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25/06/2020 À espera dos bárbaros

EDIÇÃO 137 | FEVEREIRO_2018

questões de literatura e gênero

À ESPERA DOS BÁRBAROS


O que os personagens masculinos de Elena Ferrante têm a nos dizer
ALEJANDRO CHACOFF

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Ferrante cria conflitos romanescos que incham como bexigas até o ponto de tensão máxima, mas no fim não estouram:
desinflam de modo anticlimático, numa recusa dos artifícios literários FOTO: MARIO CATTANEO_© MUSEO DI
FOTOGRAFIA CONTEMPORANEA

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os livros de Elena Ferrante, todo mundo apanha. Um menino joga uma

N
pedra na cabeça de sua colega de escola, e o sangue jorra; uma mãe
enche a filha de tapas, e depois ameaça quebrar as suas pernas; um
pai joga a filha pela janela e o vidro estilhaça. Um mafioso, muito
apaixonado, dá um murro na cara de sua amada durante um funeral, e a
deixa estirada no chão, cuspindo dentes. “Vivíamos em um mundo em
que crianças e adultos frequentemente se feriam”, diz Elena Greco, a
Lenu, narradora e protagonista dos livros que formam a saga napolitana
de Ferrante. “Sangue escorria das chagas, que depois supuravam e às
vezes se acabava morrendo.” Nas memórias de Lenu, a Nápoles do pós-
guerra, essa Nápoles de sua infância, era um lugar perigoso, “cheio de
palavras que matavam: crupe, tétano, tifo exantemático, gás, guerra”.
“Também se podia morrer de coisas que pareciam normais”, como ingerir
cerejas sem cuspir o caroço ou engolir chicletes por distração. Antes do
fim, contudo, fosse ele provocado por doença, crime ou asfixia, imperava
a brutalidade. “A vida era assim e ponto final, crescíamos com a
obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem
difícil para nós.”

A tetralogia napolitana – formada pelos romances A Amiga


Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem
Fica e História da Menina Perdida – tem mais de 1 500 páginas, muitos
personagens e reviravoltas, mas a sua trama central é simples. Lenu –
brilhante, intensa, boa aluna na escola – quer escapar dessa barbárie,
fugir de seu bairro para a civilização, embora esse desejo seja sempre
difuso e mal articulado: nunca é claro no que consistiria a fuga e de que
modo ela se daria. Raffaella Cerullo, a Lila, é a sua melhor (e, muitas
vezes, pior) amiga. Lila também é intensa e brilhante como Lenu, mas o
seu brilhantismo é anárquico, autodidata. Ela rejeita os estímulos de
professores e caçoa das promessas de uma futura felicidade burguesa em
algum lugar mais civilizado. É uma menina prodígio niilista, cética diante
das instituições e dos intelectuais grã-finos. O fio narrativo que conduz os
livros é a amizade turbulenta entre essas duas personagens, contada
desde a primeira infância até a velhice.

Numa leitura reducionista da história, Lenu é a civilização (aspiracional,


estudiosa, cerebral, mas às vezes sem graça, vaidosa, prolixa), e Lila, o

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bairro (atávica, caoticamente talentosa, com imensa facilidade para o


improviso; mas destrutiva, cruel, recalcada com o requinte dos outros).
Lenu nunca consegue se livrar da sensação de ser menos do que Lila
(menos bonita, menos interessante, menos inteligente); atrelada a essa
sensação está o medo de não conseguir escapar de suas origens. O bairro
(ou seja, Lila) a repele e a seduz – a casa é, afinal, o centro onde
acontecem aquelas três ou quatro coisas importantes na vida de alguém,
como diz um poema de W. H. Auden. Ferrante aborda esses temas
fundacionais de civilização e barbárie, casa e exílio, num formato
folhetinesco, descrevendo as reviravoltas da amizade entre Lenu e Lila e
as subtramas melodramáticas dos muitos personagens ao redor. Essa
infusão de temas imemoriais com técnicas narrativas do melodrama diz
algo sobre a hibridez peculiar da escrita de Ferrante – ela que
frequentemente parece uma roteirista de novela que leu e releu não
apenas os romances de Balzac, mas também a Ilíada e a Eneida.

A mãe de Lenu é dona de casa; o pai é contínuo na prefeitura. A


narradora também vê nos dois um lembrete constante de suas origens. A
mãe, uma mulher raivosa e violenta, sempre crítica das aspirações
intelectuais da filha, tem um problema nas pernas que a faz mancar; Lenu
passa a vida atenta aos menores sinais de qualquer dor em suas próprias
pernas. O serviço público do pai não é visto com orgulho. Pelo contrário:
quando evoca a repulsa que sente por malandragens e negociatas
napolitanas, é justamente dele que ela lembra.

