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A CONSTRUÇÃO CURRICULAR DO ENSINO SUPERIOR NO

BRASIL NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-SOCIOLÓGICA DA


EDUCAÇÃO: da Colônia à República

Irton MILANESI*

':4s desigualdades entre as classes sociais bem como a


dissimulação daquilo que as produz (pela educação) são
produto da ordem econômica capitalista. O Estado que
regulamenta, dirige e empreende a educação é o mesmo
Estado que regulamenta, dirige e empreende a ordem eco-
nômica" (Luís Antônio Cunha, 1975).

Introdução Ver-se-ão no desenvolvimento deste tra-


balho os componentes: centralização e contro-
Este trabalho é fruto de esforços empre- le - via Estado como forma de "Iegitimação" do
endidos por meio de estudos realizados na poder, bem como as transformações econômi-
Disciplina Evolução do Ensino Superior no Bra-
cas e sociais ocorridas no mundo, as quais
sil, do Programa de Pós-Graduação em Educa-
influenciaram na construção curricular do ensi-
ção da Pontifícia Universidade Católica de Cam-
no superior brasileiro.
pinas.
Procura extrair dos conteúdos ministra-
dos na disciplina supracitada aqueles pertinen- I - O ENSINO SUPERIOR NO BRASIL
tes ao projeto de pesquisa que esse mestrando
> COLÔNIA (1549-1808)
vem desenvolvendo no programa de Pós-Gra-

l duação da Instituição ou seja, levantar as con-


tradições do currículo técnico linear fragmenta-
do, concebido no liberalismo que foi sendo
1 - Primeiro Momento: as primeiras inicia-
tivas de ensino no Brasil Colônia
construído ao longo da história do ensino supe-
rior no Brasil e que hoje constitui um obstáculo . . .
a ser vencido, ou pelo menos ter diminuído os As prrmelrasIniCiativasde ensino ocorre-
seus impactos pela construção de um currículo ram por ocasião da vinda dos padres Jesuítas
do tipo integração em direção à interdis- em 1549, como expansão dos trabalhos da
ciplinaridade. Companhia de Jesus fundada em 1540 em
Da chegada dos jesuítas à Colônia até a Portugal.O objetivo dos jesuítas na Colônia era
República (no Regime Militar) procura-se anali- catequizar os índios e "dar apoio religioso aos
sar o posicionamento do Estado como gestor colonos'~, para o que recebiam subsídios do
das políticas públicas. Estado.
) (") Mestrando do Programa de Pós-Graduaçao em Educaçao - PUC-Campinas e professor do Curso de Pedagogia da
UNEMAT - Campos de Cáceres-MT.
I (1)L. A. CUNHA. A Universidade Temporã: o ensino superior da Colônia a Era Vargas, 1975, p. 24.

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Revista de Educação. PUC-Campinas. v. 3. n. 5. p. 51-63. novembro 1998
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Quanto a uma orientação normativa, se- de um currículo imperialista eurocêntrico, de


guiamoRatioStudiorum, cujo ensino (ministra- cultura branca, conforme podemos ler em L. A.
do em estabelecimentos jesuítas), por sua vez, Cunha,quanto ao intentodo padrejesuíta Antô-
era subdividido em: estudos menores, com a nio de Oliveira junto ao ministro do Rei de
finalidade do desenvolvimento das primeiras Portugal para fim de reconhecimento dos cur-
letras (destinado aos índios e colonos) e estu- sos de artes da Colônia, "a negativa do ministro
dos superiores (equivalente ao universitário) baseou-se no fato de que os brancos da Bahia
para a formação de novos padres e de elites não queriam que seus filhos estudassem ao
governantes. lado dos pardos (3.
Os estudos superiores (nosso objeto de Esse mesmo autor fala-nos da existência
interesse), inspirados nas idéias dos educado- dos cursos superiores existentes nesse perío-
res renascentistas, eram concebidos como um do da Colônia, especialmente os de Filosofia.
ensino de humanidades, sendo destinados à São esses cursos:
formação das elites, visando ao poder. Inicial- . os do colégio do Rio de Janeiro, no Morro do
mente os jesuítas ofereciam estes cursos: o de Castelo fundado ainda no século XVI;
Humanidades em dois anos (ensino de Gramá-
tica, Retórica e das Humanidades); o curso de . os do colégio da Bahia, que serviam de
Artes (também chamado curso de Ciências modelo para os demais;
Naturais ou Filosofia) em três anos e Teologia . os do colégio de Olinda - Pernambuco;
em quatro anos, o qual conferia o título de
doutor.
. os do colégio do Maranhão;
. os do colégio do Pará;
Os cursos de Filosofia e Teologia foram
os que constituíram o núcleo da formação das
. os dos colégios que havia em São Paulo e
Santos, o primeiro funcionando desde 1554
humanidades, implantados para atender inte-
e o segundo desde 1653;
resses na formação das elites para fins de
governo. Conforme nos confirma Serafim Leite . do último colégio criado antes da expulsão
quanto à exclusão das pessoas oriundas das dos Jesuítas: o de Mariana, em Minas Ge-
classes populares, "a freqüência dos colégios rais, a pedido do bispo local.
era constituída por filhos de funcionáriospúbli-
co, de senhores de engenho...'!?, com forte
seletividade para ingresso e uma pedagogia 2 - Segundo momento: as Reformas
baseada nacátedra do professor.A "moral"e os Pombalinas
"bons costumes" são impressões dessa peda-
"Durante a terceira quadra do século XVIII,
gogia, sem revelar os interesses ideológicos
profundas transformações políticas, eco-
ocultos para fins de dominação, por via da
nômicas e culturais, ocorreram em Portu-
obediência. Na intenção de se perseguirem os
gal (...) repercutindo no Brasi/,I$.
objetivos na busca da "moral" e dos "bons
costumes", outra marca desta pedagogia jesu- Essas transformações atingem signifi-
cativamente o setor educacional, até então so-
ítaera adisciplina rígida, inclusive com a aplica-
bre hegemonia da Igreja Católica, decidindo
ção de severos castigos.
sobre os seus rumos. A Companhia de Jesus,
Percebe-se claramente que a gênese do principal responsável na condução do ensino, é
ensino no Brasil foi marcada pela implantação expulsa do Império Português.
i~ Serafim LEITE apud L. A. CUNHA, Op. Cil. p. 29.
(3) L. A. CUNHA. Op. Cil. p. 32.

