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DI FELIPE, Paulo Henrique S. Pereira.

A categoria de posse nominal em línguas indígenas:


como caracterizá-la a partir das semânticas lexical e cognitiva. Squib de aula da disciplina
“Semântica”. Campinas (SP): Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp), Março- 2017.

A categoria de posse nominal em línguas indígenas: como caracterizá-la a partir das


semânticas lexical (de traços) e cognitiva

Neste Squib apresentamos como a categoria de posse nominal pode ser tratada, ainda que
brevemente, sob o enfoque de abordagens semânticas do tipo lexical (de traços, como proposto
no modelo gerativo) e cognitiva. O objetivo desse trabalho não é apresentar nenhuma análise
exaustiva dessa categoria, nem muito menos atestar se uma abordagem é mais adequada que a
outra em termos de análise dos dados. Embora fique evidente, como veremos adiante, que não é
possível tratar da categoria de posse nominal em línguas indígenas com base em traços
semânticos isolados ou fora de seu contexto enunciativo, o intuito desse ensaio é sobretudo
ilustrativo.

1. A categoria de posse nominal

A categoria de posse nominal diz respeito, como o próprio nome pressupõe, às construções
gramaticais que expressam, de alguma forma, uma relação de parentesco, contiguidade,
pertencimento, propriedade, parte-todo, dentre outras, entre dois ou mais itens. Chappell &
McGregor (1996) dividem as construções possessivas em três tipos principais: (i) Construção de
Posse Atributiva, que são aquelas construções em que o possuidor e o item possuído formam
uma espécie de sintagma possessivo, como em livro do João e seu carro; (ii) Construção de
Posse Predicativa, que são aquelas construções em que a relação possessiva é estabelecida por
meio de um predicado, ex: João tem uma bicicleta ou Ele tem um bicicleta e (iii) Construção de
Posse Externa, que são aqueles tipos de construções em que a relação possessiva é expressa do
nível da sentença, e não propriamente dentro do sintagma possessivo, como em João cortou a si
mesmo no dedo. Nos ateremos, aqui, somente às Construções de Posse Atributiva.

1.1. Tipos de Construção de Posse Atributiva

As construções de posse atributiva podem portar nomes de dois tipos: alienáveis e inalienáveis.

1.1.1. Nomes Alienáveis

Os nomes alienáveis dizem respeito àqueles itens que, de forma transferível ou transitória,
podem ser possuídos por alguém. Diferentemente dos nomes inalienáveis, cuja posse sempre
está associada a algum possuidor, esta categoria de nomes geralmente engloba o domínio de
itens prototipicamente sociais, que podem tanto ser tanto meus, como de alguém, de qualquer
outra pessoa. Vejamos os exemplos do Mehináku:

a. n-a'kani b. a'kani
1SG-pequi pequi
‘meu pequi’ ‘pequi’
Notemos, pelos exemplos acima, que o nome a'kani ‘pequi’ pode aparecer tanto em uma
construção de posse, quanto sozinho na sentença. Isso demonstra que nomes alienáveis podem
ocorrer sem um possuidor marcado gramaticalmente, em Mehináku.

1.1.2. Nomes Inalienáveis

Os nomes inalienáveis, por sua vez, dizem respeito àqueles itens que, de uma forma ou de outra,
estão intimamente ligados aos seus possuidores, de modo que sem eles não podem ocorrer.
Estes itens, em virtude do tipo de relação de proximidade que estabelecem com seus
proprietários, estão ligados, de acordo com Nichols (1988), aos seguintes domínios: (a)
parentesco; (b) partes do corpo; (c) conceitos relacionalmente espaciais, como “superior”,
“inferior”, “interior”, etc. Vejamos os exemplos do Mehináku:

a. nu-'tɨwɨ b. *'tɨwɨ c. 'tɨwɨ-i


1SG-cabeça cabeça cabeça-NPOSS
‘minha cabeça’ ‘cabeça’ ‘cabeça de alguém’

Observemos, por meio dos exemplos acima, que a língua Mehináku não permite que nomes
inalienáveis, como 'tɨwɨ ‘cabeça’, apareçam sozinhos na sentença, conforme é atestado pela
agramaticalidade da construção em (b). Sempre que um nome desse tipo aparece sozinho, ele
porta o sufixo -i, como em (c), cuja função é determinar que esse item pertence, de alguma
forma, a um possuidor.

Diante do apresentado acima, fica evidente que os nomes alienáveis e inalienáveis se


comportam de formas diferentes em relação a categoria de posse nominal. Enquanto os
primeiros não necessitam estar acompanhados de um possuidor, os segundos não podem ocorrer
sem ele. Vejamos, a seguir, como podemos apresentar essa diferença em termos de traços.