A terra das duas amigas não é terra incognita. No imaginário de quem


consome cultura, o sul da Itália tem um status desproporcional ao seu
tamanho no mapa. Os Corleone e os Soprano emigraram dos mesmos
arredores, assim como as suas imitações mais baratas; e ainda que não
esteja sempre presente como locação, o território existe como ideia fixa no
gênero de livros e filmes sobre a máfia. Na saga, o bairro é dominado por
Marcello e Michele Solara, dois irmãos mafiosos incontornáveis que
fazem agiotagem, cobram taxas dos moradores, extorquem quem se
atreve a desafiá-los. Quando o pai e o irmão de Lila decidem fabricar um
novo par de sapatos com base nos desenhos da filha, são forçados a
aceitar a presença dos irmãos no empreendimento. E quando Lila se casa

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com Stefano Carracci, herdeiro da charcutaria do bairro, os Solara forçam


a barra para terem mais influência nos negócios do salsicheiro. Em
diferentes momentos da história, tanto Marcello quanto Michele se
apaixonam por Lila; como não conseguem possuí-la, tentam comprá-la,
seja oferecendo dinheiro para os negócios do pai e do irmão, seja
forçando a presença em reuniões da família.

Os irmãos Solara espancam esposas e amantes; surram pessoas em


público. Certa noite, enquanto comemoram o Ano-Novo na varanda,
trocam os fogos de artifício por balas de revólver. Sentem um prazer
imenso em ostentar o poder que possuem; Michele com o seu jeito
“irônico” e gozador, Marcello fazendo o papel de machão mais quieto.
Dirigindo a esmo pelo bairro num Millecento, parecem simbolizar tudo
que Lenu mais rejeita: o deleite do pequeno poder, a autossatisfação tosca
e vulgar dos incivilizados, aqueles que acham que o bairro é o mundo, e o
mundo é o bairro.

O
motif da saga napolitana – a ânsia de fugir da província para a
metrópole; a dicotomia entre civilização e barbárie – não reverbera
só em Lenu e Lila. Os personagens masculinos da saga também
podem ser divididos, grosso modo, entre os homens do bairro (os irmãos
Solara, o salsicheiro Stefano Carracci, Antonio, Enzo), os homens da urbe
(Franco Mari, Pietro Airota), e os homens do bairro que, assim como
Lenu, flertam com a urbe (o militante comunista Pasquale, o “poeta-
ferroviário” Donato Sarratore, e o seu filho, Nino). Dois desses homens –
Nino Sarratore e Pietro Airota – recebem um tratamento mais profundo
ao longo da trama, e não é gratuito que ambos estejam mais na órbita da
urbe do que do bairro.

Nino Sarratore é o amor de infância de Lenu. Filho de um casamento


fracassado entre uma dona de casa traída e um poeta medíocre, é tido
como aluno brilhante na escola. Pálido, muito magro e taciturno, caminha
sozinho pelo bairro e lê muito. Despreza as vulgaridades dos locais e
nunca disfarça esse desprezo. Lenu se apaixona por ele desde cedo,
observando-o a distância. E mesmo quando ela começa a namorar o

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mecânico Antonio, um menino do bairro bonzinho mas sem grandes


ambições, é em Nino que continua a pensar.

O contato ocasional entre os dois tem sempre uma aura platônica. A certa
altura, durante o ginásio, Nino propõe que Lenu contribua, com um
artigo, para uma revistinha que ele edita. Quando ela entrega o texto,
Nino se assusta. “A professora Galiani estava certa” diz. “Você escreve
melhor que eu.” A frase enche Lenu de alegria, e reforça a imagem de
nobreza que Nino evoca nela. No casamento de sua melhor amiga com o
salsicheiro do bairro, ela o encontra outra vez. Ele aparece na festa sem
gravata e com a camisa desarrumada, e os dois começam a conversar
sobre política. “Eu estava encantada com a maneira como Nino me falava:
sem nenhuma subalternidade. Expunha-me seu futuro, as ideias que
embasariam a sua construção. […] Ele sim, me teria livrado de minha
mãe, ele, que não queria outra coisa senão livrar-se do pai.” Quando os
irmãos Solara entram no salão da festa, Nino sai imediatamente, e Lenu
nota o seu desprezo pelos mafiosos. A cena a seduz. “Naquela sequência
o filho de Sarratore – ele que crescera nos edifícios do bairro velho
justamente como nós, que me parecera muito assustado quando tratara
de superar Alfonso nas disputas escolares – parecia já de todo estranho à
escala de valores em cujo vértice despontavam os Solara. Era uma
hierarquia que visivelmente não lhe interessava, que talvez nem sequer
entendesse mais.”