,4, Op. Cil. p. 36.

R.:vista d.: Educação.rUC-Campinas.v. 3. n. 5. p. 51-63.novembro1998


A CONSTRUÇÃO CURRICULAR DO ENSINO... S3

No Brasil, o primeiro impacto dessas re- orientação do ensino jesuíta (para as humani-
formas foi marcado com a expulsão(5)dos Je- dades - formação das elites), quanto nas Refor-
suítas e a implantação de uma proposta de mas Pombalina, marcadas pela orientação do
secularização do ensino, tendo Marquês de ensino numa visão utilitarista (resolução de
Pombal à frente.
questões práticas).Tanto no primeiro momento
Faz-se necessário salientar que esse pe- quanto no segundo, percebe-se o não compro-
ríodo de ruptura com o modelo de orientação misso com as camadas populares, quando
curricular educativa católica é orientado por muitochamadas ao estudo das primeiras letras
uma concepção de ensino numa visãoutilitarista ou para o mandarinato a partir da Independên-
sob influênciadolIuminismo,conformeescreve
cia, conforme veremos adiante.
Olinda MariaNoronha:
"...as primeiras 'experiências científicas'
no Brasilrefletem de maneiraclaraa con- 11 -O ENSINO SUPERIOR NO IMPÉRIO
cepção utilitarista de ciência, oriundas do (1808 -1889)
lIuminismoe expressando ao mesmo tem-
po o carátercientificistae práticoda Refor- 1 - Primeiro momento: criação dos cursos
ma da Universidade de Coimbra''6. no ensinosuperiora partir da chegadada
Ébomseregistrarqueo fundamentaldas Famllla Realao Brasil
ReformasPombalinaé a implantaçãode um
novo modelode ensino,o utilitarista,que, por Com a transferência da Corte Portuguesa
sua vez, colocaa primaziada ciênciasobrea parao Brasilem 1808,criou-se todo um aparato
religião.A pesquisaera até então realizada de Estado. Isso fez que faltassem pessoas
segundoorientaçãoreligiosacatólica.Deuma preparadas entre nós para desenvolver traba-
ciência especulativa, passa-se então, a uma lhos burocráticos e para a produção de bens
ciênciaempírica.O currículoagora, éconstruído materiais e simbólicos de consumo para a so-
com base em uma visão mais aberta para o ciedadedominanteda época.Com a intenciona-
comércio, ciências humanas e naturais, física e lidade em suprir essas necessidades, foram
matemática. criados os cursos de nível superior, não com o
Nessanovaordem,o currículoéconstruído interessede se fazer apenas ciência (de manei-
em direção à resolução de questões práticas ra desinteressada de um ponto de vista contrá-
utilitárias. O impactodessa orientaçãoveremos rio à concepção utilitária), mas, acima de tudo,
adiante com a vinda da Família Real para o
para atender a burocracia de Estado e implan-
Brasil, com a criação do curso de Agricultura
aliado ao Jardim Botânico no Rio de Janeiro, tar definitivamente um ensino na concepção
com os cursos de Medicinae Farmácia,Enge- utilitária?,
uma vez que se tratava da consolida-
nhariaMilitar,além de outros. ção na implantação das reformas pombalinas.
Deve-se registrar que o componente Segundo Luís Antônio Cunha, foram cria-
ideológico é um componente forte, tanto na dos então em estabelecimentos militares os
I

151 E mister salientar que apesar da expulsão oficial dos Jesuítas por força das Reformas Pombalina, não veio a se configurar
I na suatotalidade,umavezquenãohaviamcátedrassuficientesparasubstituí-Ioscoma implantaçãodasAulasRégias.
Comissoos Jesuítasficamatuandomaisdiretamentenosestudosmenoresporser de "melhorqualidade"e ganhama
preferênciada burguesia,o que maistardecoma Independência
vem a se configurarna criaçãodo sistemareligioso
particularde ensino.
( 16)Ver, Olinda Maria NORONHA. História do Ensino Superior no Brasil-levantamento, catalogaçlo e análise das fontes
documentaisda História da Educaçlo Brasileira:o ensinono períodode D.JoãoVI e Império,p. 71 . inédito- janeiro
r de 1998.
17)Humanismox cientificismo,categoriade análisedo relatóriode pesquisa.Ver,OlindaMariaNORONHA.Op.ci1.p. 39.

