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Cony
Mas não sou apenas escritor. Trabalho em jornal, em função das mais humildes, por
sinal. Gasto minhas noites às voltas com os títulos, as legendas, as fotos, a
diagramação, a oficina, cortando ali, metendo um sinônimo aqui, invertendo uma
frase no chumbo para dar na medida da página, funções inglórias e que em nada
contribuíram para a implantação do Governo do sr. João Goulart (p.25)
Afirmam que há uma revolução no país. Não discutirei a palavra revolução. Aceito-a,
para argumentar. Se houve revolução, e se os chefes dessa revolução ignorarem
essa Causa que uniu e continuará unindo tantos brasileiros, teremos de admitir
aquilo que a imprensa francesa, e, nos últimos dias, a própria imprensa norte-
americana diagnosticaram no país: um simples golpe da direita para a manutenção
de privilégios. (p.28)
Não quero crer que essa seja a versão exata. Até agora os líderes da revolução,
civis ou militares, falam apenas em limpar o terreno. A expressão é tipicamente de
quartel. Mas o Brasil não é um quartel. É um povo com crianças que passam fome,
com adultos que chegam à vida pública analfabetos porque não tiveram escola.
(p.28)
O movimento que depôs o sr. João Goulart contou com as simpatias de alguma
parte da população. Sufocar a liberdade de um povo porque alguns líderes não
souberam ser dignos do mandato do povo é trair o povo. Mais: é trair a dignidade da
condição humana. (p.28)
Na realidade, não foi editado. Foi simples e tiranicamente imposto auma nação
perplexa, sem armas e sem líderes para a reação. Foi desprezivelmente imposto a
um Congresso emasculado. (p.29)
Não se podia esperar caráter e patriotismo dos políticos: são coisas que a estrutura
de um político não pode possuir, assim como a estrutura do concreto armado não
pode possuir bolsões de ar. Mas dos militares — não há como negar — sente-se
patriotismo e algum caráter. Um patriotismo adjetivado, sem substantivos, que se
masturba com os gloriosos feitos históricos, feitos cada vez mais discutíveis. Um
patriotismo estéril, que não leva a nada, que não constrói nada: lembro a patriotada
do marechal Osvino mandando que os postos de gasolina hasteassem a bandeira
nacional. É quase uma anedota, mas é típico da espécie de patriotismo que rege
nossas Forças Armadas. (p31/32)
Sem medo, e com coerência, continuo afirmando: isso não é uma revolução. É uma
quartelada continuada, sem nenhum pudor, sem sequer os disfarces legalistas que
outrora mascaravam os pronunciamentos militares. É o tacão. É a espora. A força
bruta. O coice. (p.32)
Acredito que só os histéricos queiram levar até o fim aquilo que o Alto Comando,
repetindo nazistas, fascistas e comunistas de diferentes épocas e causas, chama de
expurgo. É uma feia palavra, que soa como um vomitório e cuja prática leva a
crueldades insuspeitadas: os tiranos apertam o starter e a engrenagem policial faz o
resto. (p.38)
A deposição do sr. João Goulart foi realmente reclamada por grande parcela das
classes médias: era uma situação caótica, insustentável. Mas a continuação do
Golpe Militar que depôs o governo, o Ato Institucional, a perseguição, os expurgos,
as delações, as caçadas humanas — isso não apenas o povo não aprovou como
está repelindo. Só os histéricos estão satisfeitos com a atual situação. A nação está
em silêncio, à espera que alguém coloque um ponto final nesse noviciado à tirania
que pretende se impor como reivindicação popular, quando, na realidade, é uma
reivindicação de alguns elementos da caserna, açulados por políticos corruptos e
indecentes que não tiveram vez na corrupção e na indecência do governo anterior.
(p.44)
E assim sendo, acertaremos o passo com a cívica patriotada que por aí anda. Vejo
nos jornais que é de bom alvitre — alvitre prestigiado e compensado pelas Forças
que nos regem e guiam — delatar pessoas e locais onde Polícia ou Exército
possam encanar os lacaios de Moscou, Pequim, Havana ou outras cidades da atual
geografia subversiva. (p.46)
Pois no Brasil de 1964 não se respeita nada. Cassam mandatos sem que os réus
tenham a oportunidade de abrir a boca. Suspendem direitos políticos e nem os
punidos sabem por que crime, por que omissão ou ação perderam seus direitos.