O amor de Lenu por Nino, como todo amor adolescente, tem uma
essência narcísica. Em sua ambição intelectual, em seu desprezo pelos
modos do bairro, nos conflitos com o pai, Nino se parece muito com a
protagonista. Ela vê nele quase um espelho de si mesma: alguém
talentoso e curioso demais para ser contido no bairro. Nino e Lenu são
dois deslocados; e em meio às frivolidades e à ostentação provinciana da
festança de Lila e Stefano, parecem perfeitos um para o outro, justamente
por causa desse deslocamento mútuo – um pouco como o senhor Darcy e
Elizabeth Bennet em Orgulho e Preconceito. Lenu deixa o casamento
decidida a abandonar o namorado e a tentar algo com Nino. Mas os dois
se distanciam e, tempos depois, quando se reencontram numa viagem de
veraneio à praia de Ischia, é por Lila – a melhor amiga de Lenu e em certo
sentido o seu oposto – que Nino se apaixona.

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escrita de Ferrante não é apenas híbrida – existe nela uma tensão

A
contraditória. O instinto de narradora folhetinesca, enamorada do
artifício, batalha constantemente com outro instinto mais
contemporâneo: o de mostrar a realidade em sua “crueza” narrativa,
cheia de deformidades e lacunas gratuitas, distante das soluções
formais clássicas do romance e do conto. A saga napolitana é feita de
inúmeros conflitos romanescos que incham como bexigas até o ponto de
tensão máxima, mas no fim não estouram: desinflam e ricocheteiam de
um lado ao outro da sala, com essa feiura disforme e anticlimática que é
típica da realidade. Nesses momentos, a saga de Ferrante lembra um
pouco a série Minha Luta, de Karl Ove Knausgård – os dois projetos
buscam, embora em intensidades e formas diferentes, uma autenticidade
antiartifício.

Fosse uma tradicional roteirista de novelas, por exemplo, Ferrante


exploraria narrativamente a traição de Lila, que “rouba” o amor da vida
de Lenu; e um embate melodramático seguiria. Mas não é o que acontece.
Após o choque inicial da traição, Lenu se compadece da amiga, cujo
casamento com o salsicheiro Stefano passara da fase inicial feliz para um
misto de tédio existencial e violência doméstica. A melhor amiga e Nino,
por sua vez, procrastinam: se encontram às escondidas no bairro, sempre
adiando o momento de fuga, e Lenu vira uma cúmplice dos dois. Quando
finalmente se juntam, a paixão de Lila e Nino – tão bem descrita, tão
palpável naqueles dias de veraneio na costa – esmorece depois de 23 dias,
quando os primeiros atritos surgem entre o novo casal. Lila está grávida,
e Nino, já inseguro por ter agido num impulso de veraneio, volta para a
casa dos seus pais. Lila, por sua vez, retorna aos braços do marido.
Stefano Carracci não consegue admitir para si mesmo que chegou a ser
abandonado, e começa a trair a esposa; e assim ele e Lila seguem por um
bom tempo num casamento faz de conta, até que o salsicheiro decide
enfim trocá-la pela amante.

Procrastinação, falta de decisão, covardias mútuas: esses pequenos


dramas têm o sabor morno e pastoso da realidade. É uma bagunça
sem páthos. A construção da paixão de Lenu por Nino, à maneira de Jane
Austen, é a bexiga enchendo; os dramas repetitivos e banais do caso entre

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Lila e Nino é a bexiga ricocheteando. A prosa de Ferrante – seca e


imperturbável, magistralmente traduzida por Maurício Santana Dias nas
edições brasileiras – gera a impressão de uma neutralidade constante,
mas é notável a fluidez com que ela mistura métodos e muda de marcha,
passando, às vezes no intervalo de uma ou duas frases, de construções
romanescas para um caos fragmentário. É como se a própria autora não
se decidisse entre o tom aspiracional de Lenu e o profundo ceticismo de
Lila.

O
caso entre a melhor amiga e o seu amor de infância tem certo efeito
libertador para Lenu. Ela foca nos estudos e consegue entrar na
prestigiosa Escola Normal, em Pisa, e finalmente vai embora de sua
cidade. Em Pisa, encontra um mundo novo, de seres educadíssimos,
cultos de nascença. “Aprendi a controlar a voz e os gestos. Assimilei uma
série de regras e comportamentos escritos e não escritos. Submeti ao mais
estrito controle o sotaque napolitano. Consegui demonstrar que era
competente e digna de estima, mas sem nunca assumir ares esnobes,
fazendo autoironia sobre minha ignorância, fingindo-me surpresa com
meus bons resultados.” Essas frases podem dar a impressão de certo
autoflagelo, mas o teatro autoconsciente da reinvenção é na verdade algo
muito prazeroso: qualquer pessoa que já tenha saído do interior para
estudar na capital reconhecerá nessas passagens a alegria trêmula que o
exílio provoca. Em Pisa, Lenu admite encontrar “o paraíso na terra: um
espaço todo meu, uma cama só para mim, uma escrivaninha, uma
cadeira, livros, livros e livros, uma cidade em tudo diferente do bairro e
de Nápoles, cercada apenas por gente que estudava e era propensa a
discutir o que estudava”.