Revista de Educação,PUC-Campinas,
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cursos de Medicina e Cirurgia e Matemática. orientações novas como a secularização do


Posteriormente foram criados os cursos de ensino públicos.Até então, o ensino estatal era
Engenharia Militar e Engenharia Civil, ambos religioso, sob orientação católica que não se
apoiados em conhecimentos matemáticos: o ocupava apenas com o ensino religioso, mas
primeiro para resolver questões práticas na também com a burocracia de Estado. Segundo
construção de armas e estratégias bélicas, e o Luís Antônio Cunha,com a proposta de secula-
segundo que vem aliado à expansão cafeeira, rização de Pombal a igreja católica perde a
surgeem razãoda necessidadede escoamento função de gestora do ensino passando tal fun-
da produção por meio de rodovias e ferrovias, o ção para o Estado.
que tornou necessário o trabalho do engenheiro Com a propostade secularização do ensi-
civil. Outros cursos ainda foram criados, como:
no e alteração quanto ao gestor, os jesuítas
Agronomia, Química, Desenho Técnico, Eco- foram expulsos de Portugal e de todas as suas
nomia Política,Arquitetura, efinalmenteDireito. colônias, e aqui, no caso, o Brasil. Nas palavras
É importante registrar também alguns cursos de Olinda Maria Noronha, esse fato criou um
que foram criados para atender à produção de vazio, uma vez que se retirava o ensino das
bens simbólicos da classe dominante: Dese-
mãosdos jesuítas, e pouco se tinha, em termos
nho, História, Música e Arquitetura, cursos pre- de recursos humanos, pedagógicos e técnicos
vistos para serem ministrados naAcademiadas para substituí-Ios.
Belas Artes no Rio de Janeiro (um projeto não
consolidado, no qual se previa a integração de É importante destacar-se a forte centra-
conhecimentos). lidade e controle do Estado diante do ensino,
com a criação da Diretoria Central de Estudos e
Quanto à orientação curricular, os livros Mesa Censória, órgãos subordinados ao Rei.
didáticos desses cursos, na sua grande maio- Todo o processo passa a ser controlado, desde
ria, foram importados da França (berço do a formação docente, conteúdos curriculares a
positivismo, onde atuava Augusto Comte), o serem ministrados e normas disciplinares tanto
que não deixava sobremaneira de influenciar a para alunos quanto para professores. Perce-
formação acadêmica no Brasil e, sobretudo, a be-se que desde a sua gênese, o ensino é
maneira de pesquisa orientada pela filosofia marcado pela forte imposição de padrões de
positivista, que previa a neutralidade sujeito- comportamento, no mínimo levando os alunos
objeto. Assim, procura-se tratar todos os pro- à passividade. Disciplinamentoaqui é sinônimo
blemas, inclusive os sociais mediante aplicação de "ordem".O poder eracentrado na burocracia
da técnica, e quem a aplica deve manter-se escolar,pelaqual,valendo-sede normatizações,
neutro quanto ao resultado da aplicação. O regulamentava-se o provimento dos cargos,
critério da verdade é o da objetividade, portan- funcionamento didático dos estabelecimentos
do, todo conhecimento fora desse critério tor-
de ensino e o disciplinamento dos alunos por
na-se inaceitável como científico.
meio de punições.
É mister salientar que o ensino superior
Percebe-se que o componente ideológi-
recriado a partir de 1808 era estruturado em
co, controle, repercute em cadeia: o ensino era
estabelecimentos isolados para atender o inte-
controlado pelo governo o qual nomeava os
resse utilitaristado Estado,ou seja, nabusca de diretores, pelos diretores que inspecionavam
resolução de questões práticas do quotidiano. os trabalhos dos lentes catedráticos no tocante
O translado da sede do Governo Portu- a métodos de ensino, livros didáticos, e por
guês para o Brasil fez que se introduzissem esses que, por sua vez, controlavam os alunos
,8, Segundo Olinda Maria Noronha, essa proposta vem em oposição à orientação dada pelos jesuítas, agora com a inclusão
de disciplinas técnicas no currículo, ou seja preparação para um modelo burguês de ensino, Op. Cito p. 4.

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por meio do conteúdo ministrado, pelo disci- duas esferas: a esfera nacional, com estabele-
plinamento quanto a hábitos, etc. cimentos criados pela Assembléia Geral com o
Com a estada da Família Real no Brasil e controle geral dos títulos e a esfera provincial
implantação da proposta de secularização do com os estabelecimentos criados pelas As-
ensino, o ensino secundário era ministrado em sembléias Provinciais.
colégios episcopais e em aulas régias (todos Quanto à liberdade de ensino, segundo
sem seriação). Para ingresso no ensino supe-
Luís Antônio Cunha, foi a partir de 1870, que
rior foram criadas as aulas preparatórias e
liberais e conservadores positivistas conver-
seqüencialmente os exames. Estes exames
giam nas idéias em favor do ensino superior
sofreram ao longo dos tempos várias transfor-
livre. Dessa convergência é que resultou o
mações, inicialmente era aplicado pelo Colégio
Decreto 7.247 de 1879 do Ministro do Império
D. Pedro 11(os alunos que o freqüentavam
Carlos Leônciode Carvalho, intitulando a liber-
tinham acesso livre ao ensino superior), poste-
dade de ensino primário e secundário no Muni-
riormente pelos Liceus Provinciais,e a partir de
cípio da corte e o superior em todo o país.
1851 passaram a ser realizados pelas próprias
Ficava o Estadodetentor de autorização para o
escolas de ensino superior aos quais os alunos
funcionamento dos cursos e controle dos títu-
se candidatavam. Sob pressão dos Liceus pro-
los. Nota-se aqui mais uma vez o componente
vinciais, os exames foram descentralizados, e
ideológico, a presença do Estado nacentraliza-
mais tarde se banalizaram pelos mecanismos
ção e controle.
protecionistas e colocou-se em dúvida sua va-
lidade. Aqui se percebe o caráter excludente, É importante fazer-se uma menção quan-
tendo o Estado como gestor da política pública to à criação dos cursos no ensino superior, cuja
educacional - pelo critério da seleção. grande maioria é criada no Primeiro Império
numa visão positivista-utilitarista, sendo cria-
Na orientação curriculardo planode secu-
dos no Segundo Império somente mais dois
larizaçãodo ensino no Brasil, alémda influência
cursosde Direitoparaa formaçãode mandarins,
do pensamento desenvolvido na Universidade
uma vez que era necessário recompor os qua-
de Coimbra, percebe-se a forte dependência
dros para a interpretação e a aplicação da
cultural da França. As escolas superiores, cria-
das desde 1808, tinham currículos orientados legislação na burocracia estatal.
pela cultura francesa, inclusive a bibliografia Quanto à idéia de Universidade, sabe-se
básica que era trazida desse país. que, apesar de existirem vários projetos para
sua criação, ela não surgiu no Império, prevale-

