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Os químicos ocultos e sua extraordinária jornada ao mundo dos átomos.

A busca pela compreensão da estrutura da matéria em geral, e do átomo em particular é, sem


dúvida, responsável por episódios valiosos na história da Química. Várias concepções surgiram
sobre o conceito de átomo, em circunstâncias, culturas e épocas diferentes. As especulações
envolvem a participação de muitos pensadores e constituem uma história que não pertence
somente à Química, mas é um tema que gera múltiplos debates em filosofia, teologia, física e
outras áreas.

O presente trabalho será apresentado dentro de uma perspectiva histórica da cultura


científica. Nessa abordagem, considera-se a cultura científica como algo mais amplo que o
ministram da ciência de um dado período, mas também como suas ideias são absorvidas e
reverberam para além da ciência acadêmica. Em particular, analisa-se, no fim do século XIX e
início do século XX, a passagem de uma cultura etéreo-fluídico-plasmática para uma atômico-
molecular. O movimento que liga a ciência acadêmica e seus reflexos marginais é aqui tomado,
como num movimento dialético, em que ambos se influenciam.

Para o presente trabalho, será analisada a obra “química oculta” (1919), de autoria de Annie
Besant e Charles Leadbeater. Besant e Leadbeater são membros da sociedade teosófica
internacional e propõem um método de análise da estrutura atômica dos elementos químicos
conhecidos à época a partir do uso da clarividência. Iniciados nas ciências ocultas, os
teosofistas se dizem capazes de adentrar na estrutura atômica dos materiais, usando a
meditação. Descrevem, na obra, as estruturas que observam, sugerindo uma síntese entre
teoria atômica, crescente no período, e a etérea. Tal modelo de explicação mantinha, em seu
núcleo, a crença, bastante presente no período, na existência de um elemento primordial que
seria a base de todos os elementos conhecidos. William Crookes postulava a existência do
prótilo, enquanto os teosofistas o chamavam de anu.

As pesquisas realizadas por Besant e Leadbeater exerceram influência à época, sendo citadas
por químicos influentes do período, como soddy. Besant e Leadbeater chegam a sugerir, a
partir de suas observações, que elementos químicos semelhantes poderiam conter estruturas
distintas, fato proposto pela química somente cerca de 4 anos mais tarde, com a descoberta
dos isótopos, amplamente investigados por soddy, que teve acesso aos trabalhos dos
teosofistas. Mais recentemente, Stephen Phillips, num artigo intitulado “extrasensory
perception of subatomic particles” (1995), rediscutiu os dados dos teosofistas, sugerindo que,
o que haviam observado não eram átomos, mas quarks e subquarks, mostrando-se
incrivelmente consistentes com os dados da mecânica quântica e da física de altas energias,
naturalmente desconhecidas no período de publicação da obra.

Apesar das impressionantes ideias e predições de elementos químicos, em especial os não


conhecidos para a época, o método de investigação utilizado pelos químicos ocultistas
certamente não se enquadrou na tradição empirista, fortemente aceita no século XIX, que
valorizava a verificação através da experiência e questionava com rigor o estudo de entidades
não visíveis e hipotéticas, como no caso dos átomos. Em razão disso, Annie Besant e seu grupo
receberam duras críticas e seus trabalhos foram rejeitados pela comunidade científica.

Ainda que as ideias do grupo fossem e ainda sejam enquadradas na categoria de


'pseudociência' ou ciência marginal, sua proposta pode tornar-se um episódio relevante para a
reflexão de aspectos relativos à natureza da ciência. O que ocorre, na maioria das vezes, é que
a História da Química é escrita e reescrita, e dela são removidos fatos que pareçam
inconvenientes, peculiaridades e ideias prematuras, deixando somente um caminho
racionalizado e moldado como parte de uma sequência linear de "descobertas" científicas. O
resultado disso é que, não somente a história é distorcida, mas também remete os estudantes
a uma visão simplista de como a ciência progride, como se ela o fizesse apenas de modo
racional, excluindo a riqueza da atividade científica, do papel da imaginação e a originalidade
dos que com ela se envolvem.

O presente episódio é bastante esclarecedor por dar evidências interessantes de quão ricos e
complexos podem ser os processos de negociação conceitual dentro de uma comunidade
científica em períodos de incerteza teórica. Não se trata, evidentemente, de validar as
observações sobre existência de éteres ou de fenômenos extrassensoriais como metodologias
alternativas à investigação científica, mas de mostrar que mecanismos internos e externos à
atividade científica, respectivamente, influenciam e exercem influência na reorganização do
corpus científico.

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