Um desses estudiosos é um menino tímido e desajeitado, de óculos e pés


tortos, com “uma juba embaraçada de cabelos pretíssimos”, que certo dia
se aproxima e puxa conversa. Seu nome é Pietro Airota, e embora Lenu
não se sinta particularmente atraída por ele, os dois começam a se ver
com frequência; fazem caminhadas, vão às aulas e estudam juntos. No
fim, é a ambição intelectual e a inteligência de Pietro que acabam por
atrair Lenu. “Ele me surpreendeu: assim como eu, já tinha começado a
trabalhar na tese, assim como eu, a estava fazendo em literatura

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latina.” Assim como eu: o Pietro da juventude, como o Nino da infância,


representa um ideal civilizatório abstrato que a protagonista tem para si
mesma (uma das coisas que mais a fascina é o desejo que Pietro tem de
publicar a sua tese em formato de livro). Os dois começam a namorar e,
pela boca de outros alunos, Lenu logo descobre que o sobrenome Airota é
famoso – Pietro é filho de um professor muito conhecido de Gênova e de
Adele Airota, uma editora de livros influente.

Para Lenu, a família de intelectuais aristocratas é tão fascinante que não


seria exagerado dizer que ela se apaixona mais por eles do que pelo
próprio namorado. As conversas de geopolítica na mesa do almoço, o
jeito calmo e ponderado de discutir arte e outros temas graves: a
narradora confessa que o medo de perder Pietro é indissociável do medo
de perder os Airota.

Os dois decidem se casar. Um dia, arrebatada por memórias, Lenu


escreve “de um jato só” um monte de páginas sobre uma experiência
sexual que teve certa vez numa praia. Dá o caderninho manuscrito a
Pietro de presente, uma única cópia. Um tempo passa sem que o marido
mencione o caderninho, até que um dia Lenu recebe uma ligação
surpresa de sua sogra, a editora Adele Airota. Pietro passara o caderno
para a mãe em segredo. Adele parabeniza Lenu pelo texto (cita “um
mistério da escrita que só os livros de verdade têm”). Depois lhe informa
que uma editora em Milão irá publicar o romance.

A
entrada de Lenu na literatura é um ponto de inflexão na saga. Num
primeiro momento, a publicação do romance representa tudo que a
protagonista sempre quis: acesso ao mundo glamoroso dos Airota e
da elite intelectual italiana; resenhas e reconhecimento artístico; algum
dinheiro, até. Para quem sempre quis escapar da violência do bairro,
parece o apogeu. O início do casamento de Lenu e Pietro é de fato uma
espécie de idílio. Pietro é um homem gentil e responsável, embora sem
grandes arroubos de paixão, e os dois levam uma vida feliz e plácida.
Dividem o espaço de trabalho; têm duas filhas; ele consegue uma cátedra
em Florença e se destaca no mundo acadêmico, enquanto ela trabalha
num segundo livro.

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Mas se traz êxtase, a escrita do primeiro romance também gera uma


perda de inocência em Lenu. Assim como a própria Ferrante oscila entre
um estilo romanesco e outro mais cortante e cru, a protagonista, ao
tornar-se escritora, tem um ganho de autoconsciência, e começa a
questionar algumas premissas anteriores. A consciência da escrita
coincide com a entrada de Lenu na vida adulta. E o amadurecimento,
assim na vida como na escrita, sempre traz consigo mais ceticismo e
ambiguidade. O resultado é a perda de algumas ilusões, e uma visão
mais complicada da moralidade e dos desejos.

A transformação se nota sobretudo na mudança gradual da aura dos dois


principais personagens masculinos dos livros. Até certo ponto da
história, tanto Nino quanto Pietro evocam admiração, em parte porque o
leitor tem acesso à visão um pouco romantizada da jovem Lenu. Nino é
charmoso, articulado, inteligente, se rebela contra o pai canalha, tem
ideias políticas interessantes. Pietro é sério, estudioso, discreto, nunca
ostenta o sobrenome que tem. Ambos parecem o oposto dos irmãos
Solara e do salsicheiro Stefano, os machões violentos e vulgares do bairro.
Mas basta que Lenu atinja o cume da montanha civilizatória para que
essa oposição – tão demarcada no começo da saga – comece a parecer
menos nítida.