r
2 -Segundo momento: Retorno de D. João cendo o ponto de vista dos positivistas que
eram contrários à sua criação no Brasil. O que
VIa Portugal e agora a partir da Indepen-
dência e a seqüência na orientação existia era a continuidade dos cursos isolados
currlcularparao EnsinoSuperior criadosemestabelecimentosmilitares(naBahia,
Rio de Janeiro e São Paulo).
Com o retorno de D. João VI a Portugal e
a conseqüente Independência do Brasil tendo
no comando D. Pedro l,formam-sedoissetores 11I- O ENSINO SUPERIOR NA PRIMEIRA
de ensino: O estatal secular com normas do REPÚBLICA (1889 - 1930)
Estado e o particular, religioso e secular com
funcionamento laissez-faire. Esse período inicia "...com a influência
A organização estatal do ensino, por for- positivistanapolíticaf3ducacional,marcadapela
ça do Ato Adicional de 1834,dividiu o setor em atuaçãode Benjamin Constantem 1890-91...'9.

I (9) L. A. CUNHA, Op. Cil. p. 132.

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É neste período que surgem as escolas supe- diplomação, em 1914, na qualidade de Ministro
riores livres, empreendidas por particulares, do Presidente Venceslau Brás, Carlos
porém não laissez-fairecomo no período ante- Maximiliano Pereira dos Santos foi chamado
rior.Numdado momento, esse período foimar- para "restabelecer a ordem no campo educa-
cado por uma certa facilidadequanto ao acesso cional, tumultuado pela lei orgânica'f 71). Em
ao ensino superior e à aquisição do diploma, 1915, como "resposta concreta" a essa expan-
única forma "legítima"de diferenciação social, são do ensino superior, foi promulgado em 15
mas tão logocontida. A investida para conter o de março do mesmo ano o Decreto 11.530, que
chamado "acesso exagerado" veio com a intro- se justifica em razão da intenção de "reorgani-
dução dos exames vestibulares, o que continua zar" o ensino secundário e o superior em todo
prevalecendo até hoje, problema que temos o país. A "marca" dessa reforma é, sem dúvida,
para resolver. a introdução dos exames vestibulares para a
A primeira reforma desse período foiem- seleção dos candidatos ao ensino superior.
preendida por Benjamim Constant no tocante Coma Reforma Carlos Maximiliano, re-
ao ensino da Escola Militar,visando, em primei- duz-se drasticamente o número de ingressos
ra instância, à formação dos chamados oficiais no ensino superior. Tal exclusão foiprovocada
do Exército.Carregada de interesse dominante tanto pelos exames vestibulares, quanto pela
a favordas classes alta e média, em detrimento exigência de certificados, conforme nos salien-
dos interesses da classe popular. Esta reforma ta L. A. CUNHA:
foimarcada por uma orientação para a constru- "Mas não bastava a aprovação no exame
ção de um currículo de cultura geral. vestibular para que o candidato fosse
A opção dessa reforma em favor das admitido. Ele precisava apresentar tam-
classes média e alta desfavorecendo a classe bém um certificado de aprovação das
popular vai expressa na seguinte fala de Luís matérias do ensino ginasial, realizado no
Antônio Cunha: Colégio Pedro /I ou nos colégios estadu-
"No entanto, Benjamim Constant adapta- ais a ele equiparados... "2
va os projetos da doutrina positivista às A última reforma para o ensino secundário
necessidades do Estado (à formação de e superior da Primeira República foi a de 1925,
sua burocracia) e as demandas da socie- conduzida por João Luís Alves e Rocha Vazo
dade civil. Nãoas dos operários,artesãos, "Esta reforma objetivou o reforço do controle do
camponeses sem terra, ex-escravos,mas Estado, particularmente do Governo Federal,
as das camadas médias urbanas'~o sobre o aparelho escolar...'~3 Para gerir o
Outra reforma desse período, a qual deu ensino, criava-se o Departamento Nacional de
grande abertura para a criação de novoscursos Ensino, órgão diretamente ligado e subordina-
superiores, foi a Reforma de Rivadávia da Cu- do ao Presidente da República. Com essa cen-
nha Corrêa. Segundo Luís Antônio Cunha, fo- tralização, o processo de equiparação de curso
ram criadas nesse período nove escolas, seis dos estabelecimentosque se candidatavamao
das quais na área de medicina, odontologia e credenciamento ficou, com tal medida, mais
farmácia, e apenas uma de direito. Num intento rígido. Essa reforma traz consigo mais uma
ideológico em conter esseexpansionismo"exa- marca da exclusão: a do aperfeiçoamento do
gerado", num movimento de resistência à livre vestibular. Se na Reforma Carlos Maximiliano,
como vemos:
,O)L. A. CUNHA, Op. Cil.: p. 153.
(11) Op. Cil. p. 167.
1121 p. 169.
(13) p. 171.

