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25/06/2020 À espera dos bárbaros
Ferrante cria conflitos romanescos que incham como bexigas até o ponto de tensão máxima, mas no fim não estouram:
desinflam de modo anticlimático, numa recusa dos artifícios literários FOTO: MARIO CATTANEO_© MUSEO DI
FOTOGRAFIA CONTEMPORANEA
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N
pedra na cabeça de sua colega de escola, e o sangue jorra; uma mãe
enche a filha de tapas, e depois ameaça quebrar as suas pernas; um
pai joga a filha pela janela e o vidro estilhaça. Um mafioso, muito
apaixonado, dá um murro na cara de sua amada durante um funeral, e a
deixa estirada no chão, cuspindo dentes. “Vivíamos em um mundo em
que crianças e adultos frequentemente se feriam”, diz Elena Greco, a
Lenu, narradora e protagonista dos livros que formam a saga napolitana
de Ferrante. “Sangue escorria das chagas, que depois supuravam e às
vezes se acabava morrendo.” Nas memórias de Lenu, a Nápoles do pós-
guerra, essa Nápoles de sua infância, era um lugar perigoso, “cheio de
palavras que matavam: crupe, tétano, tifo exantemático, gás, guerra”.
“Também se podia morrer de coisas que pareciam normais”, como ingerir
cerejas sem cuspir o caroço ou engolir chicletes por distração. Antes do
fim, contudo, fosse ele provocado por doença, crime ou asfixia, imperava
a brutalidade. “A vida era assim e ponto final, crescíamos com a
obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem
difícil para nós.”
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O
motif da saga napolitana – a ânsia de fugir da província para a
metrópole; a dicotomia entre civilização e barbárie – não reverbera
só em Lenu e Lila. Os personagens masculinos da saga também
podem ser divididos, grosso modo, entre os homens do bairro (os irmãos
Solara, o salsicheiro Stefano Carracci, Antonio, Enzo), os homens da urbe
(Franco Mari, Pietro Airota), e os homens do bairro que, assim como
Lenu, flertam com a urbe (o militante comunista Pasquale, o “poeta-
ferroviário” Donato Sarratore, e o seu filho, Nino). Dois desses homens –
Nino Sarratore e Pietro Airota – recebem um tratamento mais profundo
ao longo da trama, e não é gratuito que ambos estejam mais na órbita da
urbe do que do bairro.
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O contato ocasional entre os dois tem sempre uma aura platônica. A certa
altura, durante o ginásio, Nino propõe que Lenu contribua, com um
artigo, para uma revistinha que ele edita. Quando ela entrega o texto,
Nino se assusta. “A professora Galiani estava certa” diz. “Você escreve
melhor que eu.” A frase enche Lenu de alegria, e reforça a imagem de
nobreza que Nino evoca nela. No casamento de sua melhor amiga com o
salsicheiro do bairro, ela o encontra outra vez. Ele aparece na festa sem
gravata e com a camisa desarrumada, e os dois começam a conversar
sobre política. “Eu estava encantada com a maneira como Nino me falava:
sem nenhuma subalternidade. Expunha-me seu futuro, as ideias que
embasariam a sua construção. […] Ele sim, me teria livrado de minha
mãe, ele, que não queria outra coisa senão livrar-se do pai.” Quando os
irmãos Solara entram no salão da festa, Nino sai imediatamente, e Lenu
nota o seu desprezo pelos mafiosos. A cena a seduz. “Naquela sequência
o filho de Sarratore – ele que crescera nos edifícios do bairro velho
justamente como nós, que me parecera muito assustado quando tratara
de superar Alfonso nas disputas escolares – parecia já de todo estranho à
escala de valores em cujo vértice despontavam os Solara. Era uma
hierarquia que visivelmente não lhe interessava, que talvez nem sequer
entendesse mais.”
O amor de Lenu por Nino, como todo amor adolescente, tem uma
essência narcísica. Em sua ambição intelectual, em seu desprezo pelos
modos do bairro, nos conflitos com o pai, Nino se parece muito com a
protagonista. Ela vê nele quase um espelho de si mesma: alguém
talentoso e curioso demais para ser contido no bairro. Nino e Lenu são
dois deslocados; e em meio às frivolidades e à ostentação provinciana da
festança de Lila e Stefano, parecem perfeitos um para o outro, justamente
por causa desse deslocamento mútuo – um pouco como o senhor Darcy e
Elizabeth Bennet em Orgulho e Preconceito. Lenu deixa o casamento
decidida a abandonar o namorado e a tentar algo com Nino. Mas os dois
se distanciam e, tempos depois, quando se reencontram numa viagem de
veraneio à praia de Ischia, é por Lila – a melhor amiga de Lenu e em certo
sentido o seu oposto – que Nino se apaixona.