P
assada a fase inicial de idílio modesto, o casamento de Lenu e
Pietro se arrasta entre suspiros de tédio. Pietro só pensa em suas
aulas, e não cuida direito das crianças. O sexo entre os dois é
insosso. “Entrava em mim com investidas calculadas, violentas, tanto que
o prazer inicial se atenuou aos poucos, vencido pela insistência monótona
e pela dor que sentia no ventre”, Lenu descreve. “Ele se cobriu de suor
pelo demorado esforço, talvez pelo sofrimento, e ao ver seu rosto e o
pescoço banhados, ao tocar suas costas empapadas, o desejo sumiu
inteiramente.” Depois ela emenda: “Eu não sabia como me comportar;
acariciava-o, sussurrava-lhe palavras de amor e torcia para que parasse.
Quando explodiu num rugido e desabou finalmente exausto, me senti
contente, apesar de dolorida e insatisfeita.”

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Frequentemente, Pietro goza e escapa direto para a sua escrivaninha,


para trabalhar. O seu desleixo com a casa começa a irritar Lenu. Quando
ela decide, com a ajuda da sogra, contratar uma empregada sem avisá-lo,
ele a confronta. “Não quero escravas em minha casa”, diz, ao que a sua
própria mãe rebate: “Não é uma escrava, é uma assalariada.”

Encorajada pela sogra, Lenu discute com o marido:

“Então você quer que a escrava seja eu?”

“Quero que você seja mãe, não escrava.”

“Eu lavo e passo suas roupas, limpo a casa, cozinho para você, lhe dei
uma filha, cuido dela com mil dificuldades, estou exausta.”

“E quem a obriga a isso? Por acaso eu já lhe pedi alguma coisa?”

Essas desavenças mundanas, muito típicas de qualquer casal daquele (e


talvez ainda deste) tempo, não condenam Pietro, exatamente – mas
inserem uma dose pesada de ambiguidade no personagem. E Ferrante
transmite bem o senso de tédio profundo que Pietro inspira a cada
briguinha, a cada palestra condescendente que dá sobre os ritos báquicos
e seus demais temas de pesquisa. Não chega a ser surpreendente que
Lenu se torne uma espécie de Emma Bovary, presa num limbo
matrimonial do qual lhe falta empuxe suficiente para escapar. Entediada
e irrequieta, ela flerta com outros homens em jantares, às vezes na frente
do marido. Espera, vagamente, que algo aconteça.

Eis que Nino Sarratore ressurge na história, Lenu afinal trai Pietro, e
começa a ter um caso com o seu amor de infância. Nino está no segundo
casamento e tem mais de um filho; ainda assim insiste para que Lenu
deixe o marido. Quando Lenu avisa a Pietro que irá deixá-lo, o marido cai
em desespero. Chora, se enfurece, arremessa uma mesa de vidro na
parede e acorda as filhas com seus gritos. Lenu tenta dizer às filhas que o
pai e a mãe ainda se gostam, mas ele a desmente, e diz às crianças que “é
a mãe de vocês que decidiu ir embora”, e que “ela já não gosta mais de
mim”. As resistências de Pietro fazem Lenu se lembrar das resistências do
mecânico Antonio, o seu primeiro namoradinho do bairro, e ela reflete

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que talvez “tenha atribuído um peso excessivo ao uso cultivado da razão,


às boas leituras, à língua bem governada, à filiação política”. Diante do
abandono, conclui, “talvez sejamos todos iguais”.

N
ino Sarratore e Pietro Airota são diferentes, mas circulam nos
mesmos meios, conhecem as mesmas pessoas, dividem a mesma
escala de valores. Pietro é acadêmico cabeçudo, Nino ensaísta e
militante político. Os dois são burgueses de esquerda. Nino admira o
“Airota pai” imensamente e, por um tempo, tem uma relação cordial com
Pietro, com muitas trocas de ideias. É só depois que a disputa por Lenu se
acirra que ele começa a desdenhar das opiniões do Airota filho,
considerando-o “um professorzinho desprovido de imaginação,
superestimado apenas pelo sobrenome que tem e por sua obtusa
militância no Partido Comunista”.

Karl Ove Knausgård, com honestidade tipicamente brutal, argumenta


num de seus livros recentes que os seus escritos íntimos ecoam em tantas
pessoas não porque sejam universais, mas porque o perfil do leitor de
ficção atual é muito uniforme. Quem se interessa por literatura, segundo
Knausgård, faz parte de um nicho particular da classe média e classe
média-alta letrada, com pouquíssimas variações. É uma generalização
indigesta, talvez um pouco dolorosa; mas não me parece muito distante
da realidade. Como Nino, como Pietro, eu também sou um burguês de
esquerda, por assim dizer – e muitos dos meus amigos e conhecidos que
se interessam por literatura também.