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"não havia limites numéricos para admis- polícia, matéria para ser resolvida pela
são numa faculdade qualquer... "a Refor- repressão, certos representantes das clas-
ma de 1925 por sua vez estabelecia "o ses dominantes viam na Igreja a institui-
dever do diretor de cada faculdade fixar o ção que poderia obter das classes domi-
número de vagas, a cada ano "14 nadas adesão à ordem'~5
Quanto à orientação curricular nesse peri- Neste contexto, houve a reaproximação
odo, percebe-se a nítida central idade no Estado da Igreja Católica ao Estado e como conse-
com relação ao controle ideológico. Essa orien- qüência, houve a introduçãodo ensino religioso
tação previa a introdução da cadeira de Educa- obrigatório nas escolas públicas a partir da
ção Moral e Cívica. Segundo L. A. CUNHA, os promulgação da Constituição Federal de 1934.
exames de admissãodeviamconterquestões Como repercussão no campo curricular aliado
relativasa EducaçãoMorale Cívica. à defesa do Estado Nacional, houve a implanta-
ção de um currículo baseado na Educação
Moral e Cívica, e na Educação Religiosa, valo-
-
IV O ENSINO SUPERIOR NA ERA
res importantes para a formação do "novo ho-
VARGAS(1930-1945)
mem" para a "nação", o que muda muito pouco
em relação à orientação curricular do período
No campo educacional, o período deno-
da Primeira República.
minado pelos historiadores de Era Vargas foi
marcado pelos conflitosideológicos entre duas
forças políticas, o que mais tarde se configurou
na LDBde número 4.024/61. De um lado, os 2 - O segundo grupo de pensadores: os
liberais
católicos, ligados ao aparelho de Estado (rece-
bendo subsídios deste) que, em nome da "fé",
Conforme o próprio nome indica esses
serviam de meios para a "Iegitimação"da obe-
pensadores, concebiam a educação por uma
diência, e a imposição da aceitação do destino
visão liberal. Vejamos em L. A . CUNHA a
das pessoas visto como fatalidade, e, desta
gênese dessa visão de mundo, de conheci-
forma, colaborando para a construção de um mento:
Estado fascista em contraposição à ascensão
comunista que existia no Brasil. De outro lado, "O liberalismo é um sistema de idéias
estavam os liberais,ligados aos interesses da construídoporpensadores inglesese fran-
burguesia em ascensão. ceses, nos séculos XVII e XVIII, utilizado
como forma ideológica da burguesia nas
lutas contra a aristocracia. Esse sistema
1 - O primeiro grupo de pensadores: os ca-
tólicos de idéias baseia-se em cinco princípios: o
individualismo, a liberdade. a proprieda-
Os religiosos, representantes da Igreja de, a igualdade e a democracial6.
Católica, viam na religião a forma pela qual se É interessante destacar que os princípios
podia retomar os subsídios financeiros do individualismo e o da propriedade tiveram
suspensos desde a Primeira República,segun- primazia sobre os demais nesse período da Era
do Luís Antônio Cunha:
Vargas. A idéia de progresso geral da socieda-
"... enquanto predominava a idéia de que de é dependente do progresso de cada indiví-
a questão social era da competência da duo. "...0 indivíduo enquanto sujeito deve ser
1141L.A. CUNHA, Op. cil. p. 171.
1151 Op. Cil. p. 219.
1161 Op. Cil. p. 228.
(17) Educação e Desenvolvimento Social no Brasil. 1975. p. 28.

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respeitado por possuir aptidões e talentos pró- Em Anísio Teixeira vamos encontrar a
prios, atualizados ou empotencia/,,17.Quanto a defesa de uma escola"igualitária". É importante
idéiade propriedade,vem nesseperíodo ampa- destacar a influência do pensamento de John
rada pelo protecionismo de um aparelho de Dewey na proposta educacional de Anísio
Estado, conforme salienta Luís Antônio Cunha, Teixeira. A escola é vista como espaço que "dá
referindo-se a John Locke (um dos maiores condições iguais para todos" se desenvolve-
exponentes do liberalismo): "Locke considera rem, e, em especial, na associação do que
que o Estado existepara proteger os interesses ensina com a "democracia e o desenvolvimen-
do homem que pelo seu próprio esforço, acu- to". Em Fernando de Azevedo encontramos
mulou bens e propriedades...'~8.Os princípios uma proposta de educação para as elites. O
de liberdade e igualdade são vistos na concep- ensino superior é visto como "cultura superior",
ção liberal, como os meios que propiciam às sem caráter imediatista.
pessoas materializarem os demais princípios, É com base na confluência dessas duas
no caso a individualidade, a democracia e a
vertentes: "igualitarismo" e "cultura superior"
propriedade.
que se configura o chamado Manifesto dos
A proposta de ensino liberal busca funda- Pioneiros da Escola Nova. Os Pioneiros cami-
mentar-se nas idéias surgidas a partir da Revo- nham em defesa de um ensino laico e igualitá-
lução Industrial, com base na divisão do traba- rio, tendo o Estado como regulador dessas
lho, na existência da divisão social das classes proposições.
e, acima de tudo, tendo o Estado como regula-
A título de exemplo, surge no contexto do
dor "neutro" dessas diferenças:
Manifestodos Pioneiros por meio de um decre-
"advoga o direito de cada um de ensinar, to de 25 de janeiro de 1934,a USP (Universida-
desde que consoante com as normas e de de São Paulo), uma congregação das facul-
padrões recomendadospelo Estado,bem dades de: Educação, Filosofia Ciências e Le-
como o direito de todosao acessoà instru- tras, antigo sonho de Fernando de Azevedo. A
ção adequada às suas peculiaridades in- Faculdade de Filosofia Ciências e Letras foi
dividuais'~9 . concebida, nas palavras de L. A. Cunha, como
o "coração da Universidade". "Nela funcionaria
Quanto ao "direito" a diferenciação porvia uma espécie de curso básico, preparatório a
da divisão social do trabalho, é fundamentada todas as escolas profissionais... "21.Podemos
em Émile Durkheim, que: perceber aí umaorientação curricularpara uma
"... defende a existência da divisão do cultura geral, com o ensino da Matemática,
trabalho, argumentando que ela aumenta Física, Química, Biologia, Estatística, Econo-
a forçaprodutiva e a destreza do trabalha- mia e outras disciplinas. É importante se regis-
dor, pois favoreceria o desenvolvimento trar que as elites, sendo vencidas no meio
intelectual e material das sociedades"20. desse período pelas armas, passa a atuar no
campo das idéias, o que mais tarde veio a se
Os principais defensores dos ideais libe-
configurar naforte presença dos princípios libe-
rais nesse período no Brasil foram: Lourenço rais contidos na híbrida22Lei de Diretrizes e
Filho, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Base da Educação Nacional, sob número
além de outros. 4.024/61.
(.8Jlbid, p. 31.
(.9IL. R. de Souza MACHADO. Politecnia Escola Unitária e Trabalho, 1989, p. 79.
(20JEmileDurkheim apud L. R. de Souza MACHADO. Op. Cil. p. 35.
(211L.A. CUNHA, Op. Cil. p. 239.
(221ALDB 4.024/61 surgiu como resultado dos conflitos entre as idéias dos Pioneiros e Católicos, ambos os grupos
conseguiram introduzir seus pensamentos nessa lei.