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A
contraditória. O instinto de narradora folhetinesca, enamorada do
artifício, batalha constantemente com outro instinto mais
contemporâneo: o de mostrar a realidade em sua “crueza” narrativa,
cheia de deformidades e lacunas gratuitas, distante das soluções
formais clássicas do romance e do conto. A saga napolitana é feita de
inúmeros conflitos romanescos que incham como bexigas até o ponto de
tensão máxima, mas no fim não estouram: desinflam e ricocheteiam de
um lado ao outro da sala, com essa feiura disforme e anticlimática que é
típica da realidade. Nesses momentos, a saga de Ferrante lembra um
pouco a série Minha Luta, de Karl Ove Knausgård – os dois projetos
buscam, embora em intensidades e formas diferentes, uma autenticidade
antiartifício.
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O
caso entre a melhor amiga e o seu amor de infância tem certo efeito
libertador para Lenu. Ela foca nos estudos e consegue entrar na
prestigiosa Escola Normal, em Pisa, e finalmente vai embora de sua
cidade. Em Pisa, encontra um mundo novo, de seres educadíssimos,
cultos de nascença. “Aprendi a controlar a voz e os gestos. Assimilei uma
série de regras e comportamentos escritos e não escritos. Submeti ao mais
estrito controle o sotaque napolitano. Consegui demonstrar que era
competente e digna de estima, mas sem nunca assumir ares esnobes,
fazendo autoironia sobre minha ignorância, fingindo-me surpresa com
meus bons resultados.” Essas frases podem dar a impressão de certo
autoflagelo, mas o teatro autoconsciente da reinvenção é na verdade algo
muito prazeroso: qualquer pessoa que já tenha saído do interior para
estudar na capital reconhecerá nessas passagens a alegria trêmula que o
exílio provoca. Em Pisa, Lenu admite encontrar “o paraíso na terra: um
espaço todo meu, uma cama só para mim, uma escrivaninha, uma
cadeira, livros, livros e livros, uma cidade em tudo diferente do bairro e
de Nápoles, cercada apenas por gente que estudava e era propensa a
discutir o que estudava”.
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A
entrada de Lenu na literatura é um ponto de inflexão na saga. Num
primeiro momento, a publicação do romance representa tudo que a
protagonista sempre quis: acesso ao mundo glamoroso dos Airota e
da elite intelectual italiana; resenhas e reconhecimento artístico; algum
dinheiro, até. Para quem sempre quis escapar da violência do bairro,
parece o apogeu. O início do casamento de Lenu e Pietro é de fato uma
espécie de idílio. Pietro é um homem gentil e responsável, embora sem
grandes arroubos de paixão, e os dois levam uma vida feliz e plácida.
Dividem o espaço de trabalho; têm duas filhas; ele consegue uma cátedra
em Florença e se destaca no mundo acadêmico, enquanto ela trabalha
num segundo livro.
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P
assada a fase inicial de idílio modesto, o casamento de Lenu e
Pietro se arrasta entre suspiros de tédio. Pietro só pensa em suas
aulas, e não cuida direito das crianças. O sexo entre os dois é
insosso. “Entrava em mim com investidas calculadas, violentas, tanto que
o prazer inicial se atenuou aos poucos, vencido pela insistência monótona
e pela dor que sentia no ventre”, Lenu descreve. “Ele se cobriu de suor
pelo demorado esforço, talvez pelo sofrimento, e ao ver seu rosto e o
pescoço banhados, ao tocar suas costas empapadas, o desejo sumiu
inteiramente.” Depois ela emenda: “Eu não sabia como me comportar;
acariciava-o, sussurrava-lhe palavras de amor e torcia para que parasse.
Quando explodiu num rugido e desabou finalmente exausto, me senti
contente, apesar de dolorida e insatisfeita.”
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“Eu lavo e passo suas roupas, limpo a casa, cozinho para você, lhe dei
uma filha, cuido dela com mil dificuldades, estou exausta.”
Eis que Nino Sarratore ressurge na história, Lenu afinal trai Pietro, e
começa a ter um caso com o seu amor de infância. Nino está no segundo
casamento e tem mais de um filho; ainda assim insiste para que Lenu
deixe o marido. Quando Lenu avisa a Pietro que irá deixá-lo, o marido cai
em desespero. Chora, se enfurece, arremessa uma mesa de vidro na
parede e acorda as filhas com seus gritos. Lenu tenta dizer às filhas que o
pai e a mãe ainda se gostam, mas ele a desmente, e diz às crianças que “é
a mãe de vocês que decidiu ir embora”, e que “ela já não gosta mais de
mim”. As resistências de Pietro fazem Lenu se lembrar das resistências do
mecânico Antonio, o seu primeiro namoradinho do bairro, e ela reflete
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N
ino Sarratore e Pietro Airota são diferentes, mas circulam nos
mesmos meios, conhecem as mesmas pessoas, dividem a mesma
escala de valores. Pietro é acadêmico cabeçudo, Nino ensaísta e
militante político. Os dois são burgueses de esquerda. Nino admira o
“Airota pai” imensamente e, por um tempo, tem uma relação cordial com
Pietro, com muitas trocas de ideias. É só depois que a disputa por Lenu se
acirra que ele começa a desdenhar das opiniões do Airota filho,
considerando-o “um professorzinho desprovido de imaginação,
superestimado apenas pelo sobrenome que tem e por sua obtusa
militância no Partido Comunista”.