(p.52)
A delação foi feita e o ascensorista não sabe que ao lado de sua casa, por culpa na
qual ele não chega a ter culpa, uma família inteira mais o agregado — talvez apenas
um papagaio — esperam inutilmente que João de Tal volte com seus braços fortes
para o sustento de todos. Com seus dentes brancos para o sorriso de todos. (p.62)
Esta quartelada que por aí anda exaltada em bocas antes tão ordeiras e
constitucionalistas tem vários aspectos curiosos e sórdidos, e um deles é
precisamente o de se intitular “revolução”.[18] Pode-se aceitar a denominação, tal
como se aceita a metamorfose nominal das prostitutas e das dançarinas de cabaré,
onde as Marias Franciscas viram Brigites e as Sebastianas das Dores viram
Marylins. (p.80)
Uma leitora do Leblon faz a exposição de seu drama: o pai está preso desde os
primeiros dias de abril. Foi levado a um estabelecimento militar, onde, para
baixarem o moral dos detidos, são promovidas rajadas de metralhadoras. Cessado
o barulho, um oficial comunica, em voz alta, que o fuzilamento do dia acabou. (p.84)
Como se não bastasse a brincadeira boçal, há coisa mais grave ainda: misturam
Pervitin na comida dos presos. Homens forçados à imobilidade, em cubículos
estreitos, são condenados à insônia e à superexcitação. Causa espanto que tanta
molecagem seja praticada em nome dos sagrados postulados cristãos, para
espiritual deleite das mães que promovem marchas com Deus pelas famílias. (p.84)
Os nossos inocentes capitães, majores e coronéis, que foram arriscar suas vidas
nas batalhas que felizmente nunca se realizam neste Brasil, não sabiam que, no
momento em que se despediam de suas esposas e filhos, numa cena trágica e rara
de seus quotidianos prosaicos e honestos, naquela mesma hora a crise brasileira
aumentava a velocidade nas esteiras de produção de milhares de fábricas norte-
americanas. Dias antes de nossa quartelada, os homens fortes dos Estados Unidos
tinham feito duas coisas paralelas: aceitaram a ditadura de Stroessner e deram sinal
verde ao embaixador Lincoln Gordon. Daí, foi só apertar o botão e tudo começou.
(p.101)
Sei, havia bagunça e corrupção no governo passado. Mas o que estará havendo
neste atual governo? Se havia uma evidência na gestão do sr. Goulart (a bagunça
institucionalizada), na gestão do sr. Castelo Branco, há outras terríveis evidências: a
tirania, a violentação das liberdades — e também a bagunça. (p.101)
Nisso tudo, não há por onde fugir, o sr. Castelo Branco tem responsabilidade direta
e intransferível. Se já não manda realmente, que ao menos tenha coragem e diga
isso à nação. Do contrário, estará se candidatando a um triste, a um indecente
papel na História. (p.101)
Podia ser pior — é um argumento que rosnam por aí. Não vale como raciocínio.
Tudo podia ser pior nesta vida, e um país não pode ser governado na base das
coisas piores que poderiam ter acontecido. O que aconteceu já foi pior em si
mesmo. E, ao contrário do artigo que se acabou, as coisas piores que ele criou,
manteve e fecundou continuarão por muito tempo ainda. (p.108)
Muitos dos expulsos vinham se distinguindo como excelentes alunos, alguns deles
entre os melhores de toda a Faculdade. Foram expulsos por representarem o
pensamento de grande maioria de estudantes em todo o Brasil. Por isso mesmo,
podemos afirmar que a violência praticada contra eles, na realidade, atingiu ao
próprio movimento universitário. Pretendeu-se calar a voz dos estudantes,
impedindo-os de pensar e participar da vida nacional. (p.120)
Adiei esta explicação, mas aqui está ela: não sou político nem sequer sou um
jornalista político. Escrevi sobre a situação nacional numa hora em que a política era
secundária. O que ficou em jogo — e continua em jogo, mas de forma já
desmascarada — foi a dignidade da pessoa humana, das instituições civilizadas.
Como homem, como escritor, não podia ficar alienado aos descalabros de abril e
meses seguintes. Não me violentei. Não fiz política. Fiz o que sempre pretendi fazer:
dei o meu testemunho. (p.138)
O nosso problema é que nem sequer temos eleições. Na UNE, nos sindicatos, nos
municípios, nos estados, na federação — a palavra eleição é subversiva e corrupta:
só pensa nela quem recebe dinheiro dos chineses e trama degolar as nossas
criancinhas. Os homens bem-formados, os pilares da sociedade cristã, as classes
produtoras, o glorioso Exército de tão embatidas tradições — tudo isso sabe que
eleição é patifaria, suborno, demagogia e corrupção. (p.140)