insuficientes no que diz respeito
às questões centrais. Se bem entendidas e bem empregadas,
essas inusitadas ferramentas servirão ainda – não apenas aos
profissionais, como a qualquer de meus leitores – para o de-
senvolvimento pessoal e para um melhor convívio com aqueles
que lhes são próximos.
A teoria das doze camadas dá, em particular, uma descrição
precisa do desenvolvimento pessoal e progressivo ao qual to-
dos nós aspiramos, em um desejo constante de “conquista da
personalidade”. É possível basear nela o processo terapêutico
e com ela ajudar pacientes e entes queridos a amadurecerem.
A quem deseja conhecer melhor essa “tecnologia”, que em
muito enriquece a prática clínica, recomendo que faça um de
meus cursos para psicólogos, psiquiatras, coaches e intrometi-
dos. Nesses cursos, falo mais detidamente sobre essa teoria e
sua aplicação em consultório e na vida.
Meu primeiro convite, estampado na capa deste livro, é que
você vista o chapéu do Mago. Ele representa o início do cami-
nho, a postura existencial necessária sem a qual não se pode
captar as coisas superiores. Só um Mago de chapéu é capaz de
exercer a “magia”: o chapéu nos protege dos raios da finitude e
abre a visão para o infinito. É ele a saída para quem quer que
287 posfácio

tenha uma visão de mundo amputada, em especial uma visão


predominantemente materialista e cientificista das coisas. É a
solução para o psiquiatra que entope os pacientes de medica-
mentos e se esquece de que está lidando com uma pessoa hu-
mana, dotada de um mundo interior riquíssimo – um mundo
dinâmico, de projeção, tensão, desejo e frustração. É a solução
para o psicólogo ou o amigo que, olhando para apenas um ou
dois aspectos do homem, tampouco o consegue enxergar em
sua integralidade – e, por isso mesmo, não é capaz de orientar;
só o que faz é dar soluções temporárias ou muito pontuais.
Portanto, insisto que você se pergunte, de tempos em tem-
pos, se está de fato vestindo o chapéu do Mago ou se é ain-
da uma espécie de impostor que deu a si mesmo o título de
Mago, de terapeuta, de psicólogo, ou de orientador de qualquer
tipo. Essa pergunta é fundamental. Faça-a agora mesmo, antes
de pensar em aplicar a técnica do fulano ou do beltrano – ou
quaisquer outras coisas que tenha aprendido na faculdade, ou
com esta e outras leituras.
Se você se descobrir um impostor, não se apavore. Há mi-
lhões como você. Leia mais uma vez o capítulo do Mago e
busque assimilar e aplicar o que ali está. É apenas o início.
Mas, com o tempo e a prática, você verá que seu trabalho vira
jogo, e já não será mais preciso pensar em cada passo que dá.

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