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3- A reforma do ensino superior te das possibilidades das pessoas oriundas das


camadas populares, portanto um currículo
Estando o governo "livre" para agir, ainda elitista.
que porforça de repressão a grupos e organiza-
Para finalizar esse período, é importante
ções, o ensino superior passa por uma reforma
aliada ao ensino secundário. lembrarque, com o golpe de 1937,não se altera
quase nada no panorama do ensino superior,
"Em 11de abril de 1931foi promulgado o conforme escreve L. A. Cunha:
decreto 19.851,autodenominadode Esta-
"o golpe de 1937, instituindo o Estado
tuto das Universidades Brasileiras, esta-
Novo, não precisou reformar a estrutura
belecendo os padrões de organização do
do ensino superior. O estatuto das Univer-
ensino superior em todo do país"23.
sidades Brasileiras, de 1931, fornecia toda
Vale salientar que essa reforma, de um a normalização para esse grau de ensi-
lado, é fortemente de centralização, mas, por no,e7.
outro, abre espaço para a expansãodas univer-
O que se pode perceber nesse período foi
sidades brasileiras, uma vez que em governos
anteriores só havia uma Universidade criada: a a presença do Estado como gesto r da educa-
ção, tendo esta o papel de construir uma "cons-
do Rio de Janeiro, em forma de agregação de
ciência cívica", orientada pelos intelectuais que
três escolas superiores24.
"sabem o que o povo deseja", e, assim elaborar
A Reforma Francisco Campos, apesar do uma ideologia nacional, com base no fortaleci-
avanço inegável tendo em vista ser a primeira mento da indústria.
reforma que organizou de fato o sistema educa-
cional brasileiro, trouxe para o ensino proble-
mas curriculares. Com a organizaçãodo ensino v- O ENSINO SUPERIOR NO ESTADO
secundário aliado ao superior, criaram-se dois
MILITAR (1964-1985): Os Impactos da
ciclos: Um básico de formação fundamental e
outro complementar estruturado como curso Reforma Universitária a partir da
Lei 5.540/68
propedêutico. Dessa forma, conforme escreve
Maria Tetis Nunes: "o caráter enciclopédico de Em nome da "democracia" e da "defesa
seus programas a tornava educaçãopara uma nacional"- via "combate ao comunismo", dá-se
elite'P.s.O currículo do ciclo fundamental era o golpe de 1964 aliadoaos interessesda bur-
composto de: Português, Francês, Inglês, La- guesia (mais uma vez na História). Esse golpe,
tim, Alemão, História, Geografia, Matemática, tido como uma reação ao quadro de crise eco-
Ciências Físicas e Naturais, Física, Química, nômica28porque passava o país, após pesados
História Natural, Desenho e Música (canto investimentos na indústria nacional no período
orfeônico). Já o ciclo complementar: Latim, lite- anterior. Esse período foi marcado por uma
ratura, Histôria, noções de Economia e Estatís- forte ditadura à base da repressão, especial-
tica, Biologia geral, Psicologia e Lógica, Geo- mente com relação à Aliança Nacional
grafia, Higiene, Sociologia e História da Filoso- Libertadora de 1935. É no contexto de repres-
fia26.Conforme se percebe, umcurrículo distan- são políticae de mobilizaçãoestudantil que são

1231L.A. CUNHA, Op. Cil. p. 261.


1241
Idéia extraída de O. ROMANELLI. A Org. do Ensino e o Contexto Sócio-político após 1930 In: História da Educação no Brasil,
1986, p. 132.
(25lMaria Tetis NUNES, apud O. ROMANELLI. Op. Cil. p. 136.
(2610.ROMANELLI, Op. Cil. p. 136.
(27IL.A. CUNHA, Op. Cito p. 274.

Revista de Educação,PUC-Campinas,
V.3, n. 5, p. 51-63,novembro1998
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lançadas as políticas sociais do governo militar, A construção curricular do ensino superior