Essa coincidência identitária entre alguns dos prováveis leitoresda saga


napolitana – refiro-me aos leitores homens – e os dois
principais personagens do sexo masculino obviamente não escapa a
Ferrante, uma escritora bastante manipuladora, no melhor sentido da
palavra. Nino Sarratore e Pietro Airota se tornam, aos poucos, cavalos de
Troia existenciais para o leitor masculino. É fácil se reconhecer nesses
personagens no começo da saga. Os seus anseios e paixões, os
posicionamentos políticos, os instintos republicanos, o rigor e a
curiosidade intelectual: tudo isso é familiar. Um determinado leitor pode
se identificar mais com a sobriedade discreta de Pietro, outro com a

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astúcia social e as opiniões engajadas de Nino – outro, ainda, com uma


mistura dos dois. Mas quando esses mesmos homens caírem do pedestal
erguido pela jovem Lenu, mais à frente na trama, o leitor, se for honesto,
se verá forçado a considerar também os seus próprios defeitos e falhas de
caráter.

Nino surge a princípio como um salvador, oxigenando a vida tediosa de


Lenu. Ao contrário de Pietro, cujo orgulho intelectual é maçante, ele não
tem problema algum em reconhecer a inteligência da amada. Num jantar
a três, antes que o seu caso amoroso com Lenu fique evidente, Nino
pergunta a Pietro se leu o texto da esposa, uma espécie de ensaio político
feminista que será publicado como livro. Quando Pietro responde que
ainda não teve tempo de ler, Nino o provoca:

“Não é coisa para você.”

“Como assim?”, Pietro diz.

“É muito inteligente.”

“O que você quer dizer com isso?”

“Que você é menos inteligente que Elena.”

Pietro se irrita com a frase e se levanta da mesa em silêncio. As


alfinetadas que Nino frequentemente impõe ao seu rival são eficazes, vale
dizer, humilhantes. Airota filho resiste a aceitar que a sua mulher tenha
mais talento do que ele.

Algumas das características mais mesquinhas de Pietro são visíveis só em


retrospecto. Um pouco antes de casarem, por exemplo, quando recebe de
presente o caderninho manuscrito de Lenu, Pietro não elogia o romance.
Apenas faz alguns comentários vagos sobre como ele próprio gostaria de
escrever “um livrinho” de pequenos fragmentos, desses em “que você
começa uma frase, não funciona e joga no lixo” – o que ele chama de
“talvez a única literatura hoje possível”. É uma forma sutil e um pouco
covarde de diminuir o trabalho da futura esposa. Em outro momento, o
marido diz a Lenu, num tom de recalque: “Você escreveu um romance,

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assuma as responsabilidades.” Apesar do respeito acadêmico que


comanda fora do país, e do seu sobrenome respeitado, Pietro é
profundamente inseguro – e o seu desespero ao ser deixado pela
protagonista é em parte fruto disso.

Nino, por outro lado, tem discursos progressistas belos, mas sempre com
uma tendência de moldá-los aos seus fins individuais. Lenu aos poucos
repara no arrivismo do amigo desde os tempos de infância, na prontidão
a passar para trás quem não tem prestígio intelectual suficiente e a elogiar
quem goza de autoridade – uma percepção que quebra a imagem de
dignidade que ela construíra dele “e que ele mesmo em geral se atribuía”.
O feminismo exibicionista de Nino também serve muito bem à sua
promiscuidade. Há um diálogo cômico e esclarecedor quando Lenu
percebe a tendência de seu amado a glorificar todas as mulheres que
conhece. “Será possível que não exista uma mulher idiota?”, ela lhe
pergunta, com sarcasmo. Nino tergiversa, lança a platitude de que no
geral as mulheres são melhores que os homens, e afirma que ela própria é
melhor que ele. Mas Lenu insiste: quer que ele cite pelo menos uma
“cretina”. No fim, irritado, ele diz que a única idiota que já conheceu foi
Lila, a melhor amiga de Lenu.

A escolha é sintomática: Lila é claramente a mulher mais talentosa e


inteligente da saga. O comentário tem também uma veia premonitória.
No fim, Nino faz com Lenu exatamente o que fez com Lila. Procrastina,
enrola para terminar o relacionamento com a sua mulher atual, Eleonora;
e nunca assume, de fato, o papel de cônjuge responsável – vira apenas
uma espécie de padrasto divertido e ausente de Dede e Elsa, as duas
filhinhas de Lenu. O relacionamento entra em crise após uma cena tão
pantomímica quanto convincente, mais para o fim da história. Lenu
chega cedo em casa, e sem querer o flagra no banheiro, transando com a
empregada.