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“É muito inteligente.”
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Nino, por outro lado, tem discursos progressistas belos, mas sempre com
uma tendência de moldá-los aos seus fins individuais. Lenu aos poucos
repara no arrivismo do amigo desde os tempos de infância, na prontidão
a passar para trás quem não tem prestígio intelectual suficiente e a elogiar
quem goza de autoridade – uma percepção que quebra a imagem de
dignidade que ela construíra dele “e que ele mesmo em geral se atribuía”.
O feminismo exibicionista de Nino também serve muito bem à sua
promiscuidade. Há um diálogo cômico e esclarecedor quando Lenu
percebe a tendência de seu amado a glorificar todas as mulheres que
conhece. “Será possível que não exista uma mulher idiota?”, ela lhe
pergunta, com sarcasmo. Nino tergiversa, lança a platitude de que no
geral as mulheres são melhores que os homens, e afirma que ela própria é
melhor que ele. Mas Lenu insiste: quer que ele cite pelo menos uma
“cretina”. No fim, irritado, ele diz que a única idiota que já conheceu foi
Lila, a melhor amiga de Lenu.
N
ino e Pietro não são os únicos personagens masculinos a ganharem
densidade ao longo da saga. O mesmo ocorre com os terríveis
irmãos Solara; mas a mudança é num sentido inverso. Entre uma e
outra surra, os machões violentos do bairro começam a demonstrar
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É animador ver uma escritora feminista como Ferrante não segurar a mão
quando se trata de mostrar esses defeitos. Talvez por pressões
mercadológicas, muitos romances e filmes recentes têm entregado uma
porção de heroínas “fortes” e insossas; como se apenas inverter o sinal da
moralidade resolvesse um problema sociológico de gênero. Com o seu
feminismo oblíquo e autoconsciente (a certa altura, Lenu escreve um
livro-ensaio sobre o papel colonizador que o homem exerce sobre a
mulher, e descreve as suas dificuldades em se adequar ao que o público
espera dela), Ferrante avança uma causa nos interstícios da narrativa,
com firmeza mas sem abrir mão das contradições inerentes à forma
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“F
azer mal era uma doença”, Lenu diz no começo da saga.
“Desde menina imaginei animaizinhos minúsculos, quase
invisíveis, que vinham de noite ao bairro, saíam dos poços, dos
vagões de trem abandonados para lá da plataforma, do mato malcheiroso
chamado fedentina, das rãs, das salamandras, das moscas, das pedras, da
terra e entravam na água, na comida e no ar.” Na Nápoles do pós-guerra,
é difícil atribuir toda violência física a uma falha de caráter – a violência
simplesmente está “no ar”. E num mundo onde todo mundo bate e todo
mundo apanha (embora alguns sempre batam mais do que apanhem, e
vice-versa), é difícil fazer julgamentos morais. Ferrante se refestela com
essas áreas cinzentas da moralidade. E, se no início da tetralogia
napolitana os meninos do bairro pareciam mais toscos e malévolos do
que os meninos da urbe, no fim já não é possível fazer esse julgamento.
Talvez o único homem da saga ao qual se possa atribuir uma falha moral
mais profunda seja Donato Sarratore, o pai de Nino. Donato é um poeta
medíocre e pomposo do bairro, que por ter publicado um livro de poesia
e alguns artigos em jornais da capital acredita-se um grande artista. O
talento artístico imaginado lhe dá confiança para fazer o que bem
entende. Sabe-se que traiu a esposa por muito tempo com a amante,
Melina, que quando é abandonada quase enlouquece. Durante uma
temporada de veraneio na praia de Ischia, ele invade o cômodo onde
Lenu está dormindo, dá-lhe um beijo e a acaricia entre as pernas. Na
época, Lenu ainda tem 15 anos e alimenta desejos pelo filho desse homem
que agora vem molestá-la. A experiência lhe causa embaraço e confusão
mental. Mais tarde, quando a protagonista descobre que Nino e a sua
melhor amiga estão juntos, Donato se aproveita do momento de
fragilidade para transar com ela, na praia. A experiência tem
repercussões psicológicas profundas, e serve de base para o primeiro
romance de Lenu.
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