e, dentre elas, a política educacional. Essa então, a partir do Decreto Lei 5.540/68, passa a
política teve como fim a "restauração" e a "reno- ser vista em direção agora ao mercado de
vação"29 do quadro conflituoso porque passava trabalho. É nessa direção que os membros do
a educação no pais, o que acabou mais tarde GTRU recomendavam em seu relatório (que se
configurando-se no Decreto Lei 5.540, em 1968. configuraria no Decreto Lei 5.540) as áreas
Para restaurar a ordem, "perturbada" pelo tidas como prioritárias, nas quais se deveriam
movimento estudantil surgido desde 1964 que formar pessoas como capital humano para res-
era seguido por alguns segmentos do professo- ponder ao mercado de trabalho, e, dessa forma:
rado, o governo militar criava em 1968 uma "... concentrar o aumento de vagas em
comissão para a Reforma no ensino superior, carreiras prioritárias para o desenvolvi-
denominada GTRU (Grupo de Trabalho para mento econt5mico e social... professores
Reforma Universitária) que, num curto prazo, de nfvel médio, medicina e outras profis-
sob a assessoria da USAID (uma agência do sc5es de saúde, engenharia e outras pro-
governo americano) emite um relatório, o qual fiss6es da área tecnológica, técnicos in-
foi logo aprovado pelo congresso e decretado termediários '/32.
pelo governo sob o número 5.540. É importante Percebe-se ai como prioritária aformação
registrar que a presença da USAID se deve ao de professores (nosso objeto de interesse) não
fato dos acordos Brasil- Estados Unidos desde
numa visão critica, mas como resposta à de-
o inicio do governo militar em 1964. Faz se manda do mercado, para suprir a falta de pro-
necessário esclarecer também que, apesar da fessores. O currlculo, então, foi dividido em
orientação voltada à USAID, ela não foi conce- duas partes: uma nacional e outra regional,
bida apenas segundo os interesses privatistas tendo em vista que a formação "se ajuste às
americano, pois já existia um movimento inter- condiç6es locais e às flutuaç6es do mercado de
no em defesa da "modernização" do setor edu- trabalho 'G3.
cacional no pais, conforme escreve GERMANO:
"... é preciso relativisar a influência de tais as- Observa-se no Decreto Lei 5.540/68, o
sessores, tendo em vista o movimento interno fator fragmentação curricular nos moldes da
em favorda modernização da universidade bra- produção acelerada da empresa. A reforma
sileira'Go. incorpora, como modelo, a forma de trabalho
fragmentado de instituições do próprio Estado,
Percebe-se nesse perlodo que as idéias
ITA e UnB (Instituto Tecnológico da Aeronáuti-
liberais capitalistas estão no auge, e moderni-
ca e Universidade de Brasflia), acrescida das
zar, aqui, é um conceito ligado á Teoria do
recomendações privatistas da USAID e das
Capital Humanc?l,concebido pela burguesia, o
que nãodiferenciava da orientação de assesso- comissões criadas pelo próprio governo militar.
res americanos da USAID. Essa fragmentação nos moldes empresariais,

(28ITratava-se da crise de concentração do capital e diminuição dos investimentos externos na indústria nacional que não
competia com o mercado internacional. Crise que vem a se agravar mais tarde com o desenvolvimento do governo militar,
que não foi eficiente no combate à prática da corrupção e as conseqOêntes tomadas de empréstimos no exterior.
1291SegundoJ. W. GERMANO, a Reforma universitária do Governo Militar objetivava: a "restauração" da "ordem perdida", uma
vez que se pretendia acabar com os conflitos estudantis, e por outro lado a "renovação", oportunidade que se implantava
um modelo educativo fragmentado nos moldes do modelo de produção industrial e colocando a educação à serviço do
mercado, ou seja para atender a demanda do mercado.1301 J. W. GERMANO. Estado Militar e Educação no Brasil, 1993,
p. 117.
13')Segundo GERMANO, Op. Cil. p. 123, essa teoria estabelece um vínculo direto entre educação e mercado de trabalho,
educação e produção.
1321Relatóriodo GTRU apud J. W. GERMANO, Op. Cil. p. 139.
(33)ldem Op. Cito p. 139.

Revista de Educação, PUC-Campinas, v. 3, n. 5, p. 51-63, novembro 1998


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criava-se pela introdução dos departamentos, Finalizando este período, sintetizamos


matrícula de alunos por matéria, institutos34.De dizendo que a Reforma 5.540/68, decretada
uma certa forma, incorporavam-se as reivindi- pelo governo militar, estabelece:
) cações da UNE (União Nacional dos Estudan- . a introdução da Teoria do Capital Humano
tes), desarticulando-a, e ao mesmo tempo in- como base para a formação profissional;
corporava-se a orientação privatista do asses-
sor norte-americano Atcon, quando referia que . privilégio do setor privado em detrimento do
a reforma administrativa da universidade brasi- público no tocante à oferta do ensino supe-
rior;
leiratinha fIque implantarumsistemaadminis-
trativo tipo empresa privada e não de serviço . financiamento do setor privado regido por
público'05, recursos financeiros público sob a forma de
bolsa de estudo a "carentes";
A fragmentação, a meu ver, representava
e representa o modelo ideal em atenção aos . currículo orientado pelo interesse de consu-
interesses burgueses, uma vez que o estatuto modo mercado;
da ciência positivista (objetividade) se reforça . prioridade da dimensão técnica em detri-
no isolamento das matérias, no trabalho do mento da ética;
especialista, e, acima de tudo, no reforço do
individualismo e da competitividade como crité-
. centralização e controle, resultando em pas-
sividade das massas populares com a
rios de progressão na carreira profissional.
reintrodução da Educação Moral e Cívica
A reforma ao priorizar a fragmentação, aliadaà forte repressão política a grupos em
priorizatambém os espaços de uma universida- nome da "defesa nacional";
de acrítica, conforme escreve GERMANO:
. a fragmentação curricular em forma de ma-
"... a reforma incorporou a estrutura e térias ou disciplinas, isolamento, não
tentou inviabilizar a todo custo, umprojeto criticidade nos conteúdos, mas, sim, privilé-
de universidade crítica e democrática ao gio da dimensão técnica.
reprimir e despolitizar o espaço acadêmi-
co'06,
Outro componente ideológico pensado VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS
para impedir a construção de uma universidade
crítica é a reintroduçãoda cadeirade "Instrução, Num esforço para sintetizar a construção
Educação Moral e Cívica" no currículo,37com o e o desenvolvimento curriculardo ensino supe-
fito de reforçar a propaganda governamental rior no Brasil desde a Colônia até o Regime
em defesa da "Ideologia Nacional","combater o Militar na República, tentarei elucidar algumas
comunismo" e promover a "Iegitimaçãoda Re-
categorias que, a meu ver, são fundamentais
volução de 64", Conforme escreve GERMANO:
nesse longo período da Educação Brasileira, a
"... isso ocorre com a institucionalização saber:
da Educação Moral e Cívica e seu prolon-
gamento para o ensino superior 'inclusive . Ensino Religioso - Educação Moral e Cívica
a pós-graduação' com a denominação de (componentes ideológicos usados pelo Es-
Estudos de Problemas Brasileiros'o8 tado como forma de controle): tem sido usa-