2. Esboço da questão no modelo da Semântica Lexical (ou de traços, cf. modelo gerativo)

Em termos de traços, poderíamos elaborar o seguinte esquema para uma possível estratificação
dos nomes alienáveis e inalienáveis do Mehináku apresentados acima:

Conhecimento Semema
Enciclopédico Sema 1 Sema 2
Lexemas Itens do mundo Requerem agente possuidor
a'kani ‘pequi’ + -
'tɨwɨ ‘cabeça’ + +

Até aqui, então, nos parece que a categoria de posse pode ser explicada por uma matriz de
traços como a apresentada anteriormente. O problema, no entanto, subjaz no fato de que, nem
todas as categorias que elencamos como inalienáveis, são, de fato, inalienáveis, em todas as
línguas.
Em Hup, por exemplo, a categoria de partes do corpo é alienável, ou seja, não requer um
possuidor específico, enquanto que a categoria de plantas (ou partes de plantas) é inalienável!
Vejamos os exemplos do Hup, a seguir:
a. tɨh-tát b. *tát c. tɨnɨh núh d. núh
3SG-fruta fruta 3SG.F cabeça cabeça
‘fruta dele’ ‘fruta’ ‘cabeça dela’ ‘cabeça’

Em termos de traços, teríamos o seguinte esboço para o Hup:

Conhecimento Semema
Enciclopédico Sema 1 Sema 2
Lexemas Itens do mundo Requerem agente possuidor
tát ‘fruta’ + +
núh ‘cabeça’ + -

Fica evidente, pela comparação entre Mehináku e Hup, que a categoria de posse nominal, em
especial no que se refere ao estatuto possessivo dos nomes alienáveis e inalienáveis, é
completamente diferente de uma língua para a outra.
Esse fato nos leva a crer, portanto, que um modelo como o proposto acima, que caracteriza os
nomes a partir de suas propriedades isoladas, não dá conta de explicar satisfatoriamente a
questão da posse nominal nas línguas do mundo. Isto porque, em nossa opinião, a
sistematização por meio de traços não cumpre com os princípios de naturalidade e poder de
previsão, necessários a toda ciência. O esquema apresentado acima não é natural porque é
necessário apresentar traços específicos para cada tipo de nome, o que acarreta numa tarefa
exaustiva e pouco econômica do ponto de vista linguístico. Também não tem poder de previsão
pois, como vimos, não é possível eleger traços universais para todas as línguas.
É importante deixar claro, entretanto, que a crítica que fizemos ao modelo de traços apresentado
acima refere-se àquele tipo de análise defendido pela semântica de base gerativa na metade do
século passado, e não à corrente da semântica lexical atual, como apresentada por Pietroforte
(2011), que embora trate de categorizar os nomes em termos de traços, o faz sob o enfoque da
enunciação, do contexto, e não apenas a partir de características isoladas desses itens lexicais.
O problema dos nomes, contudo, não para por aí. Se, por um lado, o problema da categorização
dos nomes é uma questão difícil de se resolver quando estão em jogo nomes alienáveis e
inalienáveis, essa questão se complica ainda mais quando trazemos à baila a categoria dos
nomes não-possuíveis. Vejamos, a seguir.

Nomes Não-Possuíveis
Esta categoria de nomes diz respeito, na maioria das vezes, àqueles itens que não podem ser
gramaticalmente possuídos por nenhum possuidor, seja de forma alienável, seja de forma
inalienável. Vejamos, abaixo, um exemplo deste tipo de nome na língua Akwe-Xerente (Souza
Filho, 2005, p. 570), em que a subclasse dos nomes não-possuíveis inclui nome de pessoas,
como em (a) e (b); minerais (c) e (d); fenômenos da natureza (e) e (f) e corpos celestes (g) e (h):

a. Sidi b. Samaru c. kɨ ‘água’


d. knẽ ‘pedra’ e. tã ‘chuva’ f. kwikãs ‘tempestade’
Se esses itens, portanto, não podem ser possuídos, seja de forma alienável ou inalienável, como
categorizar esses nomes em termos de traços, uma vez que a característica que aparentemente
dividia os nomes era o traço de ±agente possuidor?

3. Esboço da questão no modelo da Semântica Cognitiva

Na semântica cognitiva os significados não se dão mais com base na separação entre semântica
e pragmática (módulos, como na Teoria Gerativa). Os sentidos estão, por outro lado, em inter-
relação, integrados a partir do que se pode chamar de esquemas imagéticos. Vejamos o esquema
imagético de POSSE, como o que mostramos acima, com base na Linguística Cognitiva:

Verbo ‘ter’. (Jonhson, 1897; Lakoff, 1987)

(1) Meu pequi (Eu tenho um pequi): RELAÇÃO DE PROPRIEDADE


(2) Minha cabeça (Eu tenho uma cabeça): RELAÇÃO PARTE-TODO ‘METONÍMICA’

O verbo ter (ou o que ele representa) está associado a um conteúdo conceptual específico,
relacionado ao esquema imagético de contêiner: codifica um cenário experiencial que delimita a
continência de um objeto dentro de um espaço de fronteiras delimitadas. Logo:

Os exemplos em (1) e (2) indicam


X genericamente posse, de modo que os
possuidores são entendidos metaforicamente
como contêineres, e o que é possuído pode ser
um objeto físico (pequi-alguém), ou, ainda,
Esquema imagético de contêiner (Jonhson, 1987) um tipo de relação (cabeça-alguém).

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