N
ino e Pietro não são os únicos personagens masculinos a ganharem
densidade ao longo da saga. O mesmo ocorre com os terríveis
irmãos Solara; mas a mudança é num sentido inverso. Entre uma e
outra surra, os machões violentos do bairro começam a demonstrar

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momentos de compaixão e generosidade. Quando a mãe de Lenu adoece


no fim da vida, por exemplo, bancam um quarto de hospital caríssimo, e
são os que mais demonstram comiseração com a doença. Nino, com o seu
costume de usar discursos políticos convenientes, critica Lenu por aceitar
dinheiro de mafiosos – e depois se mostra completamente ausente no
período de convalescência da sogra.

A ambiguidade dos irmãos Solara não é apenas uma construção bem


executada da autora. Há décadas, esses personagens masculinos –
mafiosos viris e violentos, mas psicologicamente complexos, criados em
um ambiente hostil, onde se mata ou se morre – vêm sendo refinados.
Michael e Vito Corleone, Henry Hill de Os Bons Companheiros, Tony
Soprano: a surpresa a essa altura da história da arte seria encontrar
algum mafioso burro ou sem profundidade.

Os irmãos Solara são, na verdade, personagens menos interessantes e


menos pungentes do que Michael Corleone ou Tony Soprano. Isso não se
deve a qualquer inabilidade autoral, mas ao fato de que os tormentos
psicológicos dos machões do bairro não interessam tanto a Ferrante como
os dilemas de Nino e Pietro, os homens mais próximos da protagonista.
Ao descrever a violência da Camorra e o domínio dela sob os aspectos
mundanos da vida dos moradores do bairro, Ferrante se junta a uma
tradição autoral essencialmente masculina (Mario Puzo, Francis Ford
Coppola, Martin Scorsese, David Chase); ao não fetichizar essa violência
ou explorá-la para efeito artístico, ela abandona essa mesma tradição, na
qual mal havia se inserido.

É uma decisão autoral reveladora. Ao relegar os mafiosos a um cenário, e


focar os seus esforços nos burgueses de esquerda, Ferrante mostra o quão
narcísica é a obsessão masculina com “anti-heróis”. A narrativa corrente é
a de que personagens como Soprano, Corleone, e o professor de
química/traficante Walter White, da série Breaking Bad, representam as
ânsias e os dilemas de homens comuns; e por isso nos identificamos tanto
com eles. Não é um argumento inválido, mas é inegável que as
experiências de Nino e Pietro estejam muito mais próximas do leitor
médio. O interesse excessivo por anti-heróis, e a vontade latente de
enxergar paralelos com a vida deles, parece mais uma fantasia. É melhor
nos enxergarmos nos dilemas de vida ou morte e coragem casual de

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25/06/2020 À espera dos bárbaros

Michael e Vito Corleone do que nos dilemas banais e inseguranças de


Nino Sarratore e Pietro Airota.

Nino e Pietro obviamente não são os primeiros burgueses de esquerda a


aparecerem na literatura. Mas é raro que personagens desse tipo sejam
abordados com um realismo tão desimpedido como o de Ferrante.
Mesmo na mão de escritores impiedosos, como Philip Roth ou John
Updike, costumam ser temperados com uma certa ternura ou autoironia
(em parte porque frequentemente representam alteregos). Por mais que
abandonem filhos, enganem esposas, ou desrespeitem namoradas,
Alexander Portnoy e Harry “Rabbit” Angstrom sempre fazem algo
engraçado ou vagamente digno que os redime. Assim como os Solara são
menos romantizados do que os Corleone, Nino e Pietro são menos
romantizados que Portnoy e Rabbit. Reconhecer os próprios defeitos – a
insegurança, a covardia ocasional, o ego frágil, o gosto pelos próprios
discursos – nos dois italianos intelectuais é doloroso. Mas é tão inevitável
quanto enxergar-se nas qualidades deles.

Essa autocrítica do leitor masculino (ou pelo menos deste leitor


masculino) não seria possível se as mulheres de Ferrante não fossem
também amálgamas morais dúbios. Fossem elas boazinhas, a tentação de
interpretar os defeitos de Nino e Pietro como uma “obtusa militância”
seria muito grande. Mas Lila é cruel e agressiva, humilha a melhor amiga
o tempo todo. Lenu é invejosa e deslumbrada; a sua vontade excessiva de
agradar os outros e se exibir intelectualmente é nauseante. No fim, é ela
que trai Pietro – antes disso, paquera outros homens na frente da filhinha
menor, e faz a menina chorar quando ela ameaça contar ao pai.

É animador ver uma escritora feminista como Ferrante não segurar a mão
quando se trata de mostrar esses defeitos. Talvez por pressões
mercadológicas, muitos romances e filmes recentes têm entregado uma
porção de heroínas “fortes” e insossas; como se apenas inverter o sinal da
moralidade resolvesse um problema sociológico de gênero. Com o seu
feminismo oblíquo e autoconsciente (a certa altura, Lenu escreve um
livro-ensaio sobre o papel colonizador que o homem exerce sobre a
mulher, e descreve as suas dificuldades em se adequar ao que o público
espera dela), Ferrante avança uma causa nos interstícios da narrativa,
com firmeza mas sem abrir mão das contradições inerentes à forma

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literária. Não é o único feminismo possível. Mas, na forma do romance, é


difícil imaginar outro mais eficaz.

“F
azer mal era uma doença”, Lenu diz no começo da saga.
“Desde menina imaginei animaizinhos minúsculos, quase
invisíveis, que vinham de noite ao bairro, saíam dos poços, dos
vagões de trem abandonados para lá da plataforma, do mato malcheiroso
chamado fedentina, das rãs, das salamandras, das moscas, das pedras, da
terra e entravam na água, na comida e no ar.” Na Nápoles do pós-guerra,
é difícil atribuir toda violência física a uma falha de caráter – a violência
simplesmente está “no ar”. E num mundo onde todo mundo bate e todo
mundo apanha (embora alguns sempre batam mais do que apanhem, e
vice-versa), é difícil fazer julgamentos morais. Ferrante se refestela com
essas áreas cinzentas da moralidade. E, se no início da tetralogia
napolitana os meninos do bairro pareciam mais toscos e malévolos do
que os meninos da urbe, no fim já não é possível fazer esse julgamento.

Talvez o único homem da saga ao qual se possa atribuir uma falha moral
mais profunda seja Donato Sarratore, o pai de Nino. Donato é um poeta
medíocre e pomposo do bairro, que por ter publicado um livro de poesia
e alguns artigos em jornais da capital acredita-se um grande artista. O
talento artístico imaginado lhe dá confiança para fazer o que bem
entende. Sabe-se que traiu a esposa por muito tempo com a amante,
Melina, que quando é abandonada quase enlouquece. Durante uma
temporada de veraneio na praia de Ischia, ele invade o cômodo onde
Lenu está dormindo, dá-lhe um beijo e a acaricia entre as pernas. Na
época, Lenu ainda tem 15 anos e alimenta desejos pelo filho desse homem
que agora vem molestá-la. A experiência lhe causa embaraço e confusão
mental. Mais tarde, quando a protagonista descobre que Nino e a sua
melhor amiga estão juntos, Donato se aproveita do momento de
fragilidade para transar com ela, na praia. A experiência tem
repercussões psicológicas profundas, e serve de base para o primeiro
romance de Lenu.

Como o provinciano que se acha cosmopolita, ou o oligarca que se crê


democrático, Donato é um amálgama mal-acabado de civilização e

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barbárie. E assim como o mundo dos personagens masculinos se torna


mais turvo ao longo da saga, esses dois conceitos, tão nítidos e
diferenciáveis no começo, no fim se confundem. Pouco a pouco, a visão
de Lenu sobre a vida intelectual fora do bairro se revela idealizada. Mas
essa constatação não é amenizada por um retorno triunfal a casa ou coisa
do tipo. Mais velha, Lenu vai com mais frequência a Nápoles, e o bairro
permanece o mesmo – violento, deprimente, sem grande perspectiva de
melhora. Há algo anticlimático no quarto e último volume da saga, que
parece reproduzir o caráter anticlimático da própria velhice, uma história
com pontas soltas que já acabou mas ainda se arrasta.

Quando Lenu flagra Nino transando com a empregada no banheiro, ela


nota uma expressão diferente em seu rosto. Logo se dá conta de que é a
mesma expressão que Donato, o pai de Nino, tinha quando a acariciara
entre as pernas. O pai terrível contra quem o amado se rebelara. “Nino
era aquilo que não gostaria de ser”, a narradora conclui, “e, contudo,
sempre tinha sido.” Mas com Lenu não é muito diferente. Quando sente
uma vaga dor nas pernas, fica com medo de começar a mancar como a
sua mãe, e faz um apelo aos céus. “Às vezes me surpreendia rezando
para Nossa Senhora, apesar de me considerar ateia”, diz, “e me
envergonhava.” É uma contradição bonita, um dilema psicanalítico e
universal: para evitar ficar como a mãe, Lenu imita a mãe.

Civilização e barbárie, casa e exílio: os conflitos em Ferrante nunca se


resolvem, apenas se aprofundam. “Diferentemente do que ocorre nos
romances”, declara a autora na penúltima frase da saga, após mais de 1
500 páginas, “a vida verdadeira, depois que passou, tende não para a
clareza, mas para a obscuridade.”

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