(341VerJ. W. GERMANO. op. Cit. p. 122.


1351Atconapud J. W. GERMANO. Op. Cito p. 123.
(36IJ.W. GERMANO. Op. Cit. p. 123.
137)Acadeira de Instrução, Educação Moral e Cívica havia sido introduzida em 1925 pela Reforma Rocha Vaz como forma
ideológica de conter qualquer tipo de reação crítica.
138)J.W. GERMANO. Op. Cit. p. 134.

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dos pela orientação do Estado como gestor com a abertura para o ensino superior livre
das políticas educacionais públicas. Na Co- (privado); na República com os exames de
lôniasob a orientaçãojesuíta, comoforma de admissão e mais tarde o vestibular que se
preparar dentro dos cursos de formação das pratica até hoje, e, por fim, na consolidação
pessoas para as humanidades; mais tarde do ensino superior privado com a Reforma
na Era Vargas e no Estado Militar como do Ensino Universitário 5.540/68 no Regime
substrato para desmobilizarenfrentamentos, Militar.
conflitos. "Formar" para a obediência, à pas-
sividade; dicotomias: Elites - classes popula-
. Centralização (negação da democracia por

res, trabalho intelectual - trabalho manual, via da ditadura): Tem servido em todos os
concentração material- expropriaçãoda for- períodos como substrato da "Iegitimação"
ça produtiva. (aquela proclamada por Locke referindo-se
à função neutra do Estado) da ordem e da
. Caráter utilitaristada educação:Implantação
democracia, só que a propagação de um
de uma nova concepção científica, à moda
positivista (neutralidadecientífica, resolução Estado árbitro neutro para a sociedade não
de questões prática, supremacia do know funciona, pois essa centralização de poder
howtécnico sobre o ético). Essa concepção acaba por privilegiar interesses capitalistas,
de ciência, inicialmente introduzida com a e a históriatem mostrado que sempre a favor
implantação dos primeiros cursos superio- das elites. Estado - tem servido de meio para
res isolados por ocasião do Império,e que foi a "Iegitimação"da dominação das elites so-
se firmando na qualidade de estatuto cientí- bre as classes populares - via centralização
fico com a expansão capitalista burguesa, e de poder.
que hoje se constitui como um obstáculo a
ser vencido, mediante a proposição da pas-
. Currículo fragmentado, ensino prioriza a ex-
sagem da aplicação técnica da ciência para clusão - via cultura geral - via seleção: As
a aplicação ética. Assim será uma forma de reformas sempre se pautaram numa cultura
diminuir os impactos excludentes gerados geral inacessívelas camadas populares, ini-
pela crise de concentração do capital, o que cialmentecom aulasde Latim,Alemão, Fran-
vem formando uma massa de excluídos em cês; mais tarde com a consolidação do
todo o mundo. paradigma cartesiano de ciência, centra-se
. Luta entre aristocracia e burguesia (consoli- sua base na Física, Matemática, Química,
dação da burguesia): Colônia, Império, pre- alémdeoutras.A reformauniversitária5.540/
domínio da aristocracia rural. A partir do 68 é um exemplo da consolidação da frag-
Império, diminui essa supremacia com a mentação curricular transplantado dos mol-
abertura do comércio externo (no caso para des da empresa para o setor educativo, com
o inglês); na República diminui mais ainda, criação dos institutos, matrícula por discipli-
até que se consolida a hegemonia burguesa na, isolamento entre especificidades (saber
no Estado Militar. Essa consolidação não se as partes nunca o todo - uma tendência
dá de maneira isolada, ela acompanha o acrítica, a-política).
contexto.de transformação da ordem econô-
mica e social no mundo. É nesse contexto
que se tem sempre proclamado por reformas VII - BIBLIOGRAFIA
no ensino, "reformas"que têm privilegiado a
consolidação do capitalismo burguês: No CUNHA, Luís Antônio. Educação e Desenvol-
Império com a introdução dos exames pre- vimento Social no Brasil. Rio de Janeiro: F.
paratórios aplicados pelo colégio Pedro 11e Alves, 1977.

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. A Universidade Temporã: NORONHA, Olinda Maria. História do Ensino


o ensino superior da Colônia a Era Vargas. Superior no Brasil-levantamento, cataloga-
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira I Edi- ção e análise das fontes documentais da
) ções UFC, 1980. História a Educação Brasileira: o ensino no
3.
período de D. João VI e Império - inédito
GERMANO, J. W. Estado Militare Educaçãono janeiro de 1998.
Brasil.São Paulo:Cortez, 1993.(caps. 1e 2).
ROMANELLI. O. A Organização do Ensino e o
MACHADO, L. R. de Souza. Politecnia Escola Contexto Sócio-político após 1930. In: His-
'r Unitária e Trabalho. São Paulo: Cortez e tóriada EducaçãonoBrasil.8.ed. Petrópolis:
s Autores Associados, 1989 (Caps 1,2 e 3). Vozes, 